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www.ts.ucr.ac.cr 1 CONSELHO TUTELAR E DEFESA DE DIREITOS DE CIDADANIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Maria Helena Goes Campelo 1 [email protected] Denise Bomtempo Birche de Carvalho 2 [email protected] Eje: Ciudadanía Mesa de trabajo: Democracia y legitimidad. Palabras claves: Cidadania, Participação, Controle Social, Conselho Tutelar, Comunidade. Resumen Os Conselhos Tutelares constituem o objeto de análise deste trabalho. O enfoque centra-se no papel e nas ações desses conselhos na defesa de direitos e cidadania de crianças e adolescentes. Os atendimentos realizados pelos Conselhos Tutelares relacionam-se à ausência de convivência familiar, pela falta de condições materiais das famílias. Nas áreas da saúde e da educação estão concentrados na falta de atendimento médico especializado e pelo impedimento de acesso à escola. A maior parte da demanda está associada à condição de pobreza das famílias, com a busca de programas e organizações que proporcionem qualificação aos filhos adolescentes e vagas em creches para que as crianças sejam cuidadas enquanto as mães trabalham, objetivando melhorar a renda familiar. As ações pautam-se pelo atendimento das necessidades de saúde, educação, estudo social para constatar a situação das condições das famílias, inclusão em programas e projetos de promoção e assistência. A população desconhece a função dos Conselhos Tutelares e os procuram como órgãos prestadores de serviços . A eficácia das ações dos Conselhos Tutelares, está no exercício de sua legitimidade na comunidade, para promover uma mudança no imaginário social e político acerca dos direitos do cidadão e como viabilizá-los na prática. Introdução O presente trabalho faz um resgate sobre a doutrina da proteção integral como a fonte inspiradora do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para destacar que, só recentemente a criança e o adolescente passaram a ser objeto de uma lei diferenciada e reconhecida pela sociedade. O ECA, foi pioneiro nesse processo de reconhecimento, e, sob a perspectiva da cidadania, propôs um poder compartilhado e uma gestão participativa, com relação às políticas de proteção às crianças e 1 Assistente Social, Mestre em Política Social pelo Programa de Pós -graduação em Política Social - Departamento de Serviço Social (SER) – Universidade de Brasília (UnB). 2 Orientadora da Pesquisa. Doutora em Sociologia. Investigadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq/Brasil, Professora do Departamento de Serviço Social (SER). Coordenadora do Programa de Mestrado em Política Social . Diretora do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília.

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CONSELHO TUTELAR E DEFESA DE DIREITOS DE CIDADANIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Maria Helena Goes Campelo1

[email protected] Denise Bomtempo Birche de Carvalho 2

[email protected]

Eje: Ciudadanía Mesa de trabajo: Democracia y legitimidad. Palabras claves: Cidadania, Participação, Controle Social, Conselho Tutelar, Comunidade.

Resumen Os Conselhos Tutelares constituem o objeto de análise deste trabalho. O enfoque centra-se no papel e nas ações desses conselhos na defesa de direitos e cidadania de crianças e adolescentes. Os atendimentos realizados pelos Conselhos Tutelares relacionam-se à ausência de convivência familiar, pela falta de condições materiais das famílias. Nas áreas da saúde e da educação estão concentrados na falta de atendimento médico especializado e pelo impedimento de acesso à escola. A maior parte da demanda está associada à condição de pobreza das famílias, com a busca de programas e organizações que proporcionem qualificação aos filhos adolescentes e vagas em creches para que as crianças sejam cuidadas enquanto as mães trabalham, objetivando melhorar a renda familiar. As ações pautam-se pelo atendimento das necessidades de saúde, educação, estudo social para constatar a situação das condições das famílias, inclusão em programas e projetos de promoção e assistência. A população desconhece a função dos Conselhos Tutelares e os procuram como órgãos prestadores de serviços . A eficácia das ações dos Conselhos Tutelares, está no exercício de sua legitimidade na comunidade, para promover uma mudança no imaginário social e político acerca dos direitos do cidadão e como viabilizá-los na prática. Introdução

O presente trabalho faz um resgate sobre a doutrina da proteção integral como

a fonte inspiradora do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para destacar que,

só recentemente a criança e o adolescente passaram a ser objeto de uma lei

diferenciada e reconhecida pela sociedade. O ECA, foi pioneiro nesse processo de

reconhecimento, e, sob a perspectiva da cidadania, propôs um poder compartilhado e

uma gestão participativa, com relação às políticas de proteção às crianças e

1 Assistente Social, Mestre em Política Social pelo Programa de Pós -graduação em Política Social - Departamento de Serviço Social (SER) – Universidade de Brasília (UnB). 2 – Orientadora da Pesquisa. Doutora em Sociologia. Investigadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq/Brasil, Professora do Departamento de Serviço Social (SER). Coordenadora do Programa de Mestrado em Política Social . Diretora do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília.

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adolescentes. O ECA instituiu os Conselhos de Direitos e Tutelares para proteger e

garantir os direitos reconhecidos. Os Conselhos Tutelares como aparato jurídico-

institucional do ECA no Município de Cuiabá, em Mato Grosso se constituem como

objeto de análise deste trabalho, cujo enfoque centra-se no papel e nas ações desses

mediadores da relação Estado e sociedade, na defesa de direitos de cidadania de

crianças e adolescentes.

A análise está concentrada em quatro Conselhos Tutelares e pretende

demonstrar se os Conselhos zelam pelo cumprimento dos direitos preconizados no

ECA e /ou realizam atendimento para que os direitos sejam garantidos. A pesquisa foi

realizada por meio de dados quantitativos e qualitativos extraídos dos prontuários de

atendimento, a partir dos encaminhamentos às organizações governamentais e não-

governamentais, realizados no período de julho de 1998 a julho de 1999. Esta

pesquisa é parte da dissertação de Mestrado intitulada Conselhos Tutelares:

participação e poder na construção da cidadania de crianças e adolescentes.

1. A Doutrina da Proteção Integral: fonte inspiradora do Estatuto da Criança e do

Adolescente - ECA.

A criança e o adolescente, atualmente, estão respaldados por uma legislação

internacional e nacional, que assegura e defende seus direitos fundamentais como

seres humanos e merecedores da atenção do Estado, da Sociedade e da família

visando a sua proteção integral.

O termo Proteção Integral surgiu para caracterizar o conjunto de normas e

princípios estabelecidos em forma de doutrina, na Convenção Internacional da

Organização das Nações Unidas (ONU) Sobre os Direitos da Criança, aprovado na

Assembléia Geral da ONU em 1989. Tais preceitos alteram o Direito prescrito em cada

nação, quando estes forem omissos em relação as normas de proteção por abuso ou

violação de direitos (Sêda, 1995).

A doutrina da proteção integral trouxe em seu bojo a noção de que a cidadania

vai além das dimensões civis e políticas, devendo ser incluída também a “dimensão

social – poder que a pessoa exerce de manifestar vontades eficaz para ter atendidas

suas necessidades básicas sempre que elas forem ameaçadas ou violadas” (Sêda,

1995:16).

Para Sêda (1995), o exercício da cidadania está no direito das crianças e

adolescentes não terem seus direitos ameaçados ou violados. A cidadania manifesta-

se no direito da vontade de viver com saúde, ter educação, ter uma profissionalização

adequada, lazer e conviver com suas famílias, em condições dignas de moradia.

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A doutrina da proteção integral apontou à sociedade civil a direção da mudança

histórica das crianças e adolescentes. Ela possibilitou alterar as relações sociais, a

estrutura social e o exercício do poder, ao mostrar que não é suficiente declarar em

documentos que o ser humano tem direitos, mas que elas possam exercer esses

direitos.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 registrou tais princípios, sendo os

mesmos regulamentados na Lei 8.069 e aprovada em 13 de julho de 1990,

denominada Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA assegurou como dever do

Estado a proteção e a prioridade absoluta na efetivação de políticas públicas para

crianças e adolescentes e, sobretudo de que elas seriam articuladamente efetivadas

através de ações descentralizadas em todas as esferas do governo.

2. Descentralização, Municipalização e Participação: caminhos para a

construção da cidadania de crianças e adolescentes?

Os conceitos de “descentralização”, “municipalização” e “participação” têm

estado em evidência nos discursos e nas propostas dos dirigentes, desde a

promulgação da Constituição Federal (CF) em 1988, como alternativa de estratégia

para a melhoria na gestão de questões voltadas à área social, sobretudo às políticas

públicas no Brasil.

A descentralização, no cenário brasileiro, se instituiu como novo paradigma, ao

contemplar no artigo 18 da CF que diz: “...a organização político-administrativa da

República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e

os Municípios, todos autônomos nos termos desta Constituição”.

Com relação ao tema descentralização, os estudos realizados pelos autores

Pereira (1996), Stein (1997) e Lustosa (1999) mostram que a utilização do termo e o

discurso não são tão recentes quanto parecem. Para os autores, o termo não surgiu

por acaso, nem como decorrência do processo de redemocratização brasileira, mas

como conseqüência de determinações histórico-estruturais que envolveram a

sociedade moderna. Além desses fatores, a instituição do paradigma da

descentralização, ocorreu para substituir o modelo centralizador/autoritário das

políticas sociais que se fez presente durante vinte anos do período ditatorial militar

(1964-1985) e que, de modo geral, sempre fez parte da história brasileira.

O termo “descentralização” tornou-se uma tendência mundial e emergiu com

mais intensidade num momento histórico e numa conjuntura social de crise econômica

e de mudanças político-ideológicas, a partir dos anos 60.

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Diversas experiências, nesse período, começaram a ser realizadas nos países

desenvolvidos. Vários países de capitalismo avançado buscaram a gestão

descentralizada e a participação da população, como mecanismo, para contornar os

problemas oriundos das transformações que vinham ocorrendo no sistema produtivo,

no mundo do trabalho, na estrutura familiar e nas relações sociais em geral. Essas

transformações resultaram do impacto gerado pelo processo de globalização, sobre o

papel do Estado-nação e, consequentemente, “sobre as estratégias de organização do

Estado e de suas relações com a sociedade” (Lustosa, 1999:237).

Segundo Lustosa (1999), a descentralização como tendência tem se colocado

sob duas formas. Na primeira, se constitui como uma das estratégias idealizadas pelos

governos neoliberais para diminuir a ação do Estado no campo social, com a

finalidade de reduzir os gastos públicos nesse setor. A segunda, contrapondo ao

ideário neoliberal apresenta propostas que ampliam a esfera pública, envolvendo

conjuntamente Estado/sociedade, possibilitando a efetivação de novas práticas sociais

e políticas, bem como a inserção de novos valores na sociedade contemporânea.

Na América Latina, em geral, e no Brasil, o debate em torno da

descentralização manifesta a preocupação com o crescimento econômico, ao mesmo

tempo que enfatiza a questão da equidade e da satisfação das necessidades básicas

dos cidadãos. Também procura ‘resgatar aspectos estruturais, institucionais e políticos

desprezados pelo neoliberalismo’. Essas questões, estão, principalmente, no plano da

relação Estado e sociedade, onde a descentralização pode favorecer ”maior

articulação da sociedade civil, por meio de organizações comunitárias e sindicatos,

desde que, no nível local, as instituições sejam representativas da comunidade e que

a participação seja uma realidade”. Stein (1997:92).

Pereira (1996:76 e 78), ao expor sobre o termo “descentralização” às políticas

sociais, diz que o tema é corretamente compreendido como um “processo de

redistribuição de poder em duas principais direções: a) da esfera federal para a

estadual e a municipal; e b) do Estado para a sociedade”. Para a autora, esse

processo também pode ser caracterizado como pluralismo, ou seja, como ”formas

plurais ou mistas de planejamento e ação (...)”. Estes conceitos, apontam para a nova

relação entre Estado e Sociedade civil, cuja estratégia centra-se na perspectiva de

cidadania, pois apresentam mudanças na estrutura do Estado; contribuem para a

formação de novos espaços institucionais de participação e deliberação popular e

propõem a gestão conjunta das políticas públicas.

Stein (1997:79-80), em sua reflexão conceitual sobre o termo descentralização,

ressalta que o mesmo se apresenta sob diferentes interpretações quando relacionados

às políticas públicas. Dentre as diversas interpretações, a autora diz que o processo

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de descentralização deve ser concebido ‘como status de meio, método ou tática’, mas

ela também admite que a definição do termo “descentralização” depende da visão e

das preocupações de cada ator social, diante do que pode ser identificado no contexto

social como problema a ser resolvido, com o objetivo que se deseja alcançar ou como

meio para solucionar outra questão. Sob essas diferentes concepções, a autora

conclui que a descentralização deve ser utilizada como um instrumento para atingir

determinados fins, já que existe uma inter-relação com as categorias democracia,

autonomia e participação.

A inter-relação do termo “descentralização” com tais categorias implica um

poder político, na medida que passa pela redefinição das relações de poder e

pressupõe um pluralismo, que se define como “a ação compartilhada do Estado, do

mercado e da sociedade” para efetivar serviços, prover bens que atendam às

necessidades básicas do ser humano, e de que o Estado desempenhe o seu papel de

assegurar direitos aos cidadãos (Stein, 1997:93).

Porém, o sucesso do processo de descentralização político-administrativa,

está, na efetivação conjunta do poder compartilhado e da gestão participativa entre

Estado e sociedade civil, objetivando realizar e remanejar as competências decisórias

e executivas, bem como dos recursos financeiros. Nesse processo, a sociedade civil

dispõe de uma autonomia que corrobora para o exercício do controle social e influi nas

definições e decisões nas diversas esferas de poder.

Pereira (1996) defende a descentralização na perspetiva de cidadania, a qual

denomina de “vertente progressista” ou de “esquerda”, como a que efetivamente

permite ao Estado promover uma relação articulada com a sociedade, quanto ao

planejamento das políticas públicas, em todas as esferas de governo, no sentido de

contribuir para a socialização da política e buscar modelos econômicos menos

excludentes e mais justos; ela lembra também que o conceito de descentralização

assume outras interpretações, em função das “diferentes vertentes ideológicas”, que

envolve as relações, demonstrando com isso, o confronto constante de idéias e

interesses no âmbito dessas relações, como a que autora chama de vertente

neoliberal e neoconservadora ou nova direita, para contrapor a vertente progressista

ou de esquerda.

Lustosa (1999:242-243) para explicar a distinção do termo descentralização

das políticas sociais brasileiras, sobretudo a descentralização “administrativa, política

e fiscal”, toma como referência duas concepções existentes: “Uma mais radical que

ele classifica de planejada e a segunda, que não segue alguns procedimentos lógicos

básicos, de caótica”. Na planejada, as funções nas esferas federal, estaduais e

municipais ‘sofrem mudanças qualitativas’ e os recursos vão sendo substituídos

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gradativamente de uma esfera para a outra. Como também vão se construindo

relações de complementariedade entre as esferas, dando a noção de um sistema,

onde a ação federal é fundamental para “corrigir as desigualdades sociais”. Na

caótica, existe uma tendência de reforçar ‘o grau de heterogeneidade do sistema’, haja

vista que a efetivação dos serviços ficam na dependência dos recursos da esfera

municipal ‘e, portanto, expostas às enormes diferenças sócio-econômicas aí

existentes’.

Nos países desenvolvidos, segundo os estudos de Lustosa (1999:243), a

descentralização se apresenta como estratégia, que possui um caráter gerencial e

administrativo, que permite responder melhor às demandas, pois propicia um sistema

mais ágil de decisão, ao possibilitar que outras instâncias decisórias do Governo

compartilhem o poder com a sociedade, através da participação popular.

Porém, a descentralização, como estratégia, não dá tanta ênfase à questão

política, por isso tem destaque apenas o aspecto técnico-administrativo, por meio da

gestão compartilhada e participativa. Já, nos países em desenvolvimento, a

descentralização está diretamente relacionada à autoridade e poder que se forma

como “um processo político-técnico de reconfiguração do espaço de ação popular e de

redefinição da relação Estado-cidadão” (Lustosa, 1999:245).

Diante dessas duas concepções o autor citado define a descentralização no

Brasil como um processo político-técnico “de reformulação da estratégia de gestão das

políticas sociais, fruto da interação permanente de diversos grupos de interesse dentro

e fora do aparelho do Estado”. Essa definição representa o envolvimento do aspecto

técnico e administrativo, em termos de gerenciamento, tal qual é desenvolvido nos

países avançados. Mas como estratégia, vem sendo implementada sem um

compromisso efetivo com os problemas sociais, dando um enfoque mais pragmático

ao processo, ao mesmo tempo, que se constitui, num instrumento que permite delegar

poderes, atribuições e responsabilidades às demais esferas do governo, bem como a

transferência de recursos para gerir as atribuições repassadas pelo Estado.

Todavia, a descentralização é também um processo político, porque está

diretamente associada ao processo de redemocratização do país, na década de 80,

quando a sociedade civil mais organizada e capacitada pressionou o Estado para

intervir e influenciar nos rumos das políticas públicas, através da participação via

representação, demonstrando com isso, a idéia de que este é um processo dinâmico,

contraditório, variando de acordo com o contexto, a conjuntura social e política, face

aos interesses de autoridade e poder dos atores envolvidos no processo.

A institucionalização do processo de descentralização político-adminisrativa,

desencadeou uma profunda modificação no aparato político-institucional, ao mesmo

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tempo que constituiu as bases para a construção de um novo formato de cidadania, ao

reconhecer o município como locus competente para elaborar e propor políticas

sociais como dever do Estado e direito de todos.

A mudança de paradigma vai juntar a categoria da descentralização ao

conceito de municipalização. Jovchelovitch (1993) ao versar sobre a municipalização

destaca que ela pode ser compreendida como um processo que permite uma

aproximação maior dos serviços à população, mediante a articulação das forças entre

a Prefeitura e as organizações locais, e não somente como modelo de repasse de

serviços e encargos das diversas instâncias para o município. Para Jovchelovitch, a

municipalização, do ponto de vista político, reforça a idéia de autonomia, pois se

encontra diretamente relacionada ao processo decisório, por apresentar as condições

reais de participação e de controle social sobre o papel do Estado, tanto na

elaboração, deliberação quanto na efetivação dos planos e políticas no âmbito local.

Além disso, a municipalização permite responder de forma mais ágil às demandas

postas pelos cidadãos e ao mesmo tempo reduz a responsabilidade do Estado na

execução das políticas sociais (1993:49).

Nesse sentido, a municipalização, tal como a descentralização, se constitui

como estratégia de consolidação democrática, por isso na ótica de Jovchelovitch

(1998:40) essas categorias envolvem a participação, mostrando “que a força da

cidadania está no município. É no município que o cidadão nasce, vive e constrói sua

história. É aí que o cidadão fiscaliza e exercita o controle social”.

Posta sob o ponto de vista da cidadania, a municipalização tem como respaldo

os seguintes princípios: ”descentralização; fortalecimento administrativo; participação

comunitária e enfoque da administração geral” (Jovchelovitch, 1993:50).

O caráter descentralizador e a autonomia dos municípios que estão contidos

nos artigos 29 e 30 da CF, garante-lhes, poder para organizarem-se, ao mesmo tempo

atribui-lhes competências específicas que permitem garantir e promover programas de

melhoria de vida local e combater os fatores geradores da desigualdade social.

Já a política de proteção à infância e juventude brasileira regulamentada no

ECA, ao assegurar a efetivação dos direitos fundamentais, também estimula o

engajamento da sociedade na promoção de um desenvolvimento saudável, visando

prevenir contra a violação desses direitos e, principalmente por possibilitar as

condições sociais para que eles sejam respeitados quando estiverem em jogo os

interesses de crianças e adolescentes, pois o exercício da cidadania está no direito

das crianças e adolescentes de não terem seus direitos ameaçados ou violados

(Sêda, 1995).

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Contudo, com a globalização e a revolução tecnológica, de orientação

neoliberal, vem se instaurando novas formas de produção e gestão no trabalho, ao

mesmo tempo que reduz a demanda de trabalho como conseqüência do desemprego

e do subemprego, aumentando, assim, o excedente da população que vive do

trabalho. As transformações no sistema produtivo e no mundo do trabalho vêm

acelerando o processo de exclusão social, econômica, política e cultural dessas

famílias, cujas crianças e adolescentes vêm sendo alvo das mais variadas formas de

violência, na medida que não podem ter suas necessidades básicas atendidas e nem

mesmo o direito de exercer seu direito de cidadão.

O cenário contemporâneo, possibilitou à doutrina da proteção integral apontar à

sociedade civil a direção da mudança histórica das crianças de adolescentes através

da descentralização que desencadeou numa nova relação entre Estado e sociedade

civil, quando propôs uma reorganização, das funções de governo, conclamando as

comunidades a assumirem responsabilidades para garantir direitos. Nesse processo,

os municípios se constituem como instâncias dotadas de autonomia, poder e

responsabilidade, para formular, planejar, fiscalizar, buscar recursos e executar

políticas que atendam às necessidades vitais do segmento infanto-juvenil. Essa

responsabilidade fez com que a sociedade civil exercitasse a prática do direito,

transformando os seres humanos em sujeitos de direitos, ou seja, ampliou as

condições para que crianças e adolescentes possam exercer esses direitos, mesmo

diante de um contexto, cujas políticas visam valorizar o mercado como modelo de

regulação das oportunidades.

O ECA foi pioneiro nesse reconhecimento e, sob a perspectiva da cidadania,

garantiu como dever do Estado a proteção e a primazia na efetivação das políticas de

proteção ao segmento infanto-juvenil. Da mesma forma que instituiu as bases para a

construção de novas estratégias de gestão das políticas sociais direcionadas às

crianças e adolescentes, exigindo a institucionalização de um aparato legal, para

assegurar os direitos propostos no Estatuto.

O meios legais e institucionais previstos no ECA, para garantir e efetivar os

direitos e o exercício da cidadania das crianças e adolescentes foram: Os Conselhos

de Direitos das Crianças e Adolescentes (CDCAs) e os Fundos de Direitos das

Crianças e Adolescentes (FDCAs), nas três esferas de governo: federal, estaduais e

municipais, e os CTs, implantados somente no âmbito municipal.

Os Conselhos de Direitos (CDs), pressupõem a concretização do processo de

descentralização, pois se apresentam como espaços de articulação e “...de mediação

entre a sociedade civil e o Poder Executivo Municipal. Funcionam inclusive como

estratégia de divisão do poder no âmbito local” (Jovchelovitch, 1998:43).

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Dessa forma, os Conselhos se consituem como um dos principais elementos

do controle social do Estado. Por isso, quando se fala em descentralização,

imediatamente passa pelo imaginário de que, no Brasil, existe um Estado de direito

democrático, e isso requer soberania popular, mas a soberania popular não pode ser

expressa apenas através do voto e do direito de ir e vir. O voto e a liberdade são

componentes essenciais, porém exige-se um outro componente que pode ser

considerado básico como o controle social da política pública (Vieira, 1998).

Entretanto, em muitos municípios brasileiros, os Conselhos que estão em

exercício, não vêm revelando e nem representando os interesses da coletividade local.

Essa falta de representatividade impede que haja o controle por parte da sociedade,

pois este permanece na figura do prefeito e de seus assessores. Com isso, acabam

reforçando o clientelismo, a burocratização, enfim, a prefeiturização como denominam

Stein (1997) e Jovchelovitch (1998).

A atual realidade da maioria dos municípios brasileiros apresenta um alto

percentual de crianças e adolescentes privados do direito de manifestar seu direito, de

ter um convívio familiar saudável e com dignidade, haja vista que suas famílias

sobrevivem com uma renda insuficiente que não permite suprir as necessidades

imediatas de seus filhos. A exclusão social leva uma grande parcela de crianças e

jovens entre 5 e 14 anos, a deixarem as escolas, inserindo-se precocemente no

mercado de trabalho, para garantir a própria sobrevivência e ajudar a família. Assim, o

trabalho torna-se uma opção natural para aumentar a renda. A realidade, contradiz o

que estabelece a CF e o ECA. Ambas proíbem o trabalho remunerado para menores

de 14 anos, podendo haver exceção àquelas que trabalham na condição de aprendiz

(Art. 60 do ECA).

Existe, portanto, um grande contingente de crianças e adolescentes, que estão

sendo violados na sua condição de sujeitos de direitos e seres em formação. Essa

violação, decorre de uma política que exclui um grande percentual de famílias

trabalhadoras, ao mesmo tempo que agrava a desigualdade social, em virtude da

concentração de renda, das novas relações de trabalho, da ausência de políticas de

atendimento integral, visto que, o Poder Executivo, ao desenvolver políticas que

privilegiam o mercado e a redução de gastos, trazem embutido um processo de

desresponsabilização do Estado em relação aos direitos sociais, contrapondo-se à

universalização (Faleiros, 1996). Além disso, há outro fator que contribui para a

violação de direitos de crianças e adolescentes em desenvolvimento: a falta de

compreensão da sociedade de que o trabalho precoce não previne contra a

marginalidade (Carvalho, 1999). A falta de entendimento advém das condições sócio-

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histórico e culturais que sempre estiveram presentes na sociedade e dificultam uma

participação ativa de seus representantes nos respectivos Conselhos.

Assim, associado ao termo descentralização e municipalização, se encontra o

conceito de participação, que é concebido como um elemento qualitativo que engloba

os pressupostos básicos de democracia e cidadania. Tais pressupostos partem do

princípio de que a soberania popular é um processo de prática de direitos

conquistados, segundo a dialética histórica, uma relação de avanços e recuos, entre

Estado e sociedade civil. Esse regime político permite a concretização da participação

da população numa dimensão legítima e legitimada pela descentralização, via

municipalização, de modo a contribuir com a instituição de políticas de direitos

universais articuladas com a proteção de caráter educativo e libertador às crianças e

adolescentes brasileiros.

O debate sobre o termo participação tem se generalizado no contexto

internacional e nacional, e tem sido relacionado com mais freqüência à democracia.

Para os autores, adeptos dessa correlação, como Bordenave (1998:8): “...democracia

é um estado de espírito e um modo de relacionamento entre as pessoas. Democracia

é um estado de participação”.

Essa afirmação exprime as aspirações de diversos setores da sociedade

brasileira, sobre a necessidade de participar ativamente, não só do direito de votar ou

de ir e vir, mas de tomar decisões frente aos desafios sociais, nos quais estão

envolvidos cotidianamente.

Diante dessa necessidade, Bordenave (1998:12 e 17) coloca que a

participação faz parte da natureza humana, pois, desde suas origens, o homem vive

em grupos e a participação “...sempre tem acompanhado – com altos e baixos – as

formas históricas que a vida social foi tomando”.

O autor aponta duas vantagens da participação em uma sociedade

democrática. A primeira representa o caminho para a construção de uma consciência

mais crítica da população, na medida que fortalece seu poder de reivindicação e

prepara para adquirir mais poder na sociedade. Na segunda, a participação contribui

para garantir o controle das ações e do papel do Estado por parte da sociedade civil,

bem como fiscalizar os serviços públicos, para que melhorem em termos de qualidade

e oportunidade. Sob esse prisma, a participação popular, tal qual a descentralização

das decisões, se constitui “...como o caminho mais adequado para enfrentar os

problemas graves e complexos dos países em desenvolvimento”, como no Brasil.

O desafio da participação da sociedade está em promover a melhoria da

qualidade de vida, através do exercício da cidadania, junto aos espaços públicos, na

defesa de propostas concretas, face à conjuntura do país e diante do desmonte das

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políticas sociais. A política adotada pelo governo brasileiro tem gerado a

desagregação e a exclusão da população, ao desenvolver, sob o ideário neoliberal, o

ajuste estrutural da economia com todas as graves seqüelas sociais que ela produz,

principalmente nos cortes orçamentários das verbas destinadas às políticas públicas.

Mais grave ainda, são os desmontes das estruturas organizacionais que prestam

atendimento à população, cuja condição de vida vem se deteriorando aceleradamente.

O reconhecimento da participação popular no processo de descentralização

tem contribuído para buscar formas alternativas de enfrentamento conjunto com o

poder local, no combate das desigualdades sociais, na formulação e deliberação de

políticas que efetivem os direitos da criança e do adolescente e é nisso que configura

a importância da participação.

Por ser um termo que está diretamente vinculado à democratização política e

às dinâmicas de gestão descentralizadas, a participação pode ser compreendida como

um instrumento para o exercício da cidadania, não entendida como benesse ou como

concessão, mas sim como um processo de conquista sem fim, conforme afirma Demo

(1988:18): “...participação é conquista para significar que é um processo, no sentido

legítimo do termo: infindável, em constante vir-a-ser, sempre se fazendo. Assim,

participação é em essência autopromoção e existe enquanto conquista processual”.

Esse processo de participação na concepção de Demo (1988:18) só se efetiva

como conquista a partir de três razões fundamentais:

“...de que participação não pode ser entendida como dádiva, como concessão,

como algo já preexistente. Não pode ser entendida como dádiva, porque não seria

produto de conquista, nem realizaria o fenômeno fundamental da autopromoção; seria

de todos os modos uma participação tutelada e vigente na medida das boas graças do

doador, que delimita o espaço permitido. Não pode ser entendida como concessão,

porque não é fenômeno residual ou secundário da política social, mas um dos seus

eixos fundamentais; seria apenas um expediente para obnubilar o caráter da de

conquista, ou de conceder, no lado dos dominantes a necessidade de ceder. Não

pode ser entendida como algo preexistente, porque o espaço de participação não cai

do céu por descuido, nem é o passo primeiro”.

As proposições do autor mostram que a participação é um processo histórico

de conquista do ser humano, que expressa o exercício ativo do pensamento e da ação

coletiva do poder, que se realiza com a ampliação das condições da cidadania, já que

na participação está implícita a questão política. Essa concepção permite

compreender que uma sociedade é participativa, quando os cidadãos produzem e

usufruem dos bens de forma equitativa, mas para que isso se torne possível, faz–se

necessário toda uma estrutura social organizada para tal processo. Nesse aspecto, tal

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pensamento sobre o ponto de vista político é fundamental, pois é a vontade política do

ser humano que norteia seus objetivos e interesses de liberdade, de democracia e de

cidadania.

Na mesma linha, Souza (1987:79) define este conceito como um processo

social, isto é, “...a participação é o próprio processo de criação do homem ao pensar e

agir sobre os desafios da natureza e sobre os desafios sociais, nos quais ele próprio

está situado”.

Para a autora, o fazer, ou ser parte, torna-se requisito essencial para a

realização do próprio ser humano, pois na medida em que as contradições sociais

instigam o homem a pensar e agir, ele toma consciência da realidade social e assume

posições de desafio e confronto. Essa tomada de consciência leva-o a um processo de

organização, que consequentemente contribua para a emancipação do ser humano

como sujeito, de modo que seja capaz de intervir nas definições e decisões da vida

social e política.

Sob essa perspectiva, a participação se constitui em um processo social

dinâmico e contraditório, que se constrói na correlação de forças presentes na

sociedade e, num determinado contexto sócio-econômico, político e cultural, como

ação humana que se desenvolve num espaço de conflitos e de luta pelo poder.

O conceito de participação é algo ainda bastante complexo, por ser um

fenômeno social que se encerra numa correlação de força e implicam posições de

interesses, em uma realidade que, para Demo (1988:18), sempre prevaleceu uma

“tendência histórica à dominação”, visto que a sociedade brasileira organiza-se de

cima para baixo e rege-se pelas hierarquias onde sempre houve uma minoria

dominadora e uma maioria submissa.

Na ótica de Faleiros (1997), é um processo social que envolve relações de

poder e sob essa perspectiva, não se pode pensar em participação sem relacioná-la

com a questão do poder. Para o autor, ela representa uma relação de poder entre os

atores sociais inseridos no processo, principalmente, porque envolve relações de

consenso e/ou de confronto, dominação e/ou resistência por parte dos cidadãos.

Existe nessa correlação um jogo político, podendo este, favorecer o fortalecimento de

determinadas forças, ou o desgaste das contrárias, tendo em vista que o Estado, pela

sua própria trajetória histórica de concentração de poder, tenta limitar a presença da

sociedade, para que esta, não interfira nos projetos políticos de seus dirigentes.

É nesse sentido que Faleiros (1997) ressalta a importância da organização

como componente essencial da participação. A organização dos sujeitos sociais

contribui para definirem estratégias e proposições que superem os conflitos sociais

gerados nas relações presentes nos espaços públicos. Caso isso não ocorra, as

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possibilidades de participação das comunidades nas decisões e no controle das ações

do Estado sobre as políticas públicas diminuem, bem como dificultam o exercício da

cidadania.

Constata-se, assim, que o conceito de participação constitui-se como o cerne

da democracia e da cidadania e não é possível haver democracia sem que tenha um

ator participando ativamente do processo, o cidadão. De acordo com Demo (1988:70)

“...cidadania é a qualidade social de uma sociedade organizada sob a forma de

direitos e deveres majoritariamente reconhecidos”. Segundo o autor, uma sociedade

organizada é aquela que compreende a cidadania como direitos e deveres, a

cidadania como uma conquista do cidadão de ter direitos e de exercê-los. Quanto aos

deveres, a sociedade torna-se co-responsável à efetivação do exercício desse direito e

de serem reconhecidos perante a lei.

Desse modo, a efetivação da cidadania, através da participação popular no

exercício do poder, significa forjar novos espaços públicos de discussão e formulação

de políticas sociais, como também de reclamações, de denúncias e de defesa, visando

a prevenção da violação desses direitos, sobretudo de crianças e jovens. Por isso, a

participação popular nos CDs, nas três esferas de governo e nos CTs, no âmbito local,

abre espaço para discussão, controle e defesa de políticas de proteção para a

infância.

2. Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares: espaços públicos de defesa e

proteção de crianças e adolescentes.

A Constituição Brasileira, a Doutrina da Proteção Integral e o ECA introduziram,

através do processo de descentralização político-administrativa, novas relações entre

Estado e sociedade civil, bem como instituiu responsabilidades à família, à sociedade,

com ênfase na participação das comunidades, e ao Estado, sobretudo nos municípios

e em relação ao seu efetivo atendimento e proteção.

Dentro dessa nova gestão descentralizada, cabe à União elaborar os princípios

e as regras gerais, como também a coordenação nacional da política de atendimento à

criança e adolescente. Esse trabalho, segundo o Estatuto, deve ser feito por uma

instância colegiada, ou seja, pelo CONANDA.

Aos Estados Federativos cabem aplicar tais princípios e regras à sua realidade,

numa relação de articulação entre Município, Estados e União, com o objetivo de unir

os esforços desenvolvidos por ambas as esferas de governo. Tal trabalho deve

também ser colocado em prática por uma instância colegiada, o Conselho Estadual

dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA).

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Aos municípios competem a tarefa de suplementar a legislação federal e

estadual, no que couber, além de legislar sobre seus assuntos locais, bem como a

execução direta das políticas e programas em parceria com entidades não-

governamentais. Em cada município, a coordenação e execução é realizada por um

órgão colegiado, o CMDCA (Costa, 1993:76-77).

Com a descentralização, as ações da União ficaram delimitadas em desenhar

as políticas no plano nacional; as dos Estados ficaram restritas à intermediação entre

a esfera federal e municipal, entretanto, nesse processo, o papel dos municípios foi

ampliado, dando-lhes mais autonomia para atuar e legislar questões de interesse

local.

Para melhor esclarecimento, faz-se necessário um resgate histórico da

conformação dos Conselhos como espaço de participação popular, cujo processo

antecede a descentralização.

Com o advento do ECA, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente

(CDCAs) foram sendo instituídos como instâncias públicas, onde as organizações

populares vêm consolidando e tornando efetiva sua participação no processo de

gestão democrática, principalmente com relação às políticas, nas três esferas de

governo.

Contudo, a temática dos Conselhos, como prática social ou forma de

intervenção não surgiu com a descentralização ou com o ECA. Segundo Gohn

(1990:66) existem duas vertentes históricas que envolvem o termo: a primeira está

relacionada à “experiência de gestão através de Conselhos de operários ou

populares”, como a “Comuna de Paris, os sovietes russos e os Conselhos de Fábrica

italianos”. Os Conselhos operários ou populares, na ótica da autora, surgiram por

iniciativa da própria comunidade de participantes. A Segunda vertente é a da

“participação dos indivíduos através de Conselhos de cidadãos”. São experiências

desenvolvidas nos Estados Unidos. Esses Conselhos de Cidadãos estavam

empenhados na defesa dos direitos individuais e coletivos, como também em

combater os valores nocivos à comunidade.

Gohn (1990:66) em seu texto sobre Conselhos populares e participação

popular, mostra que historicamente várias sociedades desenvolveram tais práticas, ora

em Conselhos operários ou populares, ora em Conselhos de Cidadãos, mas ressalta

que o próprio termo trás embutida uma diferença política fundamental. Para a autora,

os Conselhos Operários ou Populares são compostos:

“...por trabalhadores, se originam e se articulam diretamente ao sistema de

produção (...) são agentes e atores centrais da política econômico-social do país”. Já

os Conselhos de Cidadãos são compostos de ”cidadãos e se constituem a partir do

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processo de consumo e distribuição, de bens, serviços e equipamentos,

principalmente públicos (...) são atores de políticas sociais determinadas ou

elaboradas por agentes governamentais”.

Nesse sentido, Gohn (1990:87) afirma que os Conselhos, diante de práticas ou

formas de intervenção tão díspares, podem ser descritos ou analisados como:

“...instrumentos de determinados processos. Estes processos podem ter diferentes

objetivos, contribuir para mudanças sociais significativas ou auxiliar a consolidação de

estruturas sociais em transição ou sob o impacto de fortes pressões sociais”.

Segundo a autora, a qualificação do processo onde procede a experiência de

Conselho é que vai mostrar a sua natureza. Por isso, os Conselhos poderão se

constituir como instrumentos valiosos para a formação “de um poder popular” quanto

poderão tornar-se um instrumento “de acomodação dos conflitos e de integração dos

indivíduos” em programas previamente estabelecidos. Em ambas perspectivas estão

implícitas a noção de cidadania. No primeiro caso, privilegia a participação dos

mesmos nos processos de gestão da vida pública. Nessa ótica, a cidadania torna-se

uma finalidade a ser conquistada, através da participação na elaboração e definição

de políticas que assegurem os direitos sociais coletivos. No segundo caso, a ênfase

recai sobre o indivíduo como cidadão, que participa apenas para ter acesso aos bens

de consumo, mas sem participar da gestão dos bens públicos ou da política. Por isso a

cidadania nessa ótica “é uma elaboração individual, constitucional” e não visa a

emancipação e sim a integração do indivíduo (Gohn, 199:76).

Na realidade brasileira, as experiências históricas sobre os Conselhos,

desencadeadas entre as décadas 60 até meados de 80, segundo os estudos de Gohn

(1990:77-83) apresentam dois modelos: os Conselhos populares e os Conselhos

Comunitários. O primeiro surgiu como resultado de um processo da organização

popular e de suas lutas nas relações que se estabelecem com o poder público. O

segundo é criado pelo poder público para intermediar suas relações com os

movimentos populares.

A autora aponta as experiências dos Conselhos de Saúde de São Paulo, como

aquelas que se aproximam mais dos Conselhos Populares, a existência da

legitimidade dos mesmos, no entanto, eles não tinham autonomia para gerir seus

recursos, como também não tinham poder de deliberar ações, dificultando sua função

principal que era de fiscalização e de controle.

O relato sobre as experiências dos Conselhos no Brasil permite constatar a

ausência de participação popular na gestão da coisa pública, de que à sociedade

restava apenas integrar-se às estratégias de participação, uma “participação

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outorgada”, haja vista que as normas para a composição e função dos Conselhos

eram formulados pelo Poder Público.

Liberati e Cyrino (1993:42), ao tratar do tema CDCA, busca percorrer, através

das experiências focalizadas por Gohn (1990), a trajetória dos Conselhos no cenário

internacional e nacional, para ressaltar que a política voltada para crianças e jovens

sempre foram elaboradas e definidas a partir de “...uma excessiva centralização e

verticalização, e ainda, alijando a participação popular”. Na história sobre as políticas

de atendimento para a infância não se vislumbra a participação efetiva da sociedade.

Somente a partir do ECA é que a “participação da comunidade”, foi explicitada,

bem como tornou-se claro o caráter permanente e deliberativo da sociedade na

formulação de estratégias, com o objetivo de elaborar e decidir sobre as políticas, via

Conselhos. Tem-se então, com a descentralização, municipalização e participação

popular, os instrumentos constitucionais fundamentais para a viabilização dos

Conselhos, com grande perspectiva de ocupar “...os espaços políticos,

descaracterizando o simples ‘controle social’ do Estado pela população e fazendo

dessa prática social uma ação interventiva no plano decisório das políticas (...)”

(Liberati e Cyrino, 1993:40).

Liberati e Cyrino (1993) conceituam os CDCA através das perspectivas:

sociológica, jurídico-legal e extrajurídico. Para os autores, sociologicamente os

Conselhos “são instrumentos de participação da sociedade civil na gestão política do

poder, afetos à questão do atendimento de crianças e adolescentes, onde a

representação da sociedade civil deverá buscar a hegemonia de suas posições frente

aos representantes do Poder Público. Pode-se também afirmar que, como

conseqüência dessa concepção de Conselho, suas deliberações, em face da

composição paritária (sociedade civil / governo), serão manifestações do Estado – por

isso, compulsórias” (1993:49). No aspecto jurídico-legal, proposto no artigo 88, inciso II

do ECA, os Conselhos são órgãos deliberativos e de controle das ações em todos os

níveis de governo, assegurada a participação popular paritária por meio de

organizações representativas. Extrajuridicamente, os Conselhos “são órgãos criados

pelo Poder Público, sem personalidade jurídica, mas com capacidade pública, atuar de

maneira descentralizada na formulação e controle das ações e programas ”

direcionados à infância e juventude. A natureza jurídica dos Conselhos está, no

entanto, referendada no artigo 172 do Decreto-lei 200/67 que dispõe sobre a

Administração Federal. Esse Decreto-lei também pode ser aplicado junto aos Estados

Federados e aos Municípios e, “...oferece embasamento jurídico para posicionar os

Conselhos como órgãos autônomos e especiais” (Liberati e Cyrino, 1993:74).

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Face à diversidade conceitual dos Conselhos de Direitos (CDs) constata-se,

que são órgãos especiais, com particularidades e especificidades e por isso podem

facilmente diferenciados dos demais órgãos públicos.

Essas particularidades e especificidades estão diretamente relacionadas à

composição paritária e ao caráter deliberativo. O termo paridade significa igualdade

numérica, evidenciando que a composição dos Conselhos deve ter um mesmo número

de representantes do governo e de representantes da sociedade civil.

Os Conselhos têm o poder de deliberar, o que implica em decidir sobre um

assunto e, neste caso, sobre as políticas aplicadas à criança e ao adolescente.

Portanto, a partir dessas duas especificidades, é que os CDs se diferenciam

dos demais órgãos públicos instituídos, na medida que assumem esse caráter de

órgão especial passam a ter autonomia para sua organização e funcionamento e, para

desempenhar ações descentralizadas mesmo sem possuir uma personalidade jurídica.

Liberati e Cyrino (1993), assim como Sêda (1995), tratam dessa questão

conceitual jurídica e não-jurídica que envolve os CDs destacando que ambos são

objetos da ciência da Administração. Na ótica dessa ciência, os Conselhos são órgãos

públicos compostos por um colegiado misto, para exercerem serviço público relevante

como agentes públicos, pois são nomeados pelo Poder Municipal, para um mandato

de representação de dois anos. Contudo, os Conselheiros não são remunerados, visto

que representam entidades públicas e privadas, haja vista o caráter deliberativo e não

executivo dos Conselhos. O vínculo do Conselhos Municipais com o Poder Municipal é

de natureza administrativa e estritamente relacionada à infra-estrutura. É esse vínculo

administrativo que o caracteriza como um órgão especial, mas sem se subordinar a

um administrador público.

Isso posto, torna-se imprescindível explicitar qual é o papel dos CDs entre as

diversas esferas de governo, bem como suas atribuições e competência com relação à

participação da sociedade civil na formulação das política públicas e no controle das

ações governamentais.

O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo, bem

como o Conselho Tutelar tornaram-se instituições legais, através de lei municipal e

vinculados ao Poder Executivo Municipal. Dentro dessa legalidade, os Conselhos

constituem-se em órgãos públicos, pois fazem parte de uma estrutura e personalidade

própria chamada de Município. Essa concepção advêm de que “no mundo dos direitos

e dos deveres, as pessoas ou são públicas, refletindo o a vontade do bem comum, ou

privadas, meras emanações da vontade particular de indivíduos e grupos (...). (Sêda,

1995:157). Nessa perspectiva, os Conselhos são organizações públicas, pois na

prática, estes órgãos devem buscar o “bem comum, que é o mesmo objetivo do

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município, em busca da cidadania”. O vínculo dos Conselhos Tutelares, na visão do

autor, se dá apenas para efeitos administrativos, em termos de infra-estrutura e

remuneração dos Conselheiros Tutelares. A remuneração é a mesma de um servidor

com cargo de confiança, já que, os Conselheiros, como agentes públicos, exercem

serviço público relevante.

Os Conselhos Tutelares vêm sendo tema de estudos nos últimos anos, quanto

ao seu papel e como tem se dado sua intervenção na defesa dos direitos da criança e

adolescente.

Face a essas questões qual é o papel do Conselho Tutelar? E como agir?

Segundo o art. 131 do ECA: “O Conselho Tutelar é órgão permanente e

autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento

dos direitos das crianças e adolescentes, definidos nesta lei”.

Sêda (1990) concebe o Conselho Tutelar como uma equipe, formada por

cidadãos, instituída pelo Município para zelar, caso a caso, pela garantia dos direitos

individuais de crianças e adolescentes e a cobrança eficaz dos deveres

correspondentes.

Autores como (Liberati e Cyrino,1993; e Faleiros, 1995) concordam com a

posição de Sêda e ampliam esse conceito, ao definirem que: o Conselho Tutelar é um

espaço democrático de participação e um instrumento jurídico-institucional que a

comunidade dispõe para proteger e garantir os direitos e a aplicação da lei, todas as

vezes que crianças e adolescentes se sentirem ameaçados ou violados em seus

direitos fundamentais. Por ter essa responsabilidade e ser um órgão colegiado, tem

estabilidade e independência funcional, pois sua função se volta para as questões

político-sociais, já que, não possui personalidade jurídica. O Conselho Tutelar assume

o encaminhamento do atendimento social das crianças e adolescentes anteriormente

realizado pela Justiça da Infância e da Juventude, cujas atribuições estão prescritas no

art. 136 do ECA.

O papel do Conselho Tutelar segundo a Lei 8069 é de zelar pelo cumprimento

e não, atender direitos. Kaminski ( 2000) ao refletir sobre essa função do Conselho

Tutelar ressalta que: o papel fundamental destes órgãos ”não é atender direitos; é

zelar para que os que devem cumprir os direitos das crianças e adolescentes,

efetivamente cumpram”. Para o autor, o Conselho Tutelar não deve agir para obter

direitos que devem ser efetivados pela família, pela sociedade ou pelo Estado, e que

estão contidos na doutrina da proteção integral, na Constituição Federal, no Estatuto,

e não são atendidos, cumpridos ou satisfeitos, por quem tem o dever de cumprir. O

papel do Conselho é provocar “mudanças sociais” que contribuam para que o sistema

amplie o atendimento e a proteção, apure a responsabilidade daqueles que

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descumprem seus deveres ou cumprem de forma irregular. Ao Conselho Tutelar cabe

o papel de apontar as falhas e as carências de programas de atendimento junto ao

CMDCA, buscar a mobilização da comunidade, da sociedade e do Poder Público,

participar ativamente de fóruns políticos para mostrar as prioridades, e propor

alternativas que garantam os direitos às crianças e adolescentes.

O papel do Conselho Tutelar está direcionado para questões político-sociais

como já foi mencionado, dessa forma as ações desenvolvidas pelos conselheiros

tutelares é mais político do que técnico, na posição de Kaminski. Para o autor, o

conselheiro “deve ser um líder, deve ser representativo, capaz de conseguir uma

alteração de comportamento, de visão e de trato com os direitos das crianças e

adolescentes; capaz de introduzir e firmar o novo paradigma deles enquanto cidadãos”

(Kaminiski, 2000). Essa postura do conselheiro, segundo o autor, possibilita maior

alcance e envolvimento da família, da sociedade e do Estado, para cumprir o que

preconiza a lei, mas nada impede que o conselheiro seja um técnico.

Essa discussão sobre o papel do Conselho Tutelar e da ação de seus

conselheiros, como político, é pertinente, tendo em vista que, a função do Conselho

proposto pelo Estatuto é zelar pela garantia de direitos. No entanto, o que se observa

junto a estes órgãos é o atendimento dos direitos das crianças e adolescentes.

De acordo com (Kaminski, 2000), se as crianças e adolescentes precisam de

creche e escola, não cabe ao Conselho Tutelar esse papel. Essa função cabe à

família. A criança e o adolescente têm direito de que os pais os matriculem e os

encaminhem à rede de ensino fundamental; “têm direito que a sociedade lhes respeite

através de seus educadores” e que o Estado lhes garanta o atendimento em creche e

escola da rede pública. O ECA prevê que ao Conselho Tutelar cabe receber

denúncias, reclamações e atender a todos aqueles que representem as crianças e

adolescentes, quando seus direitos estiverem sendo ameaçados ou violados, mas só

deve ser acionado quando os direitos não forem cumpridos por quem cabe fazê-los ou

faz de forma irregular.

Ainda na concepção de Kaminski (2000), o Conselho Tutelar não pode ser

considerado como pronto-socorro, se a criança ou adolescente precisa ser incluso

num programa de promoção de assistência social, “que se chame o pronto-socorro

técnico de serviço social”, ao Conselho Tutelar cabe a cobrança da responsabilidade

junto aos devedores para que ele tenha o direito de ser atendido. Essa posição do

autor encontra respaldo nas afirmações de (Sêda, 1995:179-180) quando diz que o

Conselho Tutelar ao atender direitos está desempenhando funções “que são dos

programas de atendimento”. Na realidade isso ocorre para suprir a ausência de

programas de atendimento. O Conselho Tutelar ao receber as denúncias, as

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reclamações e os pedidos de socorro, não deve assumir o papel das instituições que

deveriam atender, pois segundo Sêda “não cumprem nem a sua função e nem a dos

programas que não existem”.

Muitos municípios estão implantando os Conselhos Tutelares para realizar este

trabalho de pronto-socorro, e, muitas vezes, o conselheiro tem que transportar as

pessoas que os procuram, para as delegacias e abrigos, mas seu papel não é esse, e

sim, “intervir depois que o pronto-socorro cumpre sua tarefa, ou quando o pronto-

socorro ameaça ou viola direitos” (Sêda, 1995:180). O autor faz um paralelo entre

Conselho Tutelar e o Procon. Este também é um órgão encarregado de zelar pelos

direitos do consumidor, sempre que forem violados ou ameaçados.

Portanto, para os autores citados não há necessidade de se criar muitos

Conselhos Tutelares no mesmo município. O importante é a implementação de

programas de atendimento. O Conselho deve ficar restrito à correção dos desvios

desses serviços e na fiscalização para que o sistema funcione de forma eficiente. O

Conselho Tutelar só deve ser acionado, e utilizar seu poder de obrigar, de advertir e

requisitar serviços públicos, mediante o não cumprimento por parte dos devedores.

3 - Conselhos Tutelares e a defesa de direitos de cidadania de crianças e

adolescentes: a experiência no município de Cuiabá-MT - Brasil

Visando identificar qual tem sido o papel exercido pelos Conselhos Tutelares

do Município de Cuiabá, procedeu-se a realização do levantamento de dados nesse

município.

O Município de Cuiabá possui, atualmente, seis Conselhos Tutelares

desenvolvendo atividades. Destes, quatro constituem o universo desta pesquisa por

estarem localizados em regiões estratégicas, que permitem atender o maior número

de denúncias e reclamações relacionadas as crianças e adolescentes, cujos direitos

estejam sendo violados ou ameaçados.

Fazem parte do campo empírico: os Conselhos Tutelares da Região do Centro,

CPA, Coxipó e Santa Isabel. A técnica utilizada na pesquisa de campo foi a da

documentação direta, isto é, os prontuários dos atendimentos realizados pelos

Conselheiros, no período de julho de 1998 a julho de 1999. O critério utilizado para

selecionar os atendimentos foi o encaminhamento efetivado às organizações

governamentais e não-governamentais, no período estabelecido. O instrumental usado

para a coleta de dado foi o formulário. Os Conselhos Tutelares da região do Centro e

do CPA permitiram espontaneamente o acesso a documentação. Os demais, exigiram

autorização judicial para o manuseio dos prontuários de atendimento.

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Inicialmente, foi efetuada a identificação e contagem dos atendimentos

realizados em cada um dos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá, segundo a

sua natureza ou tipo. Em seguida, esses tipos de atendimentos foram agrupados de

acordo com a sua inclusão como envolvendo direitos violados por pais e familiares,

envolvendo direitos violados pelo Estado ou sociedade, envolvendo direitos violados

pelas próprias crianças ou adolescentes, e não envolvendo a violação de direitos.

Posteriormente, em cada grupo formado, os tipos de atendimentos foram classificados

na ordem decrescente do número de casos encontrados.

A fim de simplificar o trabalho de análise e torná-lo mais representativo,

procurou-se não analisar os tipos de atendimento configurados como esporádicos. O

critério utilizado para a escolha dos tipos representativos de atendimento foi o de

considerar aqueles incluídos entre os 30% mais numerosos, dentro de cada grupo.

De acordo com os dados observados na Tabela 1 verifica-se que os

atendimentos realizados pelos Conselhos Tutelares no período delimitado se encontra

relacionado à ausência de convivência familiar, sobretudo pela falta de condições

materiais das famílias. Na seqüência, estão os atos atentados ao exercício da

cidadania oriundos de dois fatores: pelo não reconhecimento da paternidade e do não

registro de nascimento.

Tabela 1. Atendimentos mais numerosos realizados nos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá, no período de julho de 1998 a julho de 1999.

Tipos de Atendimento

Conselhos Tutelares

Centro CPA Coxipó Sta. Isabel Total %

Violência física 5 1 3 9 2,35

Negligência 4 5 1 10 2,61

1. via Cert. de nascimento 14 7 10 31 8,09

Internação em abrigo 16 2 6 8 32 8,36

Negação de filiação 17 35 21 5 78 20,37

Não pag. de pensão alimentícia 51 81 71 20 223 58,22

TOTAL 102 135 109 37 383 100,00

A Tabela 2 mostra que os atendimentos sobre a violação nas áreas da saúde e

da educação estão concentrados na falta de atendimento médico especializado e

principalmente pelo impedimento de acesso à escola decorrente da falta de vagas e

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da retenção da transferência escolar. Este fatores violam o direito das crianças e

adolescentes ao exercício da cidadania, pois a falta de condições materiais das

famílias impedem que saldem seus débitos junto as escolas particulares.

Tabela 2. Atendimentos mais numerosos realizados nos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá, no período de julho de 1998 a julho de 1999.

Tipos de Atendimento

Conselhos Tutelares

Centro CPA Coxipó Sta. Isabel Total %

Negação de matrícula 10 3 5 18 15,65

Atend. Médico especializado 12 1 3 3 19 16,52

Retenção de transfer. Escolar 14 3 10 2 29 25,22

Vaga escolar 7 22 12 8 49 42,61

TOTAL 43 26 28 18 115 100,00

Na Tabela 3 pode-se verificar o desvio de conduta das crianças e

adolescentes, representa maior índice dos atendimentos e decorre da vulnerabilidade

social e do envolvimento com as drogas.

Tabela 3. Atendimentos mais numerosos realizados nos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá, no período de julho de 1998 a julho de 1999.

Tipos de Atendimento

Conselhos Tutelares

Centro CPA Coxipó Sta. Isabel Total %

Fuga do lar 5 5 5,55

Internação Tratamento de drogas 1 3 2 6 6,67

Desvio de conduta 43 11 14 11 79 87,78

TOTAL 44 19 14 13 90 100,00

A Tabela 4 apresenta os atendimentos de direitos realizados pelos Conselhos

Tutelares, sendo que, os maiores percentuais estão diretamente vinculados a

condição de pobreza das famílias, como a busca de programas e organizações que

proporcionem qualificação aos filhos adolescentes e vagas em creches para que as

crianças sejam cuidadas enquanto as mães trabalham, objetivando melhorar a renda

familiar. A situação de pobreza também dificulta e impede que os pais retirem

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documentos dos filhos e/ou tenham acesso a serviços jurídicos aos quais envolvem

problemas de relacionamento familiar que prejudicam o desenvolvimento saudável

dos filhos.

Tabela 04. Atendimentos mais numerosos realizados nos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá, no período de julho de 1998 a julho de 1999.

Tipos de Atendimento

Conselhos Tutelares

Centro CPA Coxipó Sta. Isabel Total %

Transporte escolar 1 4 3 8 1,50

Transferência escolar 2 1 4 3 10 1,88

Separação Judicial 3 3 6 12 2,25

Dificuldade de aprendizagem 13 13 2,44

Passagem p/ local de origem 11 2 2 15 2,81

Conflito familiar

Cesta Básica

Documentos

Consulta médica

Adoção/guarda

Má conduta do adolescente

Curso /emprego

Creche

Certidão Nascimento

Regularização de guarda

Total

3

7

1

10

4

12

8

40

31

23

166

13

6

20

9

3

22

38

20

23

33

193

3

1

15

6

2

4

38

42

124

1

3

4

9

2

6

3

8

50

16

2

22

23

26

49

50

70

95

106

533

3,00

3,38

4,13

4,32

4,88

9,19

9,38

13,13

17,82

19,89

100,00

Os dados representados nas tabelas permitem visualizar que os Conselhos

Tutelares no período pesquisado desenvolveram ambas ações no sentido de zelar

pelo cumprimento do Estatuto, encaminhando e requisitando serviços públicos que

garantam os direitos da criança e do adolescente. Entretanto, as ações também têm

se voltado para o atendimento direto das necessidades de saúde, de educação, de

estudo social para constatar a situação das condições das famílias, de inclusão em

programas e projetos de promoção e assistência, de serviços técnicos na área de

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psicologia, em virtude da necessidade da imposição de limites, rebeldia, mau

comportamento e problemas de aprendizagem das crianças e adolescentes.

A efetivação do atendimento de direitos provocam o enfraquecimento dos

Conselhos perante a sociedade, pois a necessidade de atendimento direto exige a

presença de profissionais especializados em diversas áreas do campo social e, na

medida que esses órgãos não possuem técnicos; não são programas; não possuem

espaços adequados e nem recursos para tais atendimentos, acabam sendo criticados

pelo não cumprimento de suas funções como expuseram Sêda e Kaminski. Além

disso, a população desconhece a real função dos Conselhos Tutelares e os procuram

como órgãos prestadores de serviços à criança e ao adolescente carente. A eficácia

das ações dos Conselhos Tutelares, está no exercício da representatividade, junto a

comunidade, para promover uma mudança na visão tanto social quanto política acerca

dos direitos e de como viabilizá-los na prática.

Considerações finais

A descentralização ao tornar-se um paradigma no cenário brasileiro,

proporcionou uma nova relação entre Estado e sociedade civil, pois favoreceu uma

maior articulação e participação popular na gestão de políticas públicas de proteção,

bem como responsabilidades na defesa de direitos e na garantia do exercício dos

deveres sociais às crianças e adolescentes, através dos Conselhos de Direitos e,

principalmente dos Conselhos Tutelares.

O papel preconizado pelo ECA para os Conselhos Tutelares é o de zelar, é ter

um encargo social de fiscalizar se a família, a sociedade e o Estado estão garantindo

com prioridade absoluta efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, e na

cobrança pelo cumprimento do deveres dispostos no Estatuto.

O papel dos Conselhos Tutelares do Município de Cuiabá no período de julho

de 1998 a julho de 1999 se caracterizou pelo cumprimento do Estatuto, mas também

pelo atendimento dos direitos. Esse duplo procedimento pode ser motivo de críticas

sobre esses órgãos, diante da situação de vulnerabilidade social que se deparam as

crianças e adolescentes, na conjuntura atual.

O desafio dos Conselhos Tutelares está no fortalecimento do seu papel como

órgãos de “linha de frente” e encarregados de zelar e garantir com prioridade a

proteção integral de crianças e adolescentes. Esse fortalecimento requer a

capacitação dos Conselheiros para o exercício da função de político-social, junto a

comunidade, bem como maior divulgação sobre o trabalho e o papel dos Conselhos

Tutelares, através da mídia.

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