constituição e interculturalidade: da diferença à referência£o_2014.pdf · por referência a...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
Constituio e Interculturalidade:
da diferena referncia
ANABELA DE FTIMA DA COSTA LEO
2013
2
Dissertao de doutoramento apresentada no mbito do 3. Ciclo de Estudos
conducente ao grau de Doutor(a), em Direito Pblico, da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa.
3
NDICE
ABREVIATURAS E SIGLAS ................................................................................ ..6
INTRODUO
1. O tema e a sua relevncia jurdica .......................................................................10
2. Consideraes metodolgicas..............................................................................12
3. Indicao de sequncia ........................................................................................14
PARTE I - DA CONSTITUIO COMO LIMITE CONSTITUIO COMO
FUNDAMENTO
CAPTULO I O constitucionalismo na era da diversidade
1. Entre o triunfalismo e a nostalgia ........................................................................ 16
2. O retorno ao Estado ............................................................................................. 25
3. Pluralismo constitucional e constitucionalismo plural ........................................ 32
3.1. Do pluralismo como facto ao pluralismo como norma ................................ 32
3.2. Pluralismo, democracia, dissenso ................................................................. 41
3.3. Especficos contextos de pluralismo normativo ........................................... 46
4. A constituio inclusiva....................................................................................... 53
4.1. Pluralismo, constitucionalismo e constituio.............................................. 53
4.2. A constituio aberta .................................................................................... 58
4.3. Identidade (s) e constituio ......................................................................... 70
CAPTULO II Direitos fundamentais no e para alm do Estado
1. A era dos direitos e os seus desafios.................................................................... 82
2. Direitos humanos entre relativismo e imperialismo ............................................ 95
3. A trade direitos fundamentais, direitos humanos, direitos de personalidade .....103
3.1. Direitos fundamentais e direitos humanos....................................................103
3.2. Direitos fundamentais e direitos de personalidade .......................................106
4. Direitos fundamentais entre ordens jurdicas.......................................................108
4.1. Ainda os desafios aos direitos fundamentais: multifuncionalidade na arena
global ..........................................................................................................108
4
4.2. Dilogos interjusfundamentais e interculturais ............................................111
4.3. Abertura constitucional aos direitos fundamentais.......................................125
5. Estado de Direito, democracia e globalizao: ensaio de sntese ........................133
PARTE II DA DIVERSIDADE CULTURAL AO MODELO
INTERCULTURAL
CAPTULO I - De que falamos quando falamos de multiculturalismo?
1. O debate multiculturalista ...................................................................................137
1.1. A descrio e a norma..................................................................................137
1.2. Os dados do debate multiculturalista..........................................................145
2. Abordagem tpico-problemtica ........................................................................152
2.1. Cultura, identidade, diversidade ..................................................................152
2.2. O reconhecimento de (eventuais) direitos culturalmente diferenciados......177
2.2.1 A determinao da titularidade individual ou coletiva................183
2.3. Do grupo ao indivduo................................................................................190
CAPTULO II - A definio da atitude cultural do Estado
1. A (discutvel) neutralidade.................................................................................199
2. Os deveres e os limites da atuao pblica.........................................................212
2.1. Deveres estaduais perante grupos e indivduos ..........................................212
2.2. Em busca do inegocivel .............................................................................217
2.3. A considerao da igualdade relevante........................................................232
3. Da diversidade cultural em geral multiculturalidade imigrante.......................241
3.1. Modelos de gesto poltico-institucional da diversidade cultural................241
3.2. A especificidade do multiculturalismo imigrante........................................246
4. Notas para um balano da gesto da multiculturalidade.....................................252
CAPTULO III - A proposta intercultural
1. Da crtica ao multiculturalismo justia intercultural..................................257
2. Aplicaes prticas do modelo intercultural.................................................278
5
PARTE III IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL NA
CONSTITUIO PORTUGUESA
CAPTULO I Dimenses de juspositivao
1. Reflexos da proteo da cultura e da diversidade cultural no direito internacional e
no direito estrangeiro ..........................................................................................283
1.1. Sinergias na proteo internacional e europeia ...........................................283
1.2. Nota breve sobre os direitos estrangeiros ....................................................302
2. Coordenadas para a compreenso jusfundamental da relevncia da identidade e
diversidade culturais (proposta de abordagem) ..................................................305
2.1. O Estado adjetivado.....................................................................................305
2.2. Da imagem da pessoa e do cidado: a inclusividade na Constituio..328
2.3. A contextualizao da dignidade da pessoa humana...................................336
CAPTULO II - A tutela constitucional da identidade e da diversidade culturais
1. Proposta de compreenso jusfundamental da pertena cultural .........................342
2. Ponderando a igualdade e a diferena .........................................................353
3. Testando a inclusividade.....................................................................................360
SNTESE CONCLUSIVA......................................................................................375
BIBLIOGRAFIA CITADA....................................................................................380
6
ABREVIATURAS E SIGLAS
AA. VV. Autores vrios
Ac. - Acrdo
art. - artigo
arts. artigos
ACIDI Alto Comissariado para a Imigrao e Dilogo Intercultural
AFD - Anuario de Filosofia del Derecho
AGNU - Assembleia Geral das Naes Unidas
AJIL - American Journal of International Law
APJHRL - Asia Pacific Journal on Human Rights and the Law
AR - Assembleia da Repblica
AS - Anlise Social
AYIL - Asian Yearbook of International Law
BFDC- Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra
BJPS - British Journal of Political Science
BJS - The British Journal of Sociology
BVerfG - Bundesverfassungsgericht
BVerfGE - Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht
CaLR - Cardozo Law Review
Cap. - Captulo
CC - Cdigo Civil portugus
CConst - Cuestiones Constitucionales
CDFUE - Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia
CdRP - Claves de Razn Prtica
CE - Conselho da Europa
CEDH - Conveno Europeia dos Direitos do Homem
CEFD - Cuadernos Electrnicos de Filosofa del Derecho
CERI - Comisso Europeia contra o Racismo e a Intolerncia (ECRI)
Cit. - citado
CJEL - The Columbia Journal of European Law
CJLS - Canadian Journal of Law and Society
CJRL - Columbia Journal of Race and Law
coord. - coordenador/a/es
7
CRP - Constituio da Repblica Portuguesa (1976)
CLR - Columbia Law Review
CS - Citizenship Studies
DC Derecho y Cultura
DD - Direito em Debate
DDHC - Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado
DUDH - Declarao Universal dos Direitos do Homem
DJAP - Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica
DP - Diritto Pubblico
D&P - Direito e Poltica
DR Dirio da Repblica
DS - Droit et Socit
ECLR - European Constitutional Law Review
ed. - editor/a/es
EJP - European Journal of Philosophy
EPW - Economic and Political Weekly
EUA - Estados Unidos da America
EYMI - European Yearbook of Minority Issues
FDUL - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
GLJ - German Law Journal
HRQ - Human Rights Quarterly
ICJP - Instituto de Cincias Jurdico-Polticas Faculdade de Direito de Lisboa
ICL - Vienna Journal on International Constitutional Law
ICLQ - International and Comparative Law Quarterly
ICON -International Journal of Constitucional Law
IJIR - International Journal of Intercultural Relations
ILP - International Law and Politics
INCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda
ISSJ International Social Science Journal
JD - Journal of Democracy
JILP - New York University Journal of International Law and Politics
JP - Journal of Philosophy
JZ - JuristenZeitung
KJ - Kritische Justiz
8
LJ - Letras Jurdicas. Revista Electrnica de Derecho
loc. cit. local citado
MJECL - Maastricht Journal of European and Comparative Law
McGLJ - McGill Law Journal
n. - nota de rodap
ob. cit. obra citada
OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico
OI Observatrio da Imigrao
org. - organizador/a/es
PD - Politica del Diritto
PIDCP- Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos
PIDESC- Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais
PyD - Persona y Derecho
PQ - Political Quarterly
PR - Presidente da Repblica
PT - Political Theory
QC - Quaderni Costituzionali
QDPE - Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica
RBDC - Revista Brasileira de Direito Constitucional
R&C - Race & Class
R&R - Rechtsfilosofie & Rechtstheorie (Netherlands Journal of Legal Philosophy)
RCCS - Revista Crtica de Cincias Sociais
RCDP - Rivista critica del diritto privato
RCDPub - Revista Catalana de Dret Public
RCEC - Revista del Centro de Estudios Constitucionales
RCS - Review of Constitutional Studies
RDCE - Revista de Derecho Comunitario Europeo
RDP - Revista de Direito Pblico
RECP - Revista Espaola de Ciencia Poltica
REP - Revista de Estudios Polticos
RFDC - Revue franaise de Droit constitutionnel
RFDUP - Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
RGDC - Revista General de Derecho Constitucional
RI - Relaes Internacionais
9
RIDPC - Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional
RIIDH - Revista del Institituo Iberoamericano de Derechos Humanos
RIEJ - Revue interdisciplinaire dtudes juridiques
RJ - Ratio Juris
RLJ - Revista de Legislao e Jurisprudncia
ROA - Revista da Ordem dos Advogados
RPCC - Revista Portuguesa de Cincia Criminal
RSJ - Revista Sociologia Jurdica
SI - Scientia Iuridica
SCLR - Southern California Law Review
SJLS - Singapore Journal of Legal Studies
SLR - The Sydney Law Review
ss. - seguintes
STC - Sentencia del Tribunal Constitucional (Espanha)
STS - Sentencia del Tribunal Supremo (Espanha)
TC - Tribunal Constitucional
TCS - Theory Culture Society
TEDH - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TIJ - Tribunal Internacional de Justia
TIL - Theoretical Inquiries in Law
TFUE Tratado sobre o Funcionamento da Unio Europeia
TJUE Tribunal de Justia da UE
TUE Tratado da Unio Europeia
TNT - Transnational Legal Theory
UE - Unio Europeia
UMJLR - University of Michigan Journal of Law Reform
UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
VLR - Vermont Law Review
vd. - vide
vs. - versus
ZaRV - Zeitschrift fr auslndisches ffentliches Recht und Vlkerrecht
10
INTRODUO
1. O tema e a sua relevncia jurdica
A presente dissertao tem por tema Constituio e Interculturalidade: da
diferena referncia. O ttulo procura espelhar o objeto deste trabalho: um estudo
de direito constitucional, que reflete sobre a realidade multicultural das sociedades
atuais sob a perspetiva da interculturalidade, apresentando uma proposta de
compreenso jurdico-constitucional da identidade e diferena culturais assente nos
princpios constitucionais fundamentais do Estado de Direito, da democracia e do
respeito pelos direitos fundamentais. Se ao constitucionalismo, repensado no contexto
da internormatividade e da interconstitucionalidade, se pede que d forma normativa,
conceptual e institucional1 acomodao da identidade e da diversidade culturais,
por referncia a uma constituio concreta - in casu, a Constituio portuguesa de
1976 e ao seu sistema de direitos fundamentais que nos propomos empreender tal
tarefa. Trata-se, por conseguinte, de aprofundar o sentido da inclusividade
constitucional, tendo presente que constituio aberta interconstitucionalidade
que , tambm, interculturalidade - cabe ainda o papel de fundamento de unidade
da comunidade poltica.
As sociedades atuais apresentam-se como diversificadas (multiculturais, em
sentido descritivo), diversificao esta que, no resultando apenas das migraes,
com estas cobrou maior visibilidade. Esta realidade presta-se a diferentes leituras, ora
tendentes a salientar a oportunidade representada pela diversidade, ora a interpret-la
como ameaa. Pode, assim, distinguir-se uma representao patolgica da
diversidade cultural, que a v como perturbao do normal funcionamento das
sociedades democrticas, de uma representao assente no pressuposto de que essa
diversidade um facto - na verdade, o modo de ser das sociedades atuais - e uma
fonte de riqueza, no obstante comportar desafios. ainda da compreenso do Estado
constitucional e democrtico de direito, e do pluralismo que lhe intrnseco, que se
1 HANS LINDHAL, Recognition as Domination: Constitutionalism, Reciprocity and the Problem of Singularity, in NEIL WALKER/ JO SHAW/ STEPHEN TIERNEY, Europes Constitutional Mosaic, Oxford/Portland, Hart Publishing, 2011, p. 205 ss., p. 213.
11
trata e, por conseguinte, de uma discusso que convoca uma perspetiva
especificamente constitucional.
A necessidade e oportunidade de um discurso jurdico sobre a
multiculturalidade das sociedades atuais manifesta-se no surgimento de variada
bibliografia tendente a reunir uma pliade de contributos, oriundos de diferentes
ramos do direito e de diferentes ordens jurdicas, sobre a regulao jurdica da
diversidade como campo em construo2, fazendo porventura sentido aludir a um
direito da diversidade 3. Do que se trata, porm, neste trabalho, de reconhecer a
necessidade de uma especfica abordagem jurdico-constitucional, assente a vocao
de ncora do sistema geralmente reconhecida ao Direito Constitucional4 e a
afirmao de que, ao constitucionalismo democrtico, cabe fornecer o quadro
institucional para a mediao de certos conflitos inevitveis no tecido poltico,
econmico e social5. Abordar a interculturalidade de um ponto de vista constitucional
num contexto que de expanso do constitucionaismo impe, igualmente, ter em
conta o dilogo entre culturas a um nvel mais vasto, qual seja o supraestadual.
A discusso sobre a diversidade cultural e sua compatibilizao com as
democracias liberais ocidentais eminentemente prtica, e no apenas terica. A
tenso entre unidade e diversidade, ou entre liberdade e igualdade, que o
reconhecimento da multiculturalidade convoca, faz parte da estrutura fundamental
dos estados democrticos contemporneos. Todavia, parece-nos decisivo sublinhar
que no existe uma forma nica de resolver a questo: a histria e os contextos
desempenham um papel fundamental na determinao das caractersticas precisas
2 A ttulo de exemplo, vd. MARIE-CLAIRE FOBLETS/ JEAN-FRANOIS GRAUDREAULT-DESBIENS/ ALISON DUNDES RENTELN (eds.), Cultural Diversity and the Law. State Responses from around the world, Bruxelas, Bruylant/Ed. Yvon Blais, 2010, JULIE RINGELHEIM (dir.), Le droit et la diversit culturelle, Bruxelas, Bruylant, 2011 e OMID PAYROW SHABANI (ed), Multiculturalism and Law: a critical debate, Cardiff, University of Walles Press, 2007. 3 A expresso de FRANCESCO PALERMO, Accommodating differences: the present and future of the law of diversity, in VLR, vol. 30, 2006, p. 431 ss., que alude a um direito da diversidade como multifacetado (pluralidade de produtores e fornecedores), complexo (a soberania sobre as questes de diversidade difusa) e tendencialmente soft (id est, determinado por elementos no estritamente vinculativos). 4 LUSA NETO, O direito disposio sobre o prprio corpo, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 48. 5 ABDULLAHI AHMED AN-NA'IM, "Taming the Imperial Impulse: Realising a Pragmatic Moral Vision", in EPW, vol. XLVI, 2011, p. 55 ss.
12
que o conflito de valores adquire em cada pas e, por conseguinte, da soluo
plausvel para os dilemas suscitados6.
Como nota BENHABIB7, as lutas pela identidade no tm lugar apenas nos
novos estados-nao (que surgem por exemplo em resultado da desagregao dos
regimes comunistas), tm tambm lugar dentro das fronteiras das velhas democracias
liberais, associadas luta pelo reconhecimento de identidades baseadas no gnero, na
raa, na lngua, na etnia, na orientao sexual. Porm, o objeto deste estudo no diz
respeito s lutas pelo reconhecimento ou s lutas de identidade em geral, mas
especificamente s que se relacionam com o reconhecimento da identidade cultural,
ainda que sem descurar a necessria interdependncia entre abordagens. Por outro
lado, procurou-se uma abordagem da diversidade cultural capaz de relacionar
dimenses individuais e coletivas, no se circunscrevendo tutela das minorias
culturais, antes procurando uma compreenso alargada da identidade cultural que ,
tambm, maioritria.
Justificando em concreto a oportunidade de uma reflexo sobre a abordagem
constitucional e jusfundamental da diversidade cultural, atente-se na realidade de
Portugal como pas que se descobriu recentemente como pas de imigrao, e no
apenas de emigrao, o que justifica a especial ateno conferida diversidade
cultural de origem imigrante ou s novas minorias resultantes das migraes8, ainda
que no contexto de um enquadramento jusfundamental, que se pretende abrangente,
da identidade e da diferena.
2. Consideraes metodolgicas
A diversidade cultural suscita o interesse e a reflexo das cincias sociais, das
cincias polticas e da filosofia, convidando ao dilogo interdisciplinar9. Como
6 DANIEL BONILLA MALDONADO, La Constitucin multicultural, Bogot, Siglo del Hombre Editores/Universidad de los Andes/Universidad Javeriana-Instituto Pensar, 2006, p. 105. 7 SEYLA BENHABIB, Las reivindicaciones de la cultura, Buenos Aires, Katz, 2006, p. 8. 8 Para um diagnstico recente, vd. JORGE MALHEIROS (coord. cientfica), Diagnstico da populao imigrante em Portugal: desafios e potencialidades, Lisboa, ACIDI, 2013, disponvel em http://www.oi.acidi.gov.pt. 9 Vd., a propsito, as interessantes consideraes de JULIE RINGELHEIM, Cartographie dun champe en construction, in JULIE RINGELHEIM (dir.), Le droit..., cit., p. 1 ss., p. 4 ss. e PATRCIA JERNIMO, Direito Pblico e Cincias Sociais o contributo da antropologia para uma densificao culturalista dos direitos fundamentais, in SI, Tomo LX, 2011, p. 345 ss.
13
realidade cultural indissocivel das demais experincias humanas, conhecer o Direito
implica conhecer a sociedade qual se dirige e da qual resulta10, tanto mais quanto
certo, seguindo o ensinamento de PETER HBERLE, que a Constituio a partir da qual
procuramos compreender a cultura , ela mesma, cultura.
Sendo o Direito Constitucional um intertexto aberto, cuja gravitao no
um singular movimento de rotao em torno de si mesmo, mas sim um gesto de
translao perante outras galxias do saber humano, nas sugestivas palavras de
GOMES CANOTILHO11, a investigao socorrer-se- de contributos oriundos das
cincias sociais, maxime quanto problematizao do conceito de cultura e de
identidade cultural. A abordagem multidisciplinar um tributo ao conceito que se
perfilha de Constituio, que no pode ser vista como uma entidade independente do
mundo do ser, mas antes como uma sntese complexa entre texto constitucional,
realidade e valores jurdicos bsicos da comunidade poltica como, de resto,
aprofundaremos. No se trata, pois, certamente, de empreender estudos sociolgicos
ou antropolgicos autnomos12, mas de procurar nestas cincias sociais elementos
extra-jurdicos de apoio interpretao e densificao da proteo jusfundamental.
A par do contributo das cincias sociais para a compreenso da diversidade
cultural, comprovou-se a necessidade de recorrer teoria e filosofia polticas, pela
centralidade que, aps um perodo de indiferena, a assumiram os temas da
identidade e da diversidade culturais. Registe-se o acerto da observao de BONILLA
MALDONADO, notando que a teoria multicultural oferece uma estrutura conceptual
para guiar a prtica constitucional, sendo embora certo que, enquanto a teoria
multicultural tenta solucionar problemas abstractos de maneira abstracta, prtica
constitucional cabe solucionar problemas concretos de maneira concreta13.
10 PATRCIA JERNIMO, Direito, cit., p. 345-346. 11 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 7. ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 19. 12 Vejam-se, a propsito, as advertncias de JOS DE MELO ALEXANDRINO, A estruturao do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituio portuguesa, vol. I, Coimbra, Almedina, 2006, p. 87. 13 DANIEL BONILLA MALDONADO, La Constitucin, cit., p. 107 ss.
14
No se tratando, in casu, de uma tese de Direito Comparado - por ausncia de
uma grelha de comparao e de recurso a mtodos de comparao sistemtica14 - o
recurso a ordenamentos constitucionais estrangeiros resultar essencialmente de um
apelo ao alargamento de razes que, como veremos, caracteriza hoje o modo de
ser do direito na internormatividade. Num plano diferente, o pluralismo normativo e
o alargamento dos direitos fundamentais para alm do Estado explicam a necessidade
do recurso a dimenses normativas internacionais e euro-comunitrias.
Finalmente, conceber a constituio como uma constituio aberta a uma
comunidade de intrpretes plural tem necessrias implicaes sobre a tarefa de
investigao, impondo tomar em considerao os contributos da doutrina e da
jurisprudncia, do Tribunal Constitucional bem como de outras jurisdies relevantes
em matria de direitos fundamentais, s quais se entende hoje o dilogo na rede de
interjusfundamentalidade.
3. Indicao de sequncia
Sendo o presente estudo um estudo de direito constitucional, em especial de
direitos fundamentais, dedica-se a PARTE I aos conceitos de constituio e de direitos
fundamentais, compreendidos na arena global, para a descortinar o sentido, e a
justificao, de uma abordagem assente na constituio nacional. Em especial,
abordamos a compatibilidade entre constitucionalismo e diversidade a partir dos
conceitos de pluralismo, inclusividade e identidade (Cap. I) para, de seguida, nos
ocuparmos dos direitos fundamentais entre ordens jurdicas (Cap. II).
A PARTE II tem por objetivo esclarecer, primeiro (Cap. I), o sentido da
multiculturalidade e enquadrar o debate multiculturalista rectius, os debates
multiculturalistas para, assim, problematizar a possvel atitude cultural do Estado
(Cap. II). Em alternativa proposta multicultural, ao menos se entendida num
determinado sentido, id est, como conducente fragmentao social e identitria,
aborda-se o modelo de justia intercultural (Cap. III). Como oportunamente
frisaremos, perante a impossibilidade, e desnecessidade (dada a profuso do seu
tratamento terico), de rever todas as questes tericas associadas problemtica 14 Vd. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Introduo ao Direito Comparado, Coimbra, Almedina, 1998 e, tambm, JOS DE MELO ALEXANDRINO, A estruturao..., vol. I, cit., p. 107.
15
multiculturalista, optmos por revisitar e discutir as questes que se revestem de
centralidade para a reflexo que nos ocupa e para a compreenso da tutela jurdica da
identidade e da diversidade culturais. Fizemo-lo ainda procurando dar conta de
contributos vindos de diferentes tradies de pensamento poltico, por um lado, e
incorporando e discutindo os posicionamentos crticos, por outro.
De seguida, e depois de um priplo breve pelos ordenamentos juspositivos
relevantes, designadamente tendo em conta as exigncias da metdica multinvel de
aplicao dos direitos fundamentais que se justificou na Parte I, procuraremos
estabelecer as coordenadas de uma compreenso jusfundamental da diversidade e
identidade culturais, maxime os princpios fundamentais possibilitadores do dilogo
intercultural, bem como concretizar os termos da inclusividade constitucional atravs
de uma abordagem combinada assente nos direitos fundamentais e no princpio da
igualdade, e ilustrada atravs de um esforo de problematizao em torno de
hipteses concretas (PARTE III).
Terminaremos com a apresentao de uma SNTESE CONCLUSIVA.
16
PARTE I
DA CONSTITUIO COMO LIMITE CONSTITUIO COMO
FUNDAMENTO
Temos que nos concentrar no no choque de civilizaes que foi
fabricado mas sim no lento trabalho conjunto de culturas que se sobrepem, que recorrem umas s outras, e que vivem juntas de formas incomparavelmente mais interessantes do que qualquer tipo de compreenso resumida ou inautntica permite. Mas para este tipo de perceo mais ampla precisamos de tempo e de uma investigao paciente e ctica que tenha f nas comunidades de interpretao, to difceis de sustentar num mundo que exige ao instantnea e reao instantnea. (EDWARD W. SAID, Orientalismo, Prefcio (2003), Lisboa, Edies Cotovia, 2004, p. XXIV)
CAPTULO I O constitucionalismo na era da diversidade 15
1.Entre o triunfalismo e a nostalgia
Os conceitos (no necessariamente sobreponveis) de constituio e de
constitucionalismo, recentes na histria das instituies polticas e que conheceram
notvel expanso16, pertencem hoje ao leque dos conceitos discutidos17. Por essa
15 Tommos a expresso era da diversidade da obra de JAMES TULLY intitulada Strange Multiplicity, de 1995, a que aludimos ao longo deste trabalho. 16 Referimo-nos, pois, ao constitucionalismo moderno e ao conceito moderno de constituio, que despontaram no sculo XVIII, e no Constituio em sentido histrico-universal e em sentido institucional. Sobre a questo, entre outros, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 4. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 13 ss., PAULO FERREIRA DA CUNHA, Direito Constitucional Geral, Lisboa, Quid Iuris, 2006, p. 97 ss., MARIA LCIA AMARAL, A forma da Repblica, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 11 ss. Tal no arreda, naturalmente, a utilidade dos conceitos a que aludimos em ltimo lugar, e tambm na discusso sobre o constitucionalismo para alm do Estado assim, sustentando, a propsito da constituio europeia, um conceito abrangente de constituio que implique o conceito histrico-universal, vd. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Novo Direito Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 2005, p. 178 e passim. 17 NEIL WALKER/ STEPHEN TIERNEY, Introduction. A Constitutional Mosaic? Exploring the New Frontiers of Europes Constitutionalism, in Europes..., cit., p. 1 ss., p. 4 e DIETER GRIMM, The achievement of constitutionalism and its prospects in a changed world, in PETRA DOBNER/ MARTIN LOUGHLIN (eds.), The twilight of constitutionalism?, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 3 ss. Entre ns, sobre as diversas acees de constitucionalismo, MARIA LCIA AMARAL, A forma..., cit., p. 39 ss. e 43 ss. e MARIANA CANOTILHO, O princpio do nvel mais elevado de proteo dos direitos fundamentais na UE,
17
razo, afirmar como o fizemos na Introduo que a perspetiva adotada nesta
dissertao uma perspetiva de direito constitucional evoca hoje dimenses que,
certamente, no evocaria se escrevssemos h apenas algumas dcadas atrs18. Os
direitos fundamentais movimentam-se hoje numa arena global19, colocando
questes de interjusfundamentalidade20 que convocam a articulao entre diferentes
nveis de proteo e, por conseguinte, de constitucionalizao, assumida esta numa
aceo gradativa e de intensidade varivel, correntemente designada por rede de
interconstitucionalidade.
Perante o constitucionalismo da constelao ps nacional, onde os
triunfalistas veem o triunfo e expanso do constitucionalismo, os nostlgicos veem,
com preocupao, um constitucionalismo ameaado ou mesmo evanescente21. A crise
ou o crepsculo da constituio e/ou do constitucionalismo expem o
constitucionalismo ferido, nos seus pilares essenciais, pela globalizao, e ameaado
pela dupla disjuno entre poltica e Estado e entre Estado e Constituio22.
O constitucionalismo acha-se hoje entre duas tendncias opostas: a tendncia
para um constitucionalismo transnacional e para uma potencial expanso global, por
um lado, e a tendncia para a fragmentao, particularizao e destruio da sua
estabilidade, designadamente por via das chamadas polticas de identidade23, mas
Coimbra, Universidade de Coimbra, 2008, p. 17 ss., disponvel no stio da Biblioteca Inforeuropa em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000047387/documento/0001/ [10/05/2013], explorando o que significa falar hoje em constitucionalismo e, em especial, identificando cinco usos para a expresso constitucionalismo, um axiolgico, um estrutural, um procedimental, um normativo e um tcnico (ob. cit., p. 24). 18 Sobre as fronteiras do Direito Constitucional, CRISTINA QUEIROZ, Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 393 ss. 19 A expresso de SUZANA TAVARES DA SILVA, Direitos Fundamentais na Arena Global, Coimbra, Imprensa Universidade Coimbra, 2011, p. 9. 20 JNATAS MACHADO/ J.J.GOMES CANOTILHO, Metdica Multinvel: Acordos Internacionais do Estado Portugus com Comunidades Religiosas, in RLJ, n. 3962, 2010, p. 254-269, p. 258. 21 MATTIAS KUMM, The Best of Times and the Worst of Times. Between Constitutional Triumphalism and Nostalgia, in The twilight, cit., p. 201 ss., p. 201 e 202. 22 PETRA DOBNER/ MARTIN LOUGHLIN, Introduction, in The twilight, cit., p. xi e MATTIAS KUMM, The Best..., cit., p. 201 ss., respetivamente. Entre ns, recentemente, RUI MEDEIROS, Interveno no VI Encontro de Professores de Direito Pblico, Porto, Escola de Direito do Porto da Universidade Catlica Portuguesa, 25/01/2013. 23 MICHEL ROSENFELD, The Identity of the constitutional subject, Londres, Routledge, 2010, p. 3 e, tambm, SEYLA BENHABIB, Las reivindicaciones, cit., p. 290 ss. Aludindo a uma fragmentao da cidadania em virtude da proliferao de identificaes minoritrias, MICHEL
18
tambm perante o processo de diferenciao social que leva ao surgimento de
constituies parcelares e desafia a funo tradicional dos modelos constitucionais
como garantes da unidade poltica ao nvel nacional, por outro24. A ligao do
conceito de constituio ao estado soberano nacional leva a que, no primeiro, se
reflitam as profundas alteraes que este ltimo vem sofrendo, assumindo-se a
expanso do constitucionalismo para alm do Estado como causa e resposta eroso
da estatalidade que desafia a capacidade constitucional para fundar e regular o
exerccio do poder poltico num determinado territrio25, anunciando, nalgumas
perspetivas, um constitucionalismo sem Estado mas tambm sem soberania.
A desterritorializao e a desmaterializao do Estado articulam-se com outra
dimenso, a que aludiremos tambm infra, qual seja a da pluralidade de pertenas,
que conduz a um cosmopolitismo multinivelado de lealdades pessoais e de
cidadanias, plurais e sobrepostas26. A ideia de mltiplas pertenas num espao
social polirquico aponta, tambm ela, para um enfraquecimento do Estado,
enfraquecimento este que ocorre, no apenas atravs de perdas para instncias
supranacionais e internacionais, mas tambm infraestaduais, mais ou menos
institucionalizadas, e.g. comunidades de base etnocultural. O conceito de mltiplas
pertenas, fundamental para a compreenso da tutela da identidade cultural, reconduz-
se assim a uma tendncia mais ampla de reforo do elemento pessoal, quando, se
certo que o Direito sempre esteve ao servio da pessoa27, o seu mbito de aplicao se
COUTOU, Citoyennet et lgitimit. Le patriotisme constitutionnel comme fondement de la rfrence identitaire, in DS, n 40, 1998, p. 631 ss., p. 632. Sobre a desagregao da cidadania, ainda SEYLA BENHABIB, Los derechos de los otros, extranjeros, residentes y ciudadanos, Barcelona, Gedisa, 2005, p. 61 ss. 24 THOMAS VESTING, Ende der Verfassung?, in THOMAS VESTING/STEFAN KORIOTH (org.), Der Eigenwert des Verfassungsrechts, Tubingen, Mohr Siebeck, 2011, p. 71 ss. 25 DIETER GRIMM, The achievement, cit., p. 4 e Types of constitutions, in MICHEL ROSENFELD/ANDRS SAJ (eds.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, Oxford, Oxford University Press, 2012, p. 98 ss., p. 130 ss. Sobre a relao entre estatalidade e territorialidade, esta ltima entendida ou em termos proprietaristas ou como jurisdio e, neste sentido, soberania, vd. ULRICH PREUSS, Disconnecting Constitutions from Statehood. Is global constitutionalism a viable concept?, in The twilight, cit., p. 23 ss., p. 26 ss. 26 PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo versus Interconstitucionalidade uma leitura crtica do pensamento transconstitucional de Marcelo Neves, in Tribunal Constitucional: 35. Aniversrio da Constituio de 1976, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2012, p. 151 ss., p. 162 ss. 27 JORGE MIRANDA, Manual..., Tomo III, 6. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 244 ss.
19
recortava tradicionalmente por recurso ao territrio estadual, refletindo-se tambm
aqui, como noutros campos, uma tendncia para a privatizao.
Mesmo que adotemos a (supra referida) atitude nostlgica, nem sempre
certo a que se refere a discusso, se ao fim do constitucionalismo ou apenas ao fim do
constitucionalismo tal como o conhecemos28, por um lado, ou se crise do
constitucionalismo, crise do Estado (nao) ou crise da soberania estadual29, por
outro. Do que se trata, mais propriamente, de um constitucionalismo em mudana,
ainda que de rumo incerto30, e em expanso, colocado perante a necessidade de se
repensar e renovar31. Constitucionalismo esse que, como frequentemente salientado
no contexto do(s) chamado(s) neoconstitucionalismo(s), pode simultaneamente
referir-se ao constitucionalismo como modelo, como ideologia ou como teoria (e, em
especial, como teoria do Direito alternativa ao positivismo em crise)32.
28 Aludimos aqui expresso de MING-SUNG KUO, The End of Constitutionalism as We Know It? Boundaries and the State of Global Constitutional (Dis)Ordering, in TLT, vol. 1, n. 3, 2010, p. 32 ss.. 29 Sobre o Estado ps-moderno e o Estado heri local, J. J. GOMES CANOTILHO, Brancosos e interconstitucionalidade. Itinerrios dos discursos sobre a historicidade constitucional, Coimbra, Almedina, 2006, p. 131 ss., 183 ss. e 227 ss. Sobre a crise do Estado e da sua soberania, evocando Georg SORENSEN, The transformation of the State, 2010, vd. CRISTINA QUEIROZ, Direito Constitucional Internacional, Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2011, p. 34, sustentando, em sntese, que ter ocorrido uma compensao, tendo o Estado abdicado de algumas funes tradicionais reguladoras no plano interno e do domnio sobre certas matrias e, em contrapartida, ganho outras, aumentando as suas competncias e capacidades no plano internacional. Neste sentido, tambm, MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, So Paulo, Martins Fontes, 2009, p. 34 e, ainda, J. A. FROWEIN, Constitutionalism in the face of the changing nation state, in CHRISTIAN STARCK (org.), Constitutionalism, Universalism and Democracy. A Comparative Analysis (The German Contributions to the Fifth World Congress of the International Association of Constitutional Law), Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1999, p. 54 ss., p. 54-55, aludindo a um ideal de Estado-nao contraposto realidade diversificada dos estados. Finalmente, uma anlise juspositiva do impacto da supranacionalidade na configurao da separao de poderes estadual no caso portugus pode encontrar-se em CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 45 ss. 30 PETRA DOBNER/ MARTIN LOUGHLIN, Introduction, cit., p. xvi. 31 PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo... cit., p. 166 ss. 32 Segundo ANTNIO CAVALCANTI MAIA, As transformaes dos sistemas jurdicos contemporneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo, in REGINA QUARESMA, MARIA LCIA DE PAULA OLIVEIRA/ FARLEI MARTINS RICCIO DE OLIVEIRA (coord.), Neoconstitucionalismo, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 5 ss., p. 14, o neoconstitucionalismo pode ser visto como um certo tipo de estado de direito caracterizando uma determinada forma de organizao poltica, como uma teoria do direito que descreve esse modelo e como filosofia poltica ou ideologia que justifica esse modelo. PAOLO COMMANDUCCI, Formas de (neo)constitucionalismo: un analises metaterico, in MIGUEL CARBONELL (ed.), Neoconstitucionalismo(s), Madrid, Trotta, 2003, p. 75 ss., distingue constitucionalismo e
20
Dado que no prescinde, ou no deve prescindir, de ter por pano de fundo uma
teoria do constitucionalismo33, a reflexo sobre a possibilidade de um
constitucionalismo ps-nacional34 ou emancipado do Estado35 - e no necessariamente
sem Estado - convoca e discute questes centrais para a compreenso atual da
problemtica constitucionalista. Referimo-nos relao entre Constituio e Estado36
e entre constitucionalismo, soberania e democracia37, articulao entre
constitucionalismo como tcnica de racionalizao do poder, como limite e como
fundamento38, assumindo diferentes intensidades39, s diversas concees de
neoconstitucionalismo como teoria e/ou ideologia e/ou mtodo de anlise do direito e como elementos estruturais de um sistema jurdico e poltico, que so descritos e explicados pelo (neo)constitucionalismo como teoria ou que satisfazem os requisitos do (neo)constitucionalismo como ideologia, ou seja, um modelo constitucional ou conjunto de mecanismos normativos e institucionais que limitam os poderes do Estado e/ou protegem os direitos fundamentais. Entre ns, ANTNIO HESPANHA/ TERESA BELEZA (coord.), Teoria da Argumentao e Neo-Constitucionalismo, Coimbra, Almedina, 2011 e, aludindo ao constitucionalismo em sentido ideal e como tcnica jurdica ou prtica de governo limitado, MARIA LCIA AMARAL, A forma..., cit., p. 40 ss. 33 MIGUEL MADURO, Constitutional pluralism as the theory of european constitutionalism, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jos Joaquim Gomes Canotilho, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 450 ss., p. 450. 34 INGOLF PERNICE, The Treaty of Lisbon: multilevel constitutionalism in action, in CJEL, vol. 15, n. 3, 2009, p. 349 ss., p. 365 ss. 35 MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. XX (Introduo) e p. 1 ss. 36 Sobre a questo, remetemos para os contributos de DIETER GRIMM, The achievement..., cit., e de ULRICH PREUSS, Disconnecting..., cit., pronunciando-se contra e a favor de tal possibilidade. Para alguns autores, trata-de de reconhecer que as constituies, ainda que sirvam os fins de institucionalizao do Estado, so constituies da sociedade (como resulta, designadamente, do art. 16. da DDHC) e, por conseguinte, podero cumprir a sua funo primria estabelecer um regime de autogoverno coletivo pela constituio de um we the people - mesmo em sociedades no contidas em Estado. Na perspetiva de ULRICH PREUSS, Disconnecting, cit., p. 46, as constituies podem criar esquemas de cooperao que estejam para l de fronteiras fsicas, sociais e culturais porque no pressupem valores partilhados ou compreenses partilhadas de prticas sociais. O que estaria em causa seria a superao do paradigma do constitucionalismo do estatismo democrtico por uma conceo prtica de constitucionalismo, que reconhece uma pluralidade de fontes de autoridade constitucional para alm das constituies nacionais, nota MATTIAS KUMM, The Best, cit., p. 203 e 212 ss. 37 CRISTINA QUEIROZ, Direito Constitucional Internacional, cit., p. 63-64. 38 INGOLF PERNICE, The Treaty..., cit., p. 365 ss. Tambm MICHEL ROSENFELD, The identity..., cit., p. 269, discutindo a hiptese de um sujeito constitucional transnacional e de uma identidade constitucional global, considera que, no universo jurdico pluralista segmentando e estratificado, do interesse de cada unidade jurdica adotar uma constituio estrutural por razes internas (auto-organizao) e externas (interao com as demais unidades).
21
constituio e de constitucionalismo subjacentes40, (re) configurao poder
constituinte41, possibilidade de uma constitucionalizao de diferente intensidade e
geometria varivel42 (ou, noutra perspetiva, de uma administrativizao43), capaz de
abarcar a sociedade como um todo, ao esvaziamento da dimenso poltica44 e da
39A reconstruo (ao jeito de um experimentalismo constitucional) do conceito de constitucionalismo, que surgiu associado ao Estado, adaptando-o s circunstncias de uma entidade poltica supranacional como a UE, daria lugar a uma verso mais branda de constitucionalismo, um constitucionalismo de baixa intensidade (MADURO) ou constitucionalismo com um c minsculo (NEIL WALKER), uma forma mais anmica do que a do seu parente estatal (MAC AMHLAIGH), vd. CORMAC MAC AMHLAIGH, The European Unions Constitutional Mosaic: Big C or Small c, is that the question?, in Europes..., cit., p. 21 ss., p. 31 ss. Entre ns, MARIA LCIA AMARAL, A forma..., cit., p. 39 ss. e 413 ss. Em sentido mais amplo, sobre o constitucionalismo global como oscilando entre o constitucionalismo fragmentado e o constitucionalismo seletivo, MING-SUNG KUO, The End..., cit. 40 Discutindo a questo a propsito da constitucionalizao da UE, CORMAC MAC AMHLAIGH, The European..., cit., p. 21 ss. e INGOLF PERNICE, The Treaty..., cit., p. 365 ss. e 373 ss. Sobre a questo da necessidade de superao e/ou renovao do conceito de constituio, PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo..., cit., p. 156 ss. e MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 131 ss. 41 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., p. 1428 ss. e CRISTINA QUEIROZ, Poder constituinte, democracia e direitos fundamentais,Coimbra, Coimbra Editora, 2013, passim. 42 Noutra perspetiva, o constitucionalismo teria dado lugar constitucionalizao enquanto conjunto de processos destinados a submeter os poderes pblicos de todos os tipos a uma disciplina constitucional de normas e procedimentos (que parece corresponder ao que, noutras terminologias, se designa por neoconstitucionalismo), ou seja, uma reconfigurao da teoria poltica do constitucionalismo como metateoria que estabelece os padres de legitimidade para o exerccio do poder pblico onde quer que este se encontre. Nesta perspetiva, a constitucionalizao faria parte de um conjunto de tendncias sobre a governana privatizao, marketizao, contratualizao destinadas a limitar os governos, orientar a sua ao e aumentar a capacidade de responsabilizao e prestao de contas, nascida da reconfigurao dos valores do constitucionalismo, da extenso do seu alcance e do enfraquecimento da relao entre constitucionalismo e estado-nao. Vd. MARTIN LOUGHLIN, What is Constitutionalisation?, in The twilight..., cit., p. 47 ss. e, tambm, ERIKA DE WET, The constitutionalization of the public international law, in The Oxford..., cit., p. 1209 ss. 43 Finalmente, para outros, do que se trata, mais propriamente, , no de uma constitucionalizao da ordem global, mas de uma administrativizao, dando origem a um direito administrativo global como constitucionalismo de letra minscula, MING-SUNG KUO, Taming Governance with Legality? Critical Reflections upon Global Administrative Law as Small-c Global Constitutionalism, in JILP, vol. 44, 2011, p. 55 ss. 44 A possibilidade de expanso do constitucionalismo para alm do Estado parece, por sua vez, assentar na dimenso jurdica, id est, no constitucionalismo como conjunto de recursos normativos e estruturas de poder, mais que na poltica, sugerindo uma globalizao do conceito de constituio e de constitucionalismo conseguida custa de um esvaziamento do carcter poltico e simblico do constitucionalismo como construo de destinos partilhados num contexto politicamente multiforme, vd. NEIL WALKER/STEPHEN TIERNEY, Introduction..., cit., p. 6-7. Evoque-se ainda, num outro sentido, o constitucionalismo
22
dimenso democrtica do constitucionalismo, s funes da constituio e,
designadamente, sua funo integradora, contraposio entre dimenses abstratas
e universais e dimenses culturais (ineliminveis) da constituio45, bem como, no
contexto de uma normatividade complexa e multinivelada que no se restringe ao
espao europeu, configurao de um direito das relaes (hierrquicas ou
heterrquicas) entre diferentes nveis ou ordens normativas (e seus conflitos)46.
Importa, igualmente, notar que a progressiva afirmao de um direito constitucional
global reflete as tendncias, opostas mas convergentes, de constitucionalizao do
direito internacional e de internacionalizao do direito constitucional, que se
cifram numa aproximao e interao recproca entre os domnios jurdicos
domsticos e internacionais47 - visvel, designadamente, no domnio dos direitos
fundamentais.
A reflexo a que vimos aludindo faz-se, por conseguinte, sob a gide das
perspetivas, no necessariamente coincidentes, do constitucionalismo global, do
constitucionalismo multinvel e da constituio ps-nacional48, do
transconstitucionalismo49 e da interconstitucionalidade50.
societal, tal como desenvolvido por exemplo por GUNTHER TEUBNER, Transnational fundamental rights: horizontal effects?, in R&R, n. 40, 2011, p. 191 ss. 45 A constitucionalizao desliga, igualmente, a autoridade da constituio e a comunidade ou cultura de um povo, assumindo-se, por conseguinte, como projeto universalista, vd. MARTIN LOUGHLIN, What is, cit., p. 59 ss. 46 MIGUEL MADURO, Constitutional..., cit., p. 450 ss. e, em especial no que diz respeito aos direitos fundamentais, MARIANA CANOTILHO, O princpio..., cit., passim. Preferindo falar, a propsito do pluralismo jurdico no espao europeu de direitos fundamentais, de uma hierarquia de normas encimada pelos direitos humanos e uma heterarquia de tribunais, sem relaes de hierarquia entre si, mas complementando-se na proteo daqueles, SIONAIDH DOUGLAS-SCOTT, Europes Constitutional Mosaic: Human Rights in the European Legal Space-Utopia, Dystopia, Monotopia or Polytopia?, in Europes, cit., p. 127 ss. 47 Sobre estes conceitos, em especial sobre a internacionalizao do direito constitucional, suas manifestaes e causas, WEN-CHEN CHANG/JIUNN-RONG YEH, Internationalization of constitutional law, in The Oxford..., cit., p. 1166 ss. 48 INGOLF PERNICE, The Treaty..., cit., p. 365 ss. e 372 ss. 49MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit. e PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo..., cit. 50 Na formulao de GOMES CANOTILHO, na senda de FRANCISCO LUCAS PIRES, vd. PAULO RANGEL, Uma teoria da interconstitucionalidade: pluralismo e constituio no pensamento de Francisco Lucas Pires, in Themis, ano I, n. 2, 2000, p.127 ss. Sobre a teoria da interconstitucionalidade, terminologia que considera prefervel a multilevel constitutionalism, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 1423 ss. e Brancosos, cit., p. 263 ss., bem como PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo, cit., p. 154 ss.
23
A determinao da natureza constitucional da UE assume protagonismo na
discusso sobre a emergncia, a par das nacionais, de constituies internacionais51.
A opo por uma abordagem pluralista no se funda, ou no se funda apenas, em
pretenses empricas ou no reconhecimento de um determinado estado de coisas,
mas na compreenso de que o pluralismo inerente ao constitucionalismo52. Na
expresso de MADURO, o constitucionalismo visa simultaneamente garantir e regular
o pluralismo, um pluralismo de interesses, ideias e vises do bem comum que se
reflete nos paradoxos do constitucionalismo e no balanceamento entre a deliberao
democrtica e os direitos constitucionais, sendo que os paradoxos a que alude - o
paradoxo da comunidade poltica como limite democracia, o paradoxo do medo de
muitos e do medo de poucos (ou limitao da democracia pela constituio) e o
paradoxo de quem decide o qu? mostram um constitucionalismo recetivo
natureza cambiante da autoridade poltica e do espao poltico, captado atravs da
opo pluralista53.
O recurso metfora do mosaico constitucional54 para caraterizar o espao
europeu permite contrapor a uma configurao constitucional centrada no Estado
(configurao vestefaliana) um padro emergente baseado na pluralidade mais que na
singularidade do campo constitucional, na diversidade mais que na uniformidade das
partes, em relaes heterrquicas mais que hierrquicas e em fronteiras (internas e
externas) fluidas mais que fixas. Neste mosaico, composto, cada parte tem jurisdio
constitucional parcial55 e competncias estreitamente correlacionadas em diversas
51 Aludimos distino proposta por DIETER GRIMM, Types..., cit., p. 129 ss. Criticando o uso inflacionrio do termo constituio, que identifica com a tendncia de sempre identificar a existncia de uma nova Constituio quando surge uma ordem, instituio ou organizao jurdica na sociedade contempornea, MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. XX (Introduo). 52 MIGUEL MADURO, Constitutional..., cit., p. 469. Ou seja, enquanto a tese emprica sobre o pluralismo normativo se limita a constatar que a questo da autoridade constitucional final permanece aberta, a justificao normativa sustenta que ela deve permanecer aberta, fazendo prevalecer a heterarquia sobre a hierarquia vd. ob. cit., p. 459 ss. 53 MIGUEL MADURO, Constitutional..., cit., p. 463. 54 NEIL WALKER/ STEPHEN TIERNEY, Introduction..., cit., p. 8 ss. 55 No mesmo sentido, a propsito da constituio nacional, J. J. GOMES CANOTILHO, Brancosos, cit., p. 109-110, nota que a constituio torna-se parcial, ao menos no sentido em que partilha o seu campo de regulao com outras ordens candidatas constitucionalidade, tendo de adequar-se, no plano poltico e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas associaes abertas de estados nacionais abertos.
24
matrias56. Em consequncia, o prprio princpio do Estado de Direito que tem de
ser reformulado, acompanhando a perda ou reconfigurao da funo de garantia
das constituies nacionais, propondo-se mesmo um novo modelo, o da ordem
constitucional de Direito ampliada ao plano supranacional57.
No obstante o protagonismo que a Unio assume, centrar nela a discusso,
ainda que apenas no espao europeu, no d uma imagem completa da configurao
constitucional complexa da Europa contempornea, havendo que levar em conta,
para alm de novos atores transnacionais privados, outras estruturas jurdicas dotadas
de autoridade, como o Conselho da Europa ou entidades infraestaduais e entidades
no europeias, cujas relaes criam redes de autoridade jurdica de densidade
crescente58.
A matria dos direitos fundamentais permite, mais uma vez, ilustrar essa
complexidade normativa, pressupondo a articulao entre nveis de proteo, por sua
vez tambm diversificados - internacionais, europeus e nacionais, pblicos e privados.
56 NEIL WALKER/ STEPHEN TIERNEY, Introduction..., cit., p. 8 ss. e PAULO RANGEL, Por uma Europa Federal: o problema poltico e constitucional, in Economia, parlamentos, desenvolvimento e migraes: as novas dinmicas bilaterais entre Brasil e Europa, Rio de Janeiro, Konrad-Adenauer-Stiftung, 2012, p. 105 ss., p. 116, escrevendo que a regra poltica fundamental apresenta-se agora como um feixe de ordens fragmentrias, em que a lei escrita se mistura com a realidade e o costume, em que a tbua sagrada nacional se tem de intercalar e articular com textos e costumes de aspecto global ou regional, de nvel transnacional. 57 LUIGI FERRAJOLI, Pasado y futuro del estado de Derecho, in Neoconstitucionalismo(s), cit., p. 13 ss., em especial p. 22 ss. 58 NEIL WALKER/ STEPHEN TIERNEY, Introduction..., cit., p. 2-3. Quanto ao sistema da CEDH instrumento constitucional da ordem pblica europeia dos direitos do homem, vd. Loizidou c. Turquia (objees preliminares), n. 15318/89, 25/03/1995 - COHEN-JONATHAN evidencia o carter constitucional das disposies da CEDH e a funo quase constitucional do TEDH, cuja tcnicas de interpretao utilizadas e o poder de interpretao autntica das disposies da CEDH reconhecido pelos Estado o aproximam dos tribunais constitucionais, vd. GRAD COHEN-JONATHAN, La function quasi constitutionnelle de la Cour Europenne des Droits de lHomme, in Renouveau du droit constitutionnel. Mlanges en lhonneur de Louis Favoreu, Paris, Dalloz, 2007, p. 1127 ss. Discutindo o desenvolvimento de um modelo constitucional no Conselho da Europa, SIONAIDH DOUGLAS-SCOTT, Europes, cit., p. 97 ss.
25
2. O retorno ao Estado
Ora, se a reflexo constitucional se desprende do Estado, ela tem de lhe
retornar, para determinar o papel do Estado e do seu Direito, maxime constitucional,
nesta rede de internormatividade - ou seja, o que lhe(s) resta59.
A superao da conceo vestefaliana de Estado e, num contexto de
pluralidade de poderes (poliarquia), o diagnstico do enfraquecimento do Estado
soberano60, no significam que o Estado esteja moribundo, ainda que se confronte
com um processo de redefinio do seu lugar poltico61. No nos cabendo discutir
aqui o carter ilusrio de uma viso de mundo ps-nacional62, a ecloso de novos
Estados nos sculos XX e XXI sugere que o Estado-nao, metamorfoseado, se
mantm como instncia importante de racionalizao e integrao social e,
portanto, mediador significativo nas vrias escalas, internas e externas, de insero
social dos indivduos e de negociao dos seus interesses coletivos63. Afigura-se
igualmente sustentvel defender que , ainda, a entidade mais capaz de assegurar,
atravs da sua constituio, um conjunto de valores culturais e civilizacionais das
comunidades de pessoas64, a includos os valores e as prticas democrticas65 sem
59 Aludimos aqui a uma expresso de J. J. GOMES CANOTILHO,Brancosos..., cit., p. 187. 60 J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Concluses, in Tribunal Constitucional: 35. Aniversrio da Constituio de 1976, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2012, p. 175 ss., p. 176. Sobre a questo, AFONSO DOLIVEIRA MARTINS, O Estado em transformao: alguns aspectos, in Homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010, p. 329 ss. 61 PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo... cit., p. 173 e MARIANA CANOTILHO, O princpio..., cit., p. 26 ss. 62 Resultante de uma apreenso apenas parcelar da realidade, como sugeria, em 2005, TONY JUDT, Ps-guerra. Histria da Europa desde 1945, Edies 70, 2010, p. 894. 63 FERNANDO CATROGA, Ptria, nao e nacionalismo, in JOS MANUEL SOBRAL/JORGE VALA (org.), Identidade Nacional, Incluso e Excluso Social, Lisboa, ICS, 2010, p. 33 ss, p. 64, notando que, a segunda metade do sculo XX e no incio do sculo XXI, a Europa assiste simultaneamente criao de novos Estados-nao e ao desenvolvimento e consolidao de movimentos autonomistas e nacionalistas, por um lado, e ao desejo de integrao em estruturas internacionais e transnacionais, por outro. Neste sentido, partindo de uma teoria comunitarista liberal da constituio, WINFRED BRGGER, Communitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution, in ICON, vol. 2, 2004, p. 431 ss., p. 443 ss. 64 J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Concluses, cit., p. 177. 65 O argumento da superioridade democrtica da comunidade politica estadual perante as comunidades supraestaduais, pode, a este respeito, ser mobilizado com proveito, ainda que no em termos absolutos - neste sentido, J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Concluses, cit., p. 181
26
prejuzo do reconhecimento de dimenses democrticas no plano supraestadual e de
um movimento no sentido da democracia global66, no plano estadual a cadeia de
legitimidade entre inputs democrticos e outputs polticos e a responsabilidade
pelas decises so mais fceis de determinar do que no plano supraestadual67.
De acordo com a compreenso pluralista do campo constitucional, a
emergncia de um constitucionalismo global significa, pois, no a neutralizao do
constitucionalismo de base estadual, mas antes a sua abertura a um dilogo
multinvel68 ou, mesmo, um reforo das democracias constitucionais nacionais69.
Trata-se de combinar a permeabilidade do estado e da sua constituio a dimenses
transnacionais com um certo grau de diferenciao das entidades locais, regionais,
nacionais e supraestaduais70. O foco da ateno move-se, assim, para uma
recompreenso das funes da constituio e para as relaes que se estabelecem
entre as diversas camadas ou atores da rede de interconstitucionalidade, avultando a o
pluralismo como fenmeno de segunda ordem ou propriedade das relaes
heterrquicas71 que se estabelecem entre sistemas jurdicos e polticos72 ou, na
e, ainda, ANTNIO HESPANHA, Cultura jurdica europeia: sntese de um milnio, Coimbra, Almedina, 2012, p. 555. Com efeito, tambm na ordem jurdica internacional possvel identificar elementos democrticos - sobre a questo, CRISTINA QUEIROZ, Direito Constitucional Internacional, cit., p. 52 ss. 66 GNTER FRANKENBERG, Democracy, in The Oxford..., cit., p. 250 ss. 67 WINFRED BRGGER, Communitarianism..., cit., p. 444. 68 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., p. 1370 ss. e CRISTINA QUEIROZ, Direito Constitucional, cit., p. 408 ss. 69 MIGUEL MADURO, Constitutional..., cit., p. 450 ss., sobre a legitimidade de uma pretenso constitucional europeia. 70 WINFRED BRGGER, Communitarianism..., p. 444 ss., exemplificando face constituio alem com a integrao na UE e na comunidade internacional e com a ligao dos direitos humanos Grundgesetz, apontando esta ltima dimenso para a distino entre direitos reconhecidos a todos independentemente da sua nacionalidade e direitos constitucionalmente reconhecidos apenas a alemes. 71 Como escreve MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 236-237, no se trata de aceitar qualquer hierarquia entre nveis, mas de uma pluralidade de ordens cujos tipos estruturais, formas de diferenciao, modelos de auto compreenso e modos de concretizao so fortemente diversos e peculiares, uma multiplicidade da qual resultam entrelaamentos nos quais nenhuma das ordens pode apresentar-se legitimamente como detentora da ultima ratio discursiva, em suma, de um sistema multicntrico, no qual, embora haja hierarquia no interior das ordens, prevalecem entre elas as relaes heterrquicas (hierarquia entrelaada e no escalonada) . disso exemplo o transconstitucionalismo pluridimensional de direitos humanos, ob. cit., p. 235 ss. 72 Nas palavras de NEIL WALKER, Rosenfeld's plural constitutionalism, in ICON, vol. 8, 2010, p. 677 ss., p. 677-678, ele mesmo um pluralista do grupo de tericos pluralistas.
27
perspetiva de MADURO, a recompreenso do pluralismo nsito no
constitucionalismo73.
Ora, como nota ROSENFELD na sua tentativa de sistematizao de uma
identidade constitucional transnacional, um universo juridicamente plural que se torna
progressivamente mais inter-relacionado - mas tambm mais fragmentado - enfrenta
problemas resultantes da complexidade, da pluralidade de identidades e da
necessidade de negociar e integrar, com sucesso, todas as relaes intra e
intercomunitrias com as quais confrontado no plano transnacional74. Ferramentas
como a margem de apreciao, o federalismo, o princpio da subsidiariedade e o
princpio da proporcionalidade permitem acomodar a diversidade sem comprometer
(e promovendo) a convergncia75.
Se rejeitarmos uma conceo puramente estrutural do constitucionalismo
como organizao de poder segundo regras jurdicas76 - para a qual porventura
bastaria o conceito de legalidade ou de juridicidade, no se reclamando
especificamente da constitucionalidade77 e indagarmos o seu sentido material,
somos remetidos para as questes fundamentais na origem do constitucionalismo,
quais sejam a proteo dos direitos e garantias fundamentais dos indivduos e a
organizao, em moldes de limitao e controlo, do poder estadual. Trata-se das
questes constitucionais a que alude MARCELO NEVES78, que se obtm
desvinculando a noo de direito constitucional do constitucionalismo clssico ligado
originariamente ao Estado como organizao territorial79, e cujo tratamento deixou de
ser privilgio do direito constitucional do Estado80, impondo um dilogo ou uma
73 MIGUEL MADURO, Constitutional..., cit., p. 450 ss. 74 MICHEL ROSENFELD, The identity, cit., p. 272-273. 75 Idem, cit., p. 271. 76 Discutindo a hiptese de um sujeito constitucional transnacional e de uma identidade constitucional global, MICHEL ROSENFELD, The identity, cit., p. 269-270, considera que no universo jurdico pluralista segmentando e estratificado, do interesse de cada unidade jurdica adotar uma constituio estrutural por razes internas (auto-organizao) e externas (interao com as demais unidades), identificando todavia uma convergncia no sentido dos direitos e no sentido do rule of law ou, pelo menos, do rule through law. 77 Sobre a questo, DIETER GRIMM, Types, cit., p. 98 ss. 78MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 119 e PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo..., cit., p. 153. 79 MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 120 ss. 80 Idem, cit., p. 295-297.
28
conversao transconstitucional 81. Como se ter oportunidade de referir infra,
visvel uma convergncia entre sistemas de proteo em torno dos direitos
fundamentais - um patriotismo de direitos humanos, para usar a expresso de
ROSENFELD82.
Em concees como a de MARCELO NEVES, os dilogos no campo
constitucional alargado no so apenas uma exigncia funcional, mas tambm
pretenso normativa83. A constituio estadual apresenta-se como a instncia
bsica de autofundamentao normativa do Estado como organizao poltico-jurdica
territorial84. Enquanto critrio bsico de auto compreenso da ordem jurdica
estatal, a constituio constitui um nvel inviolvel da ordem jurdica do Estado
constitucional, mas pode envolver-se com outros nveis no jogo constitucional, o que
significa que, embora a constituio do Estado constitucional vincule
normativamente os seus concretizadores, especialmente juzes e tribunais
constitucionais, ela reconstruda permanentemente mediante a sua interpretao e
aplicao por esses mesmos concretizadores. A sua proposta radical no sentido de
afastar uma qualquer pretenso de privilgio, ao nvel estadual ou a qualquer outro, na
resoluo de questes constitucionais, propondo em alternativa a necessidade de
pontes de transio e conversaes constitucionais, uma relao complementar
entre identidade e alteridade em que a identidade rearticulada a partir da
alteridade 85.
Na perspetiva, no totalmente coincidente, do constitucionalismo como
interconstitucionalidade, avulta o pressuposto da manuteno do valor e funo dos
sistemas constitucionais nacionais, em virtude do seu carcter auto descritivo e auto
referente (as constituies nacionais integram a rede mas no perdem as suas
funes identificadoras) 86, sem o qual no poder falar-se em dilogo
81 Idem, cit., p. 122. 82 MICHEL ROSENFELD, The identity, cit., p. 269-270. 83 MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 237-238. 84 Idem, cit., p. 295-297. constituio herclea contraprope problemas hidraconstitucionais cuja resoluo impe a articulao de observaes recprocas entre ordens jurdicas diversas, e, necessariamente, o reconhecimento dos limites da observao ( ponto cego). 85 Idem, cit., p. XXVII (Introduo). 86 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional , cit., p. 1426 e Brancosos, cit., p. 269.
29
interconstitucional. A teoria da interconstitucionalidade assim, para alm de
expresso de intraorganizatividade, uma teoria da interculturalidade constitucional,
tanto mais que uma teoria apenas da intraorganizatividade deixaria por explicar o
papel integrador dos textos constitucionais, que implica tambm inserir contedos
comunicativos possibilitadores da estruturao de comunidades inclusivas87. A
cultura, na aceo tridimensional proposta por HBERLE id est, nas suas dimenses
tradicional, inovadora e pluralista (leia-se, aberta)88 - forma o contexto dos textos
constitucionais fornecendo a interconstitucionalidade e a interculturalidade os
espaos para o pluralismo de intrpretes, aberto e racionalmente crtico89.
O Estado, sem deixar de o ser, torna-se interconstitucional de Direito, reflexo
precisamente de uma normatividade entrelaada que assume, tambm, dimenses
constitucionais. A opo pluralista de fundo abre, precisamente, caminho a pensar o
lugar do constitucionalismo estadual num contexto que o de vrios espaos em
comunicao, de acordo com uma racionalidade prpria, a uma razo pblica
alargada90 na qual assumem protagonismo dilogos maxime, jurisprudenciais -
sobre questes constitucionais transversais (MARCELO NEVES).
Interessa, em todo o caso, perceber que lugar resta constituio estadual no
constitucionalismo multinvel, ou seja, que papel continua a caber-lhe num espao de
integrao e dilogo entre nveis de constitucionalizao. E, em particular, que
papel continua a caber-lhe na defesa dos direitos fundamentais quando se verifica que
a funo de proteo destes direitos cada vez mais assumida por diversos atores e,
designadamente, diversos tribunais. Paradoxalmente, nota SUZANA TAVARES DA
SILVA, os direitos fundamentais, cuja proteo integra o ncleo da ideia de
constituio e funcionaram muitas vezes como motor das transies ou momentos
constituintes, podem vir acusados da aniquilao das constituies nacionais, na
medida em que, tendo sido veculo de universalizao, abriram a porta para a diluio
87 J. J. GOMES CANOTILHO,, Brancosos, cit., p. 270. Sobre a interculturalidade e a constituio mundial, tambm JOO LOUREIRO, bom moral no azul: a constituio mundial revisitada, in BFDUC, n. 82, 2006, p. 181 ss. 88 Sobre esta tridimensionalidade e sobre a cultura como horizonte da dogmtica do Direito constitucional e da teoria da constituio como cincia da cultura, vd. PETER HBERLE, Teoria de la constitucin como cincia de la cultura, Madrid, Tecnos, 2000, p. 24 ss. 89 J. J. GOMES CANOTILHO, Brancosos, cit., p. 279. 90 ERNST-ULRICH PETERSMANN, Multilevel judicial governance in European and international economic law, EUI Working Paper LAW, 2013/03.
30
da identidade das constituies nacionais num constitucionalismo global de que estas
so apenas um nvel, possibilitando a transio do constitucionalismo ao
transconstitucionalismo e deste ao poder supranacional fundado na legitimidade
pelos direitos humanos91.
De um ponto de vista interno, a crise identitria do Estado-nao tornou-se
patente no apenas atravs da diversidade resultante da imigrao, mas tambm da
afirmao de identidades nacionais, levando distino entre origem tnica ou
nacional do pluriculturalismo, ou, na linguagem de KYMLICKA, entre
plurinacionalidade e polietnicidade92. Nestas duas acees, o Estado pluricultural
substitui-se ao Estado-nao tradicional como novo modelo poltico e organizativo
que, acolhendo certas modalidades de diversidade cultural (dimenso fctica),
pretende atribuir-lhes uma dimenso significativa dentro da prpria organizao
institucional do Estado (momento normativo)93. Em termos mais amplos, o problema
da multiculturalidade no se coloca apenas em conexo com as migraes, antes
pertence experincia fundamental de cada sociedade pluralstica, pelo que muitos
conflitos culturais ocorrem, no entre estrangeiros e cidados nativos, mas entre
pessoas de igual pertena estadual94.
As sociedades atuais apresentam-se como simultnea e tipicamente pluralistas
seja em termos comunitrios (ou seja, multitnicas, multirreligiosas, multiculturais,
multilingusticas) seja em termos individuais (ou seja, os indivduos diferem nas suas
concees de autorrealizao individual e quanto ao que necessrio para otimizar as
hipteses de sucesso), girando em torno de uma multiplicidade de identidades e
diferenas em constante interao e sobreposio, resultando numa ordem diversa
de eus (individuais e coletivos) demarcados por um processo constante de incluso e
excluso95. A heterogeneidade que resulta da coexistncia de vrios grupos assume,
por sua vez, diferentes configuraes, avultando a a questo das relaes de poder
91 SUZANA TAVARES DA SILVA, Direitos, cit., p. 9. 92 PEDRO TALAVERA, Nacionalismo, identidad y pluriculturalidad, in PyD, n. 49, 2003, p. 445 ss., p. 477. Sobre a perspetiva de KYMLICKA, remetemos para o que escrevemos infra, na Parte II, maxime Cap.II. 93 Pedro TALAVERA, Nacionalismo, cit., p. 475. 94 WALTER KLIN, Grundrechte im Kulturkonflikt, Berna, 1999, p. 10, disponvel em http://www.oefre.unibe.ch/unibe/rechtswissenschaft/oefre/content/e700/e1357/e772/e2750/e2751/NFP-Buch-Nov99_ger.pdf [15/09/2009]. 95 MICHEL ROSENFELD, The Identity, cit., p. 21.
31
entre grupos, cruzando-se por sua vez com a heterogeneidade de tipo individual que
resulta da expresso das orientaes individuais normativas, sobrepostas ou no s de
um grupo ou comunidade96.
neste contexto pluralista, aberto diferena e diversidade97, que o
constitucionalismo discute a(s) sua(s) identidade(s). Trata-se, por conseguinte, de,
tendo por pano de fundo a rede complexa de internormatividade e a realidade da
produo multinvel do direito98, a descortinar o sentido do constitucional99, por
um lado, e do constitucionalismo de base estadual, por outro este ltimo, evocando
um teste de identidade constitucional como ltima fronteira do Estado soberano,
na expresso de MARIA LUSA DUARTE100. Mas trata-se, igualmente, de sustentar, no
apenas um pluralismo constitucional, mas um constitucionalismo que , na sua
essncia - ou no seu cdigo gentico plural101. De seguida, deter-nos-emos sobre o
conceito de pluralismo.
96 Idem, cit., p. 21. Acentuando igualmente esta dupla dimenso a propsito do pluralismo normativo, BRIAN Z. TAMANAHA, A framework for pluralistic socio-legal arenas, in Cultural, cit., p. 381 ss., p. 390 ss. A situao do imigrante que se acha entre culturas ilustra, precisamente, a possibilidade de cruzamento entre lgicas comunitrias e orientao individuais. Todavia, e como veremos infra ao analisar com mais detalhe o conceito de cultura, esta distino entre tipos de heterogeneidade no deve obscurecer a hibridez e o carter dinmico das identidades individuais e coletivas, nem a sua diversidade interna, vd. BRIAN Z. TAMANAHA, A Framework..., cit., p. 392 e o que escrevemos infra, Parte II. 97 PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo... cit., p. 170, sustentando uma reconfigurao da igualdade adaptada constituio polirquica. 98 Sobre produo multinvel de direito, J.J.GOMES CANOTILHO /SUZANA TAVARES DA SILVA, Mtodo multinvel: "Spill-over effects" e interpretao conforme o direito da Unio Europeia, in RLJ, Ano 138, n 3955, 2009, p. 182 ss. e, para os direitos fundamentais, JNATAS MACHADO/ J.J.GOMES CANOTILHO, Metdica..., cit., p.258. 99 Ainda que no o conceito de constituio do constitucionalismo liberal originrio, mas um conceito reformulado, vd. PAULO RANGEL, Transconstitucionalismo... cit., p. 164 ss. 100 MARIA LUSA DUARTE, O Tratado de Lisboa e o teste da identidade constitucional dos Estados-membros uma leitura prospetiva da Deciso do TC alemo de 30 de Junho de 2009, in Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2010, p. 117 ss., p. 118 e 124 ss. Analisando a deciso sobre o Tratado de Lisboa do BVerfG, a autora afirma, ob. cit., p. 138, que o seu reflexo mais virtuoso foi o de demonstrar que a constituio nacional no se esgotou, nem est reduzida a uma dimenso intermdia de legitimao do fenmeno poltico da Unio Europeia, adivinhando-se mesmo uma revalorizao do papel garantistico das constituies nacionais. 101 NEIL WALKER, Rosenfeld's cit., p. 678, a propsito da conceo pluralista de ROSENFELD, patente na sua afirmao de que as constituies e o constitucionalismo apenas fazem sentido em condies de pluralismo (MICHEL ROSENFELD, The Identity cit., p. 21).
32
3.Pluralismo constitucional e constitucionalismo plural
3.1. Do pluralismo como facto ao pluralismo como norma
Alguns autores tm sustentado que a valorizao das polticas
multiculturalistas lato sensu transforma a diversidade, de plural, em multicultural102,
querendo com isso afirmar - de acordo com uma conceo de pluralismo como valor
que defende, mas tambm limita, a diversidade103 - a emergncia de um
multiculturalismo anti pluralista, que fabrica diversidades e faz prevalecer a
separao sobre a integrao104. , por conseguinte, a possibilidade de construo da
unidade poltica pela via da Constituio, almejada, ao que se afirma, pelo Estado-
nao, que o multiculturalismo vem pr em causa. Ora por estar ao servio de uma
tica libertria105, ora por forjar identidades e assumir propsitos separatistas, o
multiculturalismo ainda acusado de conduzir adoo de uma postura
perniciosamente relativista, que impe a concluso pela inevitabilidade de considerar
as normas como sempre dependentes, para aferio, das sociedades nas quais
emergem. Mas pode igualmente, do lado oposto do espectro, conduzir procura de
uma soluo atravs de um princpio universal, depois acusado de ignorar a natureza
contextual e histrica dos princpios da justia106.
Mais promissora parece-nos ser, todavia, a interrogao que o
multiculturalismo coloca dirigida aos aspectos fundamentais sem os quais no
possvel pensar uma convivncia social ordenada com base em normas reconhecidas
102 Entre outros, LORENZA VIOLINI, Multiculturalismo e questioni eticamente controverse: quale regolamentazioni?, in JAVIER PRADES (dir.), Allorigine della diversit. Le sfide del multiculturalismo, Milo, 2008, p. 49 ss., p. 49 ss. 103 Nas palavras de GIOVANNI SARTORI, La sociedad multitnica. Pluralismo, multiculturalismo y extranjeros, Madrid, Taurus, 2001, p. 63, a sociedade pluralista deve compensar e equilibrar multiplicidade e coeso, impulsos fragmentadores com a manuteno do conjunto. 104 Idem, cit., p. 63. Para o autor, o pluralismo valora positivamente a diversidade mas no fabrica diversidades, ao contrrio do multiculturalismo, que fabrica diversidades, pois se dedica a tornar visveis diferenas e a intensific-las, desse modo chegando mesmo a multiplic-las. 105 Assim, LORENZA VIOLINI , Multiculturalismo..., cit., p. 51. 106 ANNE PHILLIPS, Multiculturalism without culture, Princeton/Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 33.
33
por todos107 e, por conseguinte, sobre o pluralismo. desta questo que nos
ocuparemos, remetendo para a Parte II a avaliao crtica do multiculturalismo e a
articulao entre pluralismo, relativismo e multiculturalismo108 - tendo presente,
advirta-se previamente, a distino entre o sentido descritivo e o sentido normativo109,
bem como verses fortes e verses fracas110, de relativismo e de pluralismo, tico e
cultural.
O multiculturalismo no implica necessariamente incompatibilidade entre o
universal e o particular, impondo antes a necessidade de repensar a sua articulao.
Equivaler a uma rejeio do universal se pensarmos num multiculturalismo
relativista em sentido forte, oposto a um monismo que sustente a existncia de normas
morais universais decorrentes da natureza humana, mas podem equacionar-se vias
mdias que procurem conciliar valores universais e a tomada em considerao dos
particularismos, das diferenas tnicas, religiosas e culturais111.
O relativismo compatvel com o universalismo, ou com um certo grau de
universalismo112, ao menos naquelas formulaes relativistas que visam mostrar a
107 LORENZA VIOLINI ,Multiculturalismo..., cit., p. 51. 108 ZACCARIA entende que o multiculturalismo se diferencia do pluralismo, j que questiona a manuteno da separao entre esfera privada e esfera pblica, a perspetiva individualista da relao entre indivduo e comunidade poltica (individualismo tico) e o princpio da neutralidade estadual face a concees ticas e a fatores no polticos da identidade dos cidados e, por conseguinte, desloca a questo para o pluralismo de grupos, culturas e identidades coletivas (no assimilvel ao pluralismo moral de indivduos) e da liberdade e autonomia individuais para o reconhecimento e incluso coletivos, propondo a passagem da tolerncia ao reconhecimento, vd. GIUSEPPE ZACCARIA, Tolerancia y politica de reconocimiento, in PyD, n. 49, 2003, p. 107 ss., p. 113-114. 109 CHANDRAN KUKATHAS, Pluralismo dentro dos limites da razo, in JOO CARLOS ESPADA/MARC F. PLATTNER/ADAM WOLFSON (org.), Pluralismo sem relativismo, Lisboa, ICS, 2003, p. 71 ss. Entre ns, tambm, J. C. VIIERA DE ANDRADE, Pluralismo, in POLIS, 4, Verbo, col.1280 ss., 1280. 110 WILLIAM GALSTON, O pluralismo de valores e a filosofia poltica contempornea, in Pluralismo..., cit., p. 25 ss., p. 33. 111 DENYS CUCHE, La notion de culture dans les sciences sociales, 4.a ed., Paris, La Dcouverte, 2010, p. 142 e, tambm, JOO LOUREIRO, Constitutionalism, diversity and subsidiarity in a postsecular age, in BFDC, 83, 2007, p. 501 ss., p. 506 ss. 112 Aludindo a verses mais fortes de relativismo cultural, nos termos do qual este nega a possibilidade ou convenincia de estabelecer comparaes e hierarquias entre as pautas valorativas das diferentes culturas, todas elas essencialmente iguais em valor e dignidade (questo da incomensurabilidade) e a consequente impossibilidade lgica de uma procura de valores universalmente vlidos, vd. IGNACIO SNCHEZ CMARA, Integracin o multiculturalismo, in PyD, n. 49, 2003, p. 163 ss. e BHIKHU PAREKH, Repensando el multiculturalismo, Madrid, Ediciones Istmo, 2005, p. 195.
34
relevncia das circunstncias para a conformao da moral, descrevem como
diferentes culturas aceitam diferentes princpios morais e identificam as
especificidades culturais subjacentes a certos cdigos morais, ou mesmo mostram
como o juzo moral implica uma referncia ao contexto cultural de enquadramento do
agente113. Nestas acees - em geral, diga-se, mais descritivas que normativas114 -, o
relativismo cultural d um contributo fundamental para a nossa compreenso da
moralidade e para a rejeio dos dogmatismos, do etnocentrismo115 e da tentao
imperialista por vezes associada aos direitos humanos116, sem com isso implicar
necessariamente um determinismo cultural ou um relativismo total (nos termos
do qual toda a verdade uma verdade local referida a uma cultura) e, por conseguinte,
sem constituir verdadeira ameaa ao universalismo117.
O relativismo no , por conseguinte, necessariamente incompatvel com a
procura de universais nem com a admissibilidade de uma estrutura universal da
moral, ainda que suscetvel de algum tipo de acomodao cultural. Uma perspetiva
possvel ser a da busca de universais transculturais enquanto valores partilhados
por todas as culturas do mundo, na conhecida defesa de ALISON DUNDES RENTELN118,
mas que se revela criticvel, todavia, caso se considere que o consenso transcultural
incapaz de fundar a fora adicional da regra tica, sendo necessrio acautelar a
possibilidade de universais transculturais desumanos e salvaguardar um direito ao
dissentimento face ao entendimento da maioria. Nesta perspetiva ser, por
conseguinte, na identificao de absolutos, e no de universais transculturais, que se
dever centrar o dilogo cultural119.
113 Testando vrios candidatos possveis qualificao como relativismo cultural normativo, JOHN J. TILLEY, The Problem for Normative Cultural Relativism, in RJ, vol. 11, n. 3, 1998, p. 272 ss. 114 CHRIS SWOYER, "Relativism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), EDWARD ZALTA (ed.), http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/relativism/ [20/01/2013]. 115 PABLO FIGUEROA, Universales versus Absolutos. Una crtica filosfica al relativismo cultural, in PyD, n. 48, 2003, p. 159 ss. 116 GIANCARLO ROLLA, Diritti universali e relativismo culturale, in QC, ano XXV, n. 4, 2005, p. 855 ss., p. 328. 117 Assim conclui JOHN J. TILLEY, The Problem..., cit. 118 ALISON DUNDES RENTELN apud HENRI PALLARD, Luniversalisation des droits fondamentaux et loccidentalisation de luniversalit, in J. FERRAND/ H. PETIT (eds.), Enjeux et perspectives des Droits de lhomme, Paris, LHarmattan, 2003, p. 164 ss. 119 PABLO FIGUEROA, Universales, cit., p. 171 e 174.
35
Uma via mdia entre absolutismo cultural e relativismo cultural pode ser,
como prope PANIKKAR, a da relatividade cultural, caminho seguido pela
interculturalidade assente no dilogo como abertura ao outro120. Nesta perspetiva, a
verdade, sendo ela mesma relao, pluralista, no plural. O pluralismo surge da
conscincia simultnea tanto da incompatibilidade das vises distintas de mundo
como da impossibilidade de julg-las imparcialmente, porque nada est acima da
prpria cultura, que nos proporciona os meios de compreenso. A relatividade ou
relacionalidade radical no se confunde com o relativismo, que se destri a si mesmo
na sua formulao: a relacionalidade radical uma relacionalidade relativa aos
diversos contextos culturais nos quais toda a afirmao adquire sentido, sendo radical
porque no apenas mostra que tudo est relacionado, como que o tudo
relacional, salvando-nos do solipsismo cultural e impedindo que caiamos numa
homogeneizao monista que destri a diversidade.
Do pluralismo de valores, referido aos indivduos ou s culturas, ou seja, da
defesa de que os valores so plurais e contraditrios e no poder estabelecer-se uma
hierarquia entre estilos de vida que classificam os valores de forma diferente, resultar
um argumento a favor do respeito pelos sistemas de valores de culturas especficas
(incluindo as que no valorizam a escolha), de uma atitude de no interferncia e, na
hiptese de uma defesa de valores comuns, valores mnimos121. Um pluralismo de
valores em sentido forte inviabilizaria a nossa possibilidade de pensarmos instituies
polticas comuns e critrios mnimos de conduta aplicveis de forma transversal a
diversas culturas122, designadamente de recorte liberal, por, em ltima anlise,
tambm o liberalismo no passar de um ideal local ou um estilo de vida entre
outros123 apesar de, sustentam os liberais, ser o estilo de vida preferido por grande
120 RAIMON PANIKKAR, La interpelacin intercultural, in GRACIANO GONZLEZ R. ARNAIZ (coord.), El discurso intercultural. Prolegmenos a una filosofia intercultural, Madrid, Biblioteca Nueva, 2002, p. 33 e 43 ss. Entre ns, contrapondo ao relativismo a relatividade, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Relativismo, valores, Direito, in ROA (separata), ano 68, 2008, p. 651 ss., p. 660 ss. 121 STEPHEN MACEDO, Pluralismo de valores contra relativismo?, in Pluralismo..., cit., p. 49 ss., p. 54 ss. 122 Colocamos entre aspas uma vez que, assim formulada, a hiptese de dilogo de culturas subjacente pode ser acusada de essencialismo e reificao do conceito de cultura. Sobre a questo, CLIFFORD ORWIN, Pluralismo sem relativismo?, in Pluralismo..., cit., p. 121 ss., p. 133. 123 Sobre a questo, STEPHEN MACEDO, Pluralismo..., cit., p. 49 ss. Pronunciando-se a favor da incompatibilidade entre pluralismo e liberalismo, JOHN KEKES, Pluralismo por oposio a
36
nmero de culturas no mundo moderno124. O pluralismo pode ser sustentado a partir
de premissas liberais, como o caso de pl