conservadorismo e o direito das comunidades tradiciaos

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  • 265Revista Direito Ambiental e sociedade, v. 4, n. 1, 2014 (p. 265-286)

    * Licenciado em Cincias Biolgicas.

    ** Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

    Entre o conservadorismo e odireito das comunidades

    tradicionais: o judicirio dianteda crtica do movimento

    por justia ambiental

    11 Artigo

    Between the conservationism and the right oftraditional communities: the judiciary in the face ofcriticism of the movement for environmental justice

    Resumo: Este artigo discute a postura do Judicirio em situaes de conflitosde interesses no mbito do Direito Ambiental. Partindo da funo interpretativados princpios do Direito e da Justia Ambientais, como perspectiva terica,traz uma abordagem multidisciplinar em torno da concretizao de direitosfundamentais das comunidades tradicionais em contraponto s injustiasambientais decorrentes das prticas de gesto de unidades de conservaoimpregnadas pelo conservacionismo. Atravs de um estudo de caso, consideraque a prtica judicial, em certos contextos, parte de uma noo de meio ambientevoltada ao desenvolvimento sustentvel, em que a equivalncia dos princpiosdo direito humano fundamental e do princpio da precauo assume o nortepara a concretizao da Justia Ambiental.Palavras-chave: Fernando de Noronha. Conflito socioambiental. Retricajurdica.

    Abstract: This article discusses the position of the judiciary in conflicts ofinterest within the environmental law. Starting from the interpretative functionof the principles of Law and of the Environmental Justice as a theoreticalperspective, a multidisciplinary approach brings about the realization offundamental rights of traditional communities as opposed to environmentalin justices resulting from management practices of conservation impregnatedby conservationism. Through a case study, considers that the judicial practice,in certain contexts, part of a notion of environment focused on sustainabledevelopment, in which the equivalence of the principles of fundamental human

    Wagner Jos de Aguiar*Fernando Joaquim Ferreira Maia**

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    rights and the precautionary principle assumes the north to achievingenvironmental justice.Keywords: Fernando de Noronha. Environmental conflict. Judicial rhetoric.

    1 IntroduoA questo ambiental tem alcanado ampla institucionalidade no cenrio

    brasileiro, sobretudo no tocante sua legislao, tida, internacionalmente,como uma das mais avanadas na matria. Desde a Poltica Nacional doMeio Ambiente, diversos dispositivos jurdicos foram criados visando proteo ambiental e ao disciplinamento do uso dos recursos naturais. Talmovimento se fez fundamental mediante o carter constitucional que aproteo ambiental assumiu a partir do art. 225 da Constituio Federal(CF/88), que afirma o acesso ao meio ambiente como um direito.

    Tratar o meio ambiente como um bem difuso significa considerarque o acesso aos seus recursos deve ser indistinto, dada a impessoalidadeda sua tutela. Ademais, o direito ao meio ambiente, sendo um direitofundamental, tido, em algumas teses, como a matriz de todos os demaisdireitos fundamentais, por englobar outros direitos que garantem apreservao da dignidade humana. Para tanto, preciso considerar que agarantia desse direito est norteada por princpios1 que aparentam oraenfatizar o desenvolvimento humano, ora trazer uma ateno mais voltada integridade ecolgica. Mas que reflexo isso tem sobre a sua efetivao?

    Primeiramente, h de se convir que os princpios do Direito somultifuncionais por apresentarem diferentes funes, a depender dassituaes s quais estejam sendo aplicados:2 fundamentadora (criadora),orientadora da interpretao (interpretativa) e de fonte subsidiria(integradora). Dessas funes, a que se mostra mais prxima do interessedeste artigo a interpretativa, visto que as anlises aqui tecidas incidemsobre as ideias construdas pelo Judicirio, como instncia legitimadorade direitos (no caso, do direito ao meio ambiente).

    Outra questo remete ao fato de que tais princpios demonstramter uma sobreposio, no sentido de que a integridade dos ecossistemas

    1 Os princpios de Direito Ambiental podem ser consultados em Sirvinskas (2006).

    2 As funes dos princpios do Direito Ambiental podem ser consultadas em Bonavides

    (1998).

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    tem, muitas vezes, prevalecido sobre o bem-estar da coletividade. No pretexto, no entanto, desmerecer movimentos e polticas assentados noideal preservacionista e/ou conservacionista, porquanto esses estiveramna gnese da institucionalizao da questo ambiental, tendo um papelcrucial na conservao da biodiversidade. Urge, sim, enfatizar que osprincpios devem ser tomados de forma harmoniosa, visando equilibrarinteresses e dar uma maior concretitude garantia do direito ao meioambiente sem ferir a dignidade humana.

    Com base nessa compreenso, este artigo entende a gesto ambientalcomo uma atividade poltica de mediao de conflitos e interesses, emque se tem percebido uma assimetria, em termos de poder de deciso oude interveno na transformao do meio ambiente, por parte dos atoressociais. Traz como enredo central o contexto de conflitos que envolveminteresses focados no conservacionismo ambiental e na preservao dadignidade humana, situando a participao do Judicirio como instncia socialdotada de poder especfico o poder de condenar e de absolver medianteuma compreenso de justia sustentada em princpios norteadores.

    Nessa direo, o presente artigo tem como objetivo discutir a posturado Judicirio em situaes que envolvem conflitos de interesses no mbitodo Direito Ambiental, luz de reflexes orientadas que apontem parauma relao harmoniosa entre os princpios que norteiam a atividadejudicial nesse direito especfico. Os conflitos-alvo deste escrito tm comoatores comunidades tradicionais e rgos de fiscalizao ambiental,adotando-se como perspectiva terica para anlise os princpios da justiaambiental entendida como um movimento de crtica assimetria nadistribuio social dos riscos e poderes, com a submisso dos grupospoliticamente fragilizados.

    Este artigo encontra-se estruturado em cinco tpicos principais. Noprimeiro, faz-se uma abordagem sobre a conservao ambiental sob omarco das polticas ambientais. No segundo, focam-se a definio dejustia ambiental e sua concepo como movimento. No terceiro, d-seum destaque especial s comunidades tradicionais e sua exposio sinjustias ambientais, com a ilustrao de um conflito em Unidade deConservao (UC) judicializado. No quarto, analisa-se a postura doJudicirio adotada no ato do julgamento do conflito, luz dos princpios doDireito Ambiental. No ltimo, so tecidas algumas consideraes visandoapontar perspectivas inter e transdisciplinares para uma maior efetividadeda proteo/reproduo jurdica do bem ambiental.

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    2 Conservacionismo ou conservao ambiental: aproximaes edistanciamentos

    Embora sejam termos que aparentemente compartilhem um mesmopropsito, os conceitos conservacionismo e conservao ambientalesto sustentados em perspectivas ideolgicas distintas. Uma das basestericas que ajudam a entender essa distino estaria nas definies deEcologia Rasa [Shallow Ecology] e de Ecologia Profunda [DeepEcology], presentes no pensamento sistmico de Capra (2006), visto comoum referencial contemporneo. Ambos os conceitos apontam para duasvises ecolgicas que produzem formas distintas de compreender e geriro meio ambiente.

    A Ecologia Rasa est fundamentada em valores antropocntricos,na perspectiva de que o ser humano considerado como superior sdemais formas de vida e externo natureza, estabelecendo com ela vnculospuramente utilitaristas. Essa viso ecolgica representa a essnciaideolgica do conservacionismo, pois, segundo Diegues (2000), talperspectiva de conservao se nutre no preservacionismo norte-americano,que via nos parques nacionais sem moradores a nica alternativa de salvara natureza da dominao humana. Para esse modelo, toda relao entresociedade e natureza degradadora e destruidora do mundo naturalselvagem. (DIEGUES, 1999, p. 4).

    Por outro lado, a Ecologia Profunda est baseada em valoresecocntricos, segundo os quais o ser humano parte da natureza e dotadode valor intrnseco prprio. Conforme Capra (2006, p. 26), ela v o mundono como uma coleo de objetos isolados, mas como uma rede defenmenos que esto fundamentalmente interconectados e que sointerdependentes. Essa viso demonstra-se antnima da viso quefundamenta o pensamento conservacionista, a ponto de conceber comoimportantes as relaes estabelecidas entre ser humano e natureza e osignificado que o uso direto dos recursos naturais tem representadosecularmente para alguns grupos humanos.

    Diante dessas duas vises ecolgicas, percebe-se o distanciamentoque h entre o conservacionismo e a conservao ambiental. importante,no entanto, entender que essas duas perspectivas tiveram intensidadesdiferentes no sentido da influncia sobre a gesto do meio ambiente. Diegues(2000) explica que o conservacionismo surge no sculo XIX, quando secria o primeiro parque nacional no mundo, o Parque Yellowstone, cujo

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    sentido estava orientado pela esttica natural e pelo seu isolamento docontato humano. Nessa perspectiva, esse modelo ganhou capilaridadenos pases do Terceiro-Mundo, inspirando muitas das suas polticasambientais.

    Um exemplo claro da expresso do conservacionismo na polticaambiental brasileira est na origem dos chamados Espaos TerritoriaisEspecialmente Protegidos (ETEPS), tidos como importante instrumentoda Poltica Nacional do Meio Ambiente (PNMA), conforme o seu art. 9,inciso VI. (BRASIL, 1981). Segundo Leuzinger (2010, p. 3), o Etepcorresponde a qualquer espao ambiental institudo pelo Poder Pblico,sobre o qual incida proteo jurdica, integralou parcial, de seus atributosnaturais. Esses espaos incluem, de modo geral, UCs, reas protegidase espaos de proteo especfica como territrios tnicos.

    No obstante, embora alguns dos ETEPS comunguem da perspectivada Ecologia Profunda, a exemplo das reservas extrativistas, os primeirosespaos protegidos antes mesmo do seu reconhecimento na PNMA partilhavam uma ideologia conservacionista. Por exemplo, no CdigoFlorestal de 1965 (Lei 4.771/1965), previa-se para as propriedades ruraisa delimitao e preservao de remanescentes de florestas definidos comorea de reserva legal. A mesma influncia se percebe na primeiralegislao que dispe sobre a criao de Estaes Ecolgicas (Lei 6.902/1981) que, at ento, no eram legalmente denominadas de UC.

    As UCs, regulamentadas pelo Sistema Nacional de Unidades deConservao (SNUC) (Lei 9.985/2000), englobam duas categorias gerais:as Unidades de Proteo Integral, inspiradas no conservacionismo norte-americano, abrangendo, dentre os seus cinco grupos, os parques nacionais;e as Unidades de Uso Sustentvel, que incluem sete grupos, dentre eles area de Proteo Ambiental (APA), que, ser tratada mais adiante.Embora o SNUC represente um avano no mbito da legislao ambientalconcernente aos espaos protegidos, algumas prticas demonstram darmais lugar ao conservacionismo do que conservao ambiental.

    Uma das explicaes para tal afirmao reside no fato de o SNUCter sido completamente inspirado na Biologia da Conservao, cujapreocupao principal est voltada biodiversidade. (DIEGUES, 1999).Ademais, a aplicao dos conhecimentos cientficos sem o dilogo comos saberes locais tem feito da gesto ambiental um processo mais tcnicoe menos democrtico, no sentido de excluir as comunidades tradicionais

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    do gerenciamento dos recursos naturais existentes nas UCs. Tem-se, aqui,portanto, um modelo de gesto aparentemente includente, ao admitir ouso direto dos recursos por certas populaes humanas em remanescentesde biomas, mas excludentes no sentido da inferiorizao dos saberes ecostumes locais.

    Diante dessa leitura, a concepo de gesto ambiental admitida nesteartigo passa a ter a compreenso de um processo que no neutro, masintensamente carregado de interesses e propsitos. No entanto, algumasindagaes persistem: Que interesses e propsitos poderiam estar portrs de um modelo de gesto de UCs que se sobrepe s culturastradicionais? Que implicaes isso tem do ponto de vista dodesenvolvimento sustentvel como objetivo da gesto ambiental? Seriaesse modelo, de fato, propcio efetivao do direito ao meio ambienteconcebido como um bem pblico?

    Assim, o debate acerca da conservao ganha um enfoquesociolgico, ao se voltar compreenso dos significados da conservaoambiental no bojo das relaes sociais. Nesse sentido, o que passa a sersocialmente considerado como um problema ambiental noimplicameramente uma leitura imparcial e neutra de um fenmeno real, ou estarse referindo a fatosobjetivos sobre a natureza, mas sim demandasconstrudas socialmente. (GUIVANT, 2002, p. 2). Buscar-se-, ento,uma aproximao com o movimento por Justia Ambiental, foco do tpicoseguinte.

    3 O movimento por Justia Ambiental: das origens s expressescontemporneas

    O movimento por Justia Ambiental representa uma perspectivaterica contempornea da Sociologia Ambiental, fundamentada emprincpios capazes de orientar uma anlise crtica acerca da materializaodo acesso ao meio ambiente como um direito, tal como o preconizado naCF/88. No tocante definio de Justia Ambiental, a Declarao dePrincpios da Rede Brasileira de Justia Ambiental (RBJA) a entendecomo sendo o conjunto de princpios e prticas que:

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    a asseguram que nenhum grupo social, seja ele tnico, racial oude classe, suporte uma parcela desproporcional das consequnciasambientais negativas de operaes econmicas, de decises depolticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como daausncia ou omisso de tais polticas;b asseguram o acesso justo e equitativo, direto e indireto, aosrecursos ambientais do Pas;c asseguram amplo acesso s informaes relevantes sobre ouso dos recursos ambientais e a destinao de rejeitos e localizaode fontes de riscos ambientais, bem como processos democrticose participativos na definio de polticas, planos, programas eprojetos que lhes dizem respeito;d favorecem a constituio de sujeitos coletivos de direitos,movimentos sociais e organizaes populares para seremprotagonistas na construo de modelos alternativos dedesenvolvimento, que assegurem a democratizao do acesso aosrecursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. (RBJA, 2001,p. 114).

    Conforme a interpretao que tais princpios sugerem, a concepode Justia Ambiental est sustentada num pensamento que compreende,na perspectiva deste artigo, a gesto ambiental como um processodemocrtico e includente, regido pela igualdade e equidade no acesso adireitos. Como bem sintetizaram Cavedon e Vieira, a noo de JustiaAmbiental engloba a

    distribuio eqitativa de riscos, custos e benefcios ambientais,independentemente de fatores como raa, renda, posio social epoder; o acesso aos recursos ambientais e aos processosdecisrios, em condies de igualdade de poder na conformaoda deciso final. (2007, p. 5).

    Por outro lado, a Injustia Ambiental compreende o mecanismo peloqual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientaisdo desenvolvimento a grupos sociais marginalizados e desassistidos.(HERCULANO, 2008). Nesse sentido, Fracalanza et al. (2013) colocamque a Injustia Ambiental se expressa de duas formas: pela proteoambiental desigual, quando os riscos ambientais so decorrentes da

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    execuo (ou da ausncia) de polticas ambientais, e direcionados spopulaes socialmente vulnerveis; e pelo acesso desigual aos recursos,seja na etapa de produo de bens (extrao direta) ou de consumo (poderde aquisio).

    Segundo Herculano (2008), o movimento por Justia Ambiental temsuas origens nos Estados Unidos, na segunda metade do sculo XX, atravsdos movimentos sociais e do clamor das classes e etnias socialmentediscriminadas e vulnerveis no tocante sua exposio a riscos ambientais,decorrentes de resduos perigosos depositados e efluentes lanados porindstrias perto de suas habitaes. Casos trazidos pela autora mostramque o pblico atingido por essa distribuio localizada de riscos erarepresentado por famlias negras e pobres, motivo pelo qual o movimentosurge numa vertente de racismo ambiental.

    Na perspectiva do movimento, os malefcios trazidos pelodesenvolvimento deveriam ser compartilhados de forma equitativa entreas diferentes camadas sociais ligadas com a gerao de riscos, ao invsde a penalizao ambiental de grupos sociais vulnerveis ser o custo doprogresso. Diante disso, o movimento se expandiu devido adeso derepresentantes de outros setores sociais, articulando ativistas epesquisadores, via pela qual ganhou forte institucionalidade. No Brasil,por exemplo, foi a partir do Colquio Internacional sobre Justia Ambiental,Trabalho e Cidadania, promovido em 2001, na Universidade FederalFluminense, que se instituiu a RBJA.

    Enquanto nos EUA o movimento emerge em resposta proteoambiental desigual a famlias negras, no Brasil o movimento se pautoupela negligncia relativa aos direitos humanos. Para Acselrad (2010, p.111), a Justia Ambiental corresponde a uma noo emergente que integrao processo histrico de construo subjetiva da cultura dos direitos. Comobem trouxeram Fracalanza et al. (2013, p. 21), a injustia ambientalmanifesta-sede maneira perversa, negando aos pobres a liberdade deter acesso a recursos para se alimentar, ter sade, morar em localadequado, dispor de educao de qualidade e de um emprego decente.

    Nessa direo, Acselrad considera que as lutas por Justia Ambiental,no contexto brasileiro, combinam a

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    defesa dos direitos a ambientes culturalmente especficos comunidades tradicionais situadas na fronteira da expanso dasatividades capitalistas e de mercado; a defesa dos direitos a umaproteo ambiental equnime contra a segregao socioterritoriale a desigualdade ambiental promovida pelo mercado; a defesa dosdireitos de acesso equnime aos recursos ambientais, contra aconcentrao das terras frteis, das guas e do solo seguro nasmos dos interesses econmicos fortes no mercado. (2010, p. 114).

    Na direo do ilustrado, podem-se considerar como expressescontemporneas do movimento por Justia Ambiental: as comunidadestradicionais que lutam pela preservao dos seus territrios e prticas,diante de efeitos negativos trazidos pelo empreendimento de obras para asua reproduo cultural; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra pela questo da reforma agrria; os movimentos das periferiasurbanas pela melhoria dos servios pblicos na rea de saneamentoambiental; o movimento sindical de trabalhadores por condies maisseguras de trabalho do ponto de vista da salubridade, dentre outrosexemplos encontrados na literatura.

    De modo geral, as injustias ambientais recaem sobre as populaesde baixa renda, os grupos sociais discriminados, os povos tnicostradicionais, os bairros operrios, as populaes marginalizadas evulnerveis. (RBJA, 2001). Ademais, a exposio desses atores sociais,poltica e institucionalmente desassistidos, decorre de uma lgicaculturalmente instituda no cenrio brasileiro, lgica essa que combina ainjustia na distribuio de renda e na garantia do acesso aos recursosnaturais e o desprezo pela propriedade comum e pelas minorias.(HERCULANO, 2008).

    Ante a caracterizao dos grupos ambientalmente injustiados, ointeresse deste artigo incide sobre as comunidades tradicionais que, emsuas especificidades, requerem desta abordagem um tratamentodiferenciado, porque as injustias ambientais sofridas por elas tm umaexpresso prpria, seja em decorrncia do territrio em que ocorrem,seja em funo dos direitos que so violados, e sublinhadas por interesseshegemnicos imperativos.

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    4 Comunidades tradicionais e sua exposio s injustiasambientais: introduzindo um estudo de caso

    Tratar o movimento por Justia Ambiental atrelado s comunidadestradicionais no corresponde a uma abordagem nova no campo cientfico.Diversos trabalhos, como os de Gaspar, Rego e Andrade (2008) e deRabelo (2010), debruaram-se sobre a problemtica, abrangendocomunidades camponesas e indgenas. Por outro lado, este artigo agreganovos significados teoria da Justia Ambiental na medida em que seprope a explorar suas conexes com a dimenso do Direito, mediante a(in)efetividade da atividade judicial diante de situaes de conflitosocioambiental. De acordo com a Poltica Nacional de DesenvolvimentoSustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), ascomunidades tradicionais compreendem

    grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem comotais, que possuem formas prprias de organizao social, queocupam e usam territrios e recursos naturais como condio parasua reproduo cultural, social, religiosa, ancestral e econmica,utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados etransmitidos pela tradio. (BRASIL, 2007).

    Complementarmente a essa definio, Diegues (2000, p. 51-52)ressalta como caractersticas dessas comunidades: a reduzida acumulaode capital, o no uso da fora de trabalho assalariado e o envolvimentocom atividades econmicas de pequena escala, como agricultura e pesca,coleta e artesanato. Tais aspectos assumem um papel fundamental doponto de vista da compreenso acerca da relao desses grupos com osrecursos naturais, entendidos como de baixo potencial destrutivo para amanuteno dos ecossistemas e a estabilidade ecolgica.

    Sinalizado o significado da interao das comunidades tradicionaiscom a natureza para a conservao ambiental, ao mesmo tempo essarelao est na base da concretizao de um dos seus direitosfundamentais: o direito ao territrio. Fundamentado em atos normativos,3

    3 Dentre os atos normativos que fundamentam o direito ao territrio, esto a Conveno n

    169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), o art. 16 da CF/88 e o art. 3,incisos I e IV, da PNPCT.

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    esse direito constitui um meio pelo qual as comunidades tradicionais tmgarantia plena de poder afirmar sua identidade, proteger os recursosnaturais dos quais historicamente se valem, alm de garantir a reproduoda simblica e vital relao que travam com seus territrios. (ARAJO,2009, p. 4).

    No enfoque dos conflitos socioambientais ocorrentes nas UCs,percebe-se que as injustias ambientais tendem a se materializar sobinfluncia do conservacionismo, manifestando-se desde a restrio dopoder de utilizao dos recursos naturais, dentro das reais necessidadescomunitrias, at a excluso desses grupos de processos decisriosreferentes gesto dos territrios ocupados por eles. Tais atos, inerentes implantao de muitas UCs, correspondem a expresses concretas deviolao dos direitos das comunidades tradicionais, constituindo, muitasvezes, um empecilho sua reproduo fsica e cultural. (SHIRAISHINETO, 2007).

    A ttulo de ilustrao, focou-se aqui um estudo de caso em torno deum conflito socioambiental ocorrido numa rea de Proteo Ambiental,alvo de julgamento pela 10 Vara da Justia Federal de Pernambuco.Trata-se de uma situao em que uma representante de uma comunidadelocal recorreu Justia aps ter sido impedida, atravs de uma decisojudicial, de ampliar o espao de sua moradia com vistas ao desenvolvimentode atividades das quais provinha o seu sustento e de sua famlia. (BRASIL,2010). Nessa direo, tomou-se como parmetro o agravo de instrumentode n 98069/PE (2009.05.00.050414-7), do Tribunal Regional Federal da5 Regio.

    Adotando-se decises judiciais como parmetro, parte-se doentendimento de que a deciso judicial, muito mais do que uma objetivainterpretao e aplicao da lei, um ato carregado de subjetividade eprodutor de mudanas. (CAPORLINGUA, 2010). Ou seja, diante dojulgamento de um fato, o Judicirio analisa conflitos e toma decises emcima de vises e preceitos particulares, elementos esses que sublinham aatividade judicial em face das formalidades a serem seguidas. Desse modo,a forma como o Judicirio concebe, interpreta e intervm num determinadoconflito socioambiental tem rebatimento significativo no sentido da(no)concretizao da Justia Ambiental.

    Sendo, ento, o foco central a anlise da postura judicial diante doconflito, trazido nos textos das decises, o mtodo analtico adotado neste

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    artigo a abordagem retrica. Segundo Adeodato (2009, p. 16-19; 2011,p. 2-3), a retrica se baseia no entendimento de que o ser humano, porser deficiente ou carente, incapaz de perceber quaisquer verdades, mesmocom a linguagem, nica realidade possvel com a qual capaz de lidar.Para que o mtodo conduza a uma compreenso real, a abordagem retricaconsidera trs nveis de anlise ou trs nveis retricos : a retricamaterial, a retrica estratgica e a retrica analtica.

    De acordo com Maia (2012,p. 106), que transpe a tese de Adeodato(2009) para o campo do Direito Ambiental, o primeiro constitui o prprioambiente em que acontece a comunicao, integra a antropologia humanae envolve diretamente as relaes do homem em comunicao. A retricamaterial situa o contexto em que os conflitos ambientais ocorrem e asposies e os posicionamentos dos atores envolvidos. J o segundocorresponde s teses, s opinies ideolgicas sobre as alegaes e asprovas sobre o dano ambiental, que o juiz vai adotar para embasar a suadeciso e persuadir os participantes do processo judicial e a sociedade aobedecerem espontaneamente ao julgamento (MAIA, 2012, p. 107);(ADEODATO, 2009) corresponde significao da retrica comoestratgia de influncia do sujeito no ambiente em que est inserido. Oltimo nvel, por sua vez, investiga a relao entre como se processa alinguagem humana e como o homem acumula experincias e desenvolveestratgias de modo eficiente (MAIA, 2012, p. 107); (ADEODATO,2009).

    A partir desses trs nveis, a anlise do caso envolveu trs momentosprincipais: no primeiro, analisaram-se o contexto do conflito socioambiental,alvo do estudo de caso, e a posio e o posicionamento dos atoresenvolvidos nessa interao, portanto partcipes do processo judicial; nosegundo, analisou-se a postura do Judicirio a partir das ideias e teses quesustentavam sua interpretao e seus argumentos, e, no terceiro, o impactoda deciso tomada para a concretizao de Justia Ambiental, diante dosideais do conservacionismo e da preservao das comunidades tradicionais.Nessa direo, segue-se a anlise do caso, com o subsdio datrandisciplinaridade entre o Direito e a gesto ambiental como mtodopara a orientao da efetividade da atuao judicial.

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    5 O Judicirio em face de conflito socioambiental: leituras a partirda anlise do caso

    5.1 A contextualizao do conflitoO conflito retrata uma situao ocorrida no Distrito de Fernando de

    Noronha, em que uma ilhoa recorrera Justia aps ter sido impedida deampliar o espao de sua moradia com vistas prtica de agricultura desubsistncia, atividade da qual provinha o seu sustento e o de sua famlia.Conforme o argumento que sustentava a deciso-alvo de reformaopelo agravo, a agravante estaria em desacordo com o Plano de Manejoda rea de Proteo Ambiental (APA) ao ampliar o seu local de moradia(ato entendido como nova edificao), bem como ao exercer atividadesproibidas, como o cultivo agrcola.

    Conforme o Plano de Manejo,4 Fernando de Noronha integra duasAPAS: a APA Nacional Fernando de Noronha, instituda pelo DecretoFederal 92.755/1986, correspondendo a um espao territorial de 79.706hectares, abrangendo o Territrio Federal de Fernando de Noronha, oAtol das Rocas e os Penedos de So Pedro e So Paulo; e a APA EstadualFernando de Noronha, instituda pelo Decreto Estadual 13.553/1989. Dentreos objetivos, destaca-se a compatibilizao do turismo organizado com apreservao dos recursos naturais, sendo o turismo uma das atividadeseconmicas mais fortes da APA, em razo de o arquiplago ser nacionale internacionalmente conhecido.

    Do ponto de vista da conservao e preservao da biodiversidade,o Plano de Manejo da APA destaca o papel do arquiplago no processode reproduo, disperso e colonizao de organismos marinhos, pelofato de representar grande parte da superfcie insular do Atlntico Sul.Alm desse aspecto, suas reas so tidas como as mais importantes paraa reproduo de aves marinhas dos dois hemisfrios do Atlntico e porserem teis como berrio para diversos grupos ameaados de extino,como os cetceos e os quelnios. Tambm abriga algumas espciesendmicas existentes na regio, distribudas entre plantas, rpteis e aves.

    Alm dos atributos naturais e paisagsticos, Fernando de Noronhaconfigura-se como um territrio insular que, nessa condio, tem uma

    4 APA FERNANDO DE NORONHA ROCAS SO PEDRO E SO PAULO. Disponvel

    em: . Acesso em: 21 set. 2014.

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    comunidade local nica constituda de identidades culturais baseadas noseu estilo de vida e, principalmente, no espao biogeogrfico: os ilhus.Embora determinados documentos no os considerem como umacomunidade tradicional a exemplo do resumo executivo do Plano deManejo da APA,5 contribuies de Souza e Vieira Filho (2011) vm sedebruando sobre aspectos da identidade dessa comunidade local,impactada pelo turismo.

    Os ilhus so aqui considerados como uma comunidade tradicionalsujeita, como qualquer outra comunidade, a injustias ambientais, mesmoque boa parte tenha certa assistncia quanto moradia e renda. Noquesito do direito ao territrio, eles vm sendo historicamente afetadosno s pelas restries decorrentes da proteo ambiental atravs dasUCs, mas ainda pela distribuio desigual do poder de acesso ao territrio,expressa no conflito de uso do solo para habitao local e instalao dehotis. Diante dessa contextualizao, retomada a situao inicial, alvodesta estudo, no intuito de analisar, diante do conflito exposto e dos seuscondicionantes, a interpretao trazida pelo Judicirio e as ideias quesustentam os seus argumentos.

    5.2 A instrumentao da retrica pelo JudicirioConforme o relator do agravo, o Des. Fed. Rubens de Mendona

    Canuto, a rea de moradia da agravante no superava 60m2 e,diferentemente do argumento trazido pela deciso que a impedia dedesenvolver sua atividade de subsistncia, a supresso de cobertura vegetalnativa (supostamente feita) era decorrente de usos anteriores, visto que area era ocupada h mais de cem anos, evidncia patenteada no laudoapresentado pela Polcia Federal, conforme o trecho extrado do texto dadeciso:

    A residncia de propriedade da senhora Slvia foi construda emrea anteriormente antropizada, no sendo observados traos dedesmatamento e converso recente para uso alternativo do solo.Tambm foi possvel constatar que no existem processos de erosoem sulcos em decorrncia da construo e impermeabilizao dosolo.

    5 Idem.

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    No havia desacordo com o Plano de Manejo nem com o decretoque instituiu a APA, uma vez que, sendo proibida a implantao de projetosque provoquem deslizamento de solo e outros processos erosivos, no foiessa a condio constatada. O relator ainda destacou um argumento trazidopela agravante que afirmou: No existe no local a construo deempreendimento hoteleiro, mas uma simples residncia com pouco maisde 60m2 que lhe permite o desenvolvimento de agricultura de subsistncia.O relato dominante, prprio da retrica material, reflete o conflito de usodo solo existente entre ilhus e empreendimentos hoteleiros, diagnosticadoem uma das oficinas realizadas pelo Instituto Chico Mendes deConservao da Biodiversidade (ICMBio).6

    No tocante ampliao da moradia, o relator entendeu que a atividadede subsistncia no configura uma atividade criminosa, luz da Lei deCrimes Ambientais (Lei Federal 9.605/1998) e do Decreto 6.514/2008,que dispe sobre as infraes e sanes administrativas relacionadas aomeio ambiente. Declara ainda: Penso ser possvel haver uma interaohomem x meio ambiente sem excessos ou degradao, pautada narazoabilidade, de modo a permitir um desenvolvimento humano auto-sustentvel. Nessa direo, a compreenso do Judicirio demonstra-seapoiada numa perspectiva de proteo ambiental, que comunga dosfundamentos da conservao ambiental, ao conceber a possibilidade deutilizao racional dos recursos naturais pelas comunidades tradicionais,tal qual a finalidade esperada de qualquer APA.

    Fixado o relato vencedor, o desembargador passa a articular ofundamento da sua deciso que vai influir na retrica material. Tentaapresentar o princpio da dignidade da pessoa humana como topos retricopara a concretizao dos princpios do Direito Ambiental. (MAIA, 2012).Para ele, na relao homem-meio ambiente, deve prevalecer oentendimento de que o meio ambiente que deve servir ao homem,suprindo as suas necessidades bsicas, sendo a dignidade da pessoahumana um dos fundamentos da CF/88. E acrescenta mais: A preservaodo meio ambiente no pode chegar ao extremo de transform-lo numaverdadeira vitrine, em detrimento da dignidade da pessoa humana.

    6 PROGRAMA DE SUSTENTABILIDADE PARA O ARQUIPLAGO DE FERNANDO DE

    NORONHA. Disponvel em: . Acesso em: 21 set. 2014.

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    A postura admitida remete permeabilidade da conscincia do relatorno que tange aos aspectos inerentes denncia ambiental feita,aparentemente sem considerar as formas de apropriao e uso implcitas existncia dos recursos naturais. H uma necessidade de compreenderos significados que as prticas de subsistncia possuem para a preservaodaquela comunidade e a observncia do direito ao territrio a serassegurado, diante da valorizao extrema de uma atividade econmicasobreposta a outras atividades que supem reproduo cultural, como aagricultura e a pesca. Veja-se o adicionado em outra parte da deciso:

    O ato judicial fustigado vai de encontro aos interesses coletivosna medida em que subtrai do particular qualquer possibilidade deexercer a agropecuria, tolhendo-lhe, por consequncia, o direitoao exerccio do trabalho, cidadania, subsistncia, agriculturafamiliar, ao comrcio, livre iniciativa e, sobretudo, seguranaalimentar do arquiplago e preservao de sua cultura.

    Diante desse conjunto de elementos, percebe-se a importncia deconsiderar os mltiplos aspectos atrelados causa julgada, no sentido deque a imposio fria e objetivista da lei pode induzir a decises superficiaise injustas, quando a gesto ambiental se mostrar um espao mais tcnicoque pblico. (QUINTAS, 2004). Desse modo, para a atividade judicialestar alinhada aos princpios da Justia Ambiental, preciso que se busqueuma leitura crtica em torno da origem do conflito socioambiental analisadoe dos direitos fundamentais envolvidos, tendo por foco a atenuao dosriscos ou nus tendenciosamente direcionados aos grupos mais frgeis.

    5.3 O impacto da deciso sobre o conflito: a Justia Ambientalpela equivalncia dos princpios do direito humano fundamental edo princpio da precauo

    Em meio aos aspectos analisados e refletidos pelo Judicirio, a decisofoi favorvel agravante, tendo em vista o provimento dado ao agravo.De forma conclusiva, o relator colocou: Deve haver a conciliao daconvivncia humana com a preservao do meio ambiente, pois h quese preserv-lo a fim de melhorar a qualidade de vida do homem e notorn-la indigna. Com essa deciso, pode-se entender que a JustiaAmbiental, para o caso analisado, se d mediante a equivalncia dos

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    princpios do direito fundamental humano e do princpio da precauo, eno, pela sua sobreposio. Afinal, essa a lgica cultivada e disseminadapara o alcance do desenvolvimento sustentvel.

    Conforme Herculano (2008), uma situao particular s UCs aameaa das atividades de sobrevivncia das comunidades locais, emfuno, principalmente, da excluso desses atores dos processos decisriosrelacionados gesto dessas reas protegidas. Mesmo o caso julgado,envolvendo uma unidade de uso sustentvel, notou-se, na decisoreformada, a resistncia de um pensamento conservacionista perverso,pois, havendo conflitos entre a comunidade local e os empreendimentosde forte insero capitalista, a tendncia, nesses contextos, a utilizaointencionada das normas ambientais em favor de quem agrega mais lucro.

    Mesmo situaes como essas sendo fortemente comuns nessescenrios especficos, contribuies do campo da cincia vm trazendofundamentos e perspectivas com vistas otimizao de gesto nos espaosprotegidos, a exemplo da APA, numa perspectiva da gesto ambientalcomo atividade pblica. Em autores como Brito e Cmara (1998), asAPAs so vistas como instrumentos modernos de gesto ambiental daPoltica Nacional de Meio Ambiente, pelo fato de a gesto no estarcentralizada no Poder Pblico e por visar ao envolvimento participativodas administraes municipais, dos rgos tcnicos e da comunidade.

    Diante dessa perspectiva, observa-se, nesse pressuposto, a traduode um dos princpios da Justia Ambiental, que envolve a democratizaode informaes ambientais e a participao das minorias sociais nadefinio de polticas que lhe dizem respeito. Nessa direo, Brito eCmara (1998) ressaltam a importncia de dois instrumentos na gestode uma APA: o zoneamento ambiental, que envolve a organizao territoriala partir de suas potencialidades e fragilidades, sendo estabelecidas reasde uso permitido e proibido, a depender do uso pretendido; e a EducaoAmbiental como meio para a conscientizao da comunidade sobre o usosustentvel dos recursos e o seu papel na gesto ambiental do territrio.

    No sentido da equivalncia dos princpios do direito humanofundamental e do da precauo, entende-se que ambos os instrumentosprecisam ser coexistentes. Em estudo anterior, envolvendo a judicializaoda situao-conflito entre rgos fiscalizadores e agricultores numassentamento, percebeu-se que o descumprimento de norma ambientaldenunciado, atribudo a um agricultor familiar, havia sido decorrente da

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    falta de instruo sobre a caracterizao ambiental do territrio onde oassentamento estava localizado, a qual deveria ser dada pelo prprio rgoautor da denncia. (AGUIAR; MAIA, 2013). Logo, a participao dacomunidade no zoneamento ambiental, empoderada a partir de umaEducao Ambiental promotora de conhecimentos e de boas prticas,pode ser um meio para conciliar atividades econmicas locais comconservao ambiental.

    6 Consideraes finaisEm linhas gerais, pode-se ratificar o quo desafiadora ainda se mostra

    a implantao de um modelo de gesto ambiental numa perspectiva deatividade pblica e, portanto, de envolvimento ativo e politizado dosdiferentes segmentos sociais, envolvidos direta e/ou indiretamente com agesto de uma UCs. O modelo de gesto atualmente adotado em muitasunidades, ainda influenciado por uma base conservacionista importada depases do Hemisfrio Norte e guiado pelos interesses de um capitalismoinsensvel s questes ambientais, tem se mostrado um foco de origem epropagao de injustias ambientais.

    Contextualizando esse fenmeno no mbito da atividade judicial,pode-se observar, no estudo de caso, que o Judicirio demonstrou sensode Justia Ambiental ao reformar uma deciso que propunha amaterializao de uma injustia quando proibia a representante de umacomunidade local de realizar atividades inerentes ao modo de vidacomunitria e preservao de sua dignidade como pessoa humana. Nessesentido, tomou uma posio favorvel assegurao do direito ao territrioem sua plenitude, ressignificando a noo de conservao ambientalproduzida na deciso reformada que, por sua vez, partilhava de umaperspectiva conservacionista e violadora de direitos.

    Em meio aos princpios que orientaram sua interpretao e quefundamentaram sua deciso, foram claramente evidenciados o princpiodo direito humano fundamental e o princpio da precauo, ambos doDireito Ambiental que, sendo tratados numa relao de equivalncia (eno de sobreposio), norteiam a definio de um modelo de gestoambiental efetivamente comprometido com o desenvolvimento sustentvel.Nessa direo, o zoneamento ambiental e a Educao Ambiental foramsinalizados como instrumentos potenciais na consolidao de prticas degesto regidas em funo da Justia Ambiental.

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    Por fim, fica ressaltada a importncia do dilogo dos saberes jurdicoscom os no jurdicos (sociolgicos, antropolgicos, ecolgicos), tomadocomo elemento norteador deste artigo, para maior efetividade da proteo/reproduo jurdica do bem ambiental. Nesse sentido, espera-se que, umavez divulgado, este artigo possa ser alvo de leitura e reflexo pelos atoresdireta e/ou indiretamente envolvidos com a atividade judicial e a gestode UCs.

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