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Atividades Interativas para a Construção do
Campo Conceitual dos Números Inteiros1
Márcia Bárbara Bini
Sayonara Salvador Cabral da Costa
Elaine Vieira
Resumo
Este trabalho, originado a partir de uma dissertação de mestrado, tem por objetivo compartilhar discussões a respeito das dificuldades de aprendizagem em Matemática. Confirmam-se essas dificuldades por meio de dados do INEP e procura-se apresentar as atividades interativas como uma sugestão para enfrentar tal situação, tentando melhorar pelo menos o que está ao alcance da escola. De acordo com a teoria de Vergnaud, o professor tem o importante papel de propor situações variadas capazes de contribuir para a construção dos conceitos. Nessa perspectiva, atividades interativas podem ser um recurso propício, pois o que se percebe é que as tarefas passam a ser executadas com prazer quando são interativas, provocando maior envolvimento dos estudantes que passam a confiar mais em si próprio, a acreditar na própria capacidade à medida que conseguem ser bem sucedidos em atividades para as quais se consideravam incompetentes, como ocorre com muitos estudantes em relação à Matemática.
Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Atividades interativas. Construção de conceitos em Matemática.
Introdução
De acordo com avaliações realizadas pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais — INEP — os dados como os
disponíveis no site De olho na Educação (2007), mostram que o
aproveitamento escolar dos alunos deixa a desejar, estando aquém do
considerado mediano. Dos alunos que concluem o Ensino Fundamental,
por exemplo, apenas 13% dos estudantes conseguiram aprender o que
era esperado para sua série, conforme mostra a Tabela 1.
1 Trabalho parcialmente financiado pela CAPES.
Tabela 1 - Percentual de alunos que aprendeu o que era esperado
para a sua série.
4a. série EF 8a. série EF 3a. série EM
Líng.
Port.
Matemáti
ca
Líng.
Port.
Matemáti
ca
Líng.
Port.
Matemáti
ca
BRASI
L
29,1
%20,4%
19,4
%13,0%
22,2
%12,8%
Fonte: De Olho na Educação - Saeb/Inep – 2005.
Estes resultados não podem ser considerados surpreendentes,
uma vez que, ao longo dos tempos, a Matemática tem sido uma
disciplina que amedronta os alunos por ser considerada difícil de ser
aprendida (Felicetti, 2007).
Nos últimos anos, com as mudanças ocorridas na legislação
educacional aconteceu um significativo aumento no número de
estudantes nas escolas públicas. Em função disso, os motivos que
justificam a permanência dessa clientela na escola não são os mesmos.
Parte deles vem em busca de novos conhecimentos, outra parte,
permanece na escola por exigência de lei e/ou por programas sociais.
Esse fenômeno da falta de reconhecimento da importância da
escola por parte dos próprios sujeitos que a constituem – os alunos - e
outros fenômenos, como a pobreza dos recursos disponíveis na escola,
marginalização social, problemas familiares, colaboram para
transformar e complexificar o trabalho do professor. Nesse contexto,
não basta saber o conteúdo que vai ensinar, é preciso conquistar os
estudantes, para que possa haver significativa construção dos
conceitos. As reflexões sobre o processo de educar, incluindo o papel
do professor como agente facilitador da aprendizagem dos alunos, a
importância da motivação dos alunos e a consciência de que o processo
é feito em parceria com governo, secretaria de educação, escola,
professores e alunos, parece ser imprescindível para que cada
professor possa colaborar para que a escola cumpra sua função e ainda
melhorar os resultados que as escolas públicas têm obtido em
avaliações como a Prova Brasil, por exemplo.
De acordo com FELICETTI e GIRAFFA (2008, p. 4) “é necessário
arquitetar ao ensino de Matemática uma diversidade de práticas
pedagógicas que têm por perspectivas ajudar quem aprende a
compreender um corpo de saberes matemático.” Para isso, o professor
necessita se atualizar para acompanhar as mudanças ocorridas na
sociedade e com reflexos na escola. Com essa preocupação, a busca
por uma fundamentação teórica que possa subsidiar estratégias de
ensino torna-se quase uma obrigação para fortalecer o trabalho
desenvolvido em sala de aula.
A preocupação com a aprendizagem e, particularmente, com as
razões que justificam o baixo desempenho dos alunos de sextas séries
com relação aos conceitos que envolvem os números inteiros levou-nos
a investigar o impacto de situações interativas, como jogos e desafios,
sobre o envolvimento dos educandos nas atividades propostas em sala
de aula e, consequentemente, no seu desempenho na construção dos
conceitos matemáticos. Para isso procuramos subsídios teóricos nos
estudos de Vergnaud na área de Matemática (1993; MOREIRA, 2002) e
sua teoria dos Campos Conceituais (TCC), uma vez que seus estudos
têm como finalidade “propor uma estrutura que permita compreender
as filiações e rupturas entre conhecimentos, em crianças e
adolescentes” (VERGNAUD, 1993, p. 1).
Percebe-se o quanto é importante para o professor conhecer as
concepções, as atitudes, ou o que Vergnaud denomina de invariantes
operatórios ou de conhecimentos-em-ação dos estudantes. A
identificação desses elementos, que constituem o arcabouço cognitivo
dos esquemas que os estudantes trazem para enfrentar as situações
propostas em sala de aula, permite que os professores possam
organizar ações no sentido de ajudar a reverter a lógica inadequada
dos processos mentais utilizados.
Para Vergnaud, o conhecimento se encontra organizado em
Campos Conceituais. Por Campos Conceituais, Vergnaud entende os
conjuntos de fatores, teorias, problemas típicos, situações que fazem
com que os conceitos sejam trabalhados e que dependem de conceitos
e representações inter-relacionados durante o processo cognitivo
(Moreira, 2002). O campo conceitual dos números inteiros compreende
desde conceitos básicos, como: o que é número inteiro? O que os
diferencia de outros, como os naturais? Relações com o cotidiano,
aplicações e teorias subjacentes ao seu uso, entre outros. Um campo
conceitual é ao mesmo tempo um domínio amplo e específico da
criança, concomitantemente escolar e não escolar. (Vergnaud, S.D.).
Um conceito, segundo Vergnaud (op. cit), é resultado da junção
de três conjuntos que precisam ser considerados ao mesmo tempo
quando se deseja estudar o desenvolvimento da aprendizagem. São
eles: Situações , Representações e Invariantes operatórios .
Para que um aluno possa (re)construir um conceito, ele precisa
de tempo e estar exposto a situações variadas planejadas pelo
professor, que lhe permitam dar significado a esses conceitos. São as
situações que darão significado aos conceitos (Moreira, 2002). Estes
resultados são alcançados por meio de suas representações, objetos e
frutos de seus esquemas. As representações evidenciadas pelos
estudantes nem sempre são aquelas que esperaríamos como resultado
do ensino; muitas vezes mostram-se espontâneas, provindas da intuição
e da aprendizagem ao longo de sua existência. Por exemplo, ensina-se
o conceito de número relativo, que vai de encontro a concepções
rotineiras como: números é medida de grandeza; adição é aumento;
subtração é diminuição.
Segundo Vygotsky (citado por Vergnaud, S.D.) é necessário
investimento em metodologias próprias para integrar conceitos
cotidianos com conceitos científicos. Vergnaud enfatiza que não há
conceito sem que haja a explicitação de mais um significantes.
Conceito implícito é meio conceito. Para explicitá-lo, sugere as
constantes (invariantes) operatórias que são utilizados pelo sujeito em
sua atividade. O estudo do desenvolvimento de um conceito pressupõe
uma variedade de situações de referência, uma variedade de
significados e significantes. As dificuldades conceituais são superadas à
medida que os conhecimentos-em-ação são identificados e enfrentados,
o que se constitui em um processo lento, que vai acontecendo aos
poucos e não todo de uma só vez.
Nesta oportunidade, apresentamos um relato de uma abordagem
de ensino privilegiando situações-problemas contextualizadas e
principalmente interativas, em forma de jogos, com inspiração inicial
das atividades do Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS
(MCT/PUCRS), oriunda de uma pesquisa já finalizada (BINI, 2008).
Concomitante, será apresentada uma análise qualitativa do
desempenho dos estudantes com a descrição das ações do professor.
Essas ações foram concretizadas por meio de propostas de novas
situações no sentido de retomar e promover a conceitualização dos
temas abordados, tendo como referência a teoria dos campos
conceituais de Vergnaud. Como parceiros da investigação, foram
escolhidos vinte e sete alunos de uma sexta série de uma escola
pública.
A escolha por jogos é defendida por alguns autores, como Vieira
e outros (2007) e Flemimg (2003, p. 25), que assim se manifesta: “no
caso da Matemática podemos citar a importância dos jogos para
entender as características e propriedades dos objetos matemáticos e
conseqüentemente entender as estruturas algorítmicas e algébricas
usadas na resolução de problemas”; para Groenwald e Timm (2003),
além de ampliar as capacidades intelectuais, o jogo facilita a expressão
das idéias, contribuindo para que os alunos demonstrem seus
esquemas conceituais. Justamente esse aspecto é privilegiado nesse
trabalho.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da
Matemática (BRASIL, 1997, p. 47):
“os jogos podem contribuir para um trabalho de formação de
atitudes – enfrentar desafios, lançar-se a busca de soluções ,
desenvolvimento da crítica, da intuição, da criação de
estratégias e da possibilidade de alterá-las quando o resultado
não é satisfatório – necessárias para a aprendizagem
Matemática”.
Desenvolvimento do trabalho
Os elementos referentes ao conjunto numérico dos números
inteiros, que estiveram envolvidos durante o desenvolvimento do
trabalho estão ilustrados no mapa conceitual ou Figura 1, no qual a
elipse representa as fronteiras desse campo conceitual.
Figura 1 - Representação dos conceitos trabalhados no campo conceitual do Z.
No desenvolvimento das aulas, dois aspectos são enfatizados:
• a importância de o professor estar sempre alerta para detectar
dificuldades e esquemas equivocados dos alunos;
• a promoção por parte do professor de atividades (situações)
criativas que motivem, sejam prazerosas, mas que,
Re-conhecer Z
Resolução de Problemas
Retanumérica
Adição em Z
Subtração em Z
Multiplicação em Z
Divisão em Z
Aplicações do Z no cotidiano
Representação do Z
principalmente, sejam eficazes para a integração do estudante
com o grupo na sala de aula e com a escola como um todo.
A hipótese é que jogos e desafios em sala de aula podem
promover uma mudança, se forem adequadamente trabalhados.
Para a coleta de dados, foram utilizadas as observações da
professora acerca do desempenho dos alunos, em sala de aula, em
atividades orais e escritas, em pequenos grupos e individuais. Ao longo
processo, que teve duração de três meses, quatro avaliações formais
sucederam-se, na aula seguinte a cada diagnóstico, o instrumento era
retomado e os estudantes tinham a oportunidade de comentar sobre
seus procedimentos e revisar alguns conceitos inadequados.
Com o propósito de favorecer o desenvolvimento do campo
conceitual do Conjunto Z (números inteiros), seguindo orientações de
Vergnaud (1996), oportunizou-se aos alunos vivenciar situações
variadas frente às quais pudessem ampliar e aprofundar os temas
estudados, além de explicitarem os conceitos-em-ação e teoremas-em-
ação que utilizavam.
Para iniciar o estudo de cada um dos conceitos envolvidos, partiu-
se de uma situação problema, envolvendo os conhecimentos prévios
dos estudantes, incentivando a participação. Na seqüência, variadas
situações davam prosseguimento ao processo de conceitualização no
campo conceitual dos números inteiros.
Foi possível perceber ao longo do processo, que a variedade de
situações era capaz de contemplar um número maior de estudantes na
construção dos conceitos.
A disponibilidade dos estudantes, o envolvimento deles com as
atividades, principalmente as interativas, favorecia a explicitação de
esquemas inadequados ou ainda em construção que dependiam de
mais subsídios.
As afirmações de Vergnaud a respeito de que um tipo apenas de
atividade não é suficiente para a construção significativa dos conceitos
foram corroboradas em nosso estudo; foram necessárias muitas e
variadas situações para que cada conceito fosse compreendido por um
número cada vez maior de alunos.
Para que nossas palavras façam sentido ao leitor, apresentamos a
abordagem referente aos conceitos de reta numérica e adição e
subtração no conjunto Z ou dos números inteiros.
Ao trabalhar o conceito de reta numérica a professora2 partiu do
seguinte questionamento: Como os números naturais se encontram
organizados? A intenção era, conforme Vergnaud (S.D.), que o
professor tivesse acesso às concepções prévias dos alunos sobre o tema
que estava sendo iniciado, a fim de que ele pudesse planejar ações
futuras; ao mesmo tempo, os alunos eram incentivados a participar e
manifestaram algumas idéias que se contradiziam mutuamente:
• organizam-se da mesma maneira que os outros (positivos), só
colocando o menos na frente de cada número; por exemplo:
1, 2, 3, 4, 5, 6, ...
-1, -2, -3, -4, -5, -6, ...
• organizam-se com o positivo e o negativo, um do lado do outro:
1,-1, 2,-2, 3,-3, 4,-4, 5,-5, ...
• não existe ordem para esse tipo de número que tem sinal.
Só então a professora apresentou ao grupo a reta numérica com
a organização dos números inteiros. O objetivo não era confrontar
conceitos “errados” com “certos” mas, aproveitar sua concepções para
dar sentido ao conceito cientificamente aceito. Vergnaud (2002)
considera que as explicações verbais do professor têm grande
importância para que o educando possa compreender tanto conceitos
científicos como cotidianos. Elas permeiam todo esse processo de
construção e reconstrução do conceito de reta numérica.
2 A professora em questão é a primeira autora desse capítulo.
Por outro lado, é relativamente comum os professores
considerarem que a apresentação formal de um conteúdo é suficiente
para que os alunos possam gerar esquemas mentais para o
entendimento do conteúdo. Uma vez apresentada a reta numérica,
poder-se-ia supor que os alunos teriam condições, de ter êxito em
outras situações nas quais fosse requerida a organização dos números
inteiros. No entanto, Vergnaud (1993) chama de “ilusão pedagógica” a
crença de professores de que a construção do conhecimento se dá por
meio de “apresentação organizada, clara e rigorosa, das teorias
formais” (Moreira, 2002, p. 16). O estudante depende das relações que
consegue estabelecer entre o conhecimento novo e os prévios, nas
situações que o professor lhe propuser; esse tem o importante papel de
mediador no processo de construção do conhecimento dos seus alunos.
Para isso precisa desafiá-los, oferecendo situações que os estimulem,
tornando-os hábeis e competentes na tarefa de desenvolver e aplicar os
chamados conhecimentos-em-ação em suas interações com situações-
problema.
Combinando os argumentos recém expostos, foi proposta uma
variedade de situações para os alunos. Dentre elas destacamos a
atividade interativa Labirinto Relativo (Grasseschi, 1999), Figura 2,
que propunha o seguinte desafio: cada aluno, dentro dos pequenos
grupos nos quais a turma havia sido dividida, deveria percorrer o
caminho desde a ENTRADA até a SAÍDA, sempre no sentido crescente
dos números. O vencedor seria aquele que chegasse primeiro no final,
provavelmente aquele que percorresse o caminho mais curto.
E
N
T
R
A
D
A
S
A
Í
D
A
- 18
-13
-3
-5 +3
-10
-15
-9
-16
-11
-12
+5
+14
+16
-14
-17
+7
-15-12
-13
-6 - 11
-10 - 7
- 1- 2
- 8
0+ 2
+ 11
- 9
+ 14
+ 4 + 13
Figura 2 – Labirinto Relativo.
Fonte: Grasseschi (1999).
A execução da atividade possibilitou que fossem explicitados
alguns conceitos e teoremas-em-ação relacionados ao conceito de
ordem dos números inteiros, como os exemplificados a seguir:
• “para ordenar os números, sempre colocamos o menor
depois o maior”, generalizado para os casos: 0, 1, 2, 3 ... e
-1, -2, -3 ..., neste último caso, considerando -3 maior que
-2.
• “o zero deve ficar bem no meio e os números iguais, um de
cada lado”, teorema baseado no conceito de espelho.
• “se x é maior que y, então –x é maior que – y”;
Os resultados apontavam para a necessidade de situações que
permitissem aos alunos revisar conceitos mal consolidados. Para
Vergnaud, “é preciso, às vezes, desestabilizar profundamente as
concepções dos alunos, para fazer com que eles compreendam
fenômenos e conceitos novos ou adquiram novas competências”
(Vergnaud, S.D., p.7). Ainda que o insucesso de alguns pudesse ser
considerado natural, levando em conta que a formação de um conceito
depende de muitas situações, era necessário levar em conta que a
construção de um conceito pode ser mais lenta para alguns alunos.
O novo desafio foi o “Baralho dos Números Inteiros”, Figura 3,
composto por 21 cartas, com números entre -10 e +10. A situação a ser
desenvolvida tinha por objetivo mais uma vez, a reconstrução do
conceito de reta numérica.
Figura 3 – Foto do Baralho dos Números Inteiros.
A atividade consistia em organizar as cartas do baralho de acordo
com a ordem na reta numérica.
Outro tipo de situações foram propostas a partir das vivências
dos alunos e resolvidas em pequenos grupos, duplas ou trios. Por
exemplo:
1. Observe o “espelho” da 6ª série A:
Keila Willian Luiz Pablo
Ana Junia Diane Andersom
Jaqueline Joseane Tairone Roger
Elinton Edson Dara Cleber
Fernanda Marlize Jucelem Marcelo
Mateus Kettlin Jeferson
Everson Allán
Jakson Giovani Tiago
a) Considerando a segunda coluna como uma reta numérica (vertical)
de números inteiros, e escolhendo a Marlize como ponto zero, que
posição o William está ocupando nessa coluna?
b) Qual a distância entre o Willian e o Everson?
Queremos deixar claro que novos conceitos foram sendo agregados
ao conceito de organização dos números inteiros, envolvendo conceitos
do cotidiano, como localização distância entre objetos, de forma a
validar a importância do estudo que estava sendo feito para a vida dos
alunos. O trabalho desenvolvido contribuiu para que a grande maioria
dos estudantes conseguisse construir de maneira significativa o
conceito de reta numérica. Essa construção continuou quando os
estudos referentes à adição e subtração de números inteiros foram
introduzidos. Novamente, a professora partiu de uma situação-
problema:
Dona Maria tinha setenta reais e gastou noventa e quatro no
mercado do seu Manoel. Quanto foi que Dona Maria ficou devendo?
A resposta deles foi unânime: “Não dá professora. Não se pode
tirar 94 de 70”. O fato de muitos deles estarem acostumados a ouvir,
durante as séries iniciais que não se pode diminuir um número maior
de outro menor parece ser a causa mais provável de conceito
consolidado e aplicado por eles. Na visão de Vergnaud identifica-se
aqui um primeiro conhecimento-em-ação: “não se pode diminuir um
número maior de um número menor”.
Foi necessário possibilitar situações visando o rompimento e a
superação desse conceito. Uma delas foi propor discussão referente a
comprar no crediário, financiar ou comprar fiado. Essa última opção é
prática comum para a maioria das famílias dos alunos e dos próprios
alunos na cantina da escola.
Na seqüência, foi aproveitado o “Baralhos dos números inteiros”
anteriormente trabalhado, mas, com nova orientação: Organizar, num
determinado período de tempo, as cartas em conjuntos de três cartas,
de modo que a soma seja zero, excluindo-se a carta zero do baralho.
A professora apresentou um exemplo para a tarefa, escolhendo as
cartas: . Sugeriu-se que cada grupo anotasse os
conjuntos de cartas escolhidas.
Os estudantes se empenharam e conferiam as respostas antes de
entregar a tarefa. Essa prática de conferir a resposta não é comum em
-1 -9 +10
outros tipos de atividades. Percebeu-se que para formar os conjuntos,
os alunos se referiam aos números negativos como dívida e os positivos
como dinheiro no bolso. Essa explicitação dos esquemas permite ao
professor acompanhar a construção dos conceitos de adição e
subtração.
Atividades interativas parecem provocar nos estudantes,
significativa mudança de atitude: ao mesmo tempo em que são
realizadas com disposição e participação de praticamente todos os
membros, as respostas são conferidas antes de serem consideradas
“prontas”. A inegável manifestação de entusiasmo de todos os
estudantes apontava para a relevância das situações interativas. E
sabendo-se que a construção de um conceito, depende de variadas
situações, propôs-se outros desafios. Dentre eles podemos citar as
pirâmides, Figura 4, com a orientação: Complete as pirâmides, levando
em conta que cada compartimento representa a soma dos dois
compartimentos de baixo.
Figura 4. Representação do desafio Pirâmides.
Fonte: Giovanni (2002).
O desempenho dos grupos para os casos a) e b) foi diferenciado:
nesse último, alguns grupos tiveram mais dificuldades para interpretar
a tarefa, fato que não aconteceu no primeiro; com a ajuda da
professora para essa interpretação, fizeram a tarefa pedida.
Além desse tipo de atividades interativas, foram propostas
operações de soma e subtração no formato tradicional e a resolução de
problemas envolvendo a regra de sinais. A diferença de motivação era
evidente a favor das atividades de jogos ou desafios
-8 5 -9 2 -1 0 -10 -2 4
6
a)b)
Ao longo de todo o trabalho os estudantes eram incentivados a
explicitar os teoremas-em-ação que justificavam seus procedimentos.
Dentre os teoremas utilizados, menciona-se:
• “menos com menos dá mais”, generalizado para qualquer
operação envolvendo números: - 2 – 3; (-2) – (-3); - 5 – (-4).
A experiência de professores que trabalham com Matemática
corrobora que, não raras vezes, esses “teoremas-em-ação”
permanecem ativos quando o aluno freqüenta o nível médio e mesmo
superior. De acordo com COSTA (2004, p. 103), “o sujeito constrói
determinados esquema e o utiliza para assimilar uma classe de
situações, ou seja, usa sempre o mesmo esquema para cada situação
dessa classe”, podendo este, ser adequado ou não.
A constatação de que alguns estudantes ainda se apoiavam em
esquemas inadequados, motivou a utilização de outras atividades
interativas como o quebra-cabeça da Figura 5, cujo propósito, era
montar as peças de acordo com o resultado das operações que
apresentavam.
Figura 5. Foto do Quebra-cabeça-triangular.
Na seqüência, os estudantes receberam uma lista de tarefas
comumente encontradas em livros didáticos e avaliações, como a prova
Brasil, por exemplo, as quais dependiam dos conceitos até então
discutidos.
Ao final do trabalho com esses temas, os estudantes
apresentaram uma evolução significativa no seu desempenho, frente à
variedade das situações propostas, nem todas aqui apresentadas para
não estendermos demasiadamente a apresentação. Assim mesmo,
estamos conscientes de que esse não é o final do processo de
construção desses conceitos. Ela continua ao longo de toda vida do
aluno.
Considerações finais
Como mencionado no início, nosso objetivo foi apresentar um
relato de uma abordagem de ensino de Matemática que viesse a
reverter os resultados apontados pelo INEP (2005) sobre a
aprendizagem nessa área, bem como o papel do professor como
facilitador da aprendizagem. Para esse último aspecto, fundamentamo-
nos na teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud para justificar as
ações e análise do desempenho dos processos de ensino e de
aprendizagem. .
O fato de priorizarmos atividades interativas também contribuiu
para uma formação mais ampla, considerando a socialização e a
integração escolar. Para ETCHEVERRIA e MORAES (2008, p. 7), “a
realização das atividades, com envolvimento e prazer, resulta em
aprendizagens que provocam a busca por maior fundamentação, pois o
interesse despertado estimula para que haja interação,
questionamento, discussão de idéias e empenho em fazer o seu
melhor”.
Foram grandes as dificuldades encontradas pelos alunos durante
o processo de conceitualização da reta numérica. Pôde-se constatar
que alguns demonstram um raciocínio que não é exatamente o que o
professor esperaria frente às discussões promovidas em aula. Para a
teoria dos Campos Conceituais, há uma explicação: a lentidão do
processo depende da ação do professor em diagnosticar e prover
situações que permitam ao aluno a explicitação e eventuais correções
de seus conhecimentos-em-ação.
Conhecer o que Vergnaud denomina de invariantes operatórios
ou de conhecimentos-em-ação que estão sendo utilizados pelos
estudantes e as concepções que fundamentam esses procedimentos é
imprescindível para que o professor possa propor situações, que visem
levar o aluno a reconstruir esquemas satisfatórios para um
determinado conceito, caso seja necessário. Para isso, é preciso dar voz
ao aluno para que explicite quais os conceitos-em-ação que utilizou em
suas resoluções.
Nesse sentido, podemos afirmar que os jogos e desafios
favorecem momentos de interação dos estudantes entre si e dos
estudantes com os novos conhecimentos. Ao jogar, o estudante é
levado a fazer análises, chegar a conclusões e tomar decisões. Essas
atitudes e habilidades desenvolvidas pelo sujeito serão importantes em
outros momentos de suas vidas. Os estudantes passam a confiar mais
em si próprio, a acreditar mais na própria capacidade à medida que
conseguem ser “sujeitos” nas atividades propostas Essa melhoria da
auto-estima pode ser adquirida por meio do uso de jogos e é de vital
importância para a continuidade da sua caminhada como estudante.
Comparada com a resolução de problemas de papel e lápis, é
notória a preferência dos alunos por jogos e/ou atividades interativas.
O jogo se constitui em um meio no qual o individuo é impelido a
construir e re-construir seus pontos de vista, suas opiniões, e rever
suas atitudes. Esse movimento constante de atenção a si próprio e aos
outros, leva-o ao desenvolvimento da capacidade crítica. De acordo
com Haetinger (2006, p.11), “o jogo é um elemento essencialmente
socializador e, conseqüentemente, algo muito importante para o
desenvolvimento humano”.
É importante o professor observar e intervir nos grupos durante
os jogos, mediar a construção com perguntas e comparações entre as
escolhas dos jogadores, fazer registros, possibilitar a troca de
experiências entre os grupos e conhecer o procedimentos-em-ação que
estão sendo utilizados, visando planejar e propor situações que
colaborem para o rompimento com possíveis concepções errôneas,
viabilizando o desenvolvimento de esquemas satisfatórios.
Resta salientar que o uso e o interesse dos estudantes por
situações interativas, como jogos, também contribuiu para que o
processo fosse mais envolvente e contasse com a participação efetiva
dos estudantes. Depoimentos dos próprios alunos reforçam a
preferência por condições de estudo dinâmicas e interativas e,
certamente com a supervisão e atenção do professor.
Finalizamos esse relato com a esperança que tenhamos
contribuído para ratificar o papel do professor como agente promotor
de situações que favoreçam a aprendizagem, esperando incentivar
outros professores a buscar a excelência no ensino de Matemática e,
conseqüentemente, melhorar os baixos índices de aprendizagem
apresentados no início desse capítulo.
Referências
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