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Pareceres Jurídicos Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais

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Pareceres Jurídicos

Direito dos Povos e Comunidades

Tradicionais

Deborah Duprat, org.

Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos

e das Comunidades Tradicionais

coleção documentos de bolso, n.º 2

ppgsca-ufam / Fundação Ford

Copyright © Deborah Duprat (org.), 2007

coordenação editorial e direção da coleção

Alfredo Wagner Berno de Almeida

capa e projeto gráfico

Rômulo Nascimento

revisão

Luciane Silva da Costa

projeto nova cartografia social da amazônia

(ppgsca-ufam / Fundação Ford / ppgda-uea )

Rua José Paranaguá, 200

Centro. Manaus – AMCEP 69005-130

[email protected]

Duprat, Deborah

Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos e das

Comunidades Tradicionais. Deborah Duprat, org.

Manaus: uea, 2007.

183 p. (Documentos de bolso; n.º 2)

i. Identidade etnica 2. Direitos – povos e comunidades

tradicionais I. Título.

Sumário

9 o direito sob o marco da plurietnicidade/multiculturalidade

21 A inconstitucionalidade do Decreto 3912, de 10 de setembro de 2001

Marcelo Beckhausen

31 Breves considerações sobre o Decreto 3912/2001

Deborah Duprat

41 Parecer n.º agu/mc – 1/2006

Manoel Lauro Volkmer de Castilho

77 A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriaçãoDaniel Sarmento

105 Quilombos na Perspectiva da Igualdade Étnico-Racial: raízes, conceitos, perspectivasAurélio Virgílio Rios

143 Parecer contrario ao projeto de decreto legislativo n.º 44, de 2007, de autoria do Deputado Federal Valdir ColattoWalter Claudius Rothenburg

157 anexo i - Parecer n.º agu/mc – 1/2006 [fac-simile]Manoel Lauro Volkmer de Castilho

183 anexo ii - Despacho do Advogado-Geral da UniãoÁlvaro Augusto Ribeiro da Costa

lista de siglas e abreviaturas

Art – Artigocf – Constituição Federal

cdb – Conveção sobre Diversidade Biológicaoit – Organização Internacional do Trabalho

onu – Organização das Nações Unidaspnpct – Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos

e Comunidades Tradicionaissnuc – Sistema Nacional de Unidades de Conservação

da Natureza§ – Parágrafo

Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação,a Ciência e a Cultura

c o l e ç ã o

D O C U M E N T O S D E B O L S O

Uma das atividades que tem exigido considerável esforço in-telectual nos trabalhos de pesquisa concernentes ao ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia e aos dois outros pro-jetos1 que lhe são coextensivos, diz respeito às iniciativaspedagógicas que visam discutir dispositivos jurídicos rela-tivos aos direitos de povos e comunidades tradicionais. Elasabrangem diferentes cursos, ministrados em até doze horas-aula, para integrantes de associações, movimentos, sindica-tos e demais entidades de representação referidas a uma açãocoletiva, mais ou menos formalizada e institucionalizada,empreendida por agentes sociais que visam alcançar umobjetivo compartilhado em torno do uso comum de recursosnaturais imprescindíveis à sua reprodução física e social e emtorno de uma identidade coletiva construída consoante umapauta de reivindicações face ao Estado. Destaca-se nestapauta o reconhecimento de seus direitos territoriais.

O pncsa, a partir da discussão destas práticas de preten-são didática, inicia a coleção denominada Documentos deBolso, que consiste numa atividade auxiliar aos mencionadoscursos de formação, visando suprir lacunas bibliográficas epropiciar a um público amplo e difuso um acesso mais dire-to a documentos jurídicos que reforçam os direitos de povos

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1 Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais

do Brasil (ufam/f. ford/mma) e Projeto Processos de Territorialização,

Conflitos e Movimentos Sociais na Amazônia (fapeam-cnpq).

indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de cocobabaçu, seringueiros, faxinalenses, comunidades de fundosde pasto, pomeranos, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, pia-çabeiros, pescadores artesanais, pantaneiros, afro-religio-sos e demais sujeitos sociais emergentes, cujas identidadescoletivas se fundamentam em direitos territoriais e numaautoconsciência cultural.

O trabalho de direção da coleção ficou a cargo do Coorde-nador do pncsa, o antropólogo Alfredo Wagner Berno deAlmeida. Em discussão com advogado, procuradora e an-tropóloga, organizadores de cada volume, foram fixados oscritérios de seleção e agrupamento dos documentos. A res-ponsabilidade principal da seleção, entrementes, ficou soba responsabilidade daqueles especialistas mencionadosdiretamente referidos aos temas em questão, concernentesrespectivamente a direitos étnicos, culturais e territoriais.Os gêneros dos documentos em jogo foram criteriosamenteconsiderados. No primeiro e no terceiro volume foram clas-sificadas: convenções internacionais (oit, unesco, onu) eprotocolos adicionais, declarações aprovadas em assem-bléia geral (onu, unesco) e respectivas portarias e decre-tos ratificadores ou que orientam a sua implementação. Nosegundo volume foram agrupados sobretudo pareceresjurídicos de circulação restrita (mpf, agu, incra).

Apresentamos a seguir os dados básicos referentes aos trêsprimeiros volumes:

1. Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil – Joaquim Shiraishi Neto (org.)

2. Pareceres Jurídicos – Deborah Duprat (org.)

3. Direito dos trabalhadores migrantes – Marcia Anita Sprandel (org.)

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O Direito sob o marco da plurietnicidade / multiculturalidade

Já agora, passados quase vinte anos da promulgação daConstituição de 1988, não se coloca mais em dúvida queo Estado nacional é pluriétnico e multicultural, e quetodo o direito, em sua elaboração e aplicação, tem essemarco como referência inafastável.

A princípio resultado de exercício hermenêutico, talcompreensão, na atualidade, está reforçada por váriosdocumentos internacionais dos quais o Brasil é signatá-rio, merecendo destaque a Convenção 169, da oit, aConvenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversida-de das Expressões Culturais, ambas já integrantes doordenamento jurídico interno, e, mais recentemente, aDeclaração das Nações Unidas sobre os Direitos dosPovos Indígenas.

A noção central, comum a esse conjunto de atos nor-mativos, é a de que, no seio da comunidade nacional, hágrupos portadores de identidades específicas e que cabeao direito assegurar-lhes o controle de suas próprias ins-tituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômi-co, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões,

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dentro do âmbito dos Estados onde moram 1. Assim, a defe-sa da diversidade cultural passa a ser, para os Estadosnacionais, um imperativo ético, inseparável do respeito àdignidade da pessoa humana2.

Para que se possa dimensionar corretamente a mudan-ça de perspectiva no campo jurídico, que será analisadamais adiante, é preciso antes compreender que ela não émero resultado do ativismo de legisladores altruístas. Aantecedê-la, uma relação circular entre movimentos rein-vindicatórios, elaboração teórica e alterações legislati-vas, de início tímidos, que se vão reforçando mutuamen-te, até se chegar ao ponto em que estamos.

Mas a que mudança estamos, de fato, nos referindo?Qual era o modelo anterior e os pressupostos epistemo-lógicos que o informavam? Para essa análise, é precisoretornar à idéia de circularidade entre o político/filosó-fico/jurídico. E os marcos a serem considerados serão oIluminismo e a Revolução Francesa.

Com Kant, inaugura-se a filosofia do sujeito, o sujeitotranscendental, que constitui esse mundo como o con-junto dos objetos da experiência possível. A sua razãoopera através do conceito, subsumindo o real às suas pró-prias categorias, que lhe são dadas aprioristicamente.Assim, é inerente à dinâmica dessa razão a identidade,que possibilita a unidade, as grandes sínteses homoge-neizadoras.

Resulta do idealismo a indistinção entre alter e ego,posto que, como bem observa Gadamer (1998), o outro éexperimentado como o outro de mim mesmo, abrangidopor minha pura autoconsciência. O saber absoluto, em

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1 Convenção 169, da oit.

2 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, artigo 4.

que a consciência constitui o objeto segundo suas cate-gorias apriorísticas, importa, em ultima análise, em queo outro apenas existe a partir do ego, ou seja, o outro éantecipado e apreendido reflexivamente através de mim.

O racionalismo construtor kantiano inspira, ainda, oEstado-nação. O conceito de nação é celebrado e reconfi-gurado pela Revolução Francesa, cujos elementos funda-mentais encontram-se na obra O que é o Terceiro Estado?,de Sieyès, consubstanciados em uma identidade culturale integradora, fundada numa continuidade biológica derelações de sangue, numa abrangência espacial de territó-rio, e em comunidade lingüística (Hardt e Negri, 2001:113).

A solidificação do poder da soberania requereu eengendrou, em larga medida, a naturalidade do concei-to, ou seja, a identidade da nação e, mais ainda, a identi-dade do povo, teria de parecer natural e originária (Hardte Negri, 2001:120), possibilitada por meio de um simbo-lismo cultural de povo com caráter próprio, comuns pro-cedência, história e linguagem (Habermas, 2000:88).

O Direito, nesse contexto, é entendido como uma qua-lidade moral que compete à pessoa (qualitas moralis perso-nae competens, segundo a conhecida definição de Grocio),onde, portanto, o indivíduo ocupa o lugar primeiro e cen-tral. Esse sujeito de direito, no cadinho de homogeneida-de e de unidade que lhe é correlato, é um ser abstrato,intercambiável, sem qualidades (Bourdieu, 2001:163).

E o tema da justiça passa a ser decidido com a doutri-na das “esferas de liberdade” de cada indivíduo. Frasescomo “minha liberdade termina onde começa a liberda-de do outro” desenhavam apropriações territoriais sob osigno da ubiqüidade. O termo ubiqüidade, na física, ésinônimo de exclusão: dois corpos físicos não podemocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Levado para o

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campo do direito, estava a significar que todo homemdesloca aos demais homens de seu campo de ação (Car-pintero, 1993:40). A propriedade privada é o arquétipodessa geografia de figuras geométricas, fronteiriças eexcludentes entre si.

Mas aquilo que um dia foi sólido acabou se desman-chando no ar.

O conhecimento caracterizado pelo logocentrismo,pela semelhança, pela adequação, pela unidade, bemcomo os constructos teóricos por ele engendrados, sãocolocados em questão inicialmente por Nietszche, que ovê como desconhecimento, na medida em que, ao esque-matizar, ao assimilar as coisas entre si, ignora as diferen-ças, cumprindo seu papel sem nenhum fundamento naverdade. Seguem-se Foucault, Heidegger, Adorno, Der-rida, denunciando a colonização da diferença pelo sem-pre-igual e pelo homogêneo e anunciando o reino dofragmento contra a totalização, do descontínuo e do múl-tiplo contra as grandes narrativas e as grandes sínteses.

Também vem à luz a falácia da idéia de nação comoentidade social originária. Observa Hobsbawm que,

a nação pertence exclusivamente a um período particu-lar e historicamente recente. Ela é uma entidade socialapenas quando relacionada a uma certa forma de Esta-do territorial moderno, o Estado-nação; e não faz senti-do discutir nação e nacionalidade fora desta relação.Além disso, com Gellner, eu enfatizaria o elemento doartefato, da invenção e da engenharia social que entrana formação das nações. ‘As nações, postas como modosnaturais ou divinos de classificar os homens, como des-tino político ... inerente, são um mito; o nacionalismo,que às vezes toma culturas preexistentes e as transfor-

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ma em nações, algumas vezes as inventa e freqüente-mente oblitera as culturas preexistentes: isto é uma rea-lidade (1990:19).

E, além de, realisticamente, a nação não encerrar umahomogeneidade, tratando-se de mera forma ideal, a iden-tidade do povo foi construída num plano imaginário queescondia e/ou eliminava diferenças (...) mediante a repre-sentação de toda uma população por uma raça, uma classeou um grupo hegemônico (...), o que correspondeu, na prá-tica, à subordinação racial e à purificação social (Hardt eNegri, 2001⁄121).

Por fim, e não necessariamente nessa ordem, a insub-missão à ordem estabelecida.

Compreendeu-se que o Direito não era cego à qualida-de e às competências das pessoas. Ao contrário, operavacom classificações, com elementos binários, tais como:homem/mulher; adulto/criança, idoso; branco/outrasetnias; proprietário/despossuído; são/doente. Ao pri-meiro elemento dessas equações, imprimia um valorpositivo; ao segundo, negativo. A incapacidade relativada mulher e a tutela dos índios são alguns dos emblemasdesse modelo.

Assim, o sujeito de direito, aparentemente abstrato eintercambiável, tinha, na verdade, cara: era masculino,adulto, branco, proprietário e são.

Os vários movimentos reivindicatórios, a começarpelo feminista, revelam a face hegemônica do Direito ese põem em luta para alterá-lo.

O quadro atual, resultado de todo esse processo, é deum Direito que, de um lado, abandona a visão atomistado indivíduo e o reconhece como portador de identida-des complexas e multifacetadas. De outro, recupera o

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espaço comum onde são vividas as suas relações defini-tórias mais importantes.

A Constituição de 1988, no que de perto nos interes-sa, passa a falar não só em direitos coletivos, mas tam-bém em espaços de pertencimento, em territórios, comconfiguração em tudo distinta da propriedade privada.Esta, de natureza individual, com o viés da apropriaçãoeconômica. Aqueles, como locus étnico e cultural. O seuartigo 216, ainda que não explicitamente, descreve-oscomo espaços onde os diversos grupos formadores dasociedade nacional têm modos próprios de expressão ede criar, fazer e viver (incisos i e ii).

É interessante observar, nesse ponto, a identidadeentre a formulação constitucional e a de Wittgenstein.Este defende que o significado de uma palavra decorredo uso de que dela se faz e que os jogos de linguagem e asformas de vida são extremamente variados. Daí por quea linguagem é convencional e diferente nas distintas cul-turas. Diz ele:

na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acor-do sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida. Parauma compreensão por meio da linguagem, é preciso nãoapenas um acordo sobre as definições, mas (por estra-nho que pareça) um acordo sobre os juízos (1989:94, §§241⁄242).

No mesmo sentido, a Declaração Universal sobre a Diver-sidade Cultural faz constar, em seu preâmbulo, que a cul-tura deve ser considerada como o conjunto dos traços dis-tintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos quecaracterizam uma sociedade ou um grupo social e queabrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as

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maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradi-ções e as crenças; a cultura se encontra no centro dos deba-tes contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e odesenvolvimento de uma cultura fundada no saber.

A Constituição brasileira, na linha do direito interna-cional, rompe a presunção positivista de um mundopreexistente e fixo, assumindo que fazer, criar e viverdão-se de forma diferente em cada cultura, e que a com-preensão de mundo depende da linguagem do grupo.

Nesse cenário, a Constituição reconhece expressa-mente direitos específicos a índios e quilombolas, emespecial seus territórios. Mas não só a eles. Também sãodestinatários de direitos específicos os demais gruposque tenham formas próprias de expressão e de viver,criar e fazer.

Inspirado nessa compreensão, vem o Decreto 6.040,de 7 de fevereiro de 2007, a instituir a política nacionalde desenvolvimento sustentável dos povos e comunida-des tradicionais. É emblemática a composição da Comis-são Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povose Comunidades Tradicionais: seringueiros, fundos depasto, quilombolas, faxinais, pescadores, ciganos, que-bradeiras de babaçu, pomeranos, índios e caiçaras, den-tre outros.

Aliás, antes mesmo dele, a Convenção 169, da oit,apresenta um rol de direitos específicos a todos os gru-pos cujas condições sociais, econômicas e culturais os dis-tingu[em] de outros setores da coletividade nacional.

À vista dos novos paradigmas constitucionais, apre-sentam-se, contudo, alguns desafios.

O primeiro deles diz com a aplicação do direito infra-constitucional a esses grupos e seus indivíduos.

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É fato que o direito preexistente à Constituição de1988 não os contemplou; ao contrário, sequer se apre-sentavam como sujeitos em face dele.

Todavia, o direito internacional e várias convençõesjá incorporadas ao nosso ordenamento jurídicos assegu-ram aos membros desses povos o gozo dos direitos que alegislação nacional outorga aos demais membros dapopulação.

Aplicar esse direito, tout court, sem levar em conta assuas especificidades, seria perpetuar o quadro de exclu-são e lançar por terra as conquistas constitucionais.

De outro giro, colocá-los à margem do direito à espe-ra da elaboração de leis que os contemplem especifica-mente é um desatino.

Não é demais lembrar que direitos culturais e étnicos,porque indissociáveis do princípio da dignidade da pes-soa humana, têm o status de direito fundamental. São,portanto, de aplicação imediata.

Assim, é preciso que se considere que (1) todo esseacervo jurídico existente pode e deve ser mobilizado paraassegurar o exercício pleno e imediato de direitos étnicose culturais; (2) há que se eleger o instrumento de maisampla e rápida eficácia e adaptá-lo às especificidades des-ses direitos; e (3) a aplicação do direito nacional, emdemandas que envolvam esses grupos e/ou seus mem-bros, requer leitura que leve em conta as suas diferenças.

Por ora, nenhuma grande novidade. Sabe-se que, como advento de um novo texto constitucional, não se revo-ga, até porque tal empreitada seria absurda, todo o direi-to preexistente. Apenas aquelas normas claramente emdesconformidade com a nova Constituição são tidas porrevogadas. As demais seguem em vigor, com a cautela dea ela se adequarem por ocasião de sua aplicação.

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E é exatamente na aplicação do direito preexistenteque reside o segundo e grande desafio.

Os chamados operadores do direito aprendem, em seuscursos universitários, que Savigny distinguiu entre ainterpretação gramatical, lógica, histórica e sistemática.Essa classificação dos critérios interpretativos, aos quaisse agregou posteriormente o teleológico, teve tal êxito quechegou a ser patrimônio comum de nossa cultura jurídica.

É chegada a hora, contudo, principalmente em funçãodo pluralismo que a Constituição preconiza, de estabele-cer uma relação com a norma que não seja de mera inter-pretação, no sentido da reflexividade, da onipotência dopensamento que retorna sobre si.

A interpretação, nessa acepção, é a realização mais aca-bada da visão escolástica: a de um espectador dotado dedeterminada competência que assiste ao espetáculo quese lhe apresenta e, a partir de seu ponto-de-vista, captu-ra o que lhe parece essencial e o coloca sob a moldura danorma, por ele também pré-compreendida.

O espetáculo tem a sua definição estabelecida por umaterceira pessoa, e com isso perde a normatividade quelhe é própria. Assume a visão que o intérprete a ele con-fere, faz-se objeto.

No entanto, o que dizer da lição de Wittgenstein, se-gundo a qual as normas, vistas separadamente das ativida-des práticas dos seres humanos, são meros itens mentaisou lingüísticos? Como, então, apreender o sentido da nor-ma deslocada de seu contexto de uso? Como, num siste-ma constitucional que assegura o pluralismo, transformaros agentes e suas práticas em objeto a ser interpretado?

É preciso, portanto, em primeiro lugar, desfazer anoção de que o intérprete, por uma dada competência,está habilitado a decifrar, por si só, a norma em abstrato.

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Não há esse ato de deciframento prévio. Norma e prá-tica se interpelam o tempo todo, e aquela só tem sentidoà vista desta.

Depois, é preciso, por mandamento constitucional, re-conhecer ao grupo e aos seus membros a sua liberdadeexpressiva. Há, aqui, um deslocamento da terceira para aprimeira pessoa. São eles que apresentam o ambiente noqual se faz uso da norma e a atenção que a ela conferem.

Só então, compreendido o contexto de uso reveladopelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da nor-ma, será possível, ao aplicador do direito, decidir ade-quadamente.

Alguns exemplos talvez dêem maior clareza ao quefoi dito.

São muito comuns, na atualidade, ações possessóriascontra índios e quilombolas. É preciso que o julgadortenha em mente que o centro do debate está na própriadefinição de posse e que as partes contrapostas perten-cem a comunidades lingüisticas distintas.

Para os guaranis, por exemplo, o tekoha é uma insti-tuição divina criada por Ñande Ru. Deles desalojadoscom a chegada do homem branco, procuram ali perma-necer, inclusive trabalhando para este nos ervais e emroças. Consideram-se, dessa forma, de posse de seu ter-ritório tradicional.

Fala-se que alguns grupos indígenas praticam infan-ticídio, dentre eles os yanomami. Mais uma vez, a ques-tão nuclear é a definição de vida.

A mulher yanomami, quando sente que é chegada ahora do parto, vai sozinho para local ermo na floresta,fica de cócoras, e a criança cai ao chão. Nessa hora, eladecide se a pega ao colo ou se a deixa ali. Se a coloca nosbraços, dá-se, nesse momento, o nascimento. Se a aban-

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dona, não houve, na concepção do grupo, infanticídio,pela singela razão de que a vida não se iniciou.

São visões que, goste-se ou não, não podem ser des-cartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e aoutros tantos documentos internacionais, se negar qual-quer valor às asserções de verdade do outro.

BIBLIOGRAFIA

bourdieu, p. Meditações pascalianas, Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2001.

carpintero, f. Derecho y ontología jurídica, Madrid: Actas, 1993.

gadamer, h.g. El giro hermenéutico, Madrid: Cátedra, 1998.

habermas, j. La lógica de las ciencias sociales, Madrid : Tec-nos, 1996.

hardt, m. & Negri. Império, Record, 2001.

hobsbawn, e. Nations and Nationalism since 1780, Cambridge:Univ. Press, 1990.

wittgenstein, l. Investigationes filosóficas, México: unam,1988.

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Deborah Duprat

Subprocuradora-Geral da República Coordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação e

Revisão do Ministério Público Federal

A inconstitucionalidadedo Decreto 3912, de 10 de setembro de 2001

Dispõe o artigo 1.º do Decreto 3912:

Art. 1.º Compete à Fundação Cultural Palmares – FCP

iniciar, dar seguimento e concluir o processo adminis-trativo de identificação dos remanescentes das comuni-dades dos quilombos, bem como de reconhecimento, deli-mitação, demarcação, titulação e registro imobiliáriodas terras por eles ocupadas.Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput, somen-te pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que:I – eram ocupadas por quilombos em 1888; eII – estavam ocupadas por remanescentes das comuni-dades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.

Este breve trabalho se dedica a analisar o Decreto 3912,de 10 de setembro de 2001, cujo objeto era regulamen-tar as disposições relativas ao processo administrativopara identificação dos remanescentes das comunidadesdos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação,

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a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das ter-ras por eles ocupadas. Tal Decreto foi revogado posterior-mente pelo Decreto 4887, de 20 de novembro de 20033.O artigo 1.º deve ser analisado em conjunto com o queestá disciplinado na Constituição, especialmente no arti-go 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-rias. Neste existe uma referência direta com o reconhe-cimento da propriedade vinculado as comunidades dequilombos “que estejam ocupando suas terras”.

Antes de mais nada devemos enfrentar a questão daexpressão “estejam ocupando” para depois adentrarmosno exame das propostas existentes no Decreto, se estãoalinhadas ou não com o texto constitucional. Pois bem. Aexpressão “estejam ocupando” demonstram uma preo-cupação do legislador com uma apropriação contínua pelacomunidade de determinada área. Em um primeiro mo-mento somos tentados a estabelecer a seguinte relação: sótem o direito referido no artigo 68 dos adct quem estiver“ocupando” a área; quem não estiver “ocupando” não teráo aduzido direito. Só que o legislador constituinte não po-deria ter expressado tal idéia. Em primeiro lugar porquea idéia do estar ocupando só pode ser mensurada se ava-liada em conjunto com outros princípios constitucionais.

O princípio constitucional que mais se destaca para efe-tuar a análise é, sem dúvida, o princípio que fundamen-ta toda a Constituição e todos os direitos nela elencados:a dignidade da pessoa humana, fundamento da repúbli-ca federativa do Brasil. Note-se que as pressões sofridaspor estas Comunidades, na construção de sua resistênciae de sua identidade, interfaces diretas da territorialidade,acarretaram a perda de suas terras, a expulsão, a venda

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3 Este texto foi escrito em setembro de 2001.

irregular, etc. Não se pode, na compreensão constitucio-nal, desconsiderar tal fato. Ora, este fenômeno (expulsão,exclusão) afeta diretamente a dignidade das pessoas aquem se dirige a norma. Afeta a dignidade da pessoa hu-mana, garantia constitucional, que não admite tergiversa-ções. No momento em que estas pessoas foram atingidasem sua dignidade, através de um processo espoliativo, deexclusão, não poderia a norma expressa no artigo 68 darguarida a isto. O princípio já referido, fulmina qualquerinterpretação que queira afirmar o sentido contrário: pes-soas expulsas de suas terras, em qualquer momento, e quesejam consideradas comunidades remanescentes de qui-lombos, não podem ser excluídas, novamente, da abran-gência do dispositivo constitucional. Em outras pala-vras, a Constituição não pode excluir o direito destaspessoas. Nesta mesma linha encontra-se o Decreto queafirma: o reconhecimento somente sobre as terras “queestavam ocupadas por remanescentes das comunidadesdos quilombos em 5 de outubro de 1988”. Se à Constitui-ção não é possibilitado excluir os grupos que foram obri-gados a desocupar suas terras, muito menos um Decreto.

O princípio hermenêutico da efetividade dos direitosfundamentais vem a exigir que de modo algum é lícitaqualquer discriminação contra estas pessoas.

Passamos agora a análise da outra exigência propostapelo Decreto Executivo, que determina o reconhecimentodas comunidades remanescentes somente sobre terras que“eram ocupadas por quilombos em 1888”. Vige em nossoordenamento jurídico o princípio constitucional da pro-porcionalidade, da proibição do excesso. Retira sua “for-ça” de outro princípio constitucional que refere a razoa-bilidade como diretriz a ser obedecida pela Administra-ção, ou seja expressa que toda conduta administrativa

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deve ser adequada, racional, de acordo com um sensonormal da sociedade. O princípio da proporcionalidadeque possui sua matriz, como já salientado, na razoabili-dade, refere que a conduta da Administração Pública sótem validade na medida que suas atividades sejam exer-cidas, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mel-lo “na extensão e na intensidade proporcionais ao que sejarealmente demandado para cumprimento da finalidade deinteresse público a que estão atreladas”4.

O mesmo jurista refere que a atividade que transbor-dar das medidas necessárias para o cumprimento de deter-minada medida atingem o princípio da proporcionalida-de, “sobremodo quando a Administração restringe situa-ção jurídica dos administrados além do que caberia, porimprimir às medidas tomadas uma intensidade ou exten-são supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade desua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a supor-tar constrições em sua liberdade ou propriedade que nãosejam indispensáveis à satisfação do interesse público”5.

Tal lição vem enquadrar-se como uma luva ao caso emtela. A atividade administrativa-normativa, modeladaatravés de um Decreto, implica em uma sobrecarga de exi-gências para o reconhecimento determinado pelo textoconstitucional. O prazo referido pelo Decreto acarretaria anecessidade de comprovar a ocupação por cem anos dequalquer terreno reivindicado. Até mesmo as normas queexigem prazos mais dilatados para a prescrição aquisitiva,como o usucapião previsto na Lei Substantiva Civil (artigo

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4 bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.São Paulo: Ed. Malheiros, 1999. p. 67.5 bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.São Paulo: Ed. Malheiros, 1999. p. 68.

550 do Código Civil)6, referem vinte anos. Em outras pala-vras: se algum integrante de uma comunidade quiser tero reconhecimento estampado na Constituição deverá pro-var cem anos de ocupação; se este mesmo integrante qui-ser adquirir o mesmo terreno, via usucapião, deverá pro-var vinte anos de ocupação. Oitenta anos menos!!! A exi-gência, contida no Decreto, é menos benéfica para asComunidades do que as exigências contidas em uma nor-ma criada no início do século passado. Em conclusão: talrequisito não é razoável, violando, totalmente, os princí-pios constitucionais vigentes. Além disso, a coleta de pro-vas vai se tornar extremamente difícil, para não dizerimpossível. Produzir um conjunto probatório utilizandomaterial com mais de um século de existência é tarefahercúlea. Os experts teriam imensas dificuldades paraconseguir demonstrar uma ocupação ocorrida nesta épo-ca. Não é, portanto, razoável estabelecer este período.

De outra banda, o estabelecimento de um ano determi-nado, in casu, 1888 (ano da abolição), não é a técnica nor-mativa mais correta. O reconhecimento das comunidadesvai se tornar uma atividade raríssima posto que restrita aum tempo acentuadamente preciso. Se é necessário, tal-vez, evitar o alargamento dos conceitos, é necessário,também, evitar restringi-los. Fincar o ano de 1888 comorequisito para o reconhecimento é espremer demais oconceito de comunidade proposto pela Constituição, atéporque esta Carta Política não trabalha com essa data, enão pode a atividade infraconstitucional ir além do que

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6 “Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição, pos-suir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentementede título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juizque assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para trans-crição no Registro de Imóveis”.

estabeleceu o Constituinte. Os laudos antropológicoseventualmente construídos para demonstrar a existênciade uma comunidade terão uma margem maior para ope-rar e estabelecer suas conceituações e limites a partir,também, da leitura do texto constitucional. Se estes lau-dos não forem consentâneos com o texto, o próprio órgãofederal poderá não lhes dar guarida, e mesmo que estaaprovação ocorra, tais trabalhos antropológicos poderãopassar pelo crivo do Poder Judiciário. Ou seja, se os lau-dos extrapolarem o conceito aberto de remanescentes decomunidades quilombolas cunhado pela Constituiçãoexistirão mecanismos para evitar que reconhecimentosdespropositados aconteçam. Em vista disso, pode-se afir-mar peremptoriamente que o inciso i viola, por comple-to, o princípio constitucional da razoabilidade.

Refere Paulo Bonavides que tal atitude atinge direta-mente o próprio Estado democrático e o ordenamentojurídico: “A lesão ao princípio é indubitavelmente a maisgrave das inconstitucionalidades porque sem princípionão há ordem constitucional e sem ordem constitucionalnão há garantia para as liberdades cujo exercício somen-te se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderesabsolutos. Quem atropela um princípio constitucional,de grau hierárquico superior, atenta contra o fundamen-to de toda a ordem jurídica. A construção desta, partin-do de vontade constituinte legítima, consagra a utiliza-ção consensual de uma competência soberana de primei-ro grau”7. Além disso, o mesmo mestre reforça a idéia dapositivação deste princípio: “O princípio da proporcio-nalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso

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7 bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malhei-ros, 1999. p. 396.

ordenamento constitucional. Embora não haja sido ain-da formulado como ‘norma jurídica global’, flui do espí-rito que anima em toda sua extensão e profundida o § 2.ºdo art. 5.º, o qual abrange a parte não-escrita ou não ex-pressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber,aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre danatureza do regime, da essência impostergável do Esta-do de Direito e dos princípios que este consagra e quefazem inviolável a unidade da Constituição”8.

O alemão Robert Alexy refere que “Los principios sonmandatos de optimizacion com respecto a las posibilida-des jurídicas y fácticas. La máxima de la proporcionali-dad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponde-ración, se sigue de la relativización com respecto a lasposibilidades jurídicas. Si uma norma de derecho funda-mental com carácter de principio entra em colisión comum principio opuesto, entonces la posibilidad jurídicade la realización de la norma de derecho fundamenatl de-pende del principio opuesto. Para llegar a uma decisión,es necesaria uma ponderación em el sentido de la ley decolisión. Como la aplicación de principios válidos, cuan-do son aplicables, está ordenada y como para la aplica-ción em el caso de colisión se requiere una ponderación,el carácter de principio de las normas iusfundamentalesimplica que, cuando entran em colisión se requiere umaponderación, el carácter de principio de las normas ius-fundamentales implica que, cuando entran em colisióncom principios opuestos, está ordenada uma pondera-ción. Pero, esto significa que la máxima de la proporcio-nalidad em sentido estricto es deducible del carácter deprincipio de las normas de derecho fundamental.

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8 Idem, ibidem. p. 396.

De la máxima de proporcionalidad em sentido estric-to se sigue que los principios son mandatos de optimiza-ción com relación a las posibilidades jurídicas. Em cam-bio, las máximas de la necesidad y de la adecuación sesiguen del carácter de los principios como mandatos deoptimización con relación a las posibilidades fácticas”9.

Nesta mesma linha, o jurista português Canotilho afir-ma que a proporcionalidade, ou proibição de excesso,possui desdobramentos principiológicos da seguinte for-ma: princípio da conformidade ou adequação de meios;princípio da exigibilidade ou da necessidade; e princí-pio da proporcionalidade em sentido restrito.

O princípio da adequação dos meios refere que a medi-da adotada pelo Poder Público tem que ser apropriadapara o fim exigido. Ou seja, “a exigência de conformida-de pressupõe a investigação e a prova de que o acto dopoder público é apto para e conforme os fins justificati-vos da sua adoção. ... Trata-se, pois, de controlar a rela-ção de adequação medida-fim”10.

No presente caso, em relação ao inciso i, nota-se que aAdministração torna mais difícil o reconhecimento referidopela Constituição. E a finalidade desta norma só pode ser,dando integral cumprimento a norma constitucional, pro-porcionar o correto e justo reconhecimento dos remanescen-tes das comunidades de quilombos. Se a finalidade é estaentão o procedimento utilizado pelo Poder Público paralevá-lo a cabo não é adequado. Por conseguinte, o meio uti-lizado, estabelecer uma data precisa para o reconhecimento,não se mostra adequado para o fim pretendido. Pelo contrá-

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9 alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centrode Estudios Constitucionales, 1997. pp. 112/113.10 canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: LivrariaAlmedida, 1996. p. 382.

rio, desvirtua completamente os desideratos das políticaspúblicas voltadas para estes grupos, ao restringir direitosfundamentais dos beneficiários da atividade estatal.

Canotilho refere o princípio da exigibilidade ou da ne-cessidade como sendo aquele em que o cidadão tem “di-reito à menor desvantagem possível”11.Ora, como compro-vado acima, os requisitos contidos no Decreto são menosvantajosos que os contidos, por exemplo, no usucapião.

Sopesando os princípios acima referidos, em um for-mato strictu sensu, como propõe Canotilho, pode-se afir-mar que meios utilizados e fins destinados, estão com-pletamente distantes de uma adequada atuação, exigidanos casos em tela.

BIBLIOGRAFIA

alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid:Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Admi-nistrativo. São Paulo: Ed. Malheiros, 1999.

bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Malheiros, 1999.

canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Li-vraria Almedida, 1996.

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11 Idem. Ibidem. p. 383.

Marcelo Beckhausen

Procurador Regional da República, professor de DireitoConstitucional Unisinos/rs, Mestre em Direito Unisinos/rs

e Doutorando em Ciência Política/ufrgs

Breves consideraçõessobre o Decreto 3.912/200112

Trata-se de se submeter à análise o Decreto n.º 3.912, de10 de setembro de 2001, que regulamenta as disposiçõesrelativas ao processo administrativo para identificaçãodos remanescentes das comunidades de quilombos e parao reconhecimento, a definição, a demarcação, a titulaçãoe o registro imobiliários das terras por eles ocupadas.

Nos termos do parágrafo único do art. 1.º do decretoem discussão, somente pode ser reconhecida a proprieda-de sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em1988; II – estavam ocupadas por remanescentes das comu-nidades de quilombos em 5 de outubro de 1988.

A disposição é evidentemente inconstitucional.Registre-se, de início, que o inciso i contém, certa-

mente, um erro material, ao referir-se ao ano de 1988como data de ocupação de terras por quilombos, se comotal se pretende ter em conta a definição legal que remon-ta a 174013, por se tratar de situação que não mais se reve-la, quer no plano dos fatos, quer no plano do direito.

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12 Texto elaborado antes da promulgação da Convenção 169, da oit.13 Para o Conselho Ultramarino, em resposta a consulta, quilombo ou

Prosseguindo na análise da inconstitucionalidade dodispositivo invocado, decorre ela de restrição não autori-zada constitucionalmente, já que o art. 68 expressamentenão a revela, ou tampouco permite, hermeneuticamente,a sua inferência. Senão, vejamos.

Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dosquilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecidaa propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes ostítulos respectivos, o art. 68 do adct não apresenta qual-quer marco temporal quanto à antigüidade da ocupação,nem determina que haja uma coincidência entre a ocu-pação originária e a atual. O fundamental, para fins dese assegurar o direito ali previsto, é que de comunidadesremanescentes de quilombos se cuide e que, concorren-temente, se lhe agregue a ocupação das terras enquantotal. Assim, os dois termos – remanescentes de comuni-dades de quilombos e ocupação de terras – estão em rela-ção de complementariedade e acessoriedade, de tal for-ma que a compreensão de um decorre necessariamentedo alcance do outro. E estes, e apenas estes, são necessá-rios à interpretação do comando constitucional. O quenão se admite, certamente, é que um mero decreto – oque sequer à lei se autoriza – numa visão unilateral, ope-re um reducionismo no conteúdo de sentido da norma.

Poder-se-ia objetar no sentido de que o ato normativoestaria apenas a explicitar um limite imanente. Contudo,entende-se por limite imanente – critério a fornecer,

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cont. 13 mocambo seria toda habitação de negros fugidos que passem decinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nemse achem pilões neles (1740) Normativamente, o conceito resulta tambémdo Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano,segundo os quais era reputado quilombo desde que se achavam reunidoscinco escravos.

muito mais, tópicos de investigação e argumentação inte-pretativa – aquele que decorre do sistema dos direitosfundamentais e dos próprios princípios fundamentais daordem constitucional, de modo a que o domínio de prote-ção da norma vá até onde não conflitue com estes valoresmaiores. Neste ponto, a adoção de um marco temporal, apar de não se constituir num limite imanente, pelas razõesexpostas, apenas acriticamente pode ser considerado ele-mento definitivo – ou mesmo mediador – numa eventualcolisão entre direitos e valores constitucionais.

A rigor, o marco temporal, ao invés de harmonizar, sub-verte, definitivamente, o sistema constitucional. Isto por-que, em todas as ocasiões em que o legislador constituin-te condicionou o direito à propriedade ao decurso de cer-to lapso de tempo, fê-lo expressamente, como decorre dosartigos 183 e 191 da cf, diante da singela razão de que todae qualquer restrição a direito constitucionalmente assegu-rado só pode resultar do próprio texto constitucional.

Desconhece, ainda, o decreto a natureza da normacuja regulamentação postula.

O art. 68 do adct, muito embora deslocado do corpopermanente da Constituição, há de ser interpretado apartir deste, que sinaliza exatamente quanto à sua razãode ser, quanto ao sentido que lhe deva ser emprestado,quanto aos princípios que hão de ser levados em contano momento de sua interpretação. Pois bem, levando-seadiante este intento, tem-se que a expressão quilombosconsta do § 5º do art. 216, que trata do tombamento dosdocumentos e sítios dos antigos quilombos. Este dispo-sitivo, por sua vez, insere-se na seção da Constituição de-dicada à cultura, a qual tem um princípio retor: a nacio-nalidade brasileira se forma a partir de grupos étnicosdiferenciados, grupos com histórias e tradições diversas,

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cabendo ao Estado protegê-los e garantir espaço e per-manência para essa diferenciação.

Parece-nos indene de dúvidas de que esta seção des-tinada a tratar da cultura revela nova compreensão acer-ca do tema, tomando a expressão cultura não mais emsua acepção meramente folclórica, monumental, arquite-tônica e/ou arqueológica – nota dos textos constitucio-nais pretéritos – mas o conjunto de valores, representa-ções e regulações de vida que orientam os diversos gru-pos sociais, numa visão que não se remete mais ao pas-sado, mas, ao contrário, se orienta e se renova no presen-te. Isto se faz certo na medida em que a Constituição bra-sileira impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercíciodos direitos culturais (...), apoiando e incentivando avalorização e a difusão das manifestações culturais (...)populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros gru-pos participantes do processo civilizatório nacional (art.215, caput, e seu § 1º), manifestações culturais estas quese traduzem em suas formas de expressão e em seus modosde criar, fazer e viver (art. 216, i e ii).

A Constituição de 1988 representa, assim, uma cliva-gem em relação a todo o sistema constitucional pretéri-to, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico emulticultural, assegurando aos diversos grupos forma-dores dessa nacionalidade o exercício pleno de seusdireitos de identidade própria.

E, ao conferir aos remanescentes das comunidades dequilombos a propriedade das terras por eles ocupados,fé-lo à vista da circunstância de que os territórios físicosonde estão esses grupos constituem-se em espaços sim-bólicos de identidade, de produção e reprodução cultu-ral, não sendo, portanto, algo exterior à identidade, massim a ela imanente.

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Se assim o é, trata-se, à toda evidência, de norma queveicula disposição típica de direito fundamental, por dis-ponibilizar a esses grupos o direito à vida significativa-mente compartilhada, por permitir-lhes a eleição de seupróprio destino, por assegurar-lhes, ao fim e ao cabo, aliberdade, que lhes permite instaurar novos processos,escolhendo fins e elegendo os meios necessários para asua realização, e não mais submetê-los a uma ordem pau-tada na homogeneidade, onde o específico de sua iden-tidade se perdia na assimilação ao todo. É, ainda, o direi-to de igualdade que se materializa concretamente, assimconfigurada como igual direito de todos à afirmação etutela de sua própria identidade.

Nota característica dos direitos fundamentais é a suaindisponibilidade. Como ensina Luigi Ferrajoli14, estaindisponibilidade há de ser entendida em sua dupla face:indisponibilidade ativa, que não permite aos seus titula-res a sua alienação, e a indisponibilidade passiva, no sen-tido de não serem expropriados ou limitados por outrossujeitos, começando pelo Estado. Neste sentido, nenhu-ma maioria, sequer por unanimidade, pode legitimamen-te decidir sobre a violação de um direito de uma mino-ria naquilo que diz respeito à sua própria identidade.Mais uma vez valendo-nos da lição de Ferrajoli, à vistado princípio da igualdade que se realiza com respeito àdiferença, nenhuma maioria pode decidir em matéria dedireitos por conta dos demais, tanto mais quando a mino-ria tem interesses ligados à sua diferença15.

Daí a razão por que as normas que veiculam tais direi-tos são chamadas téticas, assim concebidas como aquelas

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14 Derechos y garantías – La ley del más débil. Ed. Trotta, Madrid, 2001, p. 47

15 Ferrajoli, ob. Cit., p. 90

que imediatamente dispõem sobre as situações por elasexpressadas16, não se sujeitando os direitos ali previstosa serem constituídos, modificados ou extintos por qual-quer ato. Distinguem-se das normas ditas hipotéticas naexata medida em que as situações nestas previstas encon-tram-se apenas predispostas pela norma, a reclamar aintermediação de um ato – legislativo, jurídico – para asua realização.

Assim, os direitos fundamentais são todos ex lege, con-feridos diretamente pela Constituição, e imediata e ple-namente realizáveis, não se admitindo a intermediaçãode ato, de que natureza for, para o seu exercício pleno,muito menos para impor-lhes restrições ou diminuir oseu alcance, como pretendeu fazer o decreto ora objetode análise.

Resulta, ainda, inconstitucional o dispositivo ao exigir,para o implemento do direito, a permanência na terra porprazo determinado, posto que, a pretexto de interpretara norma constitucional e dar-lhe correta aplicação, repro-duz discurso próprio de práxis escravagista e o rein-troduz na ordem jurídica vigente, em evidente descom-passo com o texto constitucional.

Com efeito, anotam Michael Hardt e Antonio Negrique a escravidão tem como princípio vetor a mobilida-de, quer sob a perspectiva do poder, por meio do apara-to repressivo para impedir a mobilidade e o nomadismodos escravos, que por parte dos escravos, com o desejoirreprimível de fuga17.

Ao tomar os elementos sígnicos da norma constitucio-nal e conotá-los tal qual se fazia em 1741 – posto que toda

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16 Ferrajoli, ob cit, p. 49.

17 Império. Ed. Record, 2001, p. 232.

a interpretação se alça ao plano da mera mobilidade, e,na contraface, a sua recusa – importa-se a cultura da épo-ca da escravidão18, e se desorganiza não só uma retórica– em razão de o signo ser agora compreendido em facede um novo contexto social – mas toda uma ideologia,pois se subverte um regime de liberdades e igualdadesconstruídos sob a égide da diferença étnica.

Seguindo ainda esta linha, a norma pretensamenteregulamentadora do artigo 68 do adct conduz à conclu-são absurda de que a Constituição, rigorosamente, esta-ria a instituir, agora com todo o peso do direito, quilom-bos tais como concebidos em 1741, pois o espaço de liber-dade para a regulação ritual da vida seria obtido à custado confinamento.

Ademais, como antes assinalado, a nota característicados direitos fundamentais é a indisponibilidade. Nestaperspectiva, não se autoriza que, hermeneuticamente, seconclua que um direito fundamental apenas tenha con-dições de se realizar com o sacrifício absoluto do outro,pois, se assim o fosse, um deles perderia o traço da indis-ponibilidade. Neste passo, o que o decreto postula, deforma inconstitucional, certamente, é que o direito asse-gurado no artigo 68 do adct só se torne possível me-diante o aniquilamento do direito de liberdade, do direi-to de ir e vir, do direito de eleger, constantemente, o localde permanência.

Mas não só o interregno de tempo entre os marcos ini-cial e final da ocupação, como condições ao exercício dodireito, padecem de inconstitucionalidade. Eles pró-

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18 Segundo Umberto Eco, todos os fenômenos da cultura são sistemas designos, isto é, fenômenos de comunicação, in A Estrutura Ausente, Ed. Pers-pectiva, 7.ª ed., p. 3

prios, considerados cada qual de per se, revelam idênti-co vício.

De início, não há razão, constitucional ou mesmo his-tórica, para que o direito previsto no art. 68 do adct re-monte aos idos de 1888. Historicamente, a figura do qui-lombo – tal como significado à época, reitere-se – antece-de, em muito, o marco apontado, e tampouco encontranele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-dentes à abolição da escravidão já implementadas ou emfranco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isonomiaque o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos qui-lombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em suaexistência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto.

Ademais, e já foi assinalado, o art. 68 do adct orienta-se numa perspectiva de presente, com vistas a assegurara estes grupos étnicos ligados historicamente à escravidãoo pleno exercício de seus direitos de auto-determinaçãoem face de sua identidade própria. E porque o território éimanente à identidade, o que a Constituição determina éa proteção deste território que se apresenta na atualidade,sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmente ocu-pado pelos ancestrais se não mais se configura como cul-turalmente significativo para as gerações presentes.

Do mesmo modo, o marco final, além de arbitrário, re-vela nítido viés etnocentrista, na medida em que se sina-liza com um termo fatal além do qual se nega o direito àidentidade étnica e o correlato território que a requer e,em certa medida, a determina. Neste ponto, há duplaofensa ao texto constitucional. A uma, porque alguémestranho ao grupo étnico é quem determina o prazo finalde sua existência constitucionalmente amparada, o que,

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evidentemente, conflita com a noção de plurietnicidade.A duas, por impor ao grupo uma rigidez cultural e impe-di-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conceber novosestilos de vida, de construir de novas formas de vida co-letiva, enfim, a dinâmica de qualquer comunidade real,que se modifica, se desloca, idealiza projetos e os realiza,sem perder, por isso, a sua identidade.

Apenas comunidades ideais, erigidas a partir de ficçõescoisificadoras, apresentam-se como totalidades pétreascoerentes. As reais, ao contrário, são marcadas pelo signoda mudança, do impulso, da reelaboração permanente.

Há, ainda, outros vícios.Ao fazer a atuação estatal depender de provocação do

interessado, desconhece o decreto que o art. 68 do adcté comando dirigido ao Poder Público, consubstanciandoobrigação de fazer, independentemente de solicitação dosinteressados. Deste modo, não pode a lei – muito menosum decreto – fazer depender o direito de providência quenão tem estatuto constitucional, e, mais grave ainda, exi-mir, por tal fato, o Poder Público de obrigação fundadano texto constitucional e de natureza incondicionada.

Por último, o decreto, além de atentar contra a ordemconstitucional, revela-se completamente destituído deutilidade ao fim proposto – regulamentação do art. 68 doadct – e padecendo de vício de ilegalidade. A uma, por-que não enfrenta, sequer remotamente, a questão daincidência desses remanescentes de comunidades dequilombos em áreas já tituladas, sob o domínio privado,ao não disciplinar os aspectos que necessariamente a tan-genciam, como a necessidade, forma e procedimento dedesapropriação, nulidade ou não dos títulos privados. Aduas, porque, limitando-se à disciplina das terras daUnião – o que resulta do fato de passar ao largo das ter-

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ras sob domínio privado e manter, implicitamente, acompetência dos Estados e do Distrito Federal quantoaos seus bens - além de não exaurir a regulamentação aque se destina, conflita com a Lei 9.636, de 15 de maiode 1998, que dispõe especificamente sobre a regulariza-ção, administração, aforamento e alienação de bens imó-veis da União (v.g, art. 18). Em sendo ato normativo deestatura inferior à lei, não há como prevalecer.

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Deborah Duprat

Subprocuradora-Geral da RepúblicaCoordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação

e Revisão do Ministério Público Federal.

Parecer n.º: agu/mc - 1/2006

processo n.º: 00400.002228⁄2006-25 e apenso00400.000419⁄2002-29procedência: Gabinete de Segurança Institucional daPresidência da República assunto: Interpretação da questão quilombola naConstituição de 1988.

Senhor Advogado-Geral da União

O Senhor Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segu-rança Institucional da Presidência da República e Secre-tário-Executivo do Conselho de Defesa Nacional cdnpede, perante a Advocacia-Geral da União, a edição deinterpretação oficial do art. 68 do adct tendo em contaque o cdn, na forma do art. 82 do Decreto n.º 4.887, de2003, tem encargo de manifestar-se sobre os estudos téc-nicos apresentados pelo Instituto Nacional de Colonizaçãoe Reforma Agrária – incra. Tendo presente o parecer desua Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institu-cionais (Nota saei – ap n.º 286⁄2006 – rf), que em minu-cioso exame da matéria no exercício de sua competênciae em face da relevância e das importantes conseqüênciasque o assunto suscita, pondera Sua Excelência pela ne-

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cessidade da exata identificação do alcance da expressãoconstitucional “estejam ocupando suas terras”, cuja com-preensão é essencial para a manifestação exigida. A Notareferida, além de justificar a competência da Secretaria-Executiva do cdn e da contextualização do tema, e doexame de dois casos concretos (Comunidade de Remanes-centes de Quilombos de Linharinho no Espírito Santo eComunidade de Remanescentes de Quilombos de Casca)tendo em conta que no primeiro caso a ocupação real éde 147,00 hectares ou 30 alqueires e a proposta de titu-lação do incra soma 9.542,57 hectares, e no segundo aocupação é de 2.387,8596 hectares que corresponde àproposta, sustenta a possível inadequação e a manifestainconveniência das conclusões do incra.

Em outros termos, porque a desproporção do reconhe-cimento da propriedade definitiva, sobretudo no primei-ro caso em face da efetiva ocupação ser muito menor quea proposta de reconhecimento da propriedade definitiva,pode surgir daí claro estímulo a ocupações injustificadase agravamento generalizado da questão agrária, comimportante repercussão no processo de definição dasáreas ou terras indígenas e das pretensões dos trabalhado-res rurais sem-terra (o que, a seu juízo, interessa de pertoà segurança nacional), daí porque, como sugere a ilustreautoridade solicitante, é urgente “fixar a interpretação doart. 68 a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entida-des da administração federal, mediante parecer aprovado epublicado juntamente com o despacho presidencial”.

Para a segura compreensão do assunto que é cercadode dificuldades além de novidade quase sem preceden-tes administrativos, penso que é recomendável a suaabordagem com o máximo de abrangência como corolá-rio da máxima efetividade constitucional.

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I

O regime jurídico da chamada questão quilombola temdisciplina direta no artigo 68 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias (“Art. 68. Aos remanescentesdas comunidades dos quilombos que estejam ocupando suasterras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo oestado emitir-lhes os títulos respectivos”.) e reflexa nosarts. 215, § 1.º e 216 do texto principal da Constituição(“Art. 215, § 12. O Estado protegerá as manifestações dasculturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das deoutros grupos participantes do processo civilizatório nacio-nal” e “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasilei-ro os bens de natureza material e imaterial, tomados indi-vidualmente ou em conjunto. portadores de referências àidentidade, à ação, à memória dos diferentes grupos forma-dores da sociedade brasileira “... “§ 1.º. O poder público,com a colaboração da comunidade, promoverá e protegeráo patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários.registros, vigilância, tombamento e desapropriação e deoutras formas de acautelamento e preservação“... “§ 5.º.Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentoresde reminiscências históricas dos antigos quilombos“), cons-tituindo estas as regras fundamentais nesse domínio,semprejuízo dos demais direitos e garantias constitucionais.

Do ponto de vista infraconstitucional a legislação éescassa e fragmentária19 no esforço de interpretar o

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19 Como se pode ver detalhadamente em “Comunidades Quilombolas:Direito à Terra Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-rias”, Sociedade Brasileira de Direito Público – Centro de Pesquisas Apli-cadas, Ministério da Cu1tura, Fundação Cultural Palmares, outubro de2002, estudo coordenado por Carlos Ari Sunfeld.

comando do art. 68 adct, ora atribuindo ao Ministérioda Cultura, outras à Fundação Cultural Palmares o encar-go de reconhecer,delimitar e demarcar as terras de ocu-pação quilombola. Diferentes disposições legais ao orga-nizarem órgãos da administração pública federal confe-riram assim algumas atribuições correspondente sãoMinistério da Cultura, outras à Fundação Cultural Pal-mares e outras tantas ainda à Secretaria Especial de Polí-ticas de Promoção da Igualdade Racial – seppir (o histó-rico da disciplina é mais ou menos o seguinte: Lei n.º 7.668,de 22.8.1988 (art. 22, III e § único) que autorizou a insti-tuição da Fundação Cultural Palmares – FCP, então cria-da pelo Decreto n.º 418 de 1992, e, com a redação da MP

2.216-37 de 31.8.2001, conferiu ao Ministério da Culturaa identificação, delimitação, demarcação e titulação dasterras quilombolas e à FCP o registro dos títulos; e a Lei n.º9.649 de 1998 (art. 14, III ‘c’, com a redação dada pelaMedida Provisória n.º 2.216-37 de 2001) atribuindo aoMinistério da Cultura aprovar a delimitação e demarca-ção das terras “que serão homologadas mediante decreto”,regulamentado então pelo Decreto n.º 3.912, de 2001,encargo mantido pela Lei n.º 10.683,28.05.2003 (art. 27,VI, ‘c’) que deu ao Ministério da Cultura a atribuição dedelimitar as terras dos remanescentes de quilombos, deter-minar-lhes a demarcação e submetê-las à homologação pordecreto, esta última regulamentada pelo Decreto n.º 4.887,de 2003 – que revogou o Dec. 3.912⁄2001, e a Lei n.º 10.678,de 23.5.2003 que criou a SEPPIR).

Vale assinalar, também, que para disciplinar o assuntotramitara no Congresso Nacional projeto de lei (PL do Sena-do n.º 129, de 1995 e pl n.º 3.207 de 1997 da Câmara) des-tinado a regulamentar o mencionado art. 68 do adct, maso Senhor Presidente da República na ocasião negou-lhe a

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sanção vetando integralmente seus termos com base emrazões de inconstitucionalidade suscitadas pela Casa Civile pelo Ministério da Cultura (veto de 14.5.2002, por ale-gadas inconstitucionalidades enumeradas pela Casa Civilna Nota saj n.º 791⁄02, o qual foi mantido em 20.5.2004).

Por conta dessas dificuldades constitucionais, argüi-das pela Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil daPresidência da República (Parecer saj 1490⁄2001) comrelação ao encaminhamento dos procedimentos e condu-tas ainda antes da Lei n.º 10.683⁄2003 e ao propósito deinterpretar a legislação anterior a ela, o Senhor Presidenteda República editara o Decreto n.º 3.912, 10 de setembrode 2001, estabelecendo, então, com base nas conclusõesdo dito parecer, normas de aplicação do art. 68 do adct.

Ocorre que as disposições desse decreto aparentemen-te não observavam o melhor entendimento constitucio-nal, razão porque, já no novo governo, foi ele revisadopelo Senhor Presidente da República ao editar o Decre-to n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, após estudosde um Grupo de Trabalho constituído para esse fim, pre-valecendo daí por diante, então, a feição atual do regimeinfraconstitucional do reconhecimento da ocupação qui-lombola, isto é, o da Lei n.º 10.683 de 2003 como Decre-to n.º 4.887 de 2003, tendo o incra (em nome do mda,que ficou encarregado da delimitação e demarcação dasterras referidas, por força do Decreto n.º 4.883 de 2003),como responsável pela aplicação dos seus dispositivos noque respeita ao aspecto fundiário e a Fundação CulturalPalmares pela declaração e certificação da condição étni-ca, ficando o tema regulamentado através da InstruçãoNormativa incra n220, de 19 de setembro de 2005.

O Decreto n.º 4.887⁄2003, contudo, foi objeto de AçãoDireta de Inconstitucionalidade requerida perante o

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Supremo Tribunal Federal pelo Partido da Frente Libe-ral-pfl (Adin n.º 3239), pendente de julgamento mas jácom parecer do Procurador-Geral da República pelaimprocedência.

Desse modo, no quadro normativo atual, estão preva-lecendo além do referido art. 68 do adct e do Decreton.º 4.887 de 2003 (este sob discussão perante o stf) o art.27,.vi, ‘c’ da Lei n.º 10.683⁄2003 e o art. 2.º, iii e o seu §único da Lei n.º 7.668, e as disposições da in 20⁄2005 -editada pelo incra, como normas de conduta com rela-ção à definição das terras de quilombos.

II

Para a adequada compreensão dessa disciplina parececonveniente uma criteriosa aproximação sistemáticadessas disposições, procurando delas extrair o sentidopróprio em pesquisa sempre orientada pela teleologiaconstitucional.

Assim, quando menciona “aos remanescentes das co-munidades de quilombos” o texto do art. 68 adct querreferir-se aos indivíduos, agrupados em maior ou menornúmero, que pertençam ou pertenciam a comunidades,que portanto viveram, vivam ou pretendam ter vividoou viver na condição de integrantes delas como reposi-tório das suas tradições,cultura,língua e valores, histori-camente relacionados ou culturalmente ligados ao fenô-meno sócio-cultural quilombola. Aliás, as noções jurídi-cas de remanescente e de remanescente de comunidade,bem por isso, estão logicamente entrelaçadas ao concei-to de quilombo, isto é, ao conceito jurídico constitucio-nal de quilombo, que à sua vez depende necessariamen-

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te do conteúdo sócio-histórico-antropológico derivadodo fato histórico-social “quilombo”.

Como se mostra evidente, a noção de quilombo não édas que se alcança por simples interpretação jurídica jáque fortemente dependente de investigações, estudos epesquisas na área de antropologia, sociologia e históriasem as quais não se pode enunciar o exato sentido do pre-ceito estudado. Mesmo sem tomar partido em qualquerdas diversas correntes de interpretação antropológica ousociológica,parece indisputável que quilombo é mais doque a simples expressão de um certo território no qualem uma certa época alguns escravos ou ex-escravos, fugi-dos ou não, se reuniam para viver e resistir contra a reca-ptura ou contra a escravidão.

Ao contrário, a noção de quilombo que a Constituiçãoparece ter adotado abrange, pelo seu próprio sentido epelo princípio da máxima efetividade, certamente maisdo que isto,pois, ao reconhecer aos remanescentes dascomunidades de quilombos a propriedade das terras queocupam, refere seguramente o universo representativodo fenômeno que originariamente aconteceu por obra daresistência, mas que também se desenvolveu ao longo dotempo formando comunidades com interesses e valorescomuns, inclusa aí a necessidade de resistir e lutar con-tra’ as discriminações decorrentes da escravidão.

Por essa razão lógica, a identificação das comunidadesfica dependente da identificação dos seus integrantes, osquais – estabelece o decreto – têm condições de se auto-identificarem pelas características que lhes são própriase porque juridicamente se hes garante a capacidade de seauto-reconhecerem tal como garantido pela Convençãon.º 169 da oit (Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004)por cuja inspiração se pode ter como certo que é a cons-

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ciência de sua identidade. O critério principal paradeterminar quem sejam os integrantes remanescentesdas comunidades ou grupos aos quais se aplicam asdeterminações do art. 68 do adct ou de que dele rece-bam legitimidade para as iniciativas correspondentes20.

É certo, no entanto, que tais remanescentes, por viade conseqüência, são legítimos herdeiros da cultura afro-brasileira, cujo conteúdo a mesma Constituição refere eprotege no § 1.º do art. 215 e no caput do art. 216, e emvirtude da qual a identificação dessas características - aíregistradas na disciplina da ordem social (Capítulo iiiSeção 2 da Constituição) – pode não só propiciar a reve-lação da existência dessas comunidades e seus integran-tes mas também a necessária expressão territorial corres-pondente, que cabe ao poder público promover e prote-ger por todos os meios inclusive a desapropriação porinteresse social.

Nessa linha, é insuficiente a mera dedução geográficae territorial da ocupação quilombola que reduz a inten-ção constitucional a simples espaço local dado hoje (oupior, em 5 de outubro de 1988, ou ainda em 13 de maiode 1888 como se referiu no Decreto n.º 3.912) quando a

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20 Dessa forma, a velha e multireferida definição de quilombo assentadana resposta da consulta ao Conselho Ultramarino em 1740 (“ toda a habi-tação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada , aindaque não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”) queinfluenciou dai por diante as diferentes maneiras de tratar do assunto,tendo ficado no dizer do autor frigorificado, deve ser rejeitada - emboraainda comum – porque não tem mais significado já que ‘quilombo’ nosentido constitucional moderno desprendeu-se do conteúdo penal paraconsolidar-se como conceito sóciocultural. (v. Quilombos e as novas etnias,Alfredo Wagner Berno de Almeida, in Quilombos identidade étnica e ter-ritorialidade, p. 47, Org, Eliane Cantanno O’Dwyer, aba fgv, 2002).

“nacionalidade” quilombola e os diversos fatores ounecessidades de sua reprodução e sua manutenção socio-cultural ultrapassam naturalmente até mesmo os limitesde um dado espaço de território. Não parece, pois, queo preceito constitucional mencionado tenha ignoradooutras tantas dimensões da vida e cultura dos remanes-centes das comunidades de quilombos igualmente mere-cedoras da proteção do poder público. Lembra o mesmoestudioso, aliás, que houve escravos que não fugiramnem se organizaram em resistência, ou outros que tenta-ram mas não lograram fugir, não se podendo deixar dereconhecer que também estes são verdadeiros remanes-centes das comunidades de quilombos enquanto a elasontologicamente ligados. Uma leitura menos atenta doart. 68 poderia, por exemplo, assim excluir dos remanes-centes de comunidades de quilombos (ex)escravos quenão foram fugidos ou não se exilaram nas matas em resis-tência ao capitão do mato e aos fazendeiros escravistas,incorrendo em discriminação inaceitável que certamen-te não tem o apoio constitucional.

Por tudo isto, a noção de quilombo que o texto referetem de ser compreendida com certa largueza metodoló-gica para abranger não só a ocupação efetiva senão tam-bém o universo das características culturais, ideológicas eaxiológicas dessas comunidades em que os remanescentesdos quilombos (no sentido lato) se reproduziram e se apre-sentam modernamente como titulares das prerrogativasque a Constituição lhes garante. É impróprio, assinala oautor citado, lidar nesse processo como ‘sobrevivência’ou ‘remanescente como sobra ou resíduo’ quando pelocontrário o que o texto sugere é justamente o oposto21.

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21 Id. ibid. p. 77.

III

Aos remanescentes das comunidades de quilombos,identificados do modo como vimos de compreender e“que estejam ocupando suas terras é reconhecida a proprie-dade definitiva”, estabelece a lei constitucional transitó-ria. Quer-se com isso dizer que a esses remanescentes queocupem suas terras serão elas tituladas em definitivo.Essa afirmação encerra diferentes questões que merecemcuidadoso exame tendo como pressuposto, como con-vém reafirmar, que quilombo é expressão que concerneao universo representativo da cultura e identidade dosafro-brasileiros. A ocupação de que aí se cogita, por con-seguinte, é a ocupação das terras em que de fato se alo-jam e vivem as respectivas comunidades, mas também osespaços para tanto necessários nos limites das caracterís-ticas e valores por elas cultivados.

As terras ocupadas, nessa medida, são as que eles efe-tivamente possuem e mais as que sejam suficientes enecessárias para a manifestação de suas peculiaridadesculturais aí incluídas as que sejam necessárias para onatural desenvolvimento e reprodução de sua cultura evalores. A expressão “as terras que estejam ocupando”significa logicamente mais do que a simples dimensãogeográfica, atual ou histórica, das comunidades de rema-nescentes de quilombos,posto que – a exemplo das ter-ras indígenas (art. 231, § 1.º Constituição), cuja proteçãoconstitucional obedece, tal como aqui, a idêntico princí-pio de proteção dos formadores da nacionalidade brasi-leira – constituem tais terras territórios de habitação per-manente, utilizadas para as suas atividades produtivas eimprescindíveis para a preservação dos recursos ambien-tais necessários ao seu bem-estar e as necessárias’ à sua

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reprodução (presente e futura) física e cultural segundoseus usos, costumes e tradições.

A circunstância temporal/espacial indicada pela ex-pressão “que estejam ocupando” refere-se à atualidade daposse (mesmo a posse em outubro de 1988 numa perspec-tiva dinâmica), mas parece fora de dúvida que se o pre-ceito constitucional de fato levou em conta a atualidade(então, ou depois de 1988) por certo não esqueceu adimensão da ocupação como fato sociológico e histórico(do mesmo modo que com relação à ocupação tradicional dosindígenas que a doutrina e até a jurisprudência nacional jáadmitem resultar de uma trajetória étnica e não apenas umcorte cronológico em um certo momento e inteiramente des-ligado das culturas e histórias respectivas),para por istomesmo constituir-se em conceito complexo. Aliás, assimcomo para a sua identidade, a comunidade e seus inte-grantes são legalmente os únicos capazes de identifica-rem as terras que estejam ocupando porque tal definiçãoobedece ao mesmo rigor metodológico e porque a iden-tidade está relacionada com a sua territorialidade.

A identificação da ocupação, já se viu, fica tambémligada à identificação dos remanescentes das comunida-des e da identificação dos quilombos devendo ambas ascategorias constitucionais ser delimitadas e (re)construí-das de acordo com as respectivas características. Emoutros termos, a ocupação efetiva das terras é assim o re-sultado da definição dos remanescentes das comunidadese da identificação dos quilombos como acima referido,de modo que hoje tenham assegurados todos os direitosde manterem-se e projetados os de reproduzirem-sedeacordo com as suas necessidades culturais e sociais. Pare-ce então oportuno assinalar alguns aspectos cuja aprecia-ção se impõe relacionados com a definição da ocupação

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que o dispositivo constitucional estudado refere, naperspectiva que oriente a discussão.

Com efeito, a noção de ocupação de que se serve aConstituição,porque tem relação lógica e necessária comas de autoreconhecimento e de manifestação cultural,que ademais constituem’ seus elementos integrantes,constrói-se pela compreensão do seu núcleo essencial eda proporção, segundo quais critérios será possível com-patibilizar a garantia constitucional do art. 68 do adcte a de outros valores constitucionais conviventes.

Se o estabelecimento do direito à propriedade das ter-ras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dequilombos precisa articular-se com outros valores denível constitucional equivalente, em virtude disso have-rá certamente limitações a esse reconhecimento jurídicoainda quando ao território não se possa deixar de reco-nhecer ocupação de fato na extensão acima sugerida.

O reconhecimento garantido aos remanescentes dascomunidades de quilombos pode então em algum mo-mento não ser incondicionalmente absoluto, já que even-tualmente poderá ter de ceder ante necessidades nacio-nais e inequivocamente mais valiosas enquanto ligadasà segurança do Estado, da sociedade, ou limitador de va-lores fundantes do Estado de Direito, da República e daFederação, desde que cumpridamente demonstradaspela autoridade competente.

Nesse sentido, a sobreposição ou coincidência de pro-jetos ou programas de interesse ou necessidade públicosou de acentuada importância nacional cuja aplicação ter-ritorial venha de algum modo a limitar ou excluir a ocu-pação dos remanescentes de comunidades de quilombosserá objeto de composição em que se proteja sempre onúcleo essencial da ocupação quilombola na proporção

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das necessidades públicas. A técnica constitucional daproporcionalidade é neste caso a medida natural no reco-nhecimento dos valores coincidentes ou convergentes.

Nesse pressuposto,cabe reassentar o conteúdo da noçãode ocupação. Como assinalado, a ocupação referida peloart. 68 do adct constitui naturalmente conceito maisabrangente que a mera expressão geográfica espacial dosterrenos fisicamente ocupados, pois precisa envolver odireito ao pleno exercício dos direitos culturais e a difusãodas manifestações culturais (art. 215 cf) das respectivascomunidades como parte “dos grupos participantes doprocesso civilizatório nacional. E ao Estado, de resto, cabeproteger as manifestações culturais afro-brasileiras (§ 1.º)exercidas pelas mesmas comunidades na condição de“grupos formadores da sociedade brasileira”, sendo que oseu patrimônio cultural protegido inclui “os bens de na-tureza material e imaterial, tomados individualmente ouem conjunto, portadores de referência à identidade, à ação.à memória” dos remanescentes dessas comunidades.

Por fim, o autoreconhecimento dessa condição étnica,admitido pelo Decreto n.º 4.887 de 2003 como índice dedefinição dos remanescentes de comunidades de quilom-bos, por suá vez pode revelar também, agora por outravertente, extensão e limites dos espaços de terras ocupa-das protegidas pelo art. 68 do adct. Com efeito, emboranão constitua critério único ou principal na apuração dadita ocupação visto que é essencial a figuração das mani-festações culturais e o seu exercício efetivo, a consciênciade sua etnicidade e a aceitação pelos seus dessa condiçãoobjetiva fornece elementos preciosos para a determina-ção dos espaços necessários e para a viabilização jurídi-ca do reconhecimento da propriedade dos remanescen-tes de comunidades de quilombos.

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Ou em outras palavras, o que a disposição constitu-cional está a contemplar é uma territorialidade específi-ca22 cujo propósito não é limitar-se à definição de umdado espaço material de ocupação, mas de garantir con-dições de preservação e proteção da identidade e carac-terísticas dos remanescentes dessas comunidades assimcompreendidas que devem ser levadas em linha de con-ta na apuração do espaço de reconhecimento da proprie-dade definitiva.

IV

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos,como visto, “é reconhecida a propriedade definitiva” des-sas terras que estejam ocupando como indicado. Tal reco-nhecimento constitucional, que juridicamente tem o sig-nificado de atribuir direito e ação ao titular contra todos,implica recusar incondicional mente a propriedade aquem não seja remanescente de comunidade de quilom-bos mesmo que esteja ocupando as terras em questão eafirmar incondicionalmente a propriedade anterior des-ses remanescentes quilombolas (sempre observada aextensão do conceito conforme acima estudado).

Desde que, evidenciado serem os ocupantes ou pre-tendentes à ocupação remanescentes de comunidades dequilombos nas condições do texto constitucional, a pro-priedade das terras assim necessárias deverá ser obriga-toriamente reconhecida, pouco importando a que títuloas estejam ocupando, posto que basta para o reconheci-mento constitucional a ocupação e a condição de rema-

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22 Id. ibid. p. 72.

nescentes das comunidades com elas minimamente rela-cionadas. Aliás, o reconhecimento constitucional expres-sa declaração da propriedade anterior cujo título é cons-tituído pela ocupação e pela condição de remanescente decomunidade de quilombo.

O que a regra constitucional traduz, uma vez verifi-cados os seus pressupostos,é preceito erga omnes, garan-tindo a estes conjuntos de sujeitos de direito a proprie-dade incondicional com todos os seus atributos e ações(daí porque também parece lógica a atribuição de legitimi-dade para agir em juízo às comunidades de remanescentesde quilombos) e que obriga a todos, inclusive ao Estado.Embora o texto mencione o reconhecimento da proprie-dade definitiva como um momento posterior, não sesegue que estivesse esse direito antes submetido a algu-ma condição. Pelo contrário, a determinação em causaassenta que a propriedade que antes já se admitia plenae incondicionalmente agora, após a identificação formal,passa a se atribuir publicamente e sem qualquer outraformalidade, e de modo coletivo porque referente aos re-manescentes, isto é, ao conjunto dos remanescentes decada uma das comunidades em questão. Ou seja, a pro-priedade só pode ser reconhecida coletivamente ao gru-po dos remanescentes, pois só nessa condição é que cons-tituem remanescentes uma vez que isoladamente deixamde sê-lo no sentido constitucional.

V

O reconhecimento da propriedade definitiva é direitodos remanescentes das comunidades de quilombos iden-tificados na forma indicada e que estejam ocupando suas

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terras no modo referido, “devendo o Estado emitir-lhes ostítulos respectivos” o que significa dizer que o Estado estáobrigado a emitir o título decorrente do reconhecimen-to da ocupação das terras. O Estado tem, por conseguin-te, o dever jurídico de titular os remanescentes dascomunidades de quilombos assim como o de reconhecer-lhes e proteger-lhes a ocupação tanto que evidenciadosos pressupostos constitucionais. Essa expressão constitu-cional tem extraordinária importância uma vez que não secogita aí de qualquer outra providência senão a de emitiro título de propriedade definitiva, pouco importando seexistem sobrepostos outros títulos públicos ou particu-lares ou afetação administrativa de qualquer ordem.Tudo deve ceder ao reconhecimento da ocupação e con-seqüentemente ao da propriedade definitiva dos rema-nescentes das comunidades de quilombos, o que suscitavárias dificuldades já que mais de um valor constitucionalde idêntico relevo pode ser invocado em oposição. Como,por exemplo, as ocupações de quilombolas que podemsituar-se em imóveis de propriedade particular mais an-tiga, ou sobre áreas de domínio dos estados federados oude municípios (devolutas ou patrimoniais), ou sobreáreas de preservação ambiental de maior ou menor res-trição, e até mesmo sobre áreas indígenas, tudo a reco-mendar extremo cuidado na solução.

Parece que, em tais casos, a orientação a adotar-se deveprocurar a justa proporção das determinações constitu-cionais, resguardando os diferentes valores e critériosconstitucionais nos limites da adequação de uns e outros,sempre preservado o núcleo essencial respectivo. Aliás, apreservação das comunidades dos remanescentes de co-munidades de quilombos é forma de preservação am-biental cultural e se acomoda com a política constitucio-

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nal de preservação ambiental do mesmo modo que outrastantas comunidades,de ribeirinhos, de catadores, dequebradeiras de babaçu, de apanhadores de castanha eseringa, ou de tantas outras comunidades tradicionaisextrativistas ao longo do país cuja preservação por issomesmo não conflita com os propósitos de preservaçãoecológica ou do meio ambiente natural, tanto que asobreposição dessas áreas de reconhecimento de ocupa-ção tradicional – aí incluída a ocupação dos quilombolas– com áreas de preservação ambiental e outros projetosou obras públicas, mais recentemente tem sido objeto deestudo e compatibilização em respeito à proteção quelhes dedica a Constituição.

Em princípio, pois, a dupla afetação não é causa de im-pedimento para a titulação dos remanescentes de comu-nidades de quilombos, bastando atender-lhes proporcio-nalmente as exigências constitucionais, cabendo ao Esta-do emitir os títulos correspondentes nos limites da afe-tação constitucional. Estado, nesse campo, é categoriaindicativa do poder público, pois que pode ser da Uniãocomo dos estados federados a responsabilidade pela.titulação, respeitadas, entretanto, as respectivas compe-tências constitucionais a dizer que é à União que cabeemitir os títulos quando a tiver sobre as terras ocupadase outro tanto cabendo aos estados quando no exercícioda sua respectiva competência administrativa.

A responsabilidade pela titulação, nessa linha, depen-derá diretamente da respectiva competência administra-tiva sobre as terras ocupadas quando públicas federaisou estaduais, e, quando se tratar de terras registradascomo de propriedade particular, porque se cabe à Uniãoe aos estados a desapropriação por interesse social cabe-lhes respectivamente a iniciativa de promover a anula-

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ção dos registros e a indenização das benfeitorias. Embo-ra não refira o texto constitucional nenhuma disposiçãoquanto à invalidade dos títulos particulares incidentessobre áreas de ocupação por remanescentes das comuni-dades de quilombos (como, ao contrário, explicitamenteprevisto no § 6.º do art. 231 com relação à ocupação indí-gena), convém ter presente que a determinação consti-tucional do art. 68 do adct é produto do mesmo propó-sito e tem o mesmo objetivo podendo, no que couber e porsimetria, ser invocada a mesma equação até porque delaresulta sistematicamente a mesma conclusão. Quer dizer,os títulos particulares, uma vez apurada área de ocupa-ção de remanescentes de comunidade de quilombos, sãologicamente prejudicados e devem ceder ao reconheci-mento da propriedade destes como decorrência da su-premacia constitucional. que submete a propriedade pri-vada aos interesses nacionais e constitucionais e bem porisso sujeitam-se à “desapropriação”cujo sentido aqui é,em razão dessa circunstância, diverso do sentido tradi-cional comum porque não busca declarar a aquisição dapropriedade, mas a publicização daquela preexistentepela definição constitucional de 5 de outubro de 1988.

Importa, contudo, assinalar a esse propósito que oDecreto n.º 4.887, de 2003, estabeleceu no seu art. 13 eparágrafos a hipótese de desapropriação das terras ocu-padas por remanescentes de comunidades de quilombosquando sobre elas incidentes títulos de domínio particu-lar não invalidado, não prescrito ou não caduco ou ine-ficaz. Essa ordem de idéias sugere a ilação de que embo-ra o art. 68 do adct reconheça de pronto a propriedadeparticular dos remanescentes daquelas comunidades –isto é, desconsidere qualquer outro domínio ou títulopúblico ou particular, pelos menos a partir de 5.10.1988

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– a propriedade anterior eventualmente legítima não podeser desconhecida cabendo assim, com efeito, a justa de-sapropriação e indenização ao então legítimo proprietário.

É que a despeito da regra constitucional não poder serdesatendida quando reconhece a propriedade quilombo-la a partir de então, nem por isto os títulos anteriores,editados legitimamente ou em consonância com a legis-lação da época, ficam desprotegidos. Perde sim o pro-prietário particular a propriedade por força do art. 68 doadct, mas não o direito à indenização pela perda da pro-priedade legítima.

Assim, da compreensão e conformação deste art. 13 doDecreto n.º 4.887⁄2003 ao sistema jurídico constitucionalda propriedade privada resulta logicamente que o reco-nhecimento da ocupação quilombola (observadas a ex-tensão acima investigada e as eventuais limitações do seuregime constitucional) implica, nesses casos, na necessá-ria expropriação da propriedade privada.

É verdade que esta constatação deixa entrever umapossível questão, a saber: se o art. 68 do adct reconhe-ce a propriedade em rigor não opera desapropriação massimples transferência da propriedade do particular paraos remanescentes de comunidades de quilombos,caben-do ao mencionado processo de desapropriação apenas adiscussão dos valores indenizatórios. Nesse sentido,parece, é que se deve compreendera regra constitucionalcitada e a disciplina do art. 13 do Decreto n.º 4.887⁄2003e a in/incra n.º 20⁄2005 que regulamentam o processoadministrativo de reconhecimento da posse e proprieda-de quilombola.

Em outros termos, ao conferir o título de propriedadeaos quilombolas a Constituição apagou o domínio parti-cular outrora legítimo, e, na prática, a desapropriação de

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que cuida o art. 13 do dito decreto declara a proprieda-de quilombola, opera a definição das indenizações cor-respondentes à terra e às benfeitorias, e faz cancelar-seos registros anteriores junto ao oficio respectivo pelatranscrição do título de reconhecimento da propriedadedos remanescentes de comunidades de quilombos.

De outro lado, os títulos emitidos a esse propósito,além de editados em nome coletivo porque necessaria-mente em nome do grupo de “remanescentes”, são indi-visíveis pela origem e inalienáveis pela destinação cons-titucional como se revela evidente, de tal modo que nãose pode tresdestinar, redestinar ou devolver a terceiro asterras assim tituladas sob pena de nulidade plena e in-constitucionalidade material. A eventual extinção da co-munidade dos remanescentes ou o desaparecimento dosremanescentes, tanto como a falta de ocupação, assimreconhecidos pela mesma autoridade e método que reco-nheceu a propriedade definitiva dos quilombolas, aocontrário, importará na devolução das terras ao Estado,seja à União ou aos estados federados, ficando daí pordiante formalmente desafetadas revertendo ao domíniorespectivo23. Pela mesma razão, as terras tituladas aosremanescentes das comunidades de quilombos tambémnão podem ser desapropriadas por qualquer motivo(mesmo pela União, aos titulados pelos estados)nem afe-tadas a outra finalidade que já não tenham no momentodo reconhecimento formal.

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23 A perda da ocupação quilombola ou o desaparecimento dos remanes-centes de quilombos antes da Constituição de 1988, no entanto (ao con-trário do que se discute em relação às terras indígenas – que são de domí-nio da União – na adin n.º 255, em andamento no stf), importa na devo-lução das terras a entidade a quem tocaria o domínio respectivo antes damesma Constituição.

O desdobramento das proposições constitucionais doart. 68 do adct sugere ainda outras questões de difícilsolução. O crescimento vegetativo da população rema-nescente das comunidades de quilombos, por exemplo,pode exigir legitimamente a expansão da área de ocupa-ção titulada, assim como os legítimos remanescentes quenão tenham ocupação por terem sido desapossados dasterras, tal qual aqueles que as deixaram voluntariamen-te mas que a elas querem retomar, e outros podem pre-tender aumentar as terras coletivas e não parece contes-tável ou infundada essa pretensão uma vez que derivaela da mesma razão constitucional que presidiu o reco-nhecimento da ocupação e propriedade destinadas à pro-teção das comunidades, porque visando também a suareprodução natural. Ao Estado caberá, nesses casos, atra-vés da desapropriação por interesse social com funda-mento no art. 216, § 1.º da Constituição,pelo mesmo cri-tério e modo, prover criando os acréscimos de espaçosterritoriais necessários em ordem a promover o integralreconhecimento mencionado na Constituição,na medidaem que esse reconhecer abrange o universo protegido daocupação ele mesmo contendo em si a necessidade da suareprodução e crescimento.

VI

À vista desse quadro normativo constitucional e tendosempre presentes as referências daí extraídas, cumpre aoaplicador ou administrador, sob essa luz, reler a legisla-ção infraconstitucional e regulamentar. As diferentesnormas legais que abordam o assunto, porém, não sededicam propriamente à disciplina administrativa do

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reconhecimento da ocupação e da propriedade definiti-vade que cuida o art. 68 do adct, circunstância já referi-da acima, pois foram instrumentos infralegais, primeiro oDecreto n.º 3.912, de 2001, e depois o Decreto n º 4.887,de 2003 (que revogou aquele), que se dedicaram a deta-lhar “os procedimentos administrativos para a identifica-ção, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e atitulação da propriedade definitiva das terras ocupadaspor remanescentes das comunidades dos quilombos...”como está expresso no art. 1.º do Decreto n.º 4.887, atual-mente vigente. Cumpre assim analisar as situações neleprevistas.

1

O exame das questões suscitadas com respeito a essetema deve dar-se a partir do texto do decreto em referên-cia cuja relação com o ali. 27, vi, ‘c’ da Lei n.º 10.683, de28.5.2003 e art. 2.º, iii e § único da Lei n.º 7.668, e 1988é manifesta. A referência, que implica na relação lógicade regulamentação,aliás, está subjacente visto que já alise deteminava ao Ministério da Cultura e à FundaçãoCultural Palmares, respectivamente,adotar as medidaspara tanto (e assim o dispusera no primeiro momento oDecreto n.º 3.912 de 2001) embora na fundamentação doDecreto n.º 4.887 haja sido mencionado apenas o art. 84,iv e vi alínea ‘a’ da Constituição.

É curioso observar que a Lei n.º 10.683, de 28.5.2003,estabelecera a necessidade de homologação – isto é, dadelimitação e demarcação da ocupação reconhecida –por decreto a ser editado pelo Presidente da República,mas essas incumbências foram, por obra do Decreto n.º

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4.883 de 20.11.2003 com expresso fundamento no art.84, vi, ‘a’ da Constituição, transferidas ao Ministério doDesenvolvimento Agrário – mda a quem se encarregoutambém de emitir o título das terras assim identificadas,com o que ficou claramente absorvida a homologaçãopresidencial pela titulação ordenada pelo próprio decre-to presidencial que normatizou o procedimento vistoque, pela menção ao art. 84, vi, ‘a’ da Constituição noseu considerando, indica que o próprio Presidente, pordecreto, já delegou ao Ministério do DesenvolvimentoAgrário a prática dos atos que se substanciariam nahomologação presidencial. Daí porque não há usurpaçãode poder nem violação da legalidade.

2

A primeira determinação do Decreto n.º 4.887 foi definir(art. 22) os remanescentes das comunidades de quilom-bos como “... grupos étnico-raciais, segundo critérios. deauto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotadosde relações territoriais especificas, com presunção de an-cestralidade negra relacionada com a resistência à opres-são histórica sofrida”, sendo caracterizados medianteautodefinição da própria comunidade (§ 1.º) e como terrasocupadas “as utilizadas para a garantia de sua reprodu-ção fisica, social, econômica e cultural” (§ 22). Estas defi-nições oferecidas com bons propósitos poderiam repre-sentar restrição à amplitude constitucional, à vista dasconsiderações acima enumeradas,embora por certo essapossível redução, conquanto extraída do decreto, nãolhe pode ser obstáculo. Retoma-se aqui, por isto, as con-siderações acima desenvolvidas a respeito da apuração

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da ocupação (isto é, das terras que estejam ocupando) umavez que a definição dessa ocupação vai logicamente alémda mera identificação daquelas utilizadas atualmente paraalargar-se até os limites constitucionais da preservaçãodas garantias de sua reprodução física; social e cultural.

Em outros termos, é possível, por exemplo, que gru-pos étnico-raciais autoatribuídos, e com trajetória histó-rica ou sem ela e mesmo sem presunção de ‘ancestralida-de negra’ ou de ‘resistência à opressão sofrida’, constituamremanescentes de comunidades de quilombos, pois, ain-da que à expressão quilombo se possa atribuir esse con-teúdo limitativo derivado da compreensão histórica tra-dicional, há espaço constitucional e legal para constru-ção jurídica mais abrangente sem perder a referência aquilombos. Essa, aliás, parece ter sido a inspiração segui-da como se pode facilmente verificar da Exposição deMotivos n.º 58 (fIs. 17⁄20, consoante divulgada à página56 do Diário Oficial da União de 21 de novembro de2003), através da qual foi encaminhado o projeto queresultou no Decreto n.º 4.887 cuja compreensão deve-lhes obediência.

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O art. 3º do decreto atribuiu competência ao Ministériodo Desenvolvimento Agrário – mda, através do incra,para a identificação, reconhecimento, delimitação, de-marcação e titulação das terras ocupadas pelos remanes-centes de comunidades de quilombos sem prejuízo dacompetência concorrente dos Estados, do Distrito Fede-ral e dos Municípios. Por essa regra a autarquia deveregular procedimentos e pode estabelecer convênios,

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contratos, acordos com quaisquer órgãos públicos ouentidades privadas. O art. 4.º seguinte conferiu à seppircompetência para assistir e acompanhar o mda e o incra“nas ações de regularização fundiária, para garantir osdireitos étnicos e territórios remanescentes das comunida-des de quilombos...” e o art. 52 atribuiu ao Ministério daCultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, com-petência para assistir e acompanhar o mda e o incra“nas ações de regularização fundiária, para garantir a pre-servação da identidade cultural dos remanescentes dascomunidades de qui/ambos, bem como subsidiar os traba-lhos técnicos quando houver impugnação ao procedimentode identificação e reconhecimento...”.

Revela-se aqui, em toda a intensidade, a transferênciade competências administrativas operada pelo decretoao atribuir ao mda/incra praticamente todas as medi-das administrativas e normativas para a identificação ereconhecimento das ocupações de terras pelos remanes-centes das comunidades de quilombos, o que pode even-tualmente mostrar-se excessivo visto que cabe institu-cionalmente à Fundação Cultural Palmares muitas dascompetências ali encarregadas ao incra as quais sãopressuposto lógico para a identificação e reconhecimen-to das ocupações indicadas. Deve, assim, a interpretaçãodesses dispositivos desenvolver-se com cuidado e com-preensão para que não se aniquilem competências defe-ridas em lei, resguardando-se portanto as atribuiçõespróprias dos diversos órgãos legitimamente vocaciona-dos para a administração da igualdade racial, que certa-mente não cabem ao incra. Nesta medida, a assistênciae acompanhamento mencionados devem exercitar-se ple-namente pelos órgãos referidos junto aos agentes doincra para que não se desvirtuam os propósitos legais

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de igualdade racial, pois a assistência para “garantir osdireitos étnicos e territoriais” como para “garantir a pre-servação da identidade cultural” constituem na verdadeos reais pressupostos do reconhecimento da ocupação epara isso a atuação dessas instituições mostra-se funda-mental. Tal preocupação deve ser sempre reiterada paraque regras como a in 20⁄2005 do incra, que normatizao processo administrativo de reconhecimento,ao atribuirao Comitê de Decisão Regional (órgão do incra, especia-lizado em reforma agrária) a tarefa de julgar as contesta-ções oferecidas (arts 13 a 15), não venham a frustrar valo-res garantidos constitucionalmente se existir, por exem-plo, questionamento étnico. Daí, a necessidade de exatacompreensão das atribuições institucionais respectivasvisando a adequada aplicação dos preceitos.

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Assegurada a participação das respectivas comunidades(art. 6º ao concluir os trabalhos de identificação, delimi-tação e levantamento ocupacional (conforme termossupra referidos) e cartorial, o incra fará publicar editaiscom a indicação do imóvel, sua localização e identifica-ção com limites e confrontações,bem assim a eventualincidência sobre ele de títulos, registros ou matrículas,notificando ainda os confinantes e ocupantes (art. 7.º e§§). Concomitantemente encaminhará o relatório dessasconclusões para opinião dos seguintes órgãos: iphan,ibama, spu/mpog, incra, Secretaria Executiva do Con-selho de Defesa Nacional e Fundação Cultural Palmares,com prazo comum de 30 dias (art. 8.º).

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A apuração preliminar oferecida pelo incra deve serapresentada aos diferentes órgãos públicos com atribui-ções potencialmente incidentes sobre a área preliminar-mente reconhecida sempre que verificada a relação comas atribuições respectivas. Assim, a coincidência ou su-perposição com áreas do patrimônio histórico, com áreasde preservação ambiental de qualquer tipo ou porte, oudo patrimônio da União, ou com ocupação indígena,deve ser considerada previamente embora o direito dosremanescentes de comunidades de quilombos mantenha-se em princípio íntegro. É que todas estas instituições têmpor missão defender interesses nacionais de fundo igual-mente constitucional, cuja proteção e preservação nãopodem ser abandonados, cumprindo a todos eles a admi-nistração concertada mediante adequação proporcionaldos interesses em jogo.

Nada obstante, parece ainda assim evidente que aremessa do relatório técnico pelo incra a tais institui-ções precisa ser entendida na devida conta, isto é, noslimites da competência de cada uma destas organizações,mostrando-se sobremodo inconveniente e desnecessá-rio, por exemplo, encaminhar-se à funai, ou ao iphan,ou ao ibama cópia (muitas vezes volumosa) dos relató-rios técnicos quando manifestamente não se cuide desobreposição ambiental ou indígena, ou quando obvia-mente não tenham nenhuma relação com o patrimôniohistórico. Do mesmo modo, revela-se excessiva a con-sulta à Secretaria-Executiva do Conselho de DefesaNacional se as ocupações em processo de reconheci-mento evidentemente não se relacionarem com a sobera-nia nacional ou a defesa do Estado democrático,nem sesituarem em áreas indispensáveis à segurança nacional(v.g. faixa de fronteiras) ou de preservação e explora-

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ção de recursos naturais de qualquer tipo (art. 91, § 1.º,iii da Constituição).

A disposição do art. 8.º do decreto, por tal razão,merece leitura compreensiva evitando-se desnecessida-des burocráticas que correm sempre em prejuízo dosinteresses dos remanescentes das ditas comunidades,podendo o encarregado do processo administrativo, emmanifestação devidamente fundamentada, dispensar asconsultas inúteis. De qualquer sorte, a intervenção dosdiferentes órgãos tem natureza opinativa, não vinculan-te, e serve tão só ao esclarecimento da autoridade admi-nistrativa encarregada de deliberar ou julgar o caso ourecurso, razão adicional para que a esta mesma autorida-de caiba deliberar também sobre a necessidade daaudiência referida no art. 82 do decreto.

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Uma vez resolvidas as dúvidas, impugnações e pendên-cias diz o decreto “o INCRA concluirá o trabalho de titula-ção da terra ocupada.” (art. 9.º). Se incidir a ocupaçãosobre terreno de marinha farse-á em conjunto com o SPU(art. 10); havendo sobreposição com áreas de preserva-ção ambienta1, ou situando-se na faixa de fronteira ouem terras indígenas, os respectivos órgãos e a fcp“toma-rão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilida-de destas comunidades, conciliando o interesse do Estado”(art. 11). Incidindo sobre terras estaduais, distritais oumunicipais, caberá aos titulares destas instituições a titu-lação cujo processo o incra encaminhará (art. 12). Porfim, incidindo a ocupação sobre terra registrada comopropriedade particular cuja invalidade não tenha sido

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apurada, a autarquia fundiária procederá à vistoriavisando à desapropriação (art. 13 e §§), garantido o reas-sentamento dos ocupantes não remanescentes de qui-lombos (art. 14). Cabe mencionar ainda que o incra“durante o processo de titulação, garantirá a defesa dosinteresses dos remanescentes das comunidades de quilom-bos nas questões surgidas em decorrência da titulação dassuas terras” (art. 15). A propriedade definitiva “seráreconhecida e registrada mediante a outorga de título cole-tivo e pró-indiviso às comunidades referidas no art. 2.º,caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabi-lidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade” (art. 17).A expedição do título e do registro cadastral serão pro-cedidos pelo incra (art. 22 e parágrafo único).

Neste tópico o texto cuida de disciplinar as providên-cias procedimentais formais de reconhecimento e titula-ção das ocupações dos remanescentes de comunidades dequilombos. E, com este intuito, as disposições fundantesdo decreto, como já referido, devem ser sempre recorda-das e compreendidas à luz da interpretação constitucio-nal do art. 68 do adct, ou seja, têm de ser consideradascomo pressupostos necessários para o objeto do estudo:a) a propriedade coletiva incondicional e preexistenterevelada pela ocupação suficiente e necessária com vistasà adequada manutenção e reprodução dos remanescentesdas comunidades de quilombos a ser apurada em estritaatenção ao preceito constitucional com base na auto-afir-mação dos interessados, e b) o dever indeclinável do Esta-do de prover esse reconhecimento por título definitivo.

A partir daí, a questão é compatibilizar a proprieda-de quilombola preexistente e as situações jurídicas even-tualmente com ela conflitantes para o que o decreto, mes-mo propondo soluções por vezes incompatíveis entre si,

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ofereceu respostas que precisam ser compreendidas con-certadamente conforme à Constituição.

Veja-se.Se a ocupação estiver sobre terreno de marinha quando

se tratar de rios ou lagos federais, ou marinhas litorâneas(cujo domínio é da União) – ou dos estados quando mar-gearem rios ou lagos de seu domínio – o reconhecimentodeverá levar em conta o regime constitucional respectivodas terras de marinha e sua vocação, de modo a convive-rem proporcionadamente os interesses de cada um semprejuízo fatal de qualquer deles, isto é, preservando asterras de marinha naquilo que é da sua essência consti-tucional histórica (art. 20, vii cf) com resguardo da ocu-pação dos remanescentes de quilombos e da administra-ção pública (spu) até o limite do interesse público nacio-nal mais relevante e que possa fazer ceder os interessesdos remanescentes das comunidades citadas.

Assim também quando tais ocupações estiverem so-brepostas a áreas de interesse da segurança nacional ousituadas sobre terras devolutas ou de domínio públicona faixa de fronteiras, circunstância em que os direitos einteresses das comunidades devem ser preservados jun-tamente com os do interesse público da segurança nacio-nal, uma vez definido este de modo concreto, evidente eobjetivo, mediante demonstração fundamentada e comrespeito aos títulos constitucionais de ambas as disposi-ções axiológicamente equivalentes.

De outra parte, quando a ocupação de remanescentesde comunidades de quilombos estiver localizada sobreárea de preservação ambiental cuja proteção também temnotório fundamento constitucional, caberá à administra-ção traçar regras de uso e fruição compartilhados, obser-vadas todas as restrições do regime jurídico ambiental res-

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pectivo de tal maneira que o reconhecimento da proprie-dade quilombola não aniquile a proteção ambiental nema proteção ambiental inviabilize a propriedade dos referi-dos remanescentes,podendo ser estes reeducados e reca-pacitados para o uso sustentável das terras em questão.

O mesmo se dá na sobreposição de terras de ocupaçãoquilombola com terras de ocupação indígena. Sendo ambascomunidades a quem a Constituição defere a posse in-condicional das terras e não sendo possível a posse si-multânea delas, as instituições respectivamente encarre-gadas deverão encontrar segura delimitação entre elaspreservando as garantias constitucionais da ocupaçãoindígena conforme definida no art. 231 da Constituiçãoao mesmo tempo em que respeitada a ocupação dos rema-nescentes quilombolas, até porque não sendo em princí-pio fisicamente coincidentes é possível separar-lhes oslimites se já não forem historicamente conhecidos, ca-bendo aos profissionais da antropologia e da sociologiaa apuração técnica.

As terras de ocupação por remanescentes de comuni-dades de quilombos que se encontrarem em área dedomínio estadual serão tituladas pelos estados, devendo-se destacá-las do conjunto de suas terras devolutas ou deseu patrimônio dominical, pelo reconhecimento da ocu-pação. Uma questão possível é a discordância do estadoquanto à ocupação quilombola, se é certo que o compe-tente para a definição e identificação de suas terraspúblicas é o próprio estado federado e, de regra, é o esta-do federado que reconhece e titula suas terras segundoa sua lei estadual. Embora a solução do Decreto n.º 4.887possa sugerir uma contradição lógica dita regra, noentanto, tem de ser entendida apropriadamente. Isto é,a titulação será realizada pelo estado quando as terras

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ocupadas pelos quilombolas estiverem situadas no inte-rior de terras de domínio estadual porque é este, afinal,quem define os limites da suas terras em face da ocupa-ção dos remanescentes de comunidades de quilombos econcede-as visto que o domínio ou propriedade estadualanterior desaparecem pelo reconhecimento da ocupaçãoquilombola.

Por derradeiro, estando as ocupações referidas sobreterras particulares, ou melhor, sobre terras registradascomo de propriedade particular, e não sendo desde logodetectada a invalidade dos títulos, o Decreto permite adesapropriação. O art. 13 não menciona se se trata dedesapropriação da “propriedade” do particular, parecen-do, no entanto, que é a esta última hipótese que se refe-re o texto. Mostra-se indiscutível, no entanto, a ilaçãológica de que a propriedade dos quilombolas, sendoreconhecida, é necessariamente decorrente do reconhe-cimento, posto que a lei constitucional assim o manifes-ta claramente,parecendo então cuidar-se,nos casos detítulos anteriores legítimos, mesmo de desapropriação nosentido de declaração da retirada da propriedade. Trata-se, pois, de expressão cujo significado é peculiar, poisessa providência na prática é apenas uma desapropriaçãodas terras, benfeitorias e construções de boa-fé erigidaspela pessoa que até então se tinha como dona do imóvel.De qualquer sorte, a administração deverá investigar ostítulos apresentados ou apurados quanto à sua legitimi-dade e validade mesmo que a propriedade dos remanes-centes das comunidades não seja questionável,pois nes-se caso a ação de desapropriação tem também o efeito ju-rídico de deslindar as terras quilombolas das de proprie-dade particular ou pública, para a avaliação da neces-sidade da desapropriação.

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Dessas conclusões é possível extrair a certeza adicio-nal de que aos remanescentes de comunidades quilom-bolas, com ocupação sobre terras tidas por particulares -como de resto igualmente quando sobre terras públicasfederais ou estaduais – deve ser sempre, da mesma manei-ra e com o mesmo fundamento constitucional, reconheci-da a posse jurídica delas para todos os efeitos legais, assimque concluídos pelo incra os trabalhos de identificação,delimitação e levantamento ocupacional da área sobestudo, isto é, desde a publicação do edital correspon-dente (art. 7.º, do Decreto n.º 4.887) o qual por isso mes-mo deverá conter a expressa referência a essa qualidadejurídica da ocupação enquanto não se expede o títulodefinitivo de reconhecimento da propriedade.

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Finalmente, os arts. 16, 18, 19 e 20 do decreto discipli-nam as providências a serem administradas pela Funda-ção Cultural Palmares e a instituição de um comitê ges-tor com respeito à defesa e manutenção das ocupaçõesreconhecidas. O art. 25 revoga o Decreto n.º 3.912 de2001 e os arts. 21 e 23 disciplinam a transição de um regi-me para o outro, entrando o Decreto n.º 4.887 em vigorna data de sua publicação (art. 24).

Além do plano de etnodesenvolvimento a cargo docomitê gestor e da assistência técnica a cargo dos órgãoscompetentes,o decreto estabelece que a Fundação Cultu-ral Palmares garantirá a assistência jurídica aos remanes-centes das comunidades de quilombos (que o incradeve garantir, durante o processamento administrativodo reconhecimento, na forma do art. 15) bem como pres-

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tará assessoramento aos órgãos da defensoria públicaquando estes representarem em juízo os interesses dosremanescentes das comunidades. Isto, é certo, não excluia representatividade social deles pelas suas própriasassociações, em nome das quais, aliás, tem sido editadoo termo de reconhecimento (o modelo adotado peloincra, por exemplo, reconhece a posse às associações),mas como os destinatários do reconhecimento constitu-cional juridicamente são os remanescentes das comunida-des de quilombos, em rigor, os legitimados para qualquerdemanda a respeito são os remanescentes, e não a associa-ção, daí porque quem pode estar em juízo são os rema-nescentes, os quais podem estar representados pela as-sociação mas não o contrário. De todo modo, presume-seestar a associação em representação dos remanescentes,em juízo ou fora dele, sem embargo da assistência jurí-dica que lhes pode prestar a fcp e a defesa que lhes podeprover a defensoria pública (quando, porém, represen-tados pela associação comunitária mostra-se discutível aação da defensoria).

Resta assinalar, embora o texto do decreto não refira,o título de reconhecimento da propriedade e posse dosremanescentes de comunidades de quilombos além doregistro cadastral no incra que o expediu, deve tambémser levado ao registro de imóveis da comarca correspon-dente para operar o cancelamento dos registros anterio-res, para segurança dos atos e para valerem contra tercei-ros como declaração pública da propriedade, identifica-ção e publicidade dos seus limites e confrontações.

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VII

Nessa linha de compreensão, e para o esclarecimento dasdiferentes instituições que participam do processo dereconhecimento das ocupações dos remanescentes decomunidades de quilombos, nos diferentes aspectos sus-citados, submeto tais considerações à apreciação supe-rior sugerindo,com base no art. 4.º, x (“fixar a interpre-tação da Constituição a ser uniformemente seguida pelosórgãos e entidades da Administração Federal’’) e xi (“diri-mir as controvérsias entre os órgãos jurídicos da Adminis-tração Federal’’), da Lei Complementar n.º 73 de 1993, oefeito normativo ali previsto para orientá-las e prevenirlitígios e divergências entre órgãos da Administração.

Brasília, df, 24 de novembro de 2006.

Manoel Lauro Volkmer de CastilhoConsultor-Geral da União

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A garantia do Direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação

1. introdução: o problema

A Constituição de 88 acaba de completar 18 anos de ida-de. No entanto, apesar de todo o tempo transcorrido, ain-da existe grande incerteza jurídica em relação à corretainterpretação de um dos novos institutos que ela intro-duziu: o direito à terra das comunidades de remanescen-tes de quilombos, previsto no art. 68 do Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias, que dispõe:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de qui-lombos é reconhecida a propriedade definitiva, devendoo Estado emitir-lhes os respectivos títulos.

Diante do laconismo do texto constitucional, surgiraminúmeras dúvidas a propósito da exegese deste disposi-tivo. Uma delas diz respeito ao instrumento apropriadopara a viabilização do comando normativo em questão.

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Com efeito, alguns sustentaram que o próprio cons-tituinte já teria operado a transferência da propriedadeaos quilombolas, afigurando-se, portanto, desnecessá-ria a desapropriação das terras particulares a serem titu-ladas em nome dos remanescentes de quilombos, e inde-vido o pagamento de qualquer indenização aos antigosproprietários privados. Outros, por sua vez, defende-ram a necessidade da prévia desapropriação para atransferência regular da propriedade às comunidadesquilombolas 24.

Inicialmente, o Governo Federal inclinou-se no senti-do do descabimento da desapropriação, como se infereda leitura do Parecer saj n.º 1.490⁄01, da Casa Civil daPresidência da República, e do Decreto n.º 3.912, de 10de setembro de 2001. Porém, diante de pressões legíti-mas advindas do próprio movimento quilombola, oGoverno Federal, já na gestão do Presidente Luiz InácioLula da Silva, alterou aquele entendimento, editando oDecreto n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, que esta-beleceu em seu art. 13:

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por rema-nescentes das comunidades dos quilombos título dedomínio particular não invalidado por nulidade, pres-crição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fun-damentos, será realizada a vistoria e avaliação do imó-

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24 Veja-se, neste sentido, o parecer da Sociedade Brasileira de DireitoPúblico, elaborado por equipe coordenada por Carlos Ari Sundfeld, epublicado sob o título Comunidades Quilombolas: Direito à Terra. Brasí-lia: Fundação Cultural Palmares, 2001; bem como Aurélio Virgílio Rios.“Quilombos e Igualdade Étnico-Racial”. In: Flávia Piovesan e DouglasMartins de Souza (Orgs.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Bra-sília: seppir, 2006, p. 187-216.

vel, objetivando a adoção dos atos necessários à suadesapropriação, quando couber.”

No presente parecer, não será objeto de discussão a cor-reção desta orientação. Trabalhar-se-á a partir da premis-sa normativa definida no Decreto n.º 4.887⁄2003, de quea fórmula jurídica para a transferência aos quilombolasda propriedade das terras titularizadas por particularesé a desapropriação.

Não há dúvidas de que esta posição quanto à desapro-priação encerra vantagens práticas importantes, seja porproporcionar maior segurança jurídica em relação à vali-dade dos títulos emitidos para as comunidades quilom-bolas, seja por permitir a atenuação dos conflitos posses-sórios existentes, através do pagamento de indenizaçãoaos proprietários privados. Ocorre que ela gera, poroutro lado, um sério problema para os remanescentes dequilombos e para a efetivação do art. 68 do adct.

É que na desapropriação, como se sabe, o proprietárioprivado só perde a titularidade do bem após o pagamen-to da indenização25 (cf, art. 5.º, inciso xxiv, art. 182, §3.º, e art. 184, caput), podendo, até lá, valer-se dos ins-trumentos processuais reivindicatórios ou possessórios,conforme o caso, visando à proteção do seu direito à pos-se do imóvel de sua propriedade.

É verdade que a legislação prevê a possibilidade deimissão provisória do Estado na posse do bem expropria-do, seja na desapropriação por necessidade ou utilidadepública (Decreto n.º 3.365⁄41, art. 15), seja naquela moti-vada por interesse social (Lei n.º 4.132⁄62, art. 5.º), seja

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25 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo.19.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 822.;

ainda na desapropriação para fins de reforma agrária (LeiComplementar n.º 76⁄93, art. 6.º, inciso i). Contudo,estas medidas apenas são cabíveis depois do ajuizamen-to da ação de desapropriação e do depósito do preço emfavor do proprietário, tal como determinado em lei.

Sabe-se, porém, que o Poder Público não tem sidosuficientemente ágil na propositura das ações expropria-tórias relacionadas ao art. 68 do adct, por razões varia-das, que vão da escassez de recursos financeiros para opagamento das indenizações, até a demora excessiva nosprocedimentos administrativos tendentes à identifica-ção das comunidades de remanescentes de quilombos eà demarcação dos respectivos territórios étnicos.

Infelizmente, os números, neste particular, são maisque eloqüentes: embora a Fundação Cultural Palmaresestime serem mais de 1.000 as comunidades de remanes-centes de quilombos existentes no Brasil26, sendo gran-de parte delas localizada, no todo ou em parte, em pro-priedades particulares, contam-se nos dedos as desapro-priações já promovidas visando à futura titulação de ter-ritórios quilombolas.

Neste contexto, evidencia-se a precariedade da situa-ção dos quilombolas, pois até a desapropriação ou a imis-são provisória do Estado na posse da área a que fazemjus, a sua permanência nos respectivos territórios étni-cos permanece exposta ao risco grave e constante deinvestidas dos respectivos proprietários e de terceiros. Eeste risco é ainda maior, tendo em vista o fato de que

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26 Informação oficial constante no sítio da Fundação Cultural Palmares,www.palmares.gov.br, acessado em 3 de outubro de 2006. E este númeroé ainda modesto, quando comparado com outros fornecidos pelo movi-mento negro.

grande parte das comunidades quilombolas está situadaem áreas caracterizadas por intenso conflito fundiário.

No presente parecer buscar-se-á apontar e fundamen-tar uma solução para esta problemática.

De modo muito resumido, pode-se adiantar que asolução preconizada consiste no reconhecimento deque o próprio texto constitucional operou a afetaçãodas terras ocupadas pelos quilombolas a uma finalida-de pública de máxima relevância, eis que relacionada adireitos fundamentais de uma minoria étnica vulnerá-vel: o seu uso, pelas próprias comunidades, de acordocom os seus costumes e tradições, de forma a garantir areprodução física, social, econômica e cultural dos gru-pos em questão.

Assim, diante desta afetação constitucional, os pro-prietários particulares não podem reivindicar a posse daterra, ou buscar a sua proteção possessória contra osquilombolas antes da desapropriação ou da imissão pro-visória na posse pelo Poder Público. Diante da privaçãoda posse da terra, gerada pela sua ocupação pela comu-nidade quilombola, o máximo que estes proprietáriospodem fazer é postular o recebimento de indenização doPoder Público, tal como ocorre na desapropriação indi-reta. Já os remanescentes de quilombos, ao inverso,podem se valer de todos os instrumentos processuaisadequados à efetivação e à proteção do seu direito à pos-se do território étnico, mesmo antes da desapropriação,e até independentemente dela, contra o proprietário oucontra terceiros.

Esta, em suma, é a tese. A seguir, ela será explicitadae fundamentada em maior detalhe.

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2. o direito dos quilombolas aos seus territóriosétnicos como direito fundamental

O art. 68 do adct encerra um verdadeiro direito funda-mental27 e desta sua natureza resultam conseqüênciashermenêuticas extremamente relevantes, como seráexposto mais adiante.

Neste ponto, cumpre recordar que o catálogo dosdireitos fundamentais encartado no Título ii do textoconstitucional brasileiro é aberto, conforme se depreen-de do disposto no art. 5.º, § 2.º, da Carta, segundo o qual“os direitos e garantias expressos nesta Constituição nãoexcluem outros decorrentes do regime e dos princípios porela adotados, e dos tratados internacionais em que a Repú-blica Federativa do Brasil seja parte”.

Daí porque, é possível reconhecer a fundamentalida-de de outros direitos presentes dentro ou fora do textoconstitucional. E o principal critério para o reconheci-mento dos direitos fundamentais não inseridos no cató-logo é a sua ligação ao princípio da dignidade da pessoahumana, da qual aqueles direitos são irradiações28.

Ora, o vínculo entre a dignidade da pessoa humana dosquilombolas e a garantia do art. 68 do adct é inequívoca.

Primeiramente, porque se trata de um meio para agarantia do direito à moradia (art. 6.º, cf) de pessoascarentes, que, na sua absoluta maioria, se desalojadas dasterras que ocupam, não teriam onde morar. E o direito à

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27 No mesmo sentido, Aurélio Virgílio Rios, op. cit., p. 189-181, e DéboraMacedo Duprat de Brito Pereira. “Breves Considerações sobre o Decreto3.912/01”. In: Eliane Cantarino O’Dwyer. Quilombos: Identidade Étnica eTerritorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 281-289. 28 Cf. Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fun-damentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97-107.

moradia integra o mínimo existencial, sendo um compo-nente importante do princípio da dignidade da pessoahumana.

Mas não é só. Para comunidades tradicionais, a terrapossui um significado completamente diferente da queele apresenta para a cultura ocidental hegemônica29. Nãose trata apenas da moradia, que pode ser trocada peloindivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que man-tém a união do grupo, e que permite a sua continuidadeno tempo através de sucessivas gerações, possibilitandoa preservação da cultura, dos valores e do modo peculiarde vida da comunidade étnica30.

Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desa-parecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto,não é só a terra que se perde, pois a identidade coletivatambém periga sucumbir. Dessa forma, não é exageroafirmar que quando se retira a terra de uma comunida-de quilombola, não se está apenas violando o direito àmoradia dos seus membros. Muito mais que isso, se estácometendo um verdadeiro etnocídio.

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29 Cf. S. James Anaya. Indigenous Peoples in International Law. 2 nd. Ed.New York: Oxford University Press, 2004, p. 90.

30 Sobre a importância do território para comunidades tradicionais, a

Corte Interamericana de Direito Humanos proferiu decisões paradigmáti-

cas. Por exemplo, no caso da Comunidade Indígena Yakye v. Paraguai, deci-

dido em 17 de junho de 2005, a Corte observou que “a garantia do direi-

to de propriedade comunitária dos povos indígenas deve levar em conta que

a terra está estreitamente relacionada com as suas tradições e expressões

orais, seus costumes e línguas, suas artes e rituais, seus conhecimentos e usos

relacionados com a natureza, suas artes culinárias, seu direito consuetudi-

nário, sua vestimenta, filosofia e valores. Em função do seu entorno, sua inte-

gração com a natureza e sua história, os membros das comunidades indíge-

nas transmitem de geração em geração este patrimônio cultural imaterial”.

Por isso, o direito à terra dos remanescentes de qui-lombo pode ser identificado como um direito fundamen-tal cultural (art. 215, cf), que se liga à própria identida-de de cada membro da comunidade.

Neste ponto, não é preciso enfatizar que o ser huma-no não é um ente abstrato e desenraizado, mas uma pes-soa concreta, cuja identidade é também constituída porlaços culturais, tradições e valores socialmente compar-tilhados31. E nos grupos tradicionais, caracterizados poruma maior homogeneidade cultural e por uma ligaçãomais orgânica entre os seus membros, estes aspectoscomunitários da identidade pessoal tendem a assumiruma importância ainda maior32.

Por isso, a perda da identidade coletiva para os inte-grantes destes grupos costuma gerar crises profundas,intenso sofrimento e uma sensação de desamparo e dedesorientação, que dificilmente encontram paraleloentre os integrantes da cultura capitalista de massas.Mutatis mutandis, romper os laços de um índio ou de umquilombola com o seu grupo étnico é muito mais do queimpor o exílio do seu país para um típico ocidental.

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31 Cf. Michael Sandel. “The Procedural Republic and the Unencum-bered Self”. In: Robert Goodin & Philip Pettit (Eds.). ContemporaryPolitical Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers, 1997, p. 246-256; eCharles Taylor. “A Política de Reconhecimento”. In: Charles Taylor etall. Mulitculturalismo. Trad. Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget,1998, p. 45-94. 32 Na sociologia, é conhecida a distinção, formulada por Ferdinand Tön-nies, entre as sociedades em que os laços sociais são mais tênues, predo-minando as forças centrífugas – e as comunidades, em que estes víncu-los são mais estreitos e a relação entre os membros é mais orgânica. Nes-te sentido, não há dúvida de que os remanescentes de quilombos cons-tituem autênticas comunidades.

Assim, é possível traçar com facilidade uma ligaçãoentre o princípio da dignidade da pessoa humana – epi-centro axiológico da Constituição de 88 – com o art. 68do adct, que almeja preservar a identidade étnica e cul-tural dos remanescentes de quilombos. Isto porque, agarantia da terra para o quilombola é pressuposto neces-sário para a garantia da sua própria identidade.

Não bastasse, não é apenas o direito dos membros decada comunidade de remanescentes de quilombo que éviolado quando se permite o desaparecimento de um gru-po étnico. Perdem também todos os brasileiros, das pre-sentes e futuras gerações, que ficam privados do acesso aum “modo de criar, fazer e viver”, que compunha o pa-trimônio cultural do país (art. 215, caput e inciso ii, cf).

Neste ponto, cabe destacar que a proteção à culturadispensada pela Constituição de 88 parte da premissa deque o pluralismo étnico e cultural é um objetivo da máxi-ma importância a ser preservado e promovido, no inte-resse de toda a Nação. Diferentemente das Constituiçõesanteriores, a Carta de 88 não partiu de uma visão “monu-mentalista” sobre o patrimônio histórico e cultural, inte-grando-o antes em uma compreensão mais ampla, que sefunda na valorização e no respeito às diferenças, e noreconhecimento da importância para o país da cultura decada um dos diversos grupos que compõem a nacionali-dade brasileira.

Portanto, pode-se afirmar que o art. 68 do adct, alémde proteger direitos fundamentais dos quilombolas, visatambém à salvaguarda de interesses transindividuais detoda a população brasileira.

Por tais razões, é legítimo concluir que o art. 68 doadct contém autêntica norma consagradora de direitofundamental. No próximo item, examinar-se-ão as con-

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seqüências relevantíssimas desta conclusão no que tan-ge à interpretação do referido preceito constitucional, eda legislação que se volta à sua concretização.

3. direitos fundamentais, máxima efetividade, eficácia irradiante e vinculação dos particulares

Os direitos fundamentais sujeitam-se a um regime dife-renciado em relação às demais normas da Constituição,que visa a reforçar a sua força normativa e ampliar o seupotencial transformador33. Este reforço resulta do reco-nhecimento da importância central dos direitos funda-mentais no sistema constitucional34, e da constatação dosriscos a que eles se sujeitam, sobretudo no contexto desociedades desiguais e opressivas como a brasileira.

Um dos traços característicos deste regime reforçado éa preocupação com a eficácia social dos direitos funda-mentais35. É verdade que há uma saudável tendência àbusca da efetividade de todas as normas constitucio-nais36. Contudo, em matéria de direitos fundamentais,esta tendência deve ser ainda mais pronunciada, e elaencontra respaldo em um princípio enunciado no própriotexto constitucional, no seu art. 5.º, § 1.º, que dispõe:

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33 Cf. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria daConstituição. Rio de Janeiro: Almedina, 2003, p. 34 Cf. Gregório Peces-Barba Martínes. Curso de Derechos Fundamenta-les: Teoria General. Madrid: Universidad Carlos iii, 1999, p. 577. 35 A obra clássica sobre o tema no Direito brasileiro é de Ingo WolfgangSarlet. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria dosAdvogados, 1997. 36 Veja-se, a propósito, Luis Roberto Barroso. O Direito Constitucional ea Efetividade das suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantiasindividuais têm aplicabilidade imediata.

Este princípio significa, em primeiro lugar, que os direi-tos fundamentais não dependem de concretização legis-lativa para surtirem os seus efeitos. Portanto, o própriotexto constitucional pode ser invocado diretamentecomo fundamento para a proteção de direitos subjetivospelos indivíduos ou coletividades que os titularizem.

Por outro lado, ele envolve também o dever do intér-prete de buscar a máxima efetivação dos direitos funda-mentais, de modo a retirá-los do campo das promessasconstitucionais para torná-los reais na vida de pessoas decarne e osso. Nesta linha, entre várias exegeses e cons-truções possíveis de um determinado instituto, o intér-prete deve sempre buscar aquela que confira maior for-ça normativa aos direitos fundamentais.

No caso em questão, negar aos quilombolas o direitoà posse das terras que ocupam até a consumação da açãoexpropriatória, ou a imissão do Poder Público na possedo imóvel desapropriado, significa exatamente negareste princípio. Isto porque, esta tese condiciona a frui-ção de direitos auto-aplicáveis a iniciativas dos gover-nantes de plantão, sobre as quais as comunidades deremanescentes de quilombo não exercem nenhum con-trole, e que, em geral, quando são adotadas, vêm comgrande atraso.

Portanto, não assegurar aos remanescentes de quilom-bos, até o implemento da desapropriação, o direito à pos-se das terras que ocupam , é negar o próprio objetivo doart. 68 do adct, que é preservar as comunidades qui-lombolas, protegendo a identidade étnica dos seus mem-bros, bem como o patrimônio cultural do país.

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Mas não é só. Outro traço característico do regimejurídico dos direitos fundamentais é o reconhecimentoda sua dimensão objetiva37. A dimensão objetiva repre-senta uma “mais valia” para os direitos fundamentais38.Ela significa que, além de direitos subjetivos, os direitosfundamentais encarnam também os valores básicos deuma sociedade democrática39, que devem penetrar portoda a ordem jurídica.

Um dos aspectos centrais da dimensão objetiva dosdireitos fundamentais é a atribuição de uma eficácia irra-diante a estes direitos40. A eficácia irradiante importa naampliação da influência dos direitos fundamentais sobrea legislação infraconstitucional, ao obrigar o operadordo direito a interpretar e aplicar as normas ordinárias daforma que mais potencialize tais direitos.

Em outras palavras, trata-se de possibilitar a maiorpenetração possível dos direitos fundamentais em todosos setores do ordenamento, que deve ser filtrado e reli-do à sua luz. Com isso, os direitos fundamentais se irra-diam por todo o Direito, imprimindo feições mais huma-

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37 Cf. Daniel Sarmento. “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamen-tais: Fragmentos de uma Teoria”. In: José Adércio Leite Sampaio (Coord.).Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: DelRey, 2003, p. 251-314; e Ingo Wolfgang Sarlet. A Eficácia dos DireitosFundamentais. Op. cit., p. 139-149. 38 A expressão é de José Carlos Vieira de Andrade, em Os Direitos Fun-damentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina,1998, p. 165. 39 Cf. Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da RepúblicaFederal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SergioAntonio Fabris, 1998, p. 239, e Gilmar Ferreira Mendes. . 40 Cf. Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernes-to Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constituciona-les, 1997, p. 507-510.

nas e emancipatórias aos institutos e conceitos tradicio-nais da ordem jurídica.

E isso vale inclusive em relação ao Direito Administra-tivo. De fato, em um contexto de constitucionalização doDireito, não pode o intérprete, em nenhuma área, quedar-se refém dos conceitos e categorias tradicionais, ignoran-do a penetração dos valores constitucionais no tecido nor-mativo, especialmente os relacionados aos direitos funda-mentais. Por isso, também no Direito Administrativo, con-soante as palavras de Gustavo Binenbojm, ‘toda a ativida-de interpretativo-aplicativa (do legislador, do administra-dor e do juiz) deve ser realizada em conformidade e com vis-tas a maior realização possível dos direitos fundamentais”41.

Estas idéias reforçam a tese defendida neste estudo,de que o instituto do Direito Administrativo da afetação,que é utilizado para impedir a retomada por particularesde áreas que tenham sido empregadas pelo Estado emfinalidades públicas, pode ser aplicado para proteger aposse dos quilombolas antes do advento da desapropria-ção, uma vez que não há finalidade mais importante, soba perspectiva constitucional, do que a garantia de direi-tos fundamentais e da dignidade humana de um grupovulnerável como os remanescentes de quilombos.

Finalmente, há uma outra característica dos direitosfundamentais que também tem importância na questãoora examinada. Trata-se da sua eficácia horizonta , quesignifica a vinculação dos particulares a estes direitos42.

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41 Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo: DireitosFundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006, p. 76. 42 Veja-se, a propósito, Daniel Sarmento. Direitos Fundamentais e Rela-ções Privadas. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Wilson Stein-metz. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. Porto

A concepção tradicional dos direitos fundamentaisera a de que eles só obrigavam ao Estado. Contudo, como passar do tempo, foi se tornando evidente que, dianteda ubiqüidade da opressão e da injustiça, os direitos fun-damentais não poderiam se limitar ao campo das relaçõesentre cidadãos e Estado, sob pena de não desempenha-rem a contento o seu papel de proteção da dignidade hu-mana. Assim, passou-se a reconhecer que os direitos fun-damentais se projetam nas relações privadas – ainda quecom certas nuances e especificidades –, criando deverestambém para particulares.

No Brasil, a jurisprudência, inclusive do stf, temreconhecido que os direitos fundamentais também vin-culam os particulares e entidades privadas43, em perfei-ta consonância, neste particular, com a filosofia quetransparece na Carta, que não se ilude com a miragemliberal-burguesa de que só o Estado representa ameaçaaos direitos humanos.

Assentada esta premissa, fica fácil sustentar que é per-feitamente compatível com a Constituição restringir, emnome da tutela dos direitos fundamentais dos quilombo-las, certas faculdades inerentes ao direito de proprieda-

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contituação 42 Alegre: Livraria do Advogado, 2004; e Ingo WolfgangSarlet (Org.) Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livra-ria do Advogado, 2004. 43 Veja-se, em especial, Recurso Extraordinário n.º 158.215-4/rs, 2.ª Tur-ma, Rel. Ministro Marco Aurélio, sobre a aplicação do princípio do devi-do processo legal no âmbito de cooperativas; Recurso Extraordinário n.º161.243-6/df, 2.ª Turma, Rel. Ministro Carlos Velloso, sobre a aplicaçãodo princípio da igualdade em relações de emprego no âmbito de empre-sa aérea estrangeira; e Recurso Extraordinário n.º 201.819/rj, Rel. Min.Gilmar Ferreira Mendes, sobre a incidência dos princípios da ampla defe-sa e contraditório em sociedade civil.

de dos particulares, retirando-lhes a possibilidade douso de instrumentos possessórios e petitórios contraremanescentes de quilombos, mesmo antes da desapro-priação das terras destinadas a estes pelo constituinte.

É certo que tampouco seria constitucionalmente cor-reto ignorar na solução do problema estes direitos depropriedade – que também receberam proteção consti-tucional. Porém, o que se propõe no caso é solução bemdiversa, que visa a conciliar, numa ponderação de inte-resses constitucionalmente adequada, tanto os direitosdos proprietários privados, como os direitos dos quilom-bolas, assegurando aos primeiros a faculdade de postu-larem uma indenização por perdas e danos contra o Esta-do, mas também protegendo a posse dos remanescentesde quilombos. Este tema será explorado mais detidamen-te no próximo item deste estudo.

4. propriedade privada v. direito à terra dosquilombolas: colisão de direitos, função social da propriedade e princípio da proporcionalidade

É corrente a afirmação de que os direitos fundamentaisnão são absolutos, já que concorrem freqüentementecom outros direitos fundamentais, ou bens jurídicostambém revestidos de estatura constitucional44.

Nestes casos de colisão, os critérios tradicionais pararesolução de antinomias – cronológico, hierárquico e deespecialidade – são, no mais das vezes, de pouca valia. Porisso, a jurisprudência e a doutrina vêm reconhecendo a

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44 Cf. Norberto Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho.Rio de Janeiro: Ed. Campus, p. 42.

necessidade de recorrer, nestas hipóteses, a ponderaçõesde interesses45, que visem a preservar ao máximo possívelos bens jurídicos envolvidos nos conflitos normativos.

Esta situação se manifesta no caso em questão, em quese tem, de um lado, o direito de propriedade dos particu-lares cujos imóveis são ocupados por quilombolas, e, dooutro, o direito à terra das comunidades de remanescen-tes de quilombos. Não seria legítimo, diante deste confli-to, ignorar qualquer dos termos da equação. Pelo contrá-rio, exige-se a busca de solução proporcional, que im-ponha restrições recíprocas aos bens jurídicos em litígio,atenta à importância relativa que eles possuem no sistemade valores sobre o qual se assenta a ordem constitucional.

Assim, cabe, inicialmente, valorar os interesses cons-titucionais em jogo.

De um lado, tem-se o direito das comunidades quilom-bolas às terras que ocupam. No item 2 deste parecer, jáse demonstrou que este não é um simples direito patri-monial, pois a sua garantia é condição necessária para aexistência da comunidade étnica. Por isso, tal direito en-contra-se associado diretamente à própria identidade edignidade humana de cada membro do grupo, ligando-setambém, por outro lado, ao direito de todos os brasileirosà preservação do patrimônio histórico-cultural do país.

Do outro lado da balança figura o direito de proprie-dade das pessoas ou entidades privadas em cujos nomes

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45 Cf. Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Op. cit., p.81-172; Gilmar Ferreira Mendes. “Os Direitos Individuais e suas Limita-ções: Breves Reflexões”. In: Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio MártiresCoelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. Hermenêutica Constitucional eDireitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 223-280; eDaniel Sarmento. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Riode Janeiro: Lumen Juris, 1999.

as terras ocupadas pelos quilombolas estiverem registra-das. Não há dúvida de que a propriedade privada é tam-bém um direito fundamental (art. 5.º, inciso xxii, cf),configurando, ademais, um princípio essencial na ordemeconômica do capitalismo.

Contudo, é importante destacar que o direito de pro-priedade não tem mais a primazia absoluta que desfru-tava no regime constitucional do liberalismo-burguês.Com o advento do Estado Social, o direito de proprieda-de foi relativizado, em proveito da proteção de outrosbens jurídicos essenciais, como os direitos dos não-pro-prietários, a tutela do meio ambiente e do patrimôniohistórico-cultural.

Neste sentido, muitas constituições, e dentre elas a bra-sileira (art. 5.º, inciso xxiii, e art. 170, inciso iii, cf), pas-saram a impor o cumprimento da função social da proprie-dade. E neste novo contexto, alguns autores chegaram atéa afirmar que a propriedade que não cumpre a sua fun-ção social deixa de ser tutelada pela ordem jurídica46.

Neste quadro, pode-se avaliar o peso do direito à pro-priedade privada na nossa ponderação. Trata-se, no caso,não de uma propriedade qualquer, mas de uma proprieda-de cuja função social já foi pré-definida pela Constituiçãono art. 68 adct: a de servir para ocupação das comunida-des de remanescentes de quilombos, possibilitando a exis-tência de um grupo étnico e a reprodução da sua cultura.

Portanto, qualquer outra finalidade que o proprietá-rio privado queira dar à terra – ainda que relacionada a

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46 Veja-se, neste sentido, Gustavo Tepedino. “Contornos Constitucio-nais da Propriedade Privada”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p. 267-292; e Pietro Perlingeri. Perfis do Direito Civil:Introdução ao Direito Civil-Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco.Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 220-232.

atividades economicamente produtivas – não significaatendimento à função social da propriedade, mas simnuma necessária violação a ela.

A conclusão que se obtém, portanto, é a de que, naescala de valores da Constituição, o direito à terra dosquilombolas tem, a priori, um peso superior ao direito depropriedade privada dos particulares em cujos nomes asáreas estejam registradas. Contudo, isto não significa,como se adiantou antes, que se possa simplesmente igno-rar este último direito na resolução da questão. Pelo con-trário, no equacionamento da colisão, é necessário pre-servá-lo em alguma medida, de forma compatível com oprincípio da proporcionalidade.

Este princípio, cuja vigência no ordenamento brasi-leiro é hoje reconhecida em uníssono pela doutrina ejurisprudência, consiste no principal instrumento paraaferição da validade das medidas restritivas de direitosfundamentais. De acordo com a posição majoritária,cujas origens remontam à dogmática constitucional ger-mânica, tal princípio pode ser desdobrado em três sub-princípios, assim sintetizados por Luís Roberto Barroso:

(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas semostrem aptas para atingir os objetivos pretendidos; (b)da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificaçãoda inexistência de meio menos gravoso para o atingi-mento dos fins visados; e da (c) proporcionalidade emsentido estrito fins, que é a ponderação entre o ônus im-posto e o benefício trazido, para constatar se é justificá-vel a interferência na esfera dos direitos do cidadão47.

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47 Luís Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. SãoPaulo: Saraiva, 1996, p. 209. Sobre os subprincípios em questão, veja-se

No caso, vejamos se a solução preconizada está emconformidade com o princípio da proporcionalidade.

Em relação ao subprincípio da adequação, trata-se desaber se a restrição à faculdade do proprietário de valer-se dos instrumentos possessórios e petitórios contra ascomunidades de remanescentes de quilombos antes dadesapropriação é medida adequada para os fins a que sedestina. O fim aqui perseguido é a garantia do direito àterra dos quilombolas, e, por conseqüência, a preservaçãoda própria comunidade de remanescentes de quilombo.

A resposta só pode ser positiva. Não há dúvida de quepreservar e garantir a posse do território étnico para osquilombolas mesmo antes da desapropriação configuramedida adequada visando lhes assegurar o gozo do seudireito à terra e à preservação da sua identidade coleti-va, bem como o interesse social na tutela do patrimôniohistórico-cultural.

Já o teste da necessidade ou exigibilidade envolve oexame da eventual existência de medida mais brandaque pudesse atingir os mesmos objetivos. Neste caso, nãose vislumbra qualquer medida mais suave, uma vez quea tutela do direito à posse dos quilombolas antes da desa-propriação afigura-se realmente indispensável para oatingimento daqueles objetivos. Sem a garantia efetivadesta posse, os riscos de perecimento da própria comu-nidade, até o advento da desapropriação, são, como jásalientado, bastante elevados.

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continuação 47 também Robert Alexy, op. cit., p. 111-115; José JoaquimGomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit.,p. 262-263; e Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Pau-lo: Malheiros, 1999, p. 360-361; e Suzana de Barros Toledo. O Princípioda Proporcionalidade e as Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Bra-sília: Brasília Jurídica, 1995, p. 148-153.

Neste ponto, há que se ter em vista o fato de que asolução ora preconizada está longe de ser drástica, namedida em que reconhece o direito do proprietário deobter junto ao Poder Público uma indenização pela pri-vação da posse do bem antes da perda definitiva da pro-priedade. Apenas não se condiciona a tutela da posse doquilombola ao prévio pagamento da referida indenização,uma vez que esta outra alternativa, embora mais branda,seria francamente insatisfatória, já que importaria emnão-atendimento do objetivo constitucional perseguido,que é a preservação da comunidade étnica.

Finalmente, passa-se à última fase do teste, que con-siste no exame da proporcionalidade m sentido estrito.Em outras palavras, cuida-se agora de sopesar os ônus ebenefícios advindos da medida para os interesses cons-titucionais em conflito, o que deve ser realizado dentrodo marco axiológico da Carta de 88.

Primeiro o benefício: a proteção da posse dos quilom-bolas independentemente da desapropriação possibilitaque a comunidade continue vivendo no seu próprio ter-ritório, com segurança jurídica e de acordo com os seuscostumes e tradições, mesmo diante da eventual demorado Estado no ajuizamento da competente ação expropria-tória. É um benefício extremamente importante numaConstituição que se preocupa tanto com a garantia da dig-nidade da pessoa humana dos grupos vulneráveis, com aproteção do patrimônio histórico-cultural e com a defesado pluralismo.

Em seguida, o ônus. Há uma restrição às faculdadesdo proprietário relacionadas à possibilidade de exclusãodos quilombolas do uso e gozo dos territórios étnicos.Note-se, porém, que esta restrição atua a favor e não con-tra a função social da propriedade, uma vez que, como

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antes destacado, a função social dos territórios ocupadospor remanescentes de quilombos é, por definição cons-titucional, a de servir de locus para a vida daquelas co-munidades, e não a realização de quaisquer outros obje-tivos visados pelo proprietário particular. Ademais, tra-ta-se de restrição mitigada pelo reconhecimento do direi-to subjetivo do proprietário ao recebimento de umaindenização, a ser paga pelo Poder Público, tal comoocorre na desapropriação indireta.

Neste quadro, não há como negar que a medida se justi-fica plenamente, uma vez que os benefícios constitucio-nais obtidos sobrepujam visivelmente os ônus impostos.

Portanto, trata-se de solução equilibrada, que presti-gia, na medida do possível, os interesses constitucionaisem conflito, numa ponderação pautada pelo princípio daproporcionalidade.

Vejamos, a seguir, como a solução sugerida está emperfeita consonância com a dogmática do Direito Admi-nistrativo. No próximo item, será demonstrado como asmesmas razões que justificam a inadmissibilidade daproteção à posse do particular no caso da desapropriaçãoindireta estão presentes – e em intensidade muito maior– nas questões envolvendo o direito à terra dos remanes-centes de quilombos.

5. afetação, desapropriação indireta e o direito à terra das comunidades quilombolas

A doutrina e a jurisprudência são pacíficas no sentido deque o proprietário particular não pode reivindicar oureintegrar-se na posse de terras em seu nome que játenham sido afetadas pelo Estado a alguma função deinteresse público.

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Nestas hipóteses, entende-se que a não-propositurapelo Estado da competente ação expropriatóra não é sufi-ciente para conferir ao proprietário o poder de vindicaro próprio bem. Cabe-lhe, tão-somente, o direito de pos-tular o recebimento de uma reparação pecuniária doPoder Público, pela desapropriação indireta da sua pro-priedade. Confira-se, no particular, o magistério de Cel-so Antônio Bandeira de Mello:

Desapropriação indireta é a designação dada ao abusivoe irregular apossamento do imóvel particular pelo PoderPúblico, com a sua conseqüente integração no patrimôniopúblico, sem obediência às formalidades e cautelas doprocedimento expropriatório. Ocorrida esta, cabe ao le-sado recurso às vias judiciais para ser plenamente inde-nizado, do mesmo modo que o seria caso o Estado hou-vesse procedido regularmente48.

Esta é também a orientação jurisprudencial incontrover-sa, inclusive do STF e do STJ:

Recurso Extraordinário. Desapropriação Indireta. Pres-crição. Enquanto o expropriado não perde o direito de pro-priedade por efeito do usucapião do expropriante, vale oprincípio constitucional sobre o direito de propriedade e odireito a indenização, cabendo a ação de desapropriaçãoindireta. O prazo, para esta ação, é o da reivindicatória.Confere-se a ação de desapropriação indireta o caráterde ação reivindicatória, que se resolve em perdas edanos, diante da impossibilidade de o imóvel voltar a

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48 Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo.Op. cit., p. 823.

posse do autor, em face do caráter irreversível da afe-tação pública que lhe deu a Administração Públicas. Subsistindo o título de propriedade do autor, daí resul-ta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevidado imóvel, por parte do Poder Público, com vistas à rea-lização de obra pública. (stf, Rec. Ext. 109853/sp, Rel.Min. Néri da Silveira, julgado em 19.12.1991)

Processual. Reclamação. Processo de Desapropriação.Imissão Provisória. Insuficiência do Depósito. Afetaçãodo bem ao serviço público. Reintegração do expropria-do. Impossibilidade. Imitido, sem depósito de valor sufi-ciente, o expropriante na posse do imóvel e afetado o bemao serviço público, a reintegração do expropriado torna-se impossível. Opera-se anomalia, através do qual, oprocesso transforma-se em desapropriação indireta, emque a execução de sentença haverá de observar o art. 730do CPC. (stj, Embargos de Declaração na Reclamaçãon.º 471, 1.ª Seção, Rel. Min. Humberto Gomes de Bar-ro, julgado em 16.12.1997)

Cumpre observar que dita construção resultou de cria-ção pretoriana49, que buscou conciliar o interesse públi-co com o direito de propriedade do particular.

Ora, no caso presente, a mesma constelação de inte-resses se apresenta, e de forma ainda mais desfavorável àtutela específica do direito à posse do proprietário.

Com efeito, se, na desapropriação indireta, a afetaçãodo imóvel a uma determinada finalidade pública resultade uma mera escolha do administrador, realizada, ainda

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49 Cf. José Carlos de Moraes Salles. A Desapropriação à Luz da Doutri-na e da Jurisprudência. 3.ª ed. São Paulo: rt, 1995, p. 744.

por cima, sem observância das formalidades legais per-tinentes, no caso das terras quilombolas a situação é bemdiferente.

Nesta outra hipótese, a afetação do bem foi promovi-da pelo próprio poder constituinte originário, no art. 68do adct, pois foi ele quem destinou aos quilombolas asterras por eles ocupadas.

Ademais, nesta situação, a ocupação não constitui atoilícito, sendo antes protegida pela Constituição. Ilícita éapenas a demora do Estado na propositura da ação de de-sapropriação, que não pode ser imputada direta ou indire-tamente às comunidades de remanescentes de quilombos.

E o interesse público presente no caso é de elevadís-sima importância: trata-se da tutela da dignidade huma-na de um grupo étnico vulnerável, associada à proteçãodo patrimônio histórico-cultural do país. Avaliado sob aperspectiva constitucional, o interesse público aqui pre-sente é muito mais valioso do que, por exemplo, aqueleque subjaz à construção de uma obra pública qualquer.

Ademais, do ponto de vista lógico, seria um enormecontra-senso permitir a retirada de remanescentes dequilombos dos seus territórios étnicos – pondo em riscoa sobrevivência do grupo – para, em seguida à desapro-priação, restituir a eles as mesmas terras. Mais que isso,seria um atentado indesculpável aos direitos fundamen-tais destas populações, com a completa frustração dosobjetivos subjacentes ao referido art. 68 do adct.

Portanto, se é verdade, como sustentado ao longo des-te parecer, que os institutos do Direito Administrativodevem ser interpretados ao lume da Constituição, visan-do a maximizar a eficácia dos direitos fundamentais,então parece inequívoco que a não-propositura pelo Esta-do da ação de desapropriação não pode despojar os qui-

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lombolas do direito de permanecerem nas terras que lhesdevem pertencer, por vontade do próprio constituinte.

Neste quadro, pode-se concluir que a solução para aquestão passa pelo mesmo caminho que levou a jurispru-dência a reconhecer o instituto da administração indire-ta. Deve-se, por um lado, rechaçar a possibilidade de osproprietários vindicarem as terras ocupadas por rema-nescentes de quilombos, reconhecendo-se, contudo, oseu direito ao recebimento de indenização do Estado pelaprivação do uso destas terras.

E, por outro lado, deve-se reconhecer, a partir de umainterpretação teleológica do art. 68 do adct, o direitodos remanescentes de quilombo de ocuparem o seu ter-ritório étnico mesmo antes da desapropriação, valendo-se de todos os meios processuais pertinentes para adefesa deste direito, em face de terceiros ou do próprioproprietário.

O mesmo raciocínio do parágrafo anterior vale parahipóteses em que os títulos em nome de particularessejam inválidos. Também neste caso, o direito à posse dascomunidades quilombolas deve ser protegido antes, e in-dependentemente, do ajuizamento das eventuais açõesdesconstitutivas dos títulos registrados, ressalvando-seapenas que nesta situação não haverá que se falar em in-denização por desapropriação indireta50.

Finalmente, cumpre ressaltar que o incra, em algu-mas localidades, já vem expedindo Termo de Reconheci-mento de Posse em favor das comunidades quilombolassituadas em áreas tituladas em nome de particulares,independentemente da propositura de ação expropriató-ria. Neste sentido, a orientação defendida no presente

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50 Todavia, nesta hipótese pode caber a indenização por benfeitorias.

parecer apenas forneceria fundamentação constitucionalà referida prática administrativa.

6. sugestão de encaminhamento

A tese acima sustentada pode ser inferida diretamente daprópria Constituição, que deve ser aplicada às relaçõessociais independentemente da mediação de qualquer atonormativo. Portanto, não é necessária, a rigor, a ediçãode qualquer ato para viabilizar a sua invocação em sedejurisdicional ou administrativa.

Sem embargo, seria altamente positivo o reconheci-mento da validade da tese pela Administração Pública,em especial pelos órgãos que lidam diuturnamente coma questão quilombola – como incra, Advocacia-Geral daUnião, Fundação Cultural Palmares, seppir e Defensoria-Geral da União.

Isto porque, trata-se de uma orientação concernenteà interpretação de normas constitucionais, num temacontrovertido e revestido de uma certa complexidadeteórica, com o qual a grande maioria dos juristas não estáfamiliarizada. Neste quadro, a sedimentação normativadesta orientação, bem com a sua divulgação interna e ex-terna, fortaleceriam a defesa dos direitos dos remanes-centes de quilombos, municiando os órgão e entidadesque atuam na questão quilombola com argumentos cons-titucionais importantes para que desempenhem de for-ma mais eficiente o seu mister.

Ora, a Lei Complementar n.º 73, no seu art. 4.º, § 3.º,inciso x, estabelece a competência do Advogado-Geralda União para “fixar a interpretação da Constituição e dasleis, dos tratados e demais atos normativos, a ser unifor-memente seguida pelos órgão e entidades da Administra-

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ção Federal”. E o art. 40, § 1.º, da mesma lei, por sua vez,prevê a vinculação da Administração Federal aos pare-ceres do Advogado-Geral da União que sejam aprovadospelo Presidente da República e devidamente publicados.

Assim, sugere-se que a tese em questão seja encami-nhada ao Exmo Sr. Advogado-Geral da União, com a su-gestão de que S. Exa. elabore e submeta ao Presidenteda República parecer no sentido de que, por força dainterpretação do art. 68 do adct, é protegida a possedas áreas destinadas às comunidades de remanescentesde quilombos, independentemente da propositura deação de desapropriação, restando aos proprietários pri-vados, que tenham títulos válidos sobre a área, a possi-bilidade de ajuizamento de ações de reparação de danoscontra o incra, à semelhança do que ocorre na desapro-priação indireta.

Ademais, sugere-se, ainda, seja dada divulgação dostermos do presente estudo, pelo próprio MinistérioPúblico Federal, às entidades da sociedade civil e aosórgãos estatais que atuam em defesa das comunidades deremanescentes de quilombos, em todas as esferas dafederação.

É o parecer.

Rio de Janeiro, 9 de outubro de 2006.

Daniel Sarmento Procurador Regional da República

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Quilombos na perspectiva da igualdade étnico-racial:raízes, conceitos, perspectivas51

1. introdução ao direito das minorias

Uma nova perspectiva concretizou-se com o processo demultiplicação dos direitos humanos. Norberto Bobbio52

ensina que este processo de “proliferação de direitos”envolve não apenas o acréscimo dos bens e pessoas dig-nas de tutela específica pelas Constituições e leis escri-tas como também implica em ampliar a titularidade dedireitos já assegurados a algumas categorias ou aos cida-dãos de um modo geral.

Flávia Piovesan explica, com precisão, os novos para-digmas a serem incluídos no Direito. Segundo ela “a par-tir da extensão da titularidade de direitos, há o alarga-mento do próprio conceito de sujeito de direito, que pas-

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51 Texto originariamente publicado em Ordem Jurídica e Igualdade Étni-co-Racial. Coord. Flávia Piovesan e Douglas Martins de Souza, seppir,Brasília, 2006.52 bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho,Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1992.

sou a abranger, além do indivíduo, as entidades de clas-se, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e aprópria humanidade. Este processo implicou ainda aespecificação do sujeito de direito, tendo em vista que,ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujei-to de direito concreto, visto em sua especificidade e naconcreticidade de suas diversas relações. Isto é, do enteabstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classesocial, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direi-to concreto, historicamente situado, com especificidadese particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduogenérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo“especificado”, considerando-se categorizações relati-vas ao gênero, idade, etnia, raça, etc”53.

Aos poucos, um novo regime jurídico de proteção apessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveisvêm merecendo atenção especial dos sistemas normati-vos internacional e nacional, que passam a reconhecer di-reitos próprios destinados às crianças, aos idosos, às mu-lheres, às pessoas vítimas de tortura, e aquelas que sofremdiscriminação racial ou que não se beneficiaram de políti-cas públicas genericamente adotadas no Brasil, como é ocaso dos afrodescendentes, em especial os remanescentesde quilombolas, que estão ainda a perseguir o reconheci-mento do Estado de seus direitos culturais e territoriais .

Nesse sentido, é importante notar que a construção doEstado Democrático de Direito (art. 1.º da ConstituiçãoFederal) no Brasil deu validade ou positividade jurídicaàs minorias étnicas no longo caminho das conquistas dasgarantias e direitos fundamentais da pessoa humana.

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53 piovesan, Flávia. Temas de Direitos Humanos. Ed. Max Limonad, SãoPaulo, 1998.

Como cláusula pétrea da Constituição de 1988, o Esta-do Democrático de Direito integra-se ao conceito do queseja o Estado brasileiro. Além de ser indispensável às ga-rantias individuais e sociais das pessoas, o regime demo-crático passou a ser condição para um governo justo e le-gítimo através da ampla participação da população em suasinstâncias representativas, e tem como característica deleindissociável o pluralismo político; e por objetivo a cons-trução de uma sociedade justa e solidária, sem precon-ceito de cor, raça, religião, sexo, abolindo todas as formasde discriminação (arts. 1.º e 3.º da Constituição Federal).

José Afonso da Silva observa que a introdução doprincípio democrático no Estado de Direito implica emque os direitos culturais próprios dos seguimentossociais e étnicos que compõem a população brasileirapassem a fazer parte dos direitos fundamentais, a que oEstado obriga-se a resguardar e proteger54

Na mesma linha, Gomes Canotilho, repara que a prote-ção dos direitos culturais há de ser a mais ampla possível,estando a exigir a garantia de participação plena de todosos segmentos da sociedade, sem a exclusão de nenhum55.

Há, inegavelmente, uma relação simbiótica entre adignidade da pessoa humana, o princípio democrático eo reconhecimento da igualdade substantiva, de modo alegitimar a ampliação de direitos específicos pelo Estadoàs pessoas que não têm usufruído das mesmas oportuni-dades conferidas que a lei confere genericamente a todosos cidadãos.

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54 silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ªEdição Malheiros, São Paulo, 1997.55 canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ª EdiçãoAlmedina, Coimbra, 1993.

Como produto do Estado Social de Direito, JoaquimBarbosa Gomes explica que a igualdade substancial oumaterial propugna redobrada atenção por parte do legis-lador e dos aplicadores do direito à variedade das situa-ções individuais e de grupo, de modo a impedir que odogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte aproteção e a defesa das pessoas socialmente fragilizadase desfavorecidas, de modo a se extinguir ou pelo menosmitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e,conseqüentemente, de promover a justiça social56.

2. caracterização dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos como direitosconstitucionais fundamentais

As garantias constitucionais que asseguram o respeito àsminorias e a igualdade de todos, sem preconceito de ori-gem e raça estão fortemente ligadas à proteção da cultu-ra brasileira, prevista nos artigos 215 e 216 da Constitui-ção Federal, que devem ser interpretadas segundo osobjetivos fundamentais da República e sob a garantia doEstado Democrático de Direito.

Carlos Frederico Marés observa, com precisão, que aprincipal novidade da Constituição de 1988 foi alterar oconceito de bens integrantes do patrimônio cultural pas-sando a considerar que são aqueles portadores de referên-cia à identidade, à ação, à memória dos diferentes gruposformadores da sociedade brasileira. Pela primeira vez no

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56 barbosa gomes, Joaquim Benedito. As Ações Afirmativas e os Proces-sos de Promoção da Igualdade Efetiva. Artigo publicado no Caderno n.º 24,do Centro de Estudos Judiciários – CEJ do Conselho da Justiça Federal,Brasília, 2003

Brasil foi finalmente reconhecida, em texto legal a diver-sidade cultural brasileira como patrimônio nacional ima-terial, que, em conseqüência passou a ser protegida e enal-tecida, passando a ter relevância jurídica os valores popu-lares, indígenas e afrobrasileiros57.

Desse modo, constata-se a significativa modificaçãoconceptual de bens culturais dada pela atual Constitui-ção, que afastou a referência exclusiva aos monumentose a grandiosidade da aparência externa de coisas imóveisjá feitas ou acontecidas para privilegiar outras situaçõese contextos que ainda estão acontecendo, dentro de umavisão de cultura como processo contínuo e dinâmico,como a representatividade e identidade étnica de cadaum dos grupos formadores da nacionalidade, em seu sen-tido mais amplo58.

O que se pretendeu assegurar na nova Constituição é queos diferentes grupos formadores da sociedade gozem daproteção quanto a seus modos de viver, isto é, o direito àsua cultura própria, ao mesmo tempo em que se estabele-ce a garantia de ampla participação social e política desseseguimento (ou minoria) através dos benefícios sociaisque a igualdade segundo a lei impõe, sem descurar-se dasdiferenças culturais, ínsitas a todas as minorias étnicas.

Sob o ponto de vista cultural, é que a proteção às ter-ras ocupadas pelas comunidades remanescentes de qui-lombos deve ser entendida, por se tratar da efetivação de

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57 mares, Carlos Frederico, Introdução do Direito Sócioambiental. Arti-go publicado na obra “O Direito Para o Brasil Socioambiental”, Ed. Sér-gio Antônio Fabris, Porta Alegre, 2002.58 carneiro da cunha, Manuela. “Custom Is Not a Thing, It Is a Path:Reflections on the Brazilian Indian Case”, Article in An Na’im, Abdullah,“Human Rights in Cross Cultural Perspectives”, Philadelphia, Universityof Pennsylvania Press, 1992.

um direito constitucionalmente garantido em um Estadodemocrático pluriétnico.

De modo particular o art. 68 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias expressa que “aos remanes-centes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Evidentemente, não se deve pensar isoladamente o art.68 do adct, imaginando-se que a obrigação do Estado comrelação a essas comunidades finda-se com a mera expedi-ção dos títulos de domínio sobre as terras que ocupam.

O que se busca assegurar é o respeito a essas comuni-dades, a possibilidade de que possam continuar se repro-duzindo segundo suas próprias tradições culturais eassegurando, também, a sua efetiva participação em umasociedade pluralista.

Para isso é importante registrar que o Estado, após aConstituição de 1988, passou a ter a obrigação de arrolare identificar essas comunidades, onde se localizam,quantos habitantes possuem, como vivem e que proble-mas fundiários enfrentam.

3. processo de reconhecimento e identificação das comunidades remanescentes de quilombos.

Antes de adentramos na questão fundiária, é importan-te tentar explicitar melhor os conceitos jurídicos de qui-lombos e remanescentes de quilombos. Em curtas pala-vras, para saber que direitos são próprios dessas pessoas,que possam assim ser identificadas como um grupo étni-co, convém indagar antes quem são eles.

O direito à igualdade pressupõe o respeito às diferen-ças. Assim, deve-se estar atento, primeiramente, para a

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caracterização da proteção da identidade cultural dosremanescentes de quilombos como garantia fundamen-tal desses grupos assegurada pela Constituição Federal.

Não é desconhecida pela história oficial a definição dequilombo dada em 1740, pelo Rei de Portugal, verbis:

toda habitação de negros fugidos que passem de cinco,em parte desprovida, ainda que não tenham ranchoslevantados nem se achem pilões neles (in Revista Brasi-leira de Geografia, Outubro–Dezembro de 1962, p. 79).

José Alípio Goulart repara que:

a existência de quilombos imprimia tal receio aos bran-cos, que qualquer ajuntamento de escravos fugidos jáera como tal considerado, não importando seu númerodiminuto. Consoante Provisão de 6 de março de 1741,“Era reputado quilombo desde que se achavam reunidoscinco escravos.” No art. 20 do código de Posturas daCidade de S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul, aprovadopela Lei Provincial n.º 157, de 9 de agosto de 1848, lê-seque: “Por quilombo entender-se-á a reunião no mato oulugar oculto, mais de três escravos.” E a AssembléiaProvincial do Maranhão, querendo ser mais realista queo próprio Rei, votou a Lei n.º 236, de 20 de agosto de1847, classificando “quilombo” a reunião de apenas ...dois escravos: “Art. 12. Reputar-se-á escravo quilom-bado, logo que esteja no interior das matas, vizinho oudistante de qualquer estabelecimento, em reunião dedois ou mais com casa ou rancho”59.

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59 goulart, José Alípio. Os Quilombos, Revista Brasileira de Cultura,vol. 6, 1970, pgs. 129/141.

Os elementos da definição do Rei de Portugal, queorientaram as perseguições aos escravos fugidos no sécu-lo xviii e xix, são importantes (até porque estes concei-tos espraiaram-se no tempo) para chegarmos às caracte-rísticas legais do que fosse um quilombo, segundo oordenamento jurídico colonial.

Em primeiro lugar, não se exigia que o número de fu-gitivos fosse grande. Bastava, em geral, que superassemcinco, mas a lei colonial estabelecia a fuga como elemen-to essencial para definição de quilombos. Então, cincoou mais escravos fugidos poderiam, em tese, caracterizarum quilombo.

Em segundo lugar, não era necessário, nos termos es-tabelecidos pelo Rei, que houvesse ranchos levantados,vale dizer, não se exigia que esses fugitivos fixassem mo-rada em qualquer canto.

Em terceiro lugar, não se exigia que os fugitivos cons-tituíssem qualquer forma de organização social, particu-larmente a forma militar de resistência, uma vez que oajuntamento de escravos fugidos tinha por objetivo asubversão da ordem escravocrata ou a guerra à coroa por-tuguesa e a brasileira que a sucedeu.

Percebe-se pela leitura das leis municipais e do Alvá-rá Régio de 1740 que o conflito armado entre escravos eo poder colonial ou, mais precisamente, o medo de suaocorrência, orientou, posteriormente, a caracterizaçãode quilombos, a partir do arquétipo Palmares60.

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60 almeida, Alfredo Wagner Berno de. As Populações remanescentes deQuilombos: Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro. Texto apresen-tado no Seminário Internacional “As Minorias e o Direito” realizado nostj de 11 a 13 de setembro de 2001 e publicado no Caderno n.º 24 do cej

– Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasí-lia, 2003.

Assim, pode-se concluir que qualquer grupo compostoprimordialmente por negros fugidos, que tenha logradopermanecer livre durante a vigência das leis escravistasdo país, ainda que composto de outros indivíduos que nãoapenas os escravos fugidos, era considerado quilombo.

Em todas elas podemos notar o vínculo histórico-so-cial que liga a atual comunidade com um grupo formadopor escravos fugidos, perseguidos ou não, e que perma-neceram livres, embora não alforriados.

Com a abolição da escravatura e o fim das persegui-ções oficiais, esses grupos tiveram a oportunidade de seaproximar dos núcleos populacionais da sociedade en-volvente, passando o contato a ser natural e gradativo,embora já houvesse relações de troca e até de casamentoentre os dois grupos, anteriormente à abolição, comoindicam pesquisas históricas recentes61.

Entretanto, ainda que as relações comerciais qualifi-cadas por interesses comuns entre as duas sociedadespossam ter sido fortemente estabelecidas com o passar dotempo, isso não significou que essas comunidades, for-madas originariamente por escravos fugidos, tenhampassado a se identificar com qualquer outro grupo dasociedade que os havia excluído ou mesmo perseguido.

Dessa maneira, as populações que mantiveram o vín-culo social e histórico com os grupos formados essencial-mente por escravos fugidos, ainda que composto por ele-mentos não considerados escravos, os quais eram conside-

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61 almeida, Alfredo Wagner Berno de. As Populações remanescentes deQuilombos: Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro. Texto apresen-tado no Seminário Internacional “As Minorias e o Direito” realizado nostj de 11 a 13 de setembro de 2001 e publicado no Caderno n.º 24 do cej

– Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasí-lia, 2003.

rados quilombolas perseguidos pelas forças escravistas, eque construíram sua própria história, a margem do domí-nio da sociedade envolvente, passaram a ser considera-das primordialmente como remanescentes de quilombos.

O vínculo histórico social emerge então como parâme-tro constitucional adequado para a definição de quesejam comunidades remanescentes de quilombos, a par-tir da própria legislação colonial.

Por outro lado, a idéia de que teria havido um com-pleto isolamento de comunidades rurais negras da socie-dade envolvente e mesmo das relações de mercado nãotem sustentação histórica ou antropológica. AlfredoWagner lembra que a afirmação da identidade dos qui-lombolas se fez nas transações econômicas. Isto é, na“fronteira” entre os grupos étnicos. Segundo ele, a tran-sação comercial é que assegurava solidez na fronteira doquilombo, de modo que a identidade étnica teria se fir-mado com mais intensidade no contato do que no supos-to isolamento das comunidades negras rurais no Brasil62.

Para além do vínculo histórico social que deve nortearo critério de reconhecimento de um território quilom-bola, é preciso lembrar que o Decreto n.º 4887, de 20 deNovembro de 2003, estabeleceu o critério da auto-de-finição como forma primordial de identificação e carac-terização das comunidades remanescentes de quilombo-las, como consta do seu art. 2.º:

Consideram-se remanescentes das comunidades de qui-lombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-ra-ciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetó-ria histórica própria, dotados de relações territoriais

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62 Opus cit, pg. 247/248.

específicas, com presunção de ancestralidade negra rela-cionada com a resistência à opressão histórica sofrida.§ 1.º – Para os fins deste Decreto, a caracterização dosremanescentes das comunidades de quilombo será ates-tada mediante auto-definição da própria comunidade.§ 2.º – São terras ocupadas por remanescentes das co-munidades dos quilombos as utilizadas para a garantiade sua reprodução física, social, econômica e cultural.§ 3.º – Para a medição e demarcação das terras, serãolevados em consideração critérios de territorialidadeindicados pelos remanescentes das comunidades dosquilombos, sendo facultado à comunidade interessadaapresentar as peças técnicas para a instrução procedi-mental.

O critério antropológico da auto-identificação do grupoétnico elegido pelo Decreto n.º 4887, hoje largamenteutilizado para a caracterização de uma comunidade tra-dicional, foi reconhecido pela Convenção n.º 169 daOrganização Internacional do Trabalho (oit), ratificadapelo Congresso Nacional e incorporada ao ordenamentojurídico brasileiro como lei ordinária. No inciso ii do art.1.º da Convenção n.º 169 está dito que “a consciência desua identidade indígena ou tribal deverá ser consideradacomo critério fundamental para determinar os grupos aosquais se aplicam as disposições da presente Convenção.”

Convém ressaltar que a simples utilização do critériode auto-reconhecimento do Grupo, não dispensa umainterpretação mais acurada da expressão “remanescentesdas comunidades dos quilombos”. Nesse sentido, a an-tropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer explica, com pro-priedade, que a idéia de quilombo como escravo fugido,que aparece na história dos princípios, é um ‘signo de refe-

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rência’ e, por sua natureza, é um objeto histórico, ele nãoapenas reflete o mundo existente ou pré-existente, revela-do pelos documentos, como muito menos segue os usos pres-critos pela conceituação.

Ao contrário, a categoria quilombo, como objeto simbó-lico representa um interesse diferencial para os diversossujeitos históricos, ‘de acordo com sua posição em seus es-quemas de vidas’. Por isso, o uso da categoria quilombo, nocontexto da afirmação dos direitos constitucionais de seg-mentos importantes e expressivos da sociedade brasileira,através do cumprimento do art. 68 do ADCT, da Constitui-ção Federal de 1988, tem sido objeto de “mal-entendidos’,devido à perspectiva do observador, ainda que, social e cul-turalmente, esse uso possa ser considerado ‘criativo’63.

O critério da auto-idenficação, considerado comoessencial para a caracterização de um grupo social dife-renciado, surge a partir de lições de Frederick Barth, queinovou os métodos para constituição de limites de uni-dades étnicas, procurando-se fugir aos fundamentos bio-lógicos, lingüísticos e raciais64.

Em conseqüência, há o abandono da “visão explicati-va” das comunidades, a qual tenta, através de um “obser-vador externo”, produzir um conhecimento segundo oqual se pretende conferir a uma comunidade certa iden-tidade, determinando-se o lugar dos indivíduos e seugrupo no universo social. Muitas vezes, nessa visãoexplicativa, atribuem-se elementos de unidade desco-nhecidos pelo próprio segmento social em estudo, reve-

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63 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: ElianeCantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 267.64 barth, Frederik. Ethnic Groups and Boundaries. Bergen-Oslo: Univer-sitets Forlaget, 1969.

lando-se aí a sua insuficiência e imprecisão, bem como anecessidade de superá-la.

Por isso, a extrema importância das investigações deFrederik Barth, que coloca como questão central para aidentificação da comunidades não as diferenças culturaisentre grupos percebidas por um observador externo,mas sim os “sinais diacríticos”, isto é, aquelas diferençasque os próprios atores sociais consideram significativase que, por sua vez, são revelados pelo próprio grupo65.

Daí a importância do critério do auto reconhecimen-to ter sido incorporado ao Decreto n.º 4887⁄2003. Obser-va-se que essa condição difere radicalmente do que esta-belecia o Decreto n.º 3912⁄2001 que, ao regulamentar oart. 68 do adct, estabeleceu critério temporal para o re-conhecimento dos direitos das comunidades remanes-centes de quilombos.

Nos termos do parágrafo único do art. 1.º do mencio-nado decreto, somente pode ser reconhecida a propriedadesobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em1888; II – estavam ocupadas por remanescentes das comu-nidades de quilombos em 5 de outubro de 1988.

Deborah Duprat de Britto Pereira, ao examinar a legali-dade do Decreto n.º 3912, observou que não há razão cons-titucional ou mesmo histórica para que o direito previstono art. 68 do adct remonte aos idos de 1888. Historicamen-te, a figura do quilombo – tal como significado à época, –antecede, em muito, o marco apontado, e tampouco encon-tra nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-dentes à abolição da escravidão já implementadas ou em

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65 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: ElianeCantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 268.

franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isono-mia que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dosquilombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em suaexistência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto66.

Ademais, prossegue a autora, o art. 68 do adct orien-ta-se numa perspectiva de presente, com vistas a assegu-rar a estes grupos étnicos ligados historicamente à escravi-dão o pleno exercício de seus direitos de auto-determina-ção em face de sua identidade própria. E porque o terri-tório é imanente à identidade, o que a Constituição deter-mina é a proteção deste território que se apresenta na atua-lidade, sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmen-te ocupado pelos ancestrais se não mais se configura comoculturalmente significativo para as gerações presentes.

O Decreto n.º 3.912, de 2001 derivou de um equívococonceptual de quilombos, há muito abandonado pelaantropologia. Esse conceito, advindo do período coloniale aqui já referido, descrevia o quilombo como “toda habi-tação de negros fugidos, que passem de cinco, em partedespovoada, ainda que não tenham ranchos levantados enem se achem pilões nele”. Mas, a prevalecer esse con-ceito jurídico-formal de quilombo, estar-se-ia, comoexplica Alfredo Wagner Berno de Almeida67, a “frigorifi-cá-lo” mais do que já foi, estabelecendo-o como uma cate-goria histórica acrítica e como um grupo social estático,

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66 brito pereira, Deborah M. D. Breves considerações sobre o Decreto n.º3.912/01. In Q’Dwyer, E. C. Quilombos identidade étnica e territorialidade.Rio de Janeiro, aba/fgv. 2002. pp. 281-289.67 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias.In. Quilombos. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.:Eliane Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 267

preso a ao arquétipo simbólico de Palmares, como se forapossível achar hoje comunidades negras cercadas em for-tificações militares em guerra com o poder imperial.

Em conclusão, o marco final revelado pelo Decreto 3912,além de arbitrário, revelava nítido viés etnocentrista, namedida em que se sinalizava com um limite temporal alémdo qual se negava o direito à identidade étnica e o correla-to território que a requer e, em certa medida, a determina.

Ainda que tal ato tenha sido expressamente revogadopelo Decreto n.º 4877, de 20 de novembro de 2003, havianele dupla ofensa ao texto constitucional, bem apontadapor Deborah Duprat, e que merece registro. Primeiro,porque alguém estranho ao grupo étnico é quem deter-minaria o prazo final de sua existência constitucional-mente amparada, o que, evidentemente, conflita com anoção de plurietnicidade e com o direito das minorias emum estado democrático de direito.

E segundo, por impor ao grupo uma rigidez culturale impedi-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conce-ber novos estilos de vida, de construir de novas formasde vida coletiva, enfim, a dinâmica de qualquer comu-nidade real, que se modifica, se desloca, idealiza proje-tos e os realiza, sem perder, por isso, a sua identidade68.

Para a antropologia, apenas as comunidades ideais,erigidas a partir de ficções jurídicas, apresentam-secomo entidades imóveis, isoladas e impermeáveis àsinfluências culturais externas. As reais, ao contrário, sãomarcadas pelo signo da mudança social e econômica, emum processo dinâmico que interfere e molda as relações

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68 brito pereira, Deborah M. D. Breves considerações sobre o Decreto n.º3.912/01. In Q’Dwyer, E. C. Quilombos identidade étnica e territorialidade.Rio de Janeiro, aba/fgv. 2002. pp. 281-289.

interétnicas, e que demanda, por conseqüência, reelabo-ração permanente por parte dos pesquisadores de gru-pos e comunidades indígenas e tradicionais69.

Por isso se torna essencial participação de antropólo-gos e historiadores no processo de identificação dessascomunidades. Tratam-se de profissionais que são treina-dos e habilitados para o trabalho de recolhimento e com-pilação dos dados necessários à elaboração de laudos fun-dados sobre a identificação e distinção das fronteiras étni-cas, com o objetivo de verificar a caracterização de cadagrupo concreto, dentre as comunidades remanescentes dequilombos. E esse trabalho difere substancialmente daavaliação agronômica e da medição fundiária de um dadoterritório reivindicado por comunidades quilombolas.

Portanto, o direito de auto-atribuição da condição dequilombolas deriva do § 2.º do art. 5.º da ConstituiçãoFederal, e este tem fundamento na Convenção 169 daoit, ratificada pelo Congresso Nacional que, no planointernacional, estabeleceu o critério da auto definiçãocomo essencial para caracterização dos grupos tribais,indígenas e comunidades tradicionais.

4. problemas na definição e delimitação das terras dos quilombolas.

De início, observa-se que o direito dos afrodescenden-tes, caracterizados como quilombolas, não pode ser afas-tado da questão da territorialidade, já que estão postosnuma indissociável relação de inclusão.

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69 carneiro da cunha, Manuela. Custom Is Not a Thing, It Is a Path:Reflections on the Brazilian Indian Case, Article in An Na’im, Abdullah,Human Rights in Cross Cultural Perspectives, Philadelphia, University ofPennsylvania Press, 1992.

No que respeita à territorialidade das comunidadesremanescentes de quilombos, os casos conhecidos per-mitem apontar para uma ocupação comunal da terra, oque indica que os títulos expedidos pelo Estado nãodeveriam ser individuais, mas coletivos como foi estabe-lecido no Decreto 4887⁄2003.

De forma contundente, o art. 17 do referido Decretoestabelece que a titulação ou reconhecimento do domí-nio em favor das comunidades quilombolas será reconhe-cida e registrada mediante outorga de outorga de títulocoletivo e pró-indiviso, com obrigatoriedade de inserçãode claúsula de inalienabilidade, imprescritibilidade eimpenhorabilidade.

A opção do poder público em favor da titulação cole-tiva das terras de quilombos favorece o sistema comunal deutilização da terra e evita que o território possa ser frag-mentado em pequenos títulos individuais de propriedade,com a grande vantagem de proteger as comunidades qui-lombolas contra a especulação imobiliária, uma vez queestaria vedada a transferência dessas terras a terceiros.

Alfredo Wagner explica bem os benefícios da titula-ção coletiva: “a propriedade definitiva idealmente torna-ria todos “iguais” nas relações de mercado, com os quilom-bolas, emancipados de qualquer tutela, expressando-seatravés de uma via comunitária de acesso à terra. O fatode a propriedade não ser necessariamente individualizadae aparecer sempre condicionada ao controle de associaçõescomunitárias torna-a, entretanto, um obstáculo às tentati-vas de transações comerciais e praticamente as imobilizaenquanto mercadoria70.

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70 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quaissão os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de

Por isso, afirma o autor, as terras das comunidadesquilombolas cumprem sua função social precípua, quan-do o grupo étnico, manifesto pelo poder da organizaçãocomunitária, gerencia os recursos no sentido de sua re-produção física e cultural, recusando-se a dispô-los àstransações comerciais. A posse coletiva, representadacomo forma ideológica de imobilização que favorece afamília, a comunidade ou uma etnia determinada, em de-trimento de sua significação mercantil tal forma de pro-priedade, impede que domínios privados venham a sertransacionados no mercado de terras71.

Não se pode esquecer que o elemento territorial é ape-nas um dos parâmetros que adentram na categoria qui-lombo, para conferir-lhe a devida significação. Sendoassim, ainda que algumas terras não estivessem efetiva-mente ocupadas pelos quilombos, e que fosse demons-trado que eles não ocupavam outras terras à época daabolição da escravatura ou ainda que não permaneces-sem nelas, na data da promulgação da Constituição Fede-ral de 1988, tais circunstâncias não seriam suficientespara impedir o reconhecimento da propriedade, uma vezconstatado que essas comunidades não teriam como sereproduzir física, social, econômica e culturalmente, sema incorporação ou ampliação desses territórios.

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continuação 70 quilombos. In “Vida de Negro no Maranhão, uma expe-riência de luta, organização e resistência dos territórios quilombolas”,Secretária Municipal de Direitos Humanos, São Luís, 2003, pg. 91/92. 71 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quaissão os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes dequilombos. In:“Vida de Negro no Maranhão, uma experiência de luta,organização e resistência dos territórios quilombolas”, Secretária Muni-cipal de Direitos Humanos, São Luís, 2003, pg. 92/3.

Inegavelmente os quilombos devem ser entendidoscomo “signo de referência” que apontam em duas dire-ções distintas: passado e futuro. Isso quer dizer que denada adiantaria reconhecer títulos de propriedade deterras para essas comunidades se, dentro dessa circuns-crição espacial, esses mesmos grupos étnicos não tiveremcondições de se desenvolverem, preservando, assim, suaidentidade e o poder público não estivesse obrigado aproceder a regularização fundiária desse território.

Carlos Ari Sundfield lembra que existe uma intrínse-ca relação entre a “identidade coletiva” e os parâmetros deidentificação dos quilombos, na medida em que a auto-pre-servação da comunidade, ao longo do tempo, deu-se emcontraste com várias influências externas (por exemplo:os madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, agricultores etc),que, em muitas vezes, acarretaram expulsão ilegítima dascomunidades quilombolas de suas próprias terras72.

Neste caso, a desapropriação corresponderia a um res-gate da expropriação sofrida pelos quilombos, aindamais quando a constituição não reconhece a essas comu-nidades direitos originários sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam, como faz em relação às comunidadesindígenas no art. 231 e seus parágrafos, e tampouco tor-na nulos e sem efeito os títulos de domínio incidentessobre tais terras.

Os títulos de domínio privado, se não são nulos ou nãoforam anulados pela autoridade competente, permane-cem válidos até que sobrevenha o reconhecimento ofi-cial dessa comunidade enquanto remanescente de qui-lombo e se determine a delimitação da área ocupada pelo

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72 sundfield, Carlos Ari. Comunidades Quilombolas: direito à terra. Fun-dação Cultural Palmares. Brasília: minc e Abaré, 2002, pg. 79/80.

grupo, de modo que a União Federal possa proceder a suadesapropriação dessas terras, expedindo, ao final, os jus-tos títulos de domínio às comunidades remanescentes dequilombos.

Neste sentido, Carlos Ari Sundfield também entendeser recomendável a desapropriação dessas terras embeneficio das comunidades quilombolas:

Nossa conclusão, portanto, é que o Poder Público, paragarantir às comunidades quilombolas a propriedadedefinitiva das terras que estejam ocupando, no caso deelas pertencerem a particulares, deve lançar mão do pro-cesso de desapropriação, com fundamento no art. 216, §1.º da Constituição Federal. O referido processo de desa-propriação é de nítido interesse social, com fundamentoconstitucional no art. 216, § 1.º e será feito em beneficiode comunidades quilombolas73.

Por outro lado, negar às comunidades quilombolas odireito ao reconhecimento formal de suas terras median-te o processo administrativo de desapropriação signifi-caria deixá-las ao abandono, tornando as disposições doart. 68 do adct mera retórica política, sem conseqüên-cia prática para essas comunidades.

Por isso merece aplauso o Decreto 4887, de 2003, quan-do, em seu art. 13, autoriza a desapropriação pelo Institu-to de Colonização e Reforma Agrária – incra, quando forverificado que nos territórios ocupados pelos remanes-centes das comunidades de quilombos incide títulos dedomínio particular, não invalidados por nulidade, pres-crição ou comisso, nem tomados ineficazes.

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73 sundfield, Carlos Ari. p. 118.

Deve ser registrado que, em data anterior a edição doDecreto 4887, houve algumas desapropriações realizadaspelo incra ou por Estados Membros em favor das Comu-nidades Negras do Rio das Rã (ba), das comunidades dosrios Cuminá, Erepecuru e Trombetas (pa), das comunida-des Kalunga (go), isso sem falar na solução inusitadaencontrada para resolver a questão fundiária das comuni-dades de Frechal, no Maranhão e de Sapé do Norte, noEstado do Espírito Santo; a de alocar as famílias quilombo-las em uma reserva extrativista, típica unidade de conser-vação de uso direto destinado a populações tradicionais74.

O art. 3.º do Decreto 4887 estabeleceu um procedimen-to único para o reconhecimento dos territórios quilombolas,encerrando velha controvérsia sobre qual o melhor modelofundiário para a identificação e delimitação dessas áreas:

Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário,por meio do Instituto Nacional de Colonização e Refor-ma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento,delimitação, demarcação e titulação das terras ocupa-das pelos remanescentes das comunidades dos quilom-bos, sem prejuízo da competência concorrente dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios.§ 1.º O INCRA deverá regulamentar os procedimentosadministrativos para identificação, reconhecimento,delimitação, demarcação e titulação das terras ocupa-das pelos remanescentes das comunidades dos quilombos,dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.

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74 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quaissão os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes dequilombos. In: “Vida de Negro no Maranhão, uma experiência de luta,organização e resistência dos territórios quilombolas”. São Luís: Secre-tária Municipal de Direitos Humanos, 2003, pg. 88.

§ 2.º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabe-lecer convênios, contratos, acordos e instrumentos simi-lares com órgãos da administração pública federal,estadual, municipal, do Distrito Federal, organizaçõesnão-governamentais e entidades privadas, observada alegislação pertinente.§ 3.º O procedimento administrativo será iniciado deofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer inte-ressado.(...)

Portanto, o incra passou a ter a competência para pro-ceder a identificação, delimitação e regularização fun-diária a emissão de títulos coletivos pro-indiviso, emfavor das comunidades remanescentes de quilombos.Entretanto, quando houver incidência de domínio pri-vado em áreas reivindicadas pelas comunidades, a titu-lação não poderá ser realizada sem um prévio processode discriminação e desapropriação dos particulares quedetenham títulos legítimos. A não ser que se demonstrea irregularidade ou ilegalidade no registro de proprieda-de ostentado por terceiros.

Finalmente, o Decreto n.º 4887⁄2003 define que são ter-ras ocupadas por remanescentes de quilombos as utiliza-das para a garantia de sua reprodução física, social, econômi-ca e cultural. Ao assim fazer, o ato normativo em questão to-ma emprestado da Constituição o conceito de terras indíge-nas estabelecido no art. 231 § 1.º, da Constituição Federalpara estabelecer que o território utilizado para a reprodu-ção física, social e cultural do grupo constitui elemento dereconhecimento das terras de quilombos (art. 2.º § 2.º).

Alfredo Wagner explica a necessidade de se reconhe-cer aos quilombos o direito à terra, tendo em conta sua

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relação com a natureza. Diz ele que “os procedimentos declassificação que interessam são aqueles construídos pelospróprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não neces-sariamente aqueles que são produto de classificações exter-nas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na conse-cução da identidade coletiva e das categorias sobre as quaisela se apóia. Aliás, essas categorias podem ter significadosespecificas, como sugere terra de preto, que pressupõe umamodalidade codificada de utilização da natureza: os recur-sos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não sãoindividualizados; tampouco são individualizados os recur-sos de caça, pesca e extrativismo. São mantidos como delivre acesso. Caminhos, trilhas e poços são mantidos sobformas de cooperação simples75.

De outra parte, continua o autor, as chamadas roçasou tratos agrícolas, que estão dispostas no cerne de umacerta maneira de existir socialmente, são sempre indivi-dualizadas num plano de famílias, pois as unidades fami-liares não dividem o produto da colheita de forma - coleti-va ou comunitariamente. De igual modo, um pomar é apro-priado de maneira privada e, tal como no caso das roças,expressa trabalho realizado familiarmente76.

Do exposto, constata-se que a opção política pelo reco-nhecimento da titulação coletiva, em nome de toda acomunidade quilombola, previsto no art. 17 do Decreton.º 4887/2003, revelou-se acertada do ponto de vista ju-rídico e consentânea ao modo de vida e a cultura própriadesses grupos, sendo de grande relevância a previsão doinstituto da desapropriação por interesse social para arealização do direito constitucional das comunidades

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75 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 16), p. 68.76 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 16), p. 69.

remanescentes de quilombos as terras que ocupam ouque tenham direito a ocupar.

5. dificuldades legais e operacionais para a efetivação do direito à terra

Para facilitar o enfrentamento dos obstáculos à concretiza-ção do art. 68 do adct, é preciso separar em três blocos dis-tintos as dificuldades legais e operacionais para a efetiva-ção do direito das comunidades quilombolas às terras queocupam ou que podem vir a ocupar. As dificuldades podemser classificadas como de ordem antropológica e proce-dimental, jurídica e política e orçamentária e financeira.

A primeira delas, é de ordem antropológica e diz res-peito as dificuldades de se identificar populações negras,preponderantemente de origem rural e que tenham vín-culos histórico-social com antigos quilombolas em umprocedimento administrativo.

Em um instigante artigo sobre os obstáculos à titula-ção definitiva das comunidades remanescentes de qui-lombos, Alfredo Wagner tenta responder a duas pergun-tas repetidamente feitas pelo movimento quilombola eque dizem respeito aos resultados em termos quantitati-vos e à intensidade ou ritmo do processo de reconheci-mento formal das comunidades remanescentes de qui-lombos, a saber:

– Por que, após 16 anos do artigo 68 do ADCT, da Cons-tituição Federal de 1988, foram tituladas menos de 5%(cinco por cento) do total de áreas estimadas como per-tencentes a comunidades remanescentes de quilombos?– Por que, nos últimos dois anos, não teria ocorrido titu-lação de nenhuma comunidade?

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Para responder a tais perguntas, devemos enfrentar,inicialmente, a questão antropológica, Não obstante o cri-tério da auto-identificação do grupo, previsto na Conven-ção n.º 169 da oit e reconhecido como melhor método deaferição étnica, tenha sido expressamente incluído noDecreto 4887⁄2003, não se mostra fácil a tarefa de carac-terização do grupo e de seu processo de territorialização.

Em conseqüência, critica a antropóloga Eliane Canta-rino O’Dwyer, os laudos antropológicos (relatórios deidentificação de comunidades), para fins de aplicação doart. 68 do adct, deveriam, em vez de uma opinião pre-concebida sobre os fatores sociais e culturais que defini-riam a existência de limites desses grupos, opinar levan-do em conta somente as diferenças consideradas signifi-cativas para os membros do próprio grupo étnico, nocaso, dos próprios quilombolas77.

De fato, a emissão de certidão pela Fundação CulturalPalmares (fcp), conforme artigo 3.°, § 3 do Decreto4.887⁄2003, regulamentado pela Portaria fcp n.º 06, de1.° de março de 2004, preconiza o cadastramento dascomunidades quilombolas com base no critério do auto-reconhecimento. No entanto, verifica-se que diversosprocedimentos cadastrais têm sido implementado o mes-mo tempo por diferentes órgãos oficiais, como incra,Fundação Palmares, denotando uma burocratizaçãoexcessiva no cadastramento dessas comunidades.

Outro ponto preocupante, anotado pelo antroplógoAlfredo Wagner, seria o tempo demasiadamente longo de“tramitação” entre o pronunciamento de auto identifica-ção das comunidades, na forma do art. 2.º, § 1.º, do Decre-

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77 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: Elia-ne Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 268.

to 4887, junto aos órgãos oficiais e o ato efetivo de certi-ficação. Para se ter uma idéia da lentidão do processo dereconhecimento de uma comunidade quilombola, querepresenta a etapa inicial de identificação do grupo, aFundação Cultural Palmares teria emitido apenas 96(noventa e seis) certidões até dezembro de 200478.

Sabendo das dificuldades operacionais de incorporaros fatores étnicos à ação agrária, Alfredo Wagner chamaa atenção para um dos riscos maiores dos procedimentosburocrático-administrativos de natureza fundiária, qualseja: o de confundir a área do imóvel rural, levantada porcadeia dominial, com o território da comunidade rema-nescente de quilombo, socialmente construído e auto-re-conhecido. Segundo ele, não há qualquer coincidêncianecessária entre eles, ainda que em alguns casos assim seapresente. Esta distinção deveria, na sua opinião, ser umpressuposto norteador das ações operacionais79.

Uma dificuldade operativa adicional decorre do “rela-tório técnico”, previsto no decreto n.º 4887, cuja com-petência de autoria, não estando formalmente definida,gera uma tensão permanente entre procedimentos deinspiração meramente agronômica e aqueles de funda-mentos antropológicos. Seria uma outra maneira de repe-tir a idéia de que tais comunidades não podem ser iden-tificadas tão somente por instrumentos agrários, por-quanto devam ser objeto de uma intervenção de funda-mento étnico. Não é por outro motivo que os juizes e opróprio Ministério Público Federal têm invariavelmenterecorrido ao conhecimento científico de antropólogospara dirimir dúvidas e solucionar conflitos.

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78 almeida,Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 86/7.

79 almeida,Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 85.

Não há como negar as dificuldades na implementaçãodos procedimentos político-administrativos no reconhe-cimento das comunidades remanescentes de quilombos.De fato, até ser promulgado o primeiro decreto de regu-lamentação das disposições relativas à aplicação do arti-go 68, passaram-se 13 anos até a edição do Decreto n.°3.912, de 10 de setembro de 2001, que, além de limitardrasticamente o alcance do artigo 68, revelou-se incons-titucional e inoperante, como já analisado anteriormen-te, apresentando resultados pífios80.

Dois anos e dois meses depois, o Decreto 3912 foi subs-tituído pelo Decreto n.° 4887, de 20 de novembro de2003, seguido pela Instrução Normativa mda/incra n.°16, de 24 de março de 2004. Mesmo reconhecendo osavanços nas discussões e nas consultas aos movimentossociais, o antropólogo Alfredo Wagner lamenta o fato deque, um ano após a edição do Decreto n.º 4887, nenhu-ma comunidade quilombola tinha recebido, até novem-bro de 2004, título de propriedade de suas terras pelogoverno federal81.

O Instituto de Estudos Sócioeconômicos – inesc pu-blicou recentemente um preocupante relato sobre aquestão fundiária quilombola. Embora existam 2.228comunidades quilombolas no país, o relatório afirmaque somente duas teriam sido regularizadas no gover-no Lula82.

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80 De 2001 a 2003 foram tituladas 23 terras de quilombos, corresponden-do a 127.133,39 hectares. Os trabalhos técnicos foram realizados pelosórgãos estaduais de terra (itesp, iterpa e iterma). Todas elas sofreramcontestação judicial e os títulos encontram-se sob ameaça de anulação,segundo informação de Alfredo Wagner Berno de Almeida.81 almeida, Alfredo Wagner Berno de. 82 www.inesc.org.br\textos

Se é verdade que a Constituição de 1988 teria garan-tido, em tese, o direito a posse permanente da terra àscomunidades quilombolas, é constrangedora a constata-ção de que apenas 70 (setenta) comunidades remanescen-tes de quilombos foram efetivamente beneficiados, des-de 1988, com a expedição de títulos dominiais definiti-vos, o que significa que o processo de reconhecimento edelimitação dessas terras está longe de acabar e que háuma distância abissal entre a declaração formal previstano art. 68 do adct e a efetividade desse direito.

O segundo ponto de discórdia, de natureza jurídica epolítica, e que poderá dificultar a efetivação dos direitosdas comunidades remanescentes de quilombos às terraspor eles utilizadas, diz respeito a tramitação da Ação Di-reta de Inconstitucionalidade n.º 3239-9/df, ajuizadapelo Partido da Frente Liberal – pfl contra o Decreto n.º4887⁄2003, que regulamenta o procedimento para iden-tificação, reconhecimento, delimitação, demarcação etitulação das terras ocupadas por comunidades remanes-centes de quilombos.

Depois de 15 (quinze) anos, aguardando uma defini-ção legal, as comunidades quilombolas vêm um partidopolítico de grande expressão argüir, em junho de 2004,junto ao Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionali-dade do novo Decreto sob a alegação, em síntese, de: a)invadir a esfera reservada à lei; b) prever a desapropria-ção de terras à essas comunidades e c) estabelecer o cri-tério da auto-atribuição para identificação dos remanes-centes de quilombos83.

A Advocacia Geral da União alegou, em preliminar,não existir ofensa direta à Constituição Federal, sob o

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83 adin n.º 3239-9/df – Relator: Ministro César Peluso.

argumento de que o Decreto n.º 4.887⁄03 retiraria seufundamento de validade diretamente das normas do art.14, iv, “c”, da Lei n.º 9.649⁄88 e do artigo 2.º, iii e pará-grafo único, da Lei n.º 7.668⁄88.

No mérito, a União sustenta a inocorrência de invasãodo Decreto a esfera reservada à lei pois, aquele diplomalegal, retiraria seu fundamento da validade das própriasleis federais, não havendo a alegada irregularidade doponto de vista formal propagada pelo autor.

Por fim, a Advocacia Geral da União aduziu que a de-sapropriação, prevista no artigo 216, § 1.º, corresponde-ria a um resgate da expropriação sofrida pelos quilom-bos, possuindo o instituto, nítido interesse social.

O Ministério Público Federal reiterou os argumentosda Advocacia Geral da União para pedir o não conheci-mento ou a improcedência da adin. Em especial, o Pare-cer do então Procurador Geral da República, CláudioFonteles, contesta a idéia de que o Decreto 4887 seria umdecreto autonômo, por regular diretamente, sem a inter-posição de lei, o art. 68 do adct, acentuando, todavia,que, como norma protetora de uma minoria em situa-ção de vulnerabilidade, o dispositivo tem plena e ime-diata eficácia, independentemente de regulamentaçãoposterior.

De acordo com Carlos Ari Sundfeld, o art. 68 do adctestá devidamente regulamentado pela Lei n.º 9649⁄98(art. 14, iv. “c”) – que confere ao Ministério da Culturacompetência para aprovar a delimitação das terras dosremanescentes de quilombos e pela Lei n.º 7668⁄88 (art.2.º, ii, e parágrafo único) que dá à Fundação Cultural Pal-mares atribuição para realizar a identificação das comu-nidades remanescentes de quilombos e também proce-

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der a delimitação e demarcação das terras por eles ocu-padas e conferir-lhes a correspondentes titulação84.

Dessa forma, nos parece inteiramente improcedente aargüição de inconstitucionalidade no sentido de que oDecreto 4887 teria “autonomia legislativa”. Na verdade,o decreto em questão retira o seu fundamento de valida-de diretamente das leis federais já mencionadas, nãohavendo a irregularidade formal apregoada pelo pfl.

Como aqui já foi dito, o critério de identificação da“auto-atribuição” fixado pela norma do art. 2.º do Decre-to n.º 4.887, de 2003, não incorre em inconstitucionali-dade. Antes, à luz da norma constitucional regente (art.215 e art. 216, da cf c/c art. 68 do adct), busca o con-ceito de remanescentes de quilombos nos métodos for-necidos pela Antropologia e em princípio estabelecido nodireito internacional público. Portanto, não há nenhumóbice legal à utilização do critério de auto identificaçãopara a legitimação do processo de reconhecimento dascomunidades quilombolas.

Aliás, a escolha de critério antropológico para a defini-ção de grupo étnico com base na auto-atribuição somentede forma reflexa poderia suscitar qualquer inconstitucio-nalidade, sendo opção política do poder público adotá-lopara a tarefa de dar cumprimento ao art. 68 do adct, queobriga a União a proceder a titulação das terras ocupa-das por comunidades remanescentes de quilombos.

Por outro lado, não se nega que o reconhecimento ofi-cial dessas comunidades, ao menos no papel, gera, nacontra-partida uma violência crescente contra as comu-nidades remanescentes de quilombos, através da amea-

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84 sundfield, Carlos Ari. Comunidades Quilombolas: direito à terra. Fun-dação Cultural Palmares/MINC e Abaré, Brasília, 2002, pg. 22.

ça de morte por parte de jagunços a mando de latifun-diários e grileiros, que queimam as casas e tentam des-mobilizar as lideranças quilombolas, de modo a incorpo-rar ao domínio privado, por meios arbitrários, os espa-ços coletivos tradicionalmente utilizados pelas popula-ções tradicionais85.

Segundo Alfredo Wagner, em algumas unidades dafederação como Maranhão e Bahia, a titulação de terrasdas comunidades quilombolas pode se constituir num des-tacado instrumento de desconcentração da propriedadefundiária. Contrapondo-se frontalmente à dominação oli-gárquica. Os antagonismos sociais têm se acirrado nestasregiões, com comunidades quilombolas praticamente cer-cadas e com suas vias de acesso interditadas por interes-ses latifundiários86.

Não cabe neste estudo análise mais detalhada sobre osaspectos formais da referida ação direta de inconstitucio-nalidade, mas não se pode negar que o pfl, ao insurgir-se contra o principal instrumento legal de reconheci-mento, identificação, delimitação e demarcação dos ter-ritórios quilombolas, age, politicamente, em favor dosgrandes latifundiários e de setores econômicos interes-sados na pulverização desse território.

Afinal, negar o fator étnico, e nele o critério de autoidentificação, para reconhecimento das comunidadesquilombolas, além de servir à judicialização da escolhade um determinado critério antropológico pelo Decreto4887, esvazia a reivindicação política das lideranças eassociações quilombolas e facilita os atos ilegítimos deusurpação e de violação do art. 68 do adct.

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85 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 89.86 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 92.

Os antagonismos sociais em jogo transcendem os fato-res meramente econômicos e trazem a questão à cenapolítica constituída. Mediante obstáculos desta ordem, atitulação definitiva das comunidades remanescentes de qui-lombos se mostra mais que essencial, posto que, historica-mente, as famílias destas comunidades têm sido mantidascomo “posseiros” e assim parecem pretender mantê-lasaqueles interesses contrários ao seu reconhecimento. Man-tidas como eternos “posseiros” ou com terras tituladas semformal de partilha, como no caso das chamadas terras depreto, que foram doadas a famílias de ex-escravos ou queforam adquiridas por elas, sempre são mais factíveis deserem usurpadas87.

Por último, vale destacar a importância da questãoorçamentária e de sua execução financeira como um obs-táculo permanente para a efetivação dos direitos dascomunidades remanescentes de quilombos ao seu territó-rio. E quanto a este ítem, o componente ideológico, quepossa assegurar a este ou aquele partido ou frente polí-tica o exercício do poder no governo federal, é irrelevan-te, pois a ausência de compromisso orçamentário para ocumprimento efetivo de norma constitucional em defe-sa dos direitos humanos parece ser universal e comum atodas as agremiações políticas, e espraia-se sobre todosos temas a serem enfrentados pelo poder público nestaárea, como os programas de combate a tortura, de prote-ção a testemunhas, demarcação de áreas indígenas, cria-ção de unidades de conservação e etc.

De fato, não se deve afastar, no curso do debate, aimportância do contingenciamento e de restrições orça-mentárias para a inadequada e cronicamente insuficien-

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87 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 92.

te aplicação de verbas destinados à titulação das comu-nidades remanescentes de quilombos. Em decorrênciadesse fato, comum a outras minorias, o mda/incra temalegado não ter como fazer as desapropriações e nem terfuncionários especializados para executar os procedi-mentos de identificação, delimitação e demarcação88.

Um levantamento divulgado pelo inesc indica que osr$ 11 (onze) milhões do orçamento do Ministério do De-senvolvimento Agrário – mda destinado ao pagamentode indenização aos proprietários rurais ficaram intactosem 2004. Somente 8% (oito por dento) do orçamento deR$ 14,4 milhões para reconhecimento, demarcação e titu-lação de áreas quilombolas teriam sido aplicados atéjunho deste ano89.

Note-se que dois problemas referentes ao orçamentose juntam e agravam, ainda mais, a questão do reconhe-cimento do território quilombola. O primeiro diz respei-to a escassez de recursos próprios do incra ou da Fun-dação Palmares para fazer cumprir o disposto no art. 68do adct em razão de falta de previsão de verbas paraeste fim na lei de orçamento. O segundo é o contingen-ciamento ou, pior, a não utilização dos recursos já pre-vistos e incluídos no orçamento; seja por força de deci-são das autoridades fazendárias; seja pela inexistência depessoal técnico para a consecução dos trabalhos em cam-po, como antropólogos, agrimensores e engenheiros.

Alfredo Wagner lamenta que esses recursos orçamen-tários que faltam ao processo de regularização de terras

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88 Vide Relatório inesc/2005 sobre a situação fundiária das comunida-des remanescentes de quilombos.89 Notícia publicada no Correio Braziliense de 30 de agosto de 2005,Caderno Brasil, p. 12.

quilombolas vão ser encontrados, entretanto, nos chama-dos programas sociais do governo federal, na área de saú-de, educação, e alimentação, como se as comunidades re-manescentes de quilombos pudessem ser reduzidas a umacategoria econômica, ou seja, como se tratassem de “comu-nidades carentes” ou de baixa-renda ou ainda de comu-nidades que podem ser classificadas como “pobres”90.

Sob um ponto de vista de ênfase nas políticas sociais,as comunidades quilombolas estariam se tornando “be-neficiárias” de programas, projetos e planos governa-mentais e passando a ser classificadas como “públicoalvo” (veja mda, folder “Quilombolas”, 2004) e/ou “pú-blico meta” englobadas assim por classificações maisabrangentes, que designam os respectivos programas eprojetos, quais sejam: “pobres”, “excluídos”, “populaçãode baixa renda” e “desassistidos”.

Segundo Alfredo Wagner quilombola torna-se, destemodo, um atributo que funciona como agravante da con-dição de ser “pobre”. Ser “pobre”, numa sociedade auto-ritária e de fundamentos escravistas, implica ser priva-do do controle sobre sua representação e sua identidadecoletiva. Ser considerado “pobre” é ser destituído deidentidade coletiva. Além disto, ao serem classificadaspor necessidades definidas pelo Estado, tais comunida-des se tornam despolitizadas, ainda que tenham o con-trole de suas necessidades em virtude de processos demobilização e de lutas políticas continuadas. O risco aquié de confundir um elemento de política étnica com polí-ticas sociais focalizadas, homogeneizando situações sobuma noção de “pobreza exótica”91.

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90 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 87.91 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 87.

6. conclusão

Os obstáculos e entraves à titulação das terras dascomunidades remanescentes de quilombos não podemser reduzidos tão somente a “defeitos” na engrenagem damáquina administrativa estatal ou a dificuldades opera-cionais ou decorrentes de insuficiente ou má utilizaçãode recursos orçamentários para este fim.

Há várias configurações neste jogo de poder quetranscendem a questões de funcionalidade e a rubricasorçamentárias. Há tipos de entraves que, inclusive, nãoaparecem de maneira explícita, mas que efetiva e impli-citamente inibem o poder público de cumprir a obriga-ção de regularizar e titular as terras utilizadas pelascomunidades remanescentes de quilombos .

Uma delas concerne às relações de poder historica-mente apoiadas no monopólio da terra e na tutela de indí-genas, ex-escravos e posseiros. Com fundamento nelas,interesses latifundiários e outros grupos responsáveispelos elevados índices de concentração de terras rejei-tam o reconhecimento de direitos étnicos pela proprie-dade definitiva das terras das comunidades quilombolas.

A mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidademovida pelo Partido da Frente Liberal no Supremo Tri-bunal Federal, em 25 de junho de 2004, buscando im-pugnar o Decreto n.º 4.887⁄03, sobretudo o critério deidentificação das comunidades remanescentes de qui-lombos pela auto-atribuição, com vistas a restringir aomáximo o alcance do dispositivo, é um bom exemplo dasdificuldades para a efetivação do direito consagrado noart. 68 do adct em favor dessas comunidades negras .

Em contraposição a estas formulações, observa Alfre-do Wagner os movimentos quilombolas e os levantamentos

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oficiais indicam que o número de comunidades remanescen-tes de quilombos permanece ainda relativamente desconhe-cido, mas sempre crescente e abrangendo novas modalida-des. Em conformidade com as estimativas disponíveis,verifica-se uma tendência ascensional com os totais sen-do acrescidos a cada nova iniciativa de cadastramento92.

O Programa de Ação Afirmativa, intitulado “Quilom-bolas”, reitera que os dados oficiais do MDA apontam aexistência de 743 (setecentos e quarenta e três) áreas decomunidades remanescentes de quilombos com 30 (trin-ta) milhões de hectares, mas, ao mesmo tempo, promovea subestimação desse número ao afirmar, de modo para-doxal, que “no entanto, estimativas não-oficiais admitema existência de mais de duas mil comunidades”, acentuan-do entre o que já se conhece e o que não se conhece sig-nificativa discrepância numérica.

Em conclusão, a vasta maioria das comunidades rema-nescentes de quilombos existentes no Brasil ainda é des-conhecida do poder público e invisível aos olhos dasociedade e não conseguiram ainda ver os benefícios quedeveriam lhes caber por força de um dispositivo consti-tucional, sobretudo o direito às terras que ocupam e deque necessitam para a sua reprodução, física, social, eco-nômica e cultural.

Finalmente, listamos, de forma sumária, algumas su-gestões para a implementação dos direitos concernentesàs comunidades remanescentes de quilombos e em prolda igualdade étnico-racial:

1. reiterar a auto-aplicabilidade, com o máximo de efi-cácia, do art. 68 do ADCT, onde se encontra a matriz nor-

92 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 90/91.

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mativa para obrigar a União a regularizar as áreas uti-lizadas pelas comunidades remanescentes de quilombose a expedir os respectivos títulos de domínio;2. defender a constitucionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003,que estabelece o procedimento de identificação, delimi-tação e demarcação dos territórios quilombolas;3. denunciar as tentativas de se excluir do processo dereconhecimento das comunidades remanescentes de qui-lombos o critério da auto definição, essencial para aidentificação étnica nos termos da Convenção nº. 169,da OIT e do Decreto 4887⁄2003;4. apoiar a titulação coletiva – pro-indiviso – em favordas comunidades remanescentes de quilombos, com acláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e im-penhorabilidade das terras por eles ocupadas;5. garantir a possibilidade de utilização do processo dedesapropriação nos territórios ocupados pelas comuni-dades remanescentes de quilombos que estão sob domí-nio privado;6. defender as comunidades remanescentes de quilombosde toda a forma de opressão, discriminação, de invasãode seu território e de espoliação do seu direito ao títulode domínio coletivo sobre as terras por elas utilizadas;7. fiscalizar, junto ao Congresso Nacional, a elaboraçãoda proposta orçamentária destinada aos Ministérios daCultura e Desenvolvimento agrário para a implementa-ção do Decreto 4887⁄2003;8. cobrar da Fundação Palmares e do Ministério do De-senvolvimento Agrário/INCRA seja dada integral exe-cução aos respectivos orçamentos para que não sejamdesperdiçadas as verbas destinadas ao processo de iden-tificação, reconhecimento, delimitação e demarcaçãodas comunidades remanescentes de quilombos;

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9. sensibilizar a opinião pública da necessidade de se res-peitar e proteger as comunidades remanescentes de qui-lombos, sua cultura, seu modo de ser e as suas terras;10. articular com o Ministério Público, Poder Judiciá-rio e a sociedade civil organizada a defesa da constitu-cionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003 e da retomada doprocesso de identificação de terras quilombolas queencontra-se paralisado no atual governo.

Aurélio Virgílio RiosSubprocurador geral da República.

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ministério público federalGrupo de Trabalho sobre Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais

Parecer contrário ao projeto de Decreto Legisislativo n.º 44, de 2007, de autoria do Deputado Federal Valdir Colatto

Contra o Decreto n.º 4.887, de 20⁄11⁄2003, que “[r]egu-lamenta o procedimento para identificação, reconheci-mento, delimitação, demarcação e titulação das terrasocupadas por remanescentes das comunidades quilom-bolas de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Cons-titucionais Transitórias” da Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil, foi apresentado o Projeto de Decre-to Legislativo n.º 44, de 2007, que propõe a suspensão daaplicação daquele Decreto.

Este parecer da 6.ª Câmara de Coordenação e Revisãodo Ministério Público Federal (Procuradoria-Geral daRepública), produzido pelo Grupo de Trabalho sobreQuilombos, Povos e Comunidades Tradicionais, revela o

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descabimento do Projeto de Decreto Legislativo – poisnão houve exorbitância do poder regulamentar – e suaimprocedência – pois o Decreto 4.887⁄2003 não contémos defeitos que lhe são apontados.

a autoaplicabilidade do art. 68 adct

Desde a promulgação da Constituição de 1988 que se dis-cute a propósito da aplicabilidade (eficácia jurídica) doart. 68 adct.

A aplicabilidade imediata (eficácia jurídica plena) éevidente e ressalta já da redação do dispositivo. Estão su-ficientemente indicados, no plano normativo, o objeto dodireito (a propriedade definitiva das terras ocupadas), seusujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunida-des dos quilombos), a condição (a ocupação tradicionaldas terras), o dever correlato (reconhecimento da pro-priedade e emissão dos títulos respectivos) e o sujeitopassivo ou devedor (o Estado, Poder Público). Qualquerleitor bem-intencionado compreende tranqüilamente oque a norma quer dizer, e o jurista consegue aplicá-la semnecessidade de integração legal.

O art. 68 adct consagra diversos direitos fundamen-tais, como o direito à moradia e à cultura. Do regimeespecífico e reforçado dos direitos fundamentais decor-re a tendencial aplicabilidade imediata, visto que – apon-ta o Professor Daniel Sarmento – “os direitos fundamen-

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93 sarmento, Daniel. A garantia do direito à posse dos remanescentes dequilombos antes da desapropriação. <<http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/insti-tucional/grupos-de-trabalho/quilombos-1/documentos/Dr_Daniel_Sar-mento.pdf>>, Rio de Janeiro, 2006.

tais não dependem de concretização legislativa para sur-tirem os seus efeitos”93.

Também indicam a eficácia jurídica plena desse arti-go: o conteúdo da declaração normativa (simplesmente oreconhecimento de um direito e a atribuição de um deverespecífico de atuação do Poder Público) e sua localizaçãonas disposições transitórias (que, justamente para pode-rem disciplinar imediatamente situações de transiçãoentre sistemas constitucionais que se sucedem, devemestar dotadas de normatividade suficiente, segundo alição do Professor José Afonso da Silva94).

Aspectos específicos relacionados ao âmbito concreto(identificação de pessoas, delimitação de áreas etc.) e aoâmbito administrativo (órgãos competentes, procedi-mento...) não criam direitos e deveres “externos”, ape-nas regulamentam a atuação estatal, e não carecem, por-tanto, de lei para serem disciplinados.

Ademais, para satisfazer o princípio da legalidade láonde ele se impõe, já existe todo um arcabouço legislativoque sustenta a aplicação do Decreto 4.887⁄2003: a orga-nização administrativa, a legislação sobre desapropria-ção etc. Ou seja: o art. 68 adct não necessita de lei parasua aplicabilidade, mas onde esta é exigida no geral, exis-tem diversas leis pertinentes. Citem-se, a propósito, a Lei9.649⁄1998, sobre a organização da Presidência da Repú-blica e dos Ministérios, que atribui ao Ministério da Cul-tura competência para “aprovar a delimitação das terrasdos remanescentes das comunidades dos quilombos,bem como determinar as suas demarcações, que serãohomologadas mediante decreto” (art. 14, iv, “c”); e a Lei

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94 silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 189-191.

7.668⁄1988, que institui a Fundação Cultural Palmares elhe dá competência para “realizar a identificação dosremanescentes das comunidades dos quilombos, proce-der ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação dasterras por eles ocupadas e conferir-lhes a corresponden-te titulação” (art. 2.º, iii).

Nesse contexto, ressalte-se o compromisso internacionalassumido pelo Brasil ao promulgar a Convenção n.º 169 daOrganização Internacional do Trabalho (oit, 1989), sobrepovos indígenas e tribais. Pela Convenção, os governoscomprometem-se a adotar “as medidas que sejam necessá-rias para determinar as terras que os povos interessadosocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dosseus direitos de propriedade e posse” (art. 14.2)95.

Mais importante, contudo, é considerar o tempotranscorrido. Passados quase vinte anos da promulgaçãoda Constituição, não tem mais cabimento essa discussão arespeito da autoaplicabilidade do art. 68 adct, senãocom intenção de neutralizar o comando constitucional.Um comprometimento com a efetividade da Constituiçãoimplica “construir uma argumentação sobre o art. 68 quenão inviabilizasse as ações positivas já existentes em prolda realização do direito lá estabelecido”, destaca o Centrode Pesquisas Aplicadas da Sociedade Brasileira de DireitoPúblico, capitaneada pelo Professor Carlos Ari Sundfeld96.

Curioso que o anterior Decreto 3.912⁄2001, igualmen-te editado diretamente para regulamentar o art. 68 adct,mas cuja disciplina inadequada inviabilizava o efetivo

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95 Aprovação pelo Decreto Legislativo 143, de 20/6/2002; promulgaçãopelo Decreto 5.051, de 19/4/2004.96 sundfeld, Carlos Ari (Org.). Comunidades quilombolas: direito à terra.Brasília: Fundação Cultural Palmares; Abaré, 2002, p. 112.

reconhecimento da propriedade das terras de remanes-centes de comunidades de quilombos, tenha passadoincólume à declaração de inconstitucionalidade ou à sus-tação. Isso revela que o projeto de decreto legislativo emquestão na verdade insurge-se contra a perspectiva de umreconhecimento efetivo do direito de propriedade aosremanescentes de comunidades de quilombos (mais pró-xima com o atual Decreto 4.887⁄2003 do que com o ante-rior) e não contra a validade jurídica do Decreto 4.887.

Quando a densidade da norma constitucional é sufi-ciente e há apenas necessidade de regulamentação parauma atuação administrativa adequada, não faz falta ainterposição legislativa e pode ser estabelecida uma rela-ção imediata entre a Constituição e o decreto97.

Vejam-se os exemplos da “organização e funciona-mento da administração federal, quando não implicaraumento de despesa nem criação ou extinção de órgãospúblicos”, e da “extinção de funções ou cargos públicos,quando vagos” (art. 84, vi), bem como da intervençãofederal (art. 36, § 1.º).

Em outras hipóteses, pode já existir legislação e o regu-lamento é apenas aparentemente autônomo, conformedecidiu recentemente o stf em relação à antiga Portaria796⁄2000, do Ministro da Justiça, sobre classificação indi-cativa dos programas de televisão: o Estatuto da Criança edo Adolescente (Lei 8.069⁄1990) era a prévia lei necessária.

Equivoca-se a justificação do projeto em questão, aoacusar o Decreto 4.887 de pretender “regulamentar dire-ta e imediatamente preceito constitucional”. A uma, por-

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97 Doutrina e jurisprudência admitem a reserva de lei relativa: martines,Temistocle. Diritto constituzionale. 11. ed. Milano: Giuffrè, 2005, p. 379.98 adi 2.398 AgR/df, rel. Min. Cezar Peluso, 25/6/2007.

que o art. 68 adct possui suficiente densidade normati-va, sendo autoaplicável. A duas, porque a regulamenta-ção de aspectos meramente administrativos relacionadosa dispositivo constitucional autoaplicável não um vício,sendo perfeitamente cabível. A três, porque há diversasleis preexistentes que dão sustentação ao Decreto.

o acerto e não a exorbitância dodecreto 4.887⁄2003

O projeto de decreto legislativo para sustar o Decreto4.887 utiliza como pretexto, que este supostamente esta-ria exorbitando do poder regulamentar, mas o que o pro-jeto realmente combate é o acerto (conteúdo, mérito) des-sa regulamentação. Desse modo, está-se a utilizar inde-vidamente o poder conferido ao Congresso Nacional noart. 49, v, da Constituição.

O que essa competência congressual tem em mira é so-bretudo um defeito formal: quando o Poder Executivovai além da faculdade de regulamentar ou da delegaçãolegislativa, independentemente do acerto com que a ma-téria é disciplinada. Trata-se de um instrumento de pro-teção da reserva de competência exclusiva do CongressoNacional e não de uma alternativa para contestar o méri-to da atuação do Executivo, quando esta se contém emseus devidos limites.

O Congresso Nacional – na precisa anotação de JoséAdércio Leite Sampaio – “não pode avaliar o mérito em sido ato normativo, não pode aquilatar o seu acerto utili-tário, de conveniência ou de oportunidade, se, por exem-

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99 sampaio, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdi-ção constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 475-476.

plo, espaços para adoção de alternativas tiverem sido dei-xados, expressa ou implicitamente, pelo legislador”99.

É o princípio fundamental da separação de Poderes(art. 2.º) que está em jogo. Se a competência para disci-plinar um assunto é do Poder Legislativo (reserva de lei),uma indevida invasão (usurpação) de competência podeser combatida na esfera política pelo próprio CongressoNacional (por meio da sustação: art. 49, v) e na esferajudicial pelo Poder Judiciário (por exemplo, por meio deação direta de inconstitucionalidade).

Entretanto, se a competência constitucional para dis-ciplinar um assunto é do Poder Executivo, no exercíciodo poder regulamentar (art. 84, iv, final), o Poder Legis-lativo não pode alegar que houve usurpação de sua com-petência e utilizar o poder de veto legislativo conferidopelo art. 49, v, apenas porque não concorda com o méri-to da regulamentação. Como esclarece o Professor Clè-merson M. Clève, quando o Executivo deve apenas “dis-ciplinar os procedimentos utilizados pela Administração(modo de agir) nas relações que travará com os particu-lares, efetivamente, não há delegação”, e “o Executivopode, perfeitamente, regulamentar a lei em virtude decompetência própria”100. Em termos mais gerais, mas res-saltando essa atribuição regulamentar própria, enfati-zam os Professores Luiz Alberto David Araujo e VidalSerrano Nunes Júnior que a lei “não pode impedir a suaregulamentação, pois estaria invadindo a competênciado Poder Executivo”101. Portanto, a situação inverte-se no

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100 cleve, Clèmerson M. Atividade legislativa do Poder Executivo noEstado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dosTribunais, 1993, p. 254.101 araujo, Luiz Alberto David; nunes Júnior, Vidal Serrano. Curso dedireito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 310.

presente projeto de decreto legislativo: é o CongressoNacional que extrapola seu poder ao pretender suspen-der o exercício adequado do poder regulamentar peloPresidente da República.

A desautorização da opção do Executivo pelo Legis-lativo pode dar-se apenas onde houver autorizaçãoexpressa da Constituição. Fora daí, os Poderes deverãorespeitar suas respectivas esferas de atribuição. O PoderLegislativo pode, sim, contestar o acerto das opções doExecutivo, por exemplo, em relação a escolhas de titula-res de determinados cargos (art. 52, iii), ao veto (art. 66,§ 4.º), a medidas provisórias (art. 62, § 5.º), à intervenção(art. 36, § 1.º). Essas e outras hipóteses revelam a inter-ferência recíproca (freios e contrapesos) entre os Pode-res, que define por exceção o princípio da autonomia.

Em suma, o projeto de decreto legislativo em análisetem em vista infirmar a opção do Poder Executivo, con-substanciada no conteúdo do Decreto 4.887⁄2003, e uti-liza indevidamente como pretexto uma alegada – masnão explicada – ultrapassagem dos limites do poderregulamentar.

respeito ao devido processo legal – Se pudesseapreciar o mérito da regulamentação dada pelo Decreto4.887, o Congresso Nacional, no uso do poder de sustaçãode atos normativos do art. 49, v, da Constituição, haveriade concluir pelo atendimento ao princípio do devidoprocesso legal, em sentido contrário ao que insinua oprojeto de decreto legislativo ora em exame.

Cuidadoso, o Decreto 4.887⁄2003 adota o critério an-tropológico de auto-atribuição dos grupos étnico-raciais(art. 2.º), pois não haveria como reconhecer autoridade aalguém externo ao grupo para proceder, heteronoma-

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mente, à atribuição de identidade. “Devemos encontraralguma outra maneira de assegurar a legitimidade, umamaneira que não continue a definir grupos excluídos emfunção de uma identidade que outros criaram para eles.”– adverte Will Kymlicka102.

É seguido o critério internacionalmente adotado, doque dá testemunho a Convenção n.º 169 da oit, cujo art.1.2 dispõe que a consciência da própria identidade “deve-rá ser considerada como critério fundamental para deter-minar os grupos” aos quais se aplica a Convenção103. Tantoé assim que Julie Ringelheim, ao analisar a ConvençãoEuropéia dos Direitos Humanos, refere que, no contextodas diferentes culturas, conforme apontam sociólogos eantropólogos, “as normas e as práticas são interpretadas,negociadas, modificadas pelos próprios atores sociais”104.

Todavia, como o próprio Decreto determina, devemser avaliados também outros fatores (trajetória históricaprópria, relações territoriais específicas, ancestralidadenegra relacionada com a resistência à opressão histórica),que revestem de objetividade a auto-atribuição inicial.Juliana Santilli aponta justamente que os principais cri-térios adotados para a identificação das comunidades dequilombos são “a auto-atribuição (critério também con-sagrado pela Convenção 169 da oit, já mencionado) e arelação histórica com um território específico”105.

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102 kymlicka, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: MartinsFontes, 2006, p. 293.103 santilli, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídi-ca à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 136-137.104 ringelheih, Julie. Diversité culturelle et droits de l’homme. L’émer-gence de la problématique des minorités dans le droit de la Convention euro-péenne des droits de l’homme. Bruxelles: Bruylant, 2006.105 Op. e loc. cit.

Essa, contudo, é apenas uma etapa preliminar, que de-verá ser seguida da “identificação, delimitação e levan-tamento ocupacional e cartorial” da área (art. 7.º do De-creto), retratadas num relatório técnico. Este será enca-minhado a diversos órgãos para manifestação (art. 8.º) epermitirá contestação por qualquer interessado (art. 9.º).

Como se percebe, os requisitos para o reconhecimentodo direito de propriedade deverão ser demonstrados, des-de a condição de remanescente de quilombo até a posse tra-dicional (mesmo quando não atual, por causa, por exem-plo, de expulsão violenta). E são asseguradas amplas pos-sibilidades de contestação por quem se sentir prejudicado.

ausência de privilégio odioso – É a própria Cons-tituição de 1988 que, originalmente, institui um tratamen-to jurídico diferenciado para os remanescentes das comu-nidades de quilombos que ocupam ou ocupavam suas ter-ras tradicionalmente, mas não têm título e/ou registroimobiliário. Há o reconhecimento constitucional de umasituação histórica. Regimes jurídicos diferenciados con-cretizam a igualdade, “devendo as situações desiguais sertratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim oaprofundamento e a perpetuação de desigualdades en-gendradas pela própria sociedade”, assevera o MinistroJoaquim. B. Barbosa Gomes106.

Quando o projeto de decreto legislativo em foco acu-sa o Decreto 4.887⁄2003 de “estabelecer privilégio”, naverdade está a insurgir-se contra a opção feita na própriaConstituição, que também estabeleceu tratamento jurí-

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106 gomes, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitu-cional da igualdade. O Direito como instrumento de transformação social.A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 4.

dico distinto para os índios (art. 231), para as pessoasportadoras de deficiência (art. 37, viii), para os cultos eseus templos (art. 150, vi, “b”), para os Deputados eSenadores (art. 53)...

modalidade já existente de desapropriação – O pro-jeto também afirma, erroneamente, que o Decreto 4.887“cria nova forma de desapropriação, alargando os limi-tes constitucionais ao direito de propriedade, sem previ-são constitucional ou legal”.

As modalidades expropriatórias que podem ser utili-zadas, justamente para regularizar a situação fundiária egarantir indenização a posseiros que residam e/ou culti-vem as terras dos remanescentes de quilombos, são asclássicas desapropriações por utilidade pública (previs-ta no Decreto-lei 3.365⁄1941) e por interesse social (pre-vista na Lei 4.132⁄1962). A propósito, recentemente, oPresidente da República desapropriou por “interessesocial, para fins de titulação de área remanescente dequilombo”, a área onde se situa a comunidade remanes-cente de quilombo da Caçandoca, no Município de Uba-tuba, Estado de São Paulo (Decreto de 27⁄9⁄2006).

As desapropriações por utilidade pública ou por inte-resse social também podem ser realizadas pelos Estados,Distrito Federal e Municípios, na medida de suas possi-bilidades. Afinal, o art. 68 adct determina generica-mente que ao Estado – no sentido de Poder Público, ouseja, a todos os níveis federados de governo – incumbe aemissão dos respectivos títulos de propriedade.

É discutível se seria cabível ainda, em casos específicos,a desapropriação para fins de reforma agrária, pela União,ou mesmo se haveria necessidade de desapropriação ou sebastaria a indenização de eventuais posseiros (com ou sem

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título de propriedade) por outras vias. A desapropriação“por interesse social, para fins de reforma agrária” (art.184 da Constituição) é a forma determinada na InstruçãoNormativa n.º 20, de 19⁄11⁄2005, do Presidente do incra,que regulamenta o procedimento estabelecido no Decreto4.887⁄2003; essa in prevê também a desapropriação previs-ta no art. 216, § 1.º, da Constituição (desapropriação como objetivo de promover e proteger o patrimônio culturalbrasileiro, hipótese contida no Decreto-lei 3.365⁄1941, art.5.º, “l”) e a compra e venda “na forma prevista no Decre-to 433⁄92” (sobre a aquisição de imóveis rurais, para finsde reforma agrária). Toda essa discussão apenas indica apossibilidade de outras modalidades expropriatórias ouindenizatórias já previstas no ordenamento jurídico.

Como se pode ver, o Decreto 4.887 não “cria nova for-ma de desapropriação” e nem precisaria, pois as diver-sas modalidades expropriatórias já existentes prestam-seà regularização fundiária dos territórios tradicionalmen-te ocupados por comunidades quilombolas.

as formas de controle do decreto legislativo

O decreto legislativo de sustação dos atos do Poder Exe-cutivo que exorbitem do poder regulamentar – decretolegislativo que representa uma modalidade de controleparlamentar sobre o Executivo – também é suscetível decontrole, judicial.

Quando o pretenso controle parlamentar é quem usur-pa a competência regulamentar do Executivo, há afrontaao princípio da separação de poderes, que caracteriza in-

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107 matines, Temistocle. Diritto constituzionale. 11. ed. Milano: Giuf-frè, 2005, p. 503.

constitucionalidade107. Isso é afirmado pela jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal:

O exame de constitucionalidade do decreto legislativoque suspende a eficácia de ato do Poder Executivo impõea análise, pelo Supremo Tribunal Federal, dos pressupos-tos legitimadores do exercício dessa excepcional competên-cia deferida à instituição parlamentar. Cabe à Corte Su-prema, em conseqüência, verificar se os atos normativosemanados do Executivo ajustam-se, ou não, aos limitesdo poder regulamentar ou aos da delegação legislativa.A fiscalização estrita desses pressupostos justifica-secomo imposição decorrente da necessidade de preservar,hic et nunc, a integridade do princípio da separação depoderes (adi 748-3 mc/rs, rel. Min. Celso de Mello,1⁄7⁄1992)108.

Em caráter preventivo, todavia, já é possível proceder auma avaliação da (in)compatibilidade do próprio proje-to de decreto legislativo em comento, que não deverá re-ceber parecer favorável das comissões incumbidas deanalisá-lo. Evitar-se-á, assim, que o Congresso Nacionaldespenda tempo e esforços inutilmente, na discussão eeventual aprovação de um decreto legislativo fadado,então, a ter sua inconstitucionalidade declarada peloSupremo Tribunal Federal109.

Ainda que não se considere a inconstitucionalidadedo projeto de decreto legislativo, ele não merece aprova-

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108 Veja-se também a adi 1.553-2/df, rel. Min. Sepúlveda Pertence,6/1/1997.109 Encontra-se pendente de apreciação pelo Supremo Tribunal Federala Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/df, justamente contra oDecreto 4.887/2003.

ção no mérito. Cabe ao Congresso Nacional, isto sim, afir-mar a qualidade do Decreto 4.887⁄2003, que:

a) oferece um procedimento adequado de identifica-ção, reconhecimento, delimitação, demarcação e titula-ção das terras ocupadas por remanescentes das comuni-dades dos quilombos;

b) permite a concretização do art. 68 adct e assegu-ra, assim, um direito reconhecido pela Constituição de1988, mas que mal tem sido implementado;

c) responde ao compromisso internacional assumidopelo Brasil ao ratificar a Convenção 169 da oit.

Conclui-se que o Projeto de Decreto Legislativo n.º 44⁄2007é descabido, improcedente e contrário à Constituição.

Piracicaba (SP), 17 de setembro de 2007.

Walter Claudius RothenburgProcurador Regional da República

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anexo i – Parecer n.º agu/mc – 1/2006.

Manoel Lauro Volkmer de Castilho

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anexo ii – Despacho do Advogado-Geral da União.

Álvaro Augusto Ribeiro da Costa