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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 36, n. 4, 4401 (2014) www.sbfisica.org.br Pesquisa em Ensino de F´ ısica Constru¸c˜ ao geom´ etrica e demonstra¸ c˜aoexperimentaldaforma¸c˜ ao da “imagem cicl´opica” em uma associa¸c˜ ao de dois espelhos planos (Geometrical construction and experimental demonstration of the “cyclops image” formation in an association of two flat mirrors) Jair L´ ucio Prados Ribeiro 1 Col´ egio Marista de Bras´ ılia, Brasilia, DF, Brasil. Recebido em 29/4/2014; Aceito em 21/8/2014; Publicado em 23/10/2014 Um observador situado entre dois espelhos planos formando um ˆangulo diedro particular visualizar´ a duas imagens parciais cont´ ıguas do seu rosto, com um olho ´ unico: uma “imagem cicl´opica”. ´ E apresentada uma explica¸ ao sobre a forma¸c˜ ao dessa imagem, baseada em constru¸c˜ oes geom´ etricas, al´ em de uma proposta ex- perimental simples, permitindo sua abordagem no ensino m´ edio e buscando renovar o interesse pelo tema da associa¸c˜ ao de espelhos planos, o qual se encontra sedimentado nos obras did´aticas, levando a uma discuss˜ao acr´ ıtica da tem´atica. Palavras-chave: ´ optica, espelho, reflex˜ao. An observer located between two flat mirrors forming a particular dihedral angle will see two contiguous partial images of his face, with a single eye: a ”cyclops image”. An explanation on the formation of this picture is presented, based on geometric constructions, along with a simple experimental proposal, allowing its approach in high school and trying to renew the interest in the problem of the association of flat mirrors, which seems to be settled in textbooks, and leads to some uncritical discussions. Keywords: optics, mirror, reflection. 1. Introdu¸c˜ ao Um tema tradicional na apresenta¸c˜ ao do conte´ udo de reflex˜ao da luz no ensino m´ edio ´ e a forma¸c˜ ao de ultiplas imagens quando um objeto ´ e interposto entre dois espelhos planos formando um ˆangulo diedro entre si. A demonstra¸c˜ ao experimental dessa multiplicidade de reflex˜oes ´ e facilmente realizada com o uso de dois espelhos planos interligados, e a express˜ao que fornece o n´ umero de imagens n, dado um ˆangulo diedro α (em radianos) ´ e expressa a seguir n = 2π α 1. Segundo a Ref. [1], essa express˜ao ´ e v´alida para qualquerposi¸c˜ ao do objeto, se o n´ umero de imagens n for ´ ımpar; se tal n´ umero for par, o objeto deve estar no plano bissetor do ˆangulo diedro para a express˜ao ser aplic´avel.N˜ao´ e citada a possibilidade de existˆ encia de um n´ umero n˜ao inteiro de imagens, o que se justifica: afinal, a express˜ao ´ e deduzida supondo objetos ´opticos equivalentes a pontos materiais, sem dimens˜ao, n˜ao po- dendo ser vistos parcialmente. Entretanto, essa argumenta¸c˜ ao sobre o n´ umero de imagens est´a incompleta: durante a etapa de revis˜ao desse artigo, nos foi apontado que a real diferencia¸c˜ ao entre n par e ´ ımpar reside no fato que os valores ´ ımpares de imagens s˜ao discretos, isto ´ e, ocorrem somente para o ˆangulo obtido pela express˜ao, enquanto para valores pares de n, as imagens ocorrem ao longo do intervalo en- tre os valores ´ ımpares adjacentes. Ao fazermos a direta observa¸ ao experimental (Fig. 1), com dois espelhos em ˆ angulo diedro e um objeto de dimens˜oes reduzidas (es- fera pl´astica com cerca de 1 cm de diˆametro), buscando a proximidade com um ponto material, essa afirma¸c˜ ao se tornou ainda mais clara: ao dispormos os espelhos em ˆangulo de 90 (π/2), observamos trˆ es imagens, e para o ˆangulo de 60 (π/3), cinco imagens. Entretanto, ´ e poss´ ıvel observar quatro imagens n˜ ao apenas para o ˆ angulo de 72 (2π/5), mas para diferentes ˆangulos entre 60 e 90 (Fig. 1). Se o ˆangulo diedro estiver compre- endido entre 60 e 75 (aproximadamente), uma quinta imagem pode ser vista (por exemplo, na segunda ima- gem obtida com ˆangulo de 65 ), caso o objeto pontual esteja pr´oximo a um dos espelhos e o observador mire as imagens desse objeto colocando-se junto a esse mesmo espelho. 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 36, n. 4, 4401 (2014)www.sbfisica.org.br

Pesquisa em Ensino de Fısica

Construcao geometrica e demonstracao experimental da formacao da

“imagem ciclopica” em uma associacao de dois espelhos planos(Geometrical construction and experimental demonstration of the “cyclops image” formation

in an association of two flat mirrors)

Jair Lucio Prados Ribeiro1

Colegio Marista de Brasılia, Brasilia, DF, Brasil.Recebido em 29/4/2014; Aceito em 21/8/2014; Publicado em 23/10/2014

Um observador situado entre dois espelhos planos formando um angulo diedro particular visualizara duasimagens parciais contıguas do seu rosto, com um olho unico: uma “imagem ciclopica”. E apresentada umaexplicacao sobre a formacao dessa imagem, baseada em construcoes geometricas, alem de uma proposta ex-perimental simples, permitindo sua abordagem no ensino medio e buscando renovar o interesse pelo tema daassociacao de espelhos planos, o qual se encontra sedimentado nos obras didaticas, levando a uma discussaoacrıtica da tematica.Palavras-chave: optica, espelho, reflexao.

An observer located between two flat mirrors forming a particular dihedral angle will see two contiguouspartial images of his face, with a single eye: a ”cyclops image”. An explanation on the formation of this pictureis presented, based on geometric constructions, along with a simple experimental proposal, allowing its approachin high school and trying to renew the interest in the problem of the association of flat mirrors, which seems tobe settled in textbooks, and leads to some uncritical discussions.Keywords: optics, mirror, reflection.

1. Introducao

Um tema tradicional na apresentacao do conteudode reflexao da luz no ensino medio e a formacao demultiplas imagens quando um objeto e interposto entredois espelhos planos formando um angulo diedro entresi. A demonstracao experimental dessa multiplicidadede reflexoes e facilmente realizada com o uso de doisespelhos planos interligados, e a expressao que forneceo numero de imagens n, dado um angulo diedro α (emradianos) e expressa a seguir

n =2π

α− 1.

Segundo a Ref. [1], essa expressao e valida paraqualquer posicao do objeto, se o numero de imagens nfor ımpar; se tal numero for par, o objeto deve estarno plano bissetor do angulo diedro para a expressao seraplicavel. Nao e citada a possibilidade de existencia deum numero nao inteiro de imagens, o que se justifica:afinal, a expressao e deduzida supondo objetos opticosequivalentes a pontos materiais, sem dimensao, nao po-dendo ser vistos parcialmente.

Entretanto, essa argumentacao sobre o numero de

imagens esta incompleta: durante a etapa de revisaodesse artigo, nos foi apontado que a real diferenciacaoentre n par e ımpar reside no fato que os valores ımparesde imagens sao discretos, isto e, ocorrem somente parao angulo obtido pela expressao, enquanto para valorespares de n, as imagens ocorrem ao longo do intervalo en-tre os valores ımpares adjacentes. Ao fazermos a diretaobservacao experimental (Fig. 1), com dois espelhos emangulo diedro e um objeto de dimensoes reduzidas (es-fera plastica com cerca de 1 cm de diametro), buscandoa proximidade com um ponto material, essa afirmacaose tornou ainda mais clara: ao dispormos os espelhosem angulo de 90◦ (π/2), observamos tres imagens, epara o angulo de 60◦ (π/3), cinco imagens. Entretanto,e possıvel observar quatro imagens nao apenas para oangulo de 72◦ (2π/5), mas para diferentes angulos entre60◦ e 90◦ (Fig. 1). Se o angulo diedro estiver compre-endido entre 60◦ e 75◦ (aproximadamente), uma quintaimagem pode ser vista (por exemplo, na segunda ima-gem obtida com angulo de 65◦), caso o objeto pontualesteja proximo a um dos espelhos e o observador mire asimagens desse objeto colocando-se junto a esse mesmoespelho.

1E-mail: [email protected].

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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Figura 1 - Imagens de um objeto de dimensoes reduzidas para angulos diedros entre 65◦ e 85◦.

Para um corpo extenso, entretanto, e possıvel a ob-servacao de uma imagem composta de duas imagensparciais, a primeira sendo formada pelos raios que re-fletem primeiro em E1 e posteriormente em E2, e asegunda conjugada pelos raios que seguirem a ordeminversa de reflexao. Assim, se o observador se colocarentre os dois espelhos e o angulo entre os mesmos foradequado, podera ser visualizada uma imagem formadaatras dos planos dos espelhos, diretamente a frente doobservador, a qual parece conter apenas um olho, for-mada pela justaposicao da metade da imagem do olhodireito com a metade do olho esquerdo. O efeito e me-lhor visualizado se os olhos do observador possuırema mesma cor, pois pessoas com olhos de cores diferen-tes verao o “olho unico” com uma metade de cada cor.Nesse trabalho, essa justaposicao de imagens parciais echamada de imagem ciclopica do observador, em umareferencia aos ciclopes, seres da mitologia grega [2] comum unico olho.

2. Revisao bibliografica

Dentre os livros-texto voltados para o ensino medio re-visados [1,3-8], nenhum menciona a possibilidade deexistencia de uma justaposicao de imagens parciais. ARef. [1] detalha a formacao das multiplas imagens,propondo inclusive a demonstracao experimental daformacao de imagens quando o angulo entre os espelhose 90◦, e a mesma argumentacao tambem e encontradana Ref. [3]. A Ref. [4], por sua vez, nem mesmo cita asituacao de associacao de espelhos planos, enquanto a

obra [5] faz apenas uma breve referencia a mesma, ape-nas para expor a Eq (1), sem justifica-la. O livro-texto[6] nao faz uma exposicao detalhada sobre a associacao,preferindo apresenta-la apenas como uma sugestao deatividade experimental, em uma secao final do capıtulodedicado aos espelhos planos; o mesmo ocorre na Ref.[7]. Finalmente, a obra [8] apresenta uma exposicaodetalhada do fenomeno, semelhante ao livro [1], masnovamente nao apresenta a possibilidade de imagensparciais.

Foram pesquisadas tambem obras voltadas ao en-sino superior [9-13] e textos classicos da optica [14-15],a fim de verificar se um tratamento mais completo dotema estaria disponıvel. A Ref. [9] propoe uma rapidaabordagem do tema, a qual e bastante semelhante apresente nos livros-texto de ensino medio consultados,e novamente apenas a situacao de um objeto pontuale discutida. Ja a Ref. [10] prefere abordar o temamais complexo de labirintos de espelhos planos ao invesda simples associacao, enquanto a obra [11] nao cita aformacao de imagens em associacoes de dois ou tres es-pelhos planos, centrando sua discussao na trajetoria daluz ao refletir em tais sistemas, deixando para o estu-dante a tarefa de resolver exercıcios acerca das imagensformadas. O mesmo e verificado nos livros-texto [12-13]: a associacao de espelhos torna-se um unico pro-blema proposto na secao de exercıcios. Ate mesmo nasobras classicas fundamentais da optica consultadas [14-15] nao foram encontradas mencoes a associacao de es-pelhos em angulo.

Revisamos entao os periodicos da area de ensino

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de fısica,2 buscando abordagens teoricas ou experi-mentais voltadas ao tema desse trabalho, e novamenteverificamos que nao ha preocupacao com o estudoda tematica da associacao de espelhos planos, apon-tando para um eventual esgotamento da discussao dessetopico. A maior parte dos estudos sobre reflexao abordaconteudos referentes aos espelhos curvos, e poucos saoos artigos que se dedicam aos espelhos planos ou a as-sociacoes de espelhos. Dentre os trabalhos revisados,encontra-se a discussao da projecao de imagens reaisdo Sol a partir do uso de espelhos planos [16-17], ascondicoes de ocorrencia da reflexao especular em su-perfıcies irregulares [18], a construcao de caleidoscopioscom espelhos de grandes dimensoes [19], a obtencao deuma pseudoimagem com espelhos cilındricos [20] (casoque pode ser considerado analogo a uma associacao), ouso da simetria presente na arte etnica no estudo dasleis da reflexao [21] ou o posicionamento da imagem emum espelho ou superfıcie refletora plana [22-23]. Atemesmo o artigo [24], o qual faz uma extensa abordagemteorica sobre as imagens formadas em sistemas oticoscom dois espelhos, nao traz em seu escopo a possibili-dade da associacao de espelhos planos em angulo.

Ao analisar o conjunto de obras didaticas [1,3-8],percebemos que uma razao pela qual o numero naointeiro de imagens nao ser citado tem uma causa co-mum: nas obras que chegam a trabalhar a associacaode espelhos, o objeto optico e sempre pontual, e nao hasentido em se conceber imagens parciais de um ponto.Apesar de usarem esse tratamento geometrico simpli-ficado, alguns dos livros-texto consultados [1, 3, 5, 8]apresentam, a tıtulo de exemplo, fotos de objetos exten-sos a frente dos espelhos, conflitando com a explanacaoteorica apresentada.

Pode-se oferecer outra provavel razao para aausencia dessa discussao nas obras didaticas: a situacaodescrita nesse trabalho (justaposicao de imagens par-ciais) nao possui aplicacoes tecnologicas imediatas, eportanto sua contextualizacao e mais difıcil de ser rea-lizada, conflitando com os objetivos das obras didaticasrecentes. Esse trabalho busca oferecer uma abordagemcomplementar desse tema, sanando essa limitacao doslivros-texto consultados.

3. Construcao geometrica da imagemciclopica

E importante frisar que a imagem ciclopica descritanesse artigo nao e uma imagem unica, nem mesmoplana: ela e formada pela visualizacao conjunta de duasimagens parciais, que se adequadamente justapostas,sao observadas como contıguas, criando o efeito visualde um olho unico na imagem observada. Tais imagensparciais, por sua vez, ocorrem devido as restricoes que

a associacao de espelhos cria no campo visual do obser-vador. Assim, parcelas das imagens conjugadas podemnao estar contidas nesse campo, permitindo ao obser-vador apenas a deteccao de fracoes das mesmas.

A justaposicao que gera a imagem ciclopica, entre-tanto, nao ocorre para qualquer numero de imagens (etambem para qualquer angulo diedro), pois e necessarioque as parcelas das imagens se justaponham na regiaoformada atras dos planos dos espelhos, fato que somenteocorre para um numero ımpar de imagens. Para a cons-trucao apresentada a seguir (Fig. 2), considera-se aformacao da imagem ciclopica apenas quando o angulodiedro e proximo de 90◦, mas a mesma imagem poderiaser observada para angulos proximos a 60◦ (n = 5), 45◦

(n = 7) ou ate mesmo angulos menores.A Fig. 2 representa uma vista superior da situacao

descrita, onde os espelhos sao indicados por E1 e E2,Buscou-se na construcao da ilustracao a melhor repre-sentacao possıvel da construcao geometrica da imagemciclopica. O rosto foi simplificado por um segmento dereta AB, no qual A e B representam os olhos.

Figura 2 - Construcao geometrica da imagem ciclopica.

As duas primeiras imagens do segmento foram obti-das por simetria: a partir das linhas de construcao per-pendiculares ao espelho (pontilhadas), foram identifica-dos os pontos imagem A1’ e B1’, sendo entao construıdaa imagem causada pela reflexao no espelho E1 (seg-mento de reta A1’B1’). De forma analoga, construiu-sea imagem refletida no espelho E2 (segmento de retaA2’ B2’). Por simetria, foram entao obtidas as imagensA12’ e B12’ de A1’ e B1’ em relacao a E2, assim como

2Periodicos consultados: Caderno Brasileiro de Ensino de Fısica, Fısica na Escola, Revista Brasileira de Ensino de Fısica, The PhysicsTeacher e Physics Education.

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as imagens de A21’ e B21’ de A2’ e B2’ em relacao a E1,e os respectivos segmentos de reta A12’B12’ e A21’B21’,os quais representam as imagens finais em relacao aosespelhos E1 e E2.

A Fig. 2 mostra que os segmentos de reta A12’B12’e A21’B21’ se cruzam na bissetriz, pois os pontos A12’e B21’ coincidem, gerando um olho unico nesse ponto,o que demonstra a formacao da imagem ciclopica. Aocolocarmos um conjunto de espelhos em angulo sobreo esquema da Fig. 2, a fim de verificar experimental-mente se a ilustracao estava correta, foi percebido queuma pequena alteracao no angulo de visao permite avisao do ponto, ou ate mesmo de parte dos segmentosA’12B’12 ou A’21B’21. Assim, apesar da Fig. 2 informarque tais segmentos nao sao visıveis, e possıvel observa-los, se a posicao do observador nao for frontal ao planodos espelhos.

Um alerta para os leitores que desejarem reprodu-zir a construcao geometrica apresentada na Fig. 2: afigura final levou algumas horas para ser corretamenteelaborada. Para sua confeccao, foram feitas diversastentativas, varias das quais infrutıferas, usando o soft-ware grafico CorelDraw X4, o qual permite uma grandeprecisao na correta construcao das imagens, em espe-cial nas condicoes de simetria. Ao longo das diversasconstrucoes, foi percebido que mesmo alteracoes peque-nas no angulo entre os espelhos podem fazer com que ossegmentos A12’B12’ e A21’B21’ nao venham a se cruzar(Fig. 3), fazendo com que nao haja justaposicao dasimagens e com a visualizacao apenas de duas imagensdistintas (segmentos A1’B1’ e A2’B2’). Uma construcaode boa qualidade tambem pode ser elaborada de ma-neira tradicional, com papel, lapis, regua, compasso etransferidor.

E possıvel ainda que os segmentos se cruzem empontos diversos (Fig. 4), havendo nesse caso apenasuma proximidade dos pontos A12’ e B21’ (imagens dosolhos) e nao uma justaposicao. Assim, no caso ilustradona Fig. 4, a pessoa que estivesse a frente dos espelhosnao observaria a imagem ciclopica, mas sim o rosto maisfino, com os dois olhos mais proximos que o normal e onariz cortado ao meio. Entretanto, essa mesma figurapode ser usada para explicar a imagem ciclopica usual:considerando A e B como os limites a esquerda e a di-reita da face, o ponto de encontro pode representar osolhos, e as parcelas visıveis restantes da face sao repre-sentadas pelos dois segmentos de reta existentes entreo ponto de encontro e os pontos A’21 e B’21.

Quando esse trabalho ja era considerado comopronto para ser submetido ao crivo do periodico, umasituacao adicional para a formacao da imagem ciclopicanos foi apresentada, de forma inusitada: por curiosi-dade, a esposa de um de nos tentou realizar o experi-mento, mas sem a informacao de como os espelhos de-veriam ser dispostos, colocou-os em um angulo maiorque π (180◦), observando a imagem ciclopica descritatambem nessa situacao (Fig. 5). Decidimos incluir tal

condicao adicional, pois posteriormente, quando con-duzimos a atividade experimental com os estudantes,varios deles tambem relataram essa possibilidade.

Figura 3 - Construcao geometrica sem justaposicao.

Figura 4 - Construcao geometrica da proximidade dos olhos, sema formacao da imagem ciclopica.

E importante frisar, entretanto, que nessa situacaoos espelhos nao podem ser considerados como espelhosangulares, ja que os raios incidentes em um nao se re-fletem no outro e vice-versa. Durante a demonstracaoexperimental, essa diferenca se tornou evidente: a ima-gem formada para um angulo superior a 180◦ entre os

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planos dos espelhos tem carater enantiomorfo, tıpico deuma unica reflexao, enquanto para um angulo proximoa 90◦ a imagem ciclopica nao apresenta carater enanti-omorfo, devido a dupla reflexao.

Figura 5 - Construcao da imagem ciclopica quando αg¿gπu

4. Demonstracao experimental

A fim de apresentar aos estudantes de ensino medio oefeito descrito, foi utilizado um aparato experimentaltradicional, simples e de baixo custo, ja representadona Fig. 1, composto de dois espelhos independentesplanos e quadrados, os quais podiam ser mantidos ver-ticais, formando diferentes angulos diedros, que podemser medidos com um transferidor comum ou impressoem papel.3

Para a conjugacao da imagem ciclopica em si,utilizou-se o programa de edicao de imagens CorelDrawX4 para a criacao de cinco diferentes objetos quadrados(Fig. 6), representando faces esquematicas de formatoquadrado. Esses objetos foram impressos em papel ade-sivo e fixados a laminas de madeira de mesmo tamanho,as quais podiam ser mantidas na vertical. Todos os ob-jetos possuıam a mesma largura D = 12 cm e olhos detamanho identico (quadrados de 3,0 cm de lado); en-tretanto, a distancia d entre os centros dos olhos eradiferente em cada um dos objetos, perfazendo diferen-tes razoes d/D. Cada metade dos olhos tambem foipintada de cores diferentes (Fig. 6), amarelo (interior)e vermelho (exterior), a fim de tornar a observacao daimagem ciclopica mais facil, por possuir uma unica cor(vermelha). A Fig. 7 representa algumas das fotos ob-tidas pelos estudantes durante o trabalho experimental.

Figura 6 - Exemplo de objeto (representacao esquematica de umaface

Figura 7 - Imagens ciclopicas observadas: αi < π (esquerda) e

α′i > π (direita).

Uma outra sugestao experimental, a qual infeliz-mente nao foi conduzida junto aos estudantes, e a im-pressao das Figs. 2, 3, 4 e 6 desse artigo, para que osproprios alunos possam dispor sobre elas os espelhosangulares e verificarem in loco se as imagens apresenta-das nessas ilustracoes estao corretas, sejam elas visıveisou nao. Essa sugestao nos foi apresentada na etapa derevisao desse trabalho, e se revelou valiosa, pois permi-tiu a verificacao imediata sobre eventuais erros de cons-trucao das imagens, ao se comparar os desenhos com asimagens obtidas na pratica. Na Fig. 8, estao expostasas fotografias obtidas ao se executar tal atividade.

3Imagem do transferidor: http://ecx.images-amazon.com/images/I/71qWDipgw7L._SL1500_.jpg .

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Figura 8 - Teste experimental das Figs. 2, 3, 4 e 6.

5. Conclusoes e perspectivas

Nesse trabalho, buscamos demonstrar como pequenasalteracoes em um aparato experimental simples e tra-dicional (dois espelhos planos em angulo) podem le-var a novos questionamentos sobre um tema aparenteesteril. O tratamento da associacao de espelhos no en-sino medio nao e recente, mas a nosso ver, e feito deforma repetitiva e sem muita criatividade. Ate mesmoa exposicao teorica do tema parece sedimentada, con-forme demonstra a leitura das Refs. [1,3-8], contri-buindo para uma visao acrıtica da tematica.

Por vezes, conforme relatado pelos estudantes, hacerta dificuldade de visualizacao da imagem ciclopicadescrita nesse trabalho. Nossa primeira crenca (que serevelou erronea) estava na falta de simetria da face ouem ajustes da posicao do observador. Nenhuma des-sas hipoteses, entretanto, esta correta: faces simetricassao comuns e a posicao do observador e facilmenteajustavel. Posteriormente, na etapa de revisao dessetrabalho, nos foi apontado que a dificuldade de ob-servacao dessa imagem deve-se provavelmente ao cortedos espelhos, o qual deve ser rigorosamente retilıneopara que ocorra um acoplamento preciso das faces dos

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mesmos, nem sempre conseguido quando o corte e feitopor vidraceiros. Nos espelhos que utilizamos, de espes-sura nao desprezıvel dos espelhos (cerca de 4 mm), esseacoplamento se revelou muito complexo. Uma sugestaorecebida por nos para um melhor acoplamento foi o usode espelhos comuns baratos, retirados de quadros.

A inusitada adicao de uma nova condicao angular, aqual permitiu obter o mesmo efeito optico, nos demons-trou a necessidade de estarmos atentos aos questiona-mentos dos estudantes, ou mesmo de leigos no assunto.E comum que um professor ou pesquisador esteja taoabsorto em um conteudo ou experimento que contri-buicoes significativas advindas dos estudantes podempassar despercebidas.

Embora nao sejam mostradas fotos da imagemciclopica dos estudantes nesse trabalho, para evitar pro-blemas com direitos de imagem, essa foi a principal mo-tivacao para a realizacao do experimento por parte dosestudantes. A partir da observacao do efeito, os alunospuderam comparar seus proprios rostos com as facesquadradas estilizadas, usadas como objetos, por vezesde forma curiosa e ate mesmo jocosa, podendo vir aperceber que a proporcao entre a distancia dos olhos ea largura do rosto e variavel para cada pessoa, e que oangulo entre os espelhos que permite a observacao daimagem ciclopica tambem e variavel. Uma adaptacaodo experimento poderia ser proposta, buscando identi-ficar qual a relacao entre a proporcao d/D e tal angulo,ou mesmo a relacao fracionaria mais comum no grupode estudantes.

Atividades experimentais em fısica possueminegavel importancia como recurso educacional [25],especialmente nas fases iniciais de formacao, mas suaimportancia e superestimada ou mal compreendida [26].Uma nova abordagem de um experimento tradicional,como a exposta nesse trabalho, pode levar o professora um melhor entendimento de tal importancia.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer ao pessoal tecnicoda Vidracaria Norart, pelas valiosas sugestoes a res-peito da construcao dos espelhos que foram utilizadosno aparato instrumental. O mesmo pode ser dito arespeito das diversas sugestoes e crıticas dos arbitros(anonimos), as quais se revelaram cruciais para a ela-boracao de uma interpretacao fısica com maior acuraciado fenomeno discutido nesse trabalho.

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