consea - conferência de san 2015

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Documento sobre a conferência de segurança alimentar e nutricional

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  • Sumrio

    Apresentao.................................................................................................................................................... 5

    Introduo ........................................................................................................................................................ 6

    Eixo 1 Comida de verdade: avanos e obstculos para a conquista da alimentao adequada e saudvel e da

    soberania alimentar .......................................................................................................................................... 9

    1. Afinal de contas, o que comida de verdade? ......................................................................................... 92. Um sistema agroalimentar que impacta na produo de comida de verdade no mundo ......................... 11

    3. Em direo comida de verdade ........................................................................................................... 13

    Eixo 2 Dinmicas em curso, escolhas estratgicas e alcances das polticas pblicas ................................... 151. Erradicao da fome e os desafios da pobreza e desigualdade social......................................................152. Evoluo da produo agroalimentar e suas repercusses ambientais, sociais e no padro alimentar.....173. Estratgias e polticas soberanas de abastecimento alimentar e as questes de SAN nos centros urbanos..204. Direito terra e ao territrio e a vulnerabilizao de grupos sociais rurais....................................................225. Desigualdades de gnero e implicaes na produo e consumo da alimentao saudvel..........................25

    6. Fatores limitantes do acesso universal gua como alimento e como recurso produtivo..............................277. A ateno sade e a segurana alimentar e nutricional......................................................................... 288. Processos permanentes de educao alimentar e nutricional e de preservao dos conhecimentos tradicionais; pesquisa e formao nas reas de Segurana Alimentar e Nutricional e do Direito Humano Alimentao Adequada.............................................................................................................................................32

    9. Atuao internacional e cooperao Sul-Sul a partir dos princpios e diretrizes da poltica nacional de SAN. .......................................................................................................................................................... 34

    Eixo 3: Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Sisan)............................... 361. Como nasce o Sisan .............................................................................................................................. 362. Intersetorialidade ................................................................................................................................... 373. Participao social ................................................................................................................................. 384. Gesto e regulamentao do Sisan e o pacto federativo ........................................................................ 395. Participao das organizaes com e sem fins lucrativos ...................................................................... 406. Exigibilidade e monitoramento do Direito Humano Alimentao Adequada .......................................... 41

    Lista de Siglas ................................................................................................................................................ 43Anexo 1Estrutura do Relatrio Final das Conferncias Estaduais e do Distrito Federal ................................... 46

    Anexo 2 Documentos complementares..........................................................................................................48

  • Documento de Referncia4

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Queremos vossa ateno

    Nesses versos popular

    Rimado ou sem a rima

    Queremos manifestar

    O conceito que temos

    De segurana alimentar

    Todo mundo tem direito

    De poder se alimentar

    Com alimentos saudveis

    Todo dia e sem parar

    Respeitando os costumes

    E a cultura do lugar

    A agricultura familiar

    quem produz alimentos

    Mas precisa ter a terra

    A gua e implementos

    Sem agredir a natureza

    Dando a ela seu sustento

    A falta de alimentos

    Existe em todo lugar

    Esse tipo de problema

    Ns temos que superar

    Distribuindo terra e gua

    Para o agricultor cultivar

    Adquirindo terra e gua

    Alguns problemas vo acabar

    Principalmente a fome

    E a obesidade popular

    Trazendo paz e sade

    Para o povo do nosso lugar

    Para acabar com a fome

    E tambm a obesidade

    As doenas associadas

    Da nossa sociedade

    Precisamos de alimentos

    Saudveis e em quantidade

    O direito alimentar

    parte fundamental

    De condies necessrias

    Mas tambm essencial

    De forma igualitria

    E no discriminal

    Todo Pas tem direito

    soberania alimentar

    Produo e distribuio

    garantia, a Lei nos d!

    Cabe aos nossos governantes

    Fazer isso funcionar

    Segurana Alimentar

    Cordel de autoria de Juvaldino Nascimento da Silva, Senhor do Bonfim, Bahia

  • Documento de Referncia 5

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Apresentao

    Este Documento de Referncia um convite ao engajamento e renovao de compromissos da sociedade e governos para a participao no processo que nos levar 5 Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (CNSAN), no perodo de 3 a 6 de novembro de 2015, em Braslia, mobilizados pelo significativo lema Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar.

    Visa subsidiar os debates e propostas das conferncias estaduais e do Distrito Federal, e, na medida do possvel, das Conferncias Municipais e Territoriais.

    Aborda os contedos dos trs eixos da Conferncia: (a) Comida de verdade: avanos e obstculos para a conquista da alimentao adequada e saudvel e da soberania alimentar; (b) Dinmicas em curso, escolhas estratgicas e alcances das polticas pblicas; (c) Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Sisan).

    Sua elaborao coube Subcomisso de Contedo e Metodologia da 5 CNSAN, constituda de conselheiros e conselheiras da sociedade civil e representantes de governo que integram a Cmara Interministerial de Segurana Alimentar e Nutricional (Caisan). Contou ainda com a contribuio da Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Consea). A verso final foi submetida apreciao do Grupo Executivo da 5 CNSAN, que a aprovou.

    No esto previstas propostas de alterao dos contedos do texto, pois o objetivo, como seu prprio nome indica, servir de referncia aos debates.

    Para a etapa da Conferncia Nacional, ser produzido um Documento Sntese com a incorporao de reflexes e deliberaes emanadas das conferncias estaduais e do Distrito Federal, bem como dos quatro Encontros Temticos, a saber: (i) Soberania e Segurana Alimentar e Nutricional na Amaznia; (ii) Atuao das Mulheres na Construo da Soberania e da Segurana Alimentar e Nutricional; (iii) gua e Soberania e Segurana Alimentar e Nutricional; (iv) Soberania e Segurana Alimentar e Nutricional da Populao Negra e dos Povos e Comunidades Tradicionais.

    a determinao cidad e democrtica de assegurar a representao de amplos segmentos da sociedade com sua diversidade, em dilogo com as instncias governamentais, que propiciar o exerccio de reflexes para o reconhecimento de conquistas, problematizao dos desafios e inovao de propostas. E este o relevante papel do processo da realizao das conferncias estaduais, distrital, municipais e/ou territoriais/regionais ao qual se soma o conjunto dos encontros temticos.

    Este caminho fundamental para atingirmos o macro objetivo da 5 Conferncia de ampliar e fortalecer os compromissos polticos para a promoo da soberania alimentar, garantindo a todas e todos o direito humano alimentao adequada e saudvel, assegurando a participao social e a gesto intersetorial no Sistema, na Poltica e no Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional.

    Boa Leitura e votos de xito na realizao das conferncias!

    Maria Emlia Lisboa Pacheco

    Presidenta do Consea

  • Documento de Referncia6

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Introduo

    A 5 Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (5 CNSAN) ocorre aps quase 10 anos da promulgao da Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional1, e aps 5 anos da publicao da Poltica Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Decreto n 7.272/2010). Desde 2003, com a recriao do Consea Nacional e com a incluso do combate fome como eixo estratgico da atuao governamental, muitos passos foram dados no sentido de fortalecer uma poltica de Estado voltada para a SAN. A consagrao da alimentao como direito bsico previsto na Constituio Federal (CF) significou o reconhecimento da SAN como direito de todas e todos, responsabilizando o Estado pela sua garantia e demandando da sociedade efetivo engajamento.

    A sada do Brasil do Mapa Mundial da Fome, em 2014, e a melhoria de vrios indicadores nos ltimos anos, tais como a reduo significativa da pobreza, extrema pobreza e da desigualdade e a melhoria nos ndices de segurana alimentar e nutricional, so resultados da implementao de um conjunto de polticas voltadas para a garantia de uma alimentao adequada e saudvel para todas e todos.

    Estes avanos so ainda mais expressivos pelo fato de terem sido desenvolvidos em um ambiente poltico institucional marcado pelo constante dilogo e negociao entre governo e sociedade civil.

    Mas o Brasil ainda um pas com extrema desigualdade social, que se expressa nas disparidades de renda, nas desigualdades no acesso aos recursos e tambm nas desigualdades regionais, raciais e tnicas. A populao negra, os povos indgenas e os povos e comunidades tradicionais continuam com os piores ndices de insegurana alimentar.

    Este o momento de fortalecer a Poltica Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (PNSAN) nas esferas nacional, estadual e municipal e avanar na implementao dos princpios da soberania alimentar e do direito humano alimentao adequada.

    necessrio assegurar as conquistas alcanadas e ao mesmo tempo reforar, reorganizar e construir polticas que respondam tanto aos novos desafios que se apresentam como aos que persistem, que se explicam em grande medida pelo modelo vigente de produo e consumo de alimentos.

    A predominncia da produo no sustentvel no pas, baseada no agronegcio exportador, com a adoo de prticas nocivas sade e ao meio ambiente, tais como o uso abusivo de agrotxicos, a crescente liberao dos transgnicos e uma propaganda que destri prticas alimentares tradicionais, tm produzido consequncias perversas para a segurana alimentar e nutricional, assim como degradao ambiental, excluso social e impactos na sade humana.

    1 Lei n 11.346, de 15 de setembro de 2006.

  • Documento de Referncia 7

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Nas ltimas dcadas, mudanas nas estruturas de abastecimento e o crescente controle privado dos mercados tm condicionado o consumo dos alimentos e impactado nos hbitos alimentares. Tem crescido o consumo de alimentos processados e ultraprocessados2 pela populao. O aumento do sobrepeso e obesidade, bem como das doenas crnicas no transmissveis, est diretamente associado a este padro alimentar.

    Esses e outros desafios ganham contornos mais preocupantes quando se considera o contexto poltico e econmico atual. Por um lado, no campo poltico, chama a ateno a articulao de diversas foras sociais com o objetivo de enfatizar uma agenda conservadora, que ameaa direitos conquistados ao longo das ltimas dcadas. O crescimento de bancadas parlamentares ligadas, por exemplo, a setores que pregam abertamente: a restrio a direitos; o racismo, o machismo e o dio; o questionamento da democracia participativa; e a restrio de polticas pblicas diretamente responsveis por importantes avanos sociais, assim como as medidas de ajuste fiscal, podem impactar negativamente nas conquistas relativas segurana alimentar e nutricional e constituem-se em ameaa grave ao processo de desenvolvimento social e poltico do pas.

    Por outro lado, estamos no incio de um novo ciclo de governo. O prximo perodo do Plano Plurianual (PPA 2016-2019), em elaborao pelo governo federal e pelos governos estaduais e distrital, e a atualizao do 2 Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Plansan) constituem momentos oportunos para discutir os rumos do pas e estabelecer um movimento amplo e participativo em defesa de um modelo de sociedade mais justo e sustentvel, uma mobilizao nacional em defesa da comida de verdade no campo e na cidade.

    As conferncias nos estados, no Distrito Federal, em municpios e territrios, ao congregarem milhares de participantes, so fundamentais para o fortalecimento e a ampliao do movimento nacional em prol da soberania e da segurana alimentar e nutricional enquanto instrumento de reafirmao de direitos e de resistncia contra os retrocessos.

    Para maiores avanos na consolidao do Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Sisan) nos estados e municpios essencial que a sociedade identifique a centralidade da segurana alimentar e nutricional para a equidade e para o desenvolvimento do pas.

    Este documento pretende contribuir para o debate destas e outras questes durante o processo que leva 5 Conferncia Nacional de SAN. Ele est organizado em trs eixos que buscam animar a discusso tanto em mbito nacional como nos estados, Distrito

    2 Produtos ultraprocessados, segundo o Guia Alimentar para a Populao Brasileira, so formulaes industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substncias extradas de alimentos (leos, gorduras, acar, amido, protenas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratrio com base em matrias orgnicas como petrleo e carvo (corantes, aromatizantes, realadores de sabor e vrios tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes). Para elaborao destes produtos so utilizadas tcnicas como extruso, moldagem e pr-processamento por fritura ou cozimento. Exemplos: biscoitos, sorvetes, balas e guloseimas em geral, cereais aucarados para desjejum matinal, bolos e misturas para bolo, barras de cereal, sopas, macarro e temperos instantneos, molhos, salgadinhos de pacote, refrescos e refrigerantes, iogurtes e bebidas lcteas adoadas e aromatizadas, bebidas energticas, refeies congeladas, hambrgueres e extratos de carne de frango ou peixe empanados do tipo nuggets, salsichas e outros embutidos, pes de forma, pes para hambrguer ou hot dog, pes doces e produtos panificados.

  • Documento de Referncia8

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Federal, municpios e territrios no processo de organizao de suas conferncias.

    O primeiro eixo procura problematizar o lema da conferncia, a ideia de comida de verdade associada soberania alimentar e aos direitos. Afinal, do que estamos falando quando convocamos o pas para refletir sobre comida de verdade?

    No segundo eixo, so abordadas questes que dialogam com as oito diretrizes da Poltica e do Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional. Essas reflexes podem contribuir para a discusso das realidades locais e sua relao com os planos estaduais, distrital e municipais elaborados, em reviso ou, ainda, em construo.

    Por fim, o terceiro eixo discute o Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Sisan), arcabouo institucional que d sustentao s decises e medidas pactuadas e implementadas pelo conjunto de atores pblicos e privados e dos trs nveis de governo responsveis pela implementao da Poltica Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional.

    Em anexo, encontram-se a proposta de estrutura do Relatrio Final das Conferncias Estaduais e do Distrito Federal (Anexo 1) e sugestes de leituras complementares para aprofundar os debates (Anexo 2).

  • Documento de Referncia 9

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Eixo 1 Comida de verdade: avanos e obstculos para a conquista da alimentao adequada e saudvel e da soberania alimentar

    1. Afinal de contas, o que comida de verdade?

    O conceito de comida de verdade est diretamente associado ao de alimentao adequada e saudvel, direito humano bsico e reconhecido pela Constituio Federal brasileira. Na 3 Conferncia Nacional, em 2007, foi aprofundado o conceito de alimentao adequada e saudvel que pressupe a garantia ao acesso permanente e regular a alimentos produzidos de forma socialmente justa, ambientalmente sustentvel e livres de contaminantes fsicos, qumicos e biolgicos e de organismos geneticamente modificados. Deve tambm ser adequada aos aspectos biolgicos, de acordo com o curso da vida e s necessidades alimentares especiais dos indivduos e grupos, atender aos princpios da variedade, equilbrio, moderao e prazer e s dimenses geracionais, de gnero e de etnia. Mas, igualmente importante, precisa tambm atender s dimenses e valores socioculturais e referncias locais e tradicionais que conformam identidades sociais, tnicas e culturais no modo como temos acesso e transformamos os alimentos e nos atos de cozinhar e comer. Significa, portanto, valorizar a nossa alimentao como patrimnio imaterial nacional.

    A alimentao e o ato de comer compem parte importante da cultura de uma sociedade. Esto relacionados identidade e ao sentimento de pertencimento social das pessoas e envolvem, ainda, aspectos relacionados ao tempo e ateno dedicados a estas atividades, ao ambiente onde eles se do, partilha das refeies, ao conhecimento e informaes disponveis sobre alimentao, aos rituais e tradies e s possibilidades de escolha e acesso aos alimentos.

    Nosso patrimnio alimentar resultado do dilogo histrico entre culturas diversas como a dos povos indgenas, dos migrantes forados da frica e das populaes migrantes portuguesa, espanhola, italiana e japonesa, entre outras. Somado a isso, os distintos biomas que compem nosso pas proporcionam uma valiosa biodiversidade, expressa pela variedade de frutas, verduras, legumes, sementes oleaginosas, cereais e leguminosas, contribuindo no apenas com o nosso patrimnio culinrio, mas tambm com uma imensa disponibilidade de variados nutrientes, essenciais para uma alimentao saudvel.

    No sentido inverso da variedade, sustentabilidade e sade, o modelo agrcola predominante tem provocado um impacto negativo gerando o comprometimento da biodiversidade, a degradao ambiental e mudanas socioculturais. Ao mesmo tempo ocorrem mudanas no mbito do consumo, que provocam a desvalorizao de muitos de nossos alimentos que historicamente integraram a dieta dos(as) brasileiros(as). Da mesma maneira, os processos de urbanizao, o desenvolvimento de novas tecnologias e a crescente industrializao, combinados com o enfraquecimento do papel regulador do Estado, foram oportunos para a indstria de alimentos produzir comidas rpidas, pr-preparadas e produtos ultraprocessados. Estes tipos de produtos e refeies, caracterizados pela alta concentrao de sal, acar e gorduras, tm sua venda alavancada por aes agressivas de marketing (diferentes promoes e propaganda), que interferem diretamente nas escolhas alimentares de todos(as) ns. As estratgias de promoo comercial tm levado alterao no padro alimentar da populao brasileira, com aumento na participao dos produtos ultraprocessados na dieta em todos os estratos de renda.

    Felizmente, ainda persistem hbitos tradicionais de alimentao, como o consumo de arroz e feijo. A Pesquisa de Oramentos Familiares (POF 2008-2009) revelou que 1/5 da populao

  • Documento de Referncia10

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    brasileira ainda baseia sua alimentao em alimentos in natura ou minimamente processados. Nas reas rurais, ainda maior o consumo de alimentos bsicos, como arroz, feijo, batata-doce, mandioca, farinha de mandioca, frutas e peixes. Em contraste, nas reas urbanas ocorre o crescimento do consumo de produtos ultraprocessados, como biscoitos, salgados, massas e refrigerantes.

    Observa-se que, apesar de, em algumas regies brasileiras, tradies culturais e alimentares estarem sendo descaracterizadas, com a perda da identidade cultural alimentar, diversas outras regies ainda resistem s mudanas, preservando suas caractersticas em relao ao consumo de alimentos tradicionais. So exemplos a farinha de mandioca, peixe fresco e aa que predominam na Regio Norte, e o arroz, feijo, carne bovina e leite mais consumidos na Regio Centro-Oeste. O mesmo se observa em relao a determinados grupos da populao, como povos tradicionais, povos religiosos, pessoas com necessidades especiais e/ou com dieta diferenciada, como os vegetarianos.

    Estes resultados indicam que ainda temos um cenrio favorvel para reverso do aumento no consumo dos produtos ultraprocessados e valorizao da alimentao adequada e saudvel. O desafio, portanto, fortalecer e resgatar hbitos alimentares tradicionais e saudveis e a dimenso simblico-cultural de nossa alimentao.

    importante destacar que est ocorrendo a perda da capacidade das pessoas prepararem suas prprias refeies e a reduo drstica do tempo dedicado s atividades relacionadas alimentao como, por exemplo, compras, preparo e o consumo propriamente dito. Estes obstculos so reforados pelas caractersticas do sistema de abastecimento, principalmente nas cidades, que concentram os estabelecimentos de varejo em regies de maior poder aquisitivo, levando ao enfraquecimento, por exemplo, de feiras livres e pequenos empreendimentos. Uma das consequncias deste modelo o que tem sido chamado de desertos alimentares, regies urbanas onde grandes contingentes populacionais, preponderantemente de menor renda, no contam com oferta acessvel de alimentos variados e frescos nas proximidades de suas moradias.

    Comida de verdade , portanto, uma questo de soberania alimentar, pois se relaciona ao direito dos povos de decidir sobre o qu e como produzir e consumir os alimentos. Envolve o acesso e o direito informao das populaes tanto urbanas como rurais e a autonomia de agricultores(as) familiares, camponeses(as) e povos e comunidades tradicionais. Num sentido mais amplo, diz respeito tambm soberania das naes em suas escolhas alimentares, confrontadas pelas tendncias globais de padronizao da produo e dos hbitos alimentares conduzidas por corporaes transnacionais.

    Cabe lembrar e reafirmar que a Losan (Lei n 11.346/2006) consagrou a articulao entre as dimenses alimentar e nutricional da SAN, vinculando-a ao direito humano alimentao e ao princpio da soberania alimentar. No Brasil, segurana alimentar e nutricional (SAN) o direito de todos e todas ao acesso regular e permanente a alimentos saudveis e adequados e que no comprometa a realizao de nenhum outro direito. A garantia da SAN requer o respeito diversidade cultural e a preservao da sociobiodiversidade por meio de sistemas de produo e consumo sustentveis. Nesta definio e tambm no que apresentamos sobre o que Comida de Verdade, esto contempladas as duas dimenses do Direito Humano Alimentao Adequada estar livre da fome e ter acesso a uma alimentao adequada e reafirmada a primazia da soberania alimentar.

  • Documento de Referncia 11

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    2. Um sistema agroalimentar que impacta na produo de comida de verdade no mundo

    O sistema alimentar global e suas repercusses na soberania e segurana alimentar e nutricional e no Direito Humano Alimentao Adequada (DHAA) dos povos sempre recebeu ateno destacada nas Conferncias Nacionais de SAN e nos documentos do Consea devido sua repercusso na formulao das polticas nacionais e tambm na atuao internacional do Brasil. As questes internacionais ganham maior destaque em contexto de convergncia de crises (econmico-financeira, alimentar, ambiental, climtica, energtica e poltica) com fortes impactos sobre a realizao de direitos dos povos. Apesar da discreta melhoria no acesso alimentao ao redor do mundo, em 2015, cerca de 795 milhes de pessoas, na sua maior parte mulheres e pessoas que vivem no meio rural, continuam com acesso precrio a alimentos3.

    As tendncias hegemnicas no sistema alimentar mundial promovem modelos agrcolas e padronizam um modo de consumo que compromete a sociobiodiversidade, concentram o controle dos mercados de alimentos em um reduzido nmero de corporaes transnacionais, subordinam os alimentos aos circuitos especulativos mundiais e do centralidade a um padro de comrcio internacional causador de insegurana alimentar e nutricional. Alm disso, os resqucios do neoliberalismo limitam a capacidade de ao e regulao dos Estados, aprofundando as vulnerabilidades dos sistemas alimentares nacionais.

    Os modelos agrcolas baseados na concentrao fundiria, nas monoculturas de grande escala e altamente tecnificadas, no uso intensivo de insumos qumicos e na difuso de sementes transgnicas, buscam justificar-se pela necessidade de aumento da produo, porm, foram incapazes de erradicar a fome em nosso planeta. Pelo contrrio, vm ocasionando intenso desequilbrio e degradao ambiental, comprometimento da qualidade e da disponibilidade da gua, exausto dos solos, perda de fertilidade, contaminao e fragilizao dos ecossistemas e elevados ndices de perdas.

    3 O Estado da Insegurana Alimentar no Mundo 2015 (The State of Food Insecurity in the World 2015), disponvel em http://www.fao.org/hunger/key-messages/en/

  • Documento de Referncia12

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    As sementes transgnicas

    No h estudos comprovando a segurana, para consumo humano, do uso de produtos derivados de sementes transgnicas a longo prazo. Contudo, h evidncias que estes produtos aumentam o risco de graves distrbios mamrios, hepticos e renais em camundongos. Tambm, ao contrrio do que se apregoava, as lavouras com sementes transgnicas tm demandado o uso intensivo de agrotxicos, que afetam no s as culturas nas quais so aplicados, como contaminam solo, ar e gua e impactam na sade dos(as) trabalhadores(as), das populaes que residem prximo s reas contaminadas e dos(as) consumidores(as) desses alimentos. O efeito disso o aumento de casos de intoxicaes agudas e crnicas, cncer, infertilidade, ms formaes congnitas, abortos, doenas do fgado, rins, respiratrias, neurolgicas, entre outros efeitos, alm de afetar a autonomia dos agricultores familiares no acesso, desenvolvimento e circulao de sementes crioulas, orgnicas, varietais e convencionais (Consea, 2014a, 2014b)4. O Brasil possui a segunda maior rea cultivada com transgnicos do mundo. Em oito anos, mais do que dobrou a quantidade utilizada dessas sementes nas lavouras brasileiras5. Inmeros pases j proibiram o plantio de sementes transgnicas e a importao de produtos delas derivados.

    4 Consea Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional. Mesa de Controvrsias sobre impactos dos agrotxicos na soberania e segurana alimentar e nutricional e no direito humano alimentao adequada. Braslia, DF: CONSEA, 2014a. [relatrio final]; Consea Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional. Mesa de Controvrsias sobre transgnicos. Braslia, DF: CONSEA, 2014b. [relatrio final]5 Passou de 70 kg de sementes por hectares, em 2002, para mais de 150 kg por hectare em 2010. Fonte: Relatrio Indicadores de Desenvolvimento Sustentvel, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

    Merecem ainda ateno outras iniciativas baseadas na manipulao gentica de sementes, na formulao de misturas alimentares e na biofortificao de alimentos que so apresentadas como solues definitivas para a fome e desnutrio. Considerando que no foi comprovada a ausncia de efeitos prejudiciais aos organismos, cadeia produtiva e ao meio ambiente, a difuso destas estratgias no deveria ocorrer pelo princpio da precauo. Ainda mais levando-se em conta que iniciativas desta natureza, introduzidas principalmente nos pases empobrecidos com apoio de fundaes privadas, ameaam a soberania e a diversidade alimentar tradicional e a soberania dos pases.

    Cabe ressaltar que o caminho adotado pelo Brasil, com adoo de estratgias estruturais centradas na ampliao da capacidade de produo da agricultura familiar e do acesso a alimentos, permitiu eliminar a fome e a desnutrio como problemas endmicos sem lanar mo de estratgias semelhantes.

    O Brasil ocupa um lugar importante, tanto na conformao do sistema alimentar global, quanto nas iniciativas visando transform-lo. Por um lado, a expanso do comrcio internacional de commodities alimentares neste incio do sculo XXI, a includa a crise alimentar mundial que eclodiu em 2006/2007,trouxe vultuosos ganhos comerciais ao setor agroexportador brasileiro, confirmando a posio destacada do pas num sistema alimentar mundial que segue promovendo modelos de produo e consumo com conhecidas mazelas socioambientais e para a sade humana. Por outro lado, tem-se investido em estratgias para incentivo e fortalecimento da produo familiar, ampliado o seu acesso a mercados institucionais e induzido a transio agroecolgica.

  • Documento de Referncia 13

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    No plano internacional, tem havido significativa expanso da cooperao tcnica e da ajuda humanitria brasileira no campo da segurana alimentar e nutricional (SAN). parte deste contexto a visibilidade conquistada pela experincia brasileira no enfrentamento da fome e na construo social da SAN, desde 2003. Verifica-se tambm maior envolvimento das organizaes da sociedade civil brasileira com aes de mbito internacional, incluindo a crescente ateno dada ao tema pelo Consea e muitos Conseas estaduais, e tambm pela Caisan.

    3. Em direo comida de verdade

    Essa breve descrio das caractersticas atuais de nossa alimentao remete ao lema da 5 CNSAN: Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar. Este lema pretende instigar os governos e a sociedade a refletirem e apresentarem proposies para avanarmos na garantia da soberania e da segurana alimentar e nutricional no Brasil, com um foco indito em relao s conferncias anteriores ao dar visibilidade a todas as etapas e dimenses que desembocam no que est no nosso prato para comermos. O lema chama a ateno para a indissociabilidade do campo e da cidade para a definitiva erradicao da fome com acesso alimentao adequada e saudvel para todas e todos, para a importncia de revitalizar nossa diversidade cultural enquanto patrimnio,e tambm para a proteo da nossa sociobiodiversidade.

    Comer enquanto ato poltico pode induzir e fortalecer a produo de comida de verdade. Cada vez mais pessoas e setores sociais vm se envolvendo na busca por uma alimentao saudvel. Nota-se uma maior preocupao em conhecer a identidade dos produtos, sua origem, quem os produziu. H um debate crescente sobre a urgncia do Estado fortalecer seu papel regulador para controlar as prticas de promoo comercial, redefinir os parmetros de composio e rotulagem de produtos ofertados populao, bem como o controle e reduo do uso de agrotxicos. Muitos setores sociais se engajam na ampliao dos mercados de produtores e na formao de grupos de compras de produtos agroecolgicos e da agricultura familiar local, incluindo a urbana. Tais iniciativas valorizam modos de produzir ambientalmente sustentveis e valorizam, ainda, a proteo e conservao do patrimnio imaterial e gentico, a culinria local e os usos e conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade.

    A escolha do lema da Conferncia expressa as conquistas e tambm os desafios do Brasil na agenda de SAN para a realizao de direitos e da soberania alimentar. inegvel a melhoria nos ndices de insegurana alimentar no pas, resultado de um conjunto de polticas de enfrentamento da fome, promoo da incluso produtiva e social, fortalecimento da agricultura familiar, camponesa e indgena, valorizao do salrio mnimo e recuperao do emprego, reduo das desigualdades sociais, dentre outras, em um ambiente de participao e controle social.

    Contribuio fundamental para promover a comida de verdade vem sendo dada pela nova edio do Guia Alimentar para a Populao Brasileira, lanado em 2014, reconhecido nacional e internacionalmente por ressaltar os diversos aspectos relacionados alimentao, aos modos de comer e prtica culinria. Traz recomendaes baseadas em comida de verdade, aborda diversos obstculos para que as recomendaes possam ser implementadas e reconhece o papel central da atuao do Estado.

  • Documento de Referncia14

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Os desafios realizao do DHAA e da soberania alimentar no Brasil6 esto relacionados a aspectos estruturais da sociedade brasileira e do modelo de desenvolvimento prevalecente, bem como maneira como se organiza o sistema alimentar mundial e sua reproduo em nosso pas. Essas questes sero abordadas no prximo item, o Eixo 2, que trata das dinmicas em curso, das escolhas estratgicas e das polticas necessrias para enfrentar os desafios mencionados anteriormente. Note-se que o Eixo 2 busca aportar insumos para a reflexo em torno das oito diretrizes que atualmente compem o Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional Plansan, sem, no entanto, pretender esgot-las7.

    6 Uma abordagem abrangente desses desafios pode ser encontrada na Carta Poltica do Encontro Nacional 4 CNSAN + 2, realizado em 2014.7 Para mais informaes sobre as Diretrizes, recomenda-se a leitura dos seguintes documentos: Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional 2012 2015

    http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/LIVRO_PLANO_NACIONAL_CAISAN_FINAL.pdf.pagespeed.ce.NSQXeyLv0S.pdf

    Balano das Aes do Plano Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional 2012 2015

    http://www4.planalto.gov.br/Consea/publicacoes/balanco-plansan

    Relatrio do Encontro Nacional 4 Conferncia +2

    http://www4.planalto.gov.br/Consea/publicacoes/relatofinalversaofinal.pdf/view

  • Documento de Referncia 15

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    Eixo 2 Dinmicas em curso, escolhas estratgicas e alcances das polticas pblicas

    1. Erradicao da fome e os desafios da pobreza e desigualdade social8

    O Brasil conquistou importantes avanos sociais na ltima dcada como resultado de diversas aes pblicas dirigidas a esse fim, destacando-se a poltica de valorizao do salrio mnimo, o aumento do crdito e do emprego formal, a ampliao dos programas de transferncia de renda e a reconstruo e ampliao da matriz de polticas sociais. Incluem-se nessa matriz a consolidao da rede de proteo social, o reconhecimento e a garantia dos direitos sociais bsicos nas polticas pblicas com a consequente expanso da oferta de servios pblicos, e o avano na institucionalizao da poltica de segurana alimentar e nutricional. O acesso alimentao foi significativamente ampliado com o crescimento da renda familiar e o fortalecimento da agricultura familiar, camponesa e indgena, acompanhado de reduo das desigualdades e de melhorias em vrios indicadores sociais.

    Esse conjunto de medidas possibilitou erradicar a fome endmica no pas que, em 2014, deixou de constar do Mapa Mundial da Fome elaborado pela FAO. Em 1990, 22,5 milhes de pessoas estavam subalimentadas, enquanto que, em 2013, esse nmero se reduziu drasticamente para 3,4 milhes de pessoas, o que representa uma queda de 85%. Na mesma direo, verificou-se grande reduo na pobreza extrema e nas desigualdades de renda, bem como nos nveis de insegurana alimentar.

    Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad/IBGE), entre 2004 e 2013, a taxa de extrema pobreza caiu de 7,6% para 4% da populao, enquanto que a taxa de pobreza passou de 22,4% para 9,0%. A insegurana alimentar grave foi reduzida de 6,9% dos domiclios, em 2004, para 3,2% em 2013. Contudo, permanece a disparidade por cor ou raa, pois a insegurana alimentar moderada ou grave correspondia a 29,8% entre os pretos e pardos, enquanto que, entre os brancos, a proporo foi de 14,4%. As prevalncias da insegurana alimentar moderada ou grave so maiores nos domiclios cuja pessoa de referncia do sexo feminino e entre os pretos e pardos. A escolaridade tambm um fator importante na determinao da insegurana alimentar.

    Essa mesma disparidade tambm encontrada entre os povos indgenas e quilombolas. Por exemplo, mais da metade (55,6%) dos adultos quilombolas esto em situao de insegurana alimentar no Brasil, e o percentual atinge patamar de 41,1% quando includas as crianas e os adolescentes9.

    8 Este item dialoga principalmente com a Diretriz 1 do Plansan: Promoo do acesso universal alimentao adequada e saudvel, com prioridade para as famlias e pessoas em situao de insegurana alimentar e nutricional.9 A este respeito, ver: Brasil. Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. Quilombos do Brasil: segurana alimentar e nutricional em territrios titulados. Cadernos de Estudo Desenvolvimento Social em Debate, N 20. Braslia: 2014.

    http://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/cadernos%20de%20estudos20.pdf

  • Documento de Referncia16

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    A anlise da evoluo do indicador de pobreza multidimensional proposto pelo Banco Mundial tambm revela tendncia de queda acentuada e sistemtica entre os anos de 2001 e 2013. Em 2001, o percentual de pobres era de 9,3 % da populao; j em 2013, esse percentual era de 1,1%. O amplo conjunto de polticas sociais e a dinmica do mercado de trabalho contriburam para que 14 milhes de pessoas sassem da condio de pobreza multidimensional (de 16 milhes em 2001 para 2,2 milhes em 2013).

    No enfrentamento da pobreza e extrema pobreza, destaca-se a implementao do Programa Bolsa Famlia que atende, atualmente, mais de 14 milhes de famlias que podem receber at R$ 230,00 por ms, incluindo os benefcios variveis. As condicionalidades da sade e educao so compromissos assumidos tanto pelas famlias atendidas quanto pelo poder pblico, que responsvel pela oferta dos servios pblicos de sade, educao e assistncia social.

    O Cadastro nico dos Programas Sociais (Cadnico) tornou-se uma das tecnologias sociais mais reconhecidas e hoje responsvel por identificar e caracterizar as famlias de baixa renda, sendo uma ferramenta que permite tanto a identificao de famlias em situao de vulnerabilidade como qualifica o planejamento de aes por parte dos governos. Destaca-se que o cadastramento dos Grupos Populacionais Tradicionais e Especficos (GPTE), a partir de 2004, tornou possvel tirar da quase invisibilidade 15 grupos populacionais especficos, entre os quais esto os indgenas e os quilombolas, pescadores(as) artesanais, quebradeiras de coco e povos tradicionais de matriz africana.

    O Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE) teve tambm forte expanso nos ltimos anos. Em 2000, o PNAE atendia cerca de 37,1 milhes de escolares com um investimento de R$ 901,7 milhes. Em 2013, foram atendidos 43 milhes de escolares com recursos da ordem de R$ 3,5 bilhes. Alm de ser considerado um dos maiores programas na rea de alimentao escolar no mundo, o PNAE incentiva a organizao e associao das famlias agricultoras. A Lei n 11.947/2004, em seu artigo 14, determina que, no mnimo, 30% do valor repassado a estados, municpios e Distrito Federal pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE) deve ser utilizado obrigatoriamente na compra de gneros alimentcios provenientes da agricultura familiar, priorizando-se os assentamentos da reforma agrria e as comunidades tradicionais quilombolas e indgenas.

    Porm, as desigualdades enfrentadas por alguns segmentos da populao e regies do pas ainda so significativas. So desigualdades relativas renda e s condies de vida, e no acesso aos recursos naturais e aos meios de produo, terra e ao territrio, s condies de sade e nutrio e s polticas pblicas. Os gastos com alimentao representam, em mdia, 19,8% do total das despesas com consumo familiar10. Quanto menor a renda, maior a participao da despesa com alimentao, que chega at a 27,8% para famlias com rendimento mensal de at R$ 830,00.

    A taxa de mortalidade infantil entre os povos indgenas continua 2,5 vezes maior em relao mdia da populao brasileira. A desnutrio tambm afeta em maior grau os povos indgenas e as comunidades tradicionais: 26% das crianas indgenas menores de 5 anos apresentam desnutrio crnica e 15% desnutrio aguda11. Entre as comunidades quilombolas, 18,7% das crianas menores de 5 anos apresentam desnutrio crnica e cerca de 6% desnutrio aguda12.

    10 Pesquisa de Oramentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia Estatstica (POF/IBGE, 2009).11 1 Inqurito Nacional de Sade e Nutrio de Povos Indgenas, 2008/2009. Realizado pela Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade (Abrasco) em parceria com Institute of Ibero-AmericanStudies da Universidade de Goteborg, Sucia, com financiamento do Projeto Vigisus II, do Banco Mundial e da Fundao Nacional de Sade (Funasa).12 Chamada Nutricional Quilombola, 2006, do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS).

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    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    13 Este item dialoga principalmente com a Diretriz 2 do Plansan: Diretriz 2: Promoo do abastecimento e estruturao de sistemas sustentveis e descentralizados, de base agroecolgica e sustentveis de produo, extrao, processamento e distribuio de alimentos.

    necessrio, portanto, identificar claramente esses grupos populacionais em situao de insegurana alimentar e prioriz-los na implementao de polticas pblicas de soberania e segurana alimentar e nutricional.

    2. Evoluo da produo agroalimentar e suas repercusses ambientais, sociais e no padro alimentar13

    A produo agrcola de alimentos no Brasil vem refletindo uma conjuntura de expanso do agronegcio concentrada na monocultura de grande escala, muitas vezes baseada em transgnicos, com alta concentrao fundiria, tecnolgica e creditcia. A elevada produtividade por rea tem sido obtida a custa de impactos sociais e ambientais, gerando volumosas receitas para a agricultura de grande porte e corporaes da cadeia agroalimentar, especialmente, as vinculadas como as exportaes. Cabe a ateno para o fato de o modelo de monocultura priorizar o cultivo de um nmero reduzido de produtos em detrimento da extensa variedade de alimentos regionais. Essa menor variedade resulta na reduo de nutrientes disponveis e em padronizao alimentar, desestimulando hbitos e culturas alimentares locais e tradicionais. Alimentos cultivados nesse modelo, como o milho e a soja, constituem a base de boa parte dos produtos ultraprocessados, relacionados a marcas transnacionais impulsionadas por intensa publicidade e propaganda. O consumo de ultraprocessados, portanto, aumenta a exposio aos alimentos transgnicos e produzidos com agrotxicos, ao mesmo tempo em que reduz a variedade e qualidade do que comemos.

    O modelo hegemnico, visando responder s constantes crticas por ser uma agricultura insustentvel e emissora de gases causadores do efeito estufa, vem introduzindo novos pacotes tecnolgicos, baseados em conceitos como agricultura de preciso, agricultura inteligente (smart agriculture) e agricultura de baixo carbono. Contudo, estas inovaes preservam o modelo agrcola atual e suas repercusses sociais, como a concentrao da terra, dos insumos e tecnologias, alm de no serem adequadas ao amplo contingente de pequenos(as) agricultores(as), dos povos indgenas e povos e comunidades tradicionais. Outro aspecto que estes pacotes tambm no equacionam antigos problemas de logstica e infraestrutura e as elevadas perdas e desperdcios que ocorrem desde a colheita at o uso domstico dos alimentos.

    A despeito destas fragilidades, no entanto, o cerne da questo que estes pacotes tecnolgicos entram em conflito com mudanas estruturais propostas por inmeras organizaes e movimentos sociais que se pautam por outros paradigmas, inclusivos e sustentveis, que dialogam com dimenses dos saberes e prticas tradicionais e mantm outra relao com a natureza. Da a importncia de se caminhar em direo a uma agricultura de base agroecolgica, entendida como um processo ao mesmo tempo social, econmico, ambiental e tcnico que articula mltiplos atores, mercados, tecnologias, instituies e formas de conhecimento.

    Em paralelo, a agricultura brasileira se caracteriza pela presena de um amplo contingente de unidades que compe o que conhecemos como agricultura familiar. Segundo o ltimo Censo Agropecurio do IBGE (2006), a agricultura familiar numericamente majoritria em relao s unidades patronais (84% do total, com mais de 4 milhes de estabelecimentos familiares

  • Documento de Referncia18

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    contra cerca de 500 mil patronais) e responde pela maior parte do emprego rural (cerca de 70%). Tudo isso, mesmo com as conhecidas restries enfrentadas pelas famlias rurais no acesso terra que as fazem ocupar frao minoritria da rea total (24%). A agricultura realizada em bases familiares tem papel central na produo dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro, constituindo um setor fundamental da base produtiva, econmica e social do Brasil.

    Por esta razo, polticas pblicas de apoio produo e comercializao de alimentos da agricultura familiar ganharam relevncia nos ltimos 12 anos, com expanso do crdito produo14 com garantia da safra e o fortalecimento da assistncia tcnica e extenso rural. Ressalte-se a grande inovao que foi o apoio comercializao por meio do Programa de Aquisio de Alimentos (PAA) destinados a pessoas com restries de acesso aos alimentos, bem como a compra direta de alimentos destinados alimentao escolar. Merecem destaque iniciativas mais recentes de articulao com produtores(as) locais para fornecimento de alimentos de base agroecolgica e orgnica para a preparao de refeies em hospitais.

    Atualmente, esto habilitados a acessar esses programas 5,14 milhes de agricultores(as) cadastrados(as) junto ao Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) que possuem a Declarao de Aptido ao Pronaf (DAP), instrumento de identificao dos(as) agricultores(as) familiares. Esto cadastradas, tambm, 3,4 mil organizaes econmicas que possuem a DAP para pessoas jurdicas. O nmero de DAP para pessoas fsicas cresceu 25 vezes em relao a 200215.

    a agricultura desenvolvida em pequenas unidades, com utilizao direta da mo de obra familiar, a mais propcia para promover a produo diversificada de alimentos e assegurar o abastecimento interno do pas. Os investimentos na agricultura familiar aumentaram a produo de alimentos, em simultneo gerao de emprego e renda para essas famlias, dinamizao das economias locais e ocupao mais equilibrada e desconcentrada do territrio nacional.

    Em outubro de 2013, foi lanado o Plano Brasil Agroecolgico (Planapo), com o objetivo de estimular e ampliar a produo agroecolgica e aumentar a oferta de alimentos saudveis populao brasileira. O Plano, instrumento de planejamento, gesto e execuo da Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica, instituda em 2012 (Decreto n7.794), tem 125 iniciativas e recursos na ordem de R$ 8,5 bilhes. Para garantir sua efetividade, foram criadas instncias de gesto e coordenao: a Comisso Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica (Cnapo), composta por governo e sociedade civil, e a Comisso Interministerial de Agroecologia e Produo Orgnica (Ciapo), instncia de governo que faz o monitoramento e o acompanhamento da implementao do Plano.

    Como resultados do Planapo, j em 2014, destacam-se: reduo dos juros do Pronaf Agroecologia; incluso da agroecologia e da produo orgnica como prioritrias na nova linha Pronaf Produo Orientada, com Assistncia Tcnica e Extenso Rural (ATER) vinculada; simplificao dos requisitos dos projetos tcnicos de crdito para possibilitar o financiamento de sistemas de base agroecolgica ou para transio agroecolgica e a

    14 Entre os Planos Safra de 2002/2003 e 2014/15, o valor disponibilizado para a agricultura familiar cresceu de R$ 2,3 bilhes para R$ 24,1 bilhes. Atualmente, a carteira ativa do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) de R$ 56 bilhes, acumulando 3,5 milhes de contratos que beneficiam 2,6 milhes de famlias de agricultores(as). O Pronaf est presente em mais de 5.400 municpios (98% do total).15 BRASIL, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. 12 anos de transformaes, lutas e conquistas. Braslia, 2015.

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    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    construo do Programa Nacional de Reduo de Agrotxicos (Pronara)16. O MDA tambm comeou a promover ATER especfica para agricultores(as) familiares agroecolgicos(as), em articulao com pesquisa e ensino, alm de contemplar o estimulo transio em todos os chamamentos para contratao de servios de assistncia tcnica do ministrio.

    Integra a pauta das organizaes e movimentos sociais e tambm a de setores de governo, a discusso sobre as formas mais adequadas de fortalecer a agricultura familiar, camponesa, indgena e povos e comunidades tradicionais, apoiando os diversos sistemas produtivos e sua base gentica, aproveitando insumos e fontes de energia localmente disponveis, utilizando as possibilidades oferecidas pelo enfoque agroecolgico, considerando os diferentes biomas e reconhecendo as especificidades de gnero, raa e etnia.

    preciso debater como combinar programas e aes diferenciadas segundo um recorte econmico, social e tnico, contemplando unidades familiares e coletivas, na perspectiva de ampliar a disponibilidade de alimentos com origem em sistemas de produo diversificados. Isso implica, entre outros aspectos, melhorar a compreenso sobre o amplo e diverso segmento da agricultura familiar e seus papis na soberania e segurana alimentar e nutricional e no prprio desenvolvimento do meio rural e da nao brasileira em geral. Essa reflexo repercutir nos principais programas dirigidos para esse segmento, a saber, o Pronaf, Ater, PAA, PNAE, Planapo e Pronara. A significativa ampliao de recursos desses programas e as importantes inovaes em curso podero evitar o risco de concentrao do crdito nos segmentos mais capitalizados da agricultura familiar.

    Estas iniciativas so centrais para que o pas tenha uma perspectiva de longo prazo a partir de um novo paradigma, no qual o uso racional dos recursos naturais, a preservao da biodiversidade, a soberania e segurana alimentar e nutricional sejam centrais. O grande desafio posto a ampliao da produo familiar agroecolgica de alimentos, por meio do manejo dos agroecossistemas, a incorporao de princpios, mtodos e tecnologias com base agroecolgica e a garantia dos direitos dos(as) agricultores(as) familiares, povos indgenas, pescadores(as) artesanais e outros povos e comunidades tradicionais ao livre uso da agrobiodiversidade. Este processo exige a criao de novos ordenamentos e normatizaes do Estado, no sentido de regular a atuao dos agentes privados nos mercados de alimentos e estruturar uma rede de bens e servios de fomento produo familiar agroecolgica.

    16 O Programa Nacional de Reduo do Uso de Agrotxicos (Pronara) elaborado por representantes do Estado e da sociedade, tem carter intersetorial e aes de responsabilidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Foi aprovado em dezembro de 2014, quanto ao mrito, na Cnapo e aguarda resolues da Ciapo para ser aprovado e homologado pelo governo quantos aos seus 6 eixos: de registro, de controle, monitoramento e responsabilizao da cadeia produtiva, de medidas econmicas e financeiras, de desenvolvimento de alternativas, de informao, participao e controle social e de formao e capacitao. fundamental o reconhecimento e apoio da sociedade nesta proposta que alavanca o processo de transio agroecolgica no modelo agrcola brasileiro, proposto pelo Plano Brasil Ecolgico/PNAPO Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica.

  • Documento de Referncia20

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    3. Estratgias e polticas soberanas de abastecimento alimentar e as questes de SAN nos centros urbanos17

    A necessidade de formular e implementar estratgias e polticas soberanas de abastecimento alimentar tem sido objeto recorrente nas Conferncias Nacionais, no Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Consea) e na Cmara Interministerial de Segurana Alimentar e Nutricional (Caisan). Entende-se por abastecimento alimentar o conjunto, diverso e complexo, de atividades e atores que mediam a produo e o acesso aos alimentos. Assim, uma poltica de abastecimento diz respeito tanto garantia do acesso contnuo aos alimentos pelas populaes de menor renda e grupos mais vulnerveis, como tambm o acesso a uma alimentao adequada e saudvel pelo conjunto da populao.

    Ressalta-se que a disputa de concepes sobre estratgias de abastecimento alimentar dizem respeito no apenas aos aspectos da produo e consumo, mas tambm aos papis dos mecanismos de mercado e da interveno do Estado, inclusive a poltica macroeconmica que retornou ao centro do debate nacional. Acrescentem-se os fatores que transcendem o mbito nacional, referentes aos papis do comrcio internacional e o peso das grandes corporaes num sistema alimentar globalizado.

    As proposies das Conferncias Nacionais anteriores e do Consea apontam para a necessidade de poltica nacional de abastecimento abrangendo aes para ampliar o acesso a alimentos adequados e saudveis oriundos de modelos de produo socialmente inclusivos e ambientalmente sustentveis. Isso implica um enfoque intersetorial capaz de conectar acesso (padres de consumo) e modelos de produo, envolvendo aes em diferentes escalas, utilizao de instrumentos diferenciados, qualificao de equipamentos pblicos e pactuao federativa.

    Ao lado dos desafios j mencionados relativos produo agroalimentar, preciso tambm avanar na discusso especfica das questes de SAN nos centros urbanos com vistas a propor aes de abastecimento alimentar, tanto em relao ao atacado e ao varejo quanto ao engajamento das esferas de governos estadual e municipal. Esse debate pode ser mais efetivo quando so consideradas as especificidades e diferenas entre os ncleos urbanos pequenos, cidades mdias e grandes cidades e regies metropolitanas.

    A SAN nos centros urbanos diz respeito ao acesso por todos os seus habitantes a uma alimentao adequada, saudvel e no custosa. A renda disponvel sobressai como fator determinante do acesso aos alimentos. Pelo lado da disponibilidade de alimentos, h que verificar: quais tipos de estabelecimentos esto disponveis e qual o porte deles; qual a origem dos produtos comercializados; se a distribuio espacial dos estabelecimentos permite que diferentes grupos populacionais tenham acesso a produtos variados e saudveis, de qualidade e preo justo; se os produtos comercializados so originrios de produo local ou prxima.

    A agricultura urbana e periurbana (AUP) integra o debate sobre abastecimento, implicando a implementao de polticas pblicas, nacionais e locais, que a promovam. Verifica-se o crescimento de coletivos de AUP em cidades de todo o Brasil, englobando hortas domsticas ou comunitrias para produo de alimentos para consumo prprio ou para o abastecimento das cidades e de programas pblicos. H tambm outras modalidades de agricultura urbana com

    17 Este item dialoga principalmente com a Diretriz 2 do Plansan: Promoo do abastecimento e estruturao de sistemas sustentveis e descentralizados, de base agroecolgica e sustentveis de produo, extrao, processamento e distribuio de alimentos.

  • Documento de Referncia 21

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    caractersticas e significados diversos (educao, terapia, cultivos no-alimentares, etc.). Este um campo com expressiva participao de organizaes da sociedade civil e administraes municipais, e que requer um arcabouo institucional de poltica pblica em escala nacional.

    As iniciativas de AUP so, geralmente, multifuncionais, onde a produo de alimentos e fitoterpicos gera o contato direto das pessoas com a natureza e com uma experincia real de autodeterminao em relao alimentao. Mas tambm associam-se, entre outros, reapropriao e humanizao de espaos anteriormente abandonados, oportunidades de contato e socializao entre moradores(as), insero social, desenvolvimento de cidadania e manuseio sustentvel dos bens dessas cidades. Ao mesmo tempo em que influenciada pela dinmica urbana, a AUP uma prtica social que confronta o atual modelo de desenvolvimento das cidades, propondo mudanas estruturais no uso dos espaos urbanos. Alm disso, contribui para a organizao de circuitos de proximidade de produo e consumo no campo e na cidade, proporcionando populao processos educativos de resgate do ciclo da alimentao e de sistemas sustentveis de produo de alimentos.

    Alm disso, a AUP est associada prtica da compostagem, que um processo biolgico de valorizao da matria orgnica e uma das alternativas sustentveis de aproveitamento das sobras de alimentos, uma forma de reduzir o desperdcio de matria orgnica e nutrientes, de resgatar o ciclo natural dos nutrientes (macro e micro) e reinseri-los no solo. Ampliar, fortalecer iniciativas e consolidar polticas pblicas em favor da compostagem visa a recuperao ou manuteno da qualidade dos solos e agrega benefcios biolgicos, qumicos e fsicos estruturantes terra e s plantaes.

    As reflexes sobre a SAN nas cidades precisam contemplar o crescimento das refeies realizadas fora do domiclio (bares, restaurantes e ambulantes), uma realidade em todas as faixas de renda, embora com diferenas entre elas. Essa forma de realizar as refeies dirias afeta as avaliaes baseadas no tradicional olhar sobre os locais de compra dos alimentos pela populao e os tipos de bens adquiridos, assim como altera a composio da alimentao. Mesmo na compra de alimentos para preparao domstica, verifica-se a crescente utilizao de alimentos pr-preparados e refeies prontas. O peso da indstria e a presena majoritria das grandes redes de supermercados traz importantes desafios tambm para a promoo de formas de varejo de pequeno porte com oferta diversificada de alimentos, sejam eles privados ou equipamentos pblicos em regime de concesso a privados.

    Uma poltica de abastecimento tem que ser capaz de articular aes em vrios campos, englobando: ampliao do acesso alimentao adequada e saudvel, inclusive no aspecto do acesso fsico a esses bens pelas populaes mais pobres nos grandes aglomerados urbanos; regulao dos preos dos alimentos num contexto de inflao dos alimentos; promoo de articulaes com produtores(as) locais de base agroecolgica visando fortalecer o comrcio local, garantir custos menores e ofertar alimentos adequados e saudveis; qualificao e revalorizao do pequeno varejo, e o resgate das feiras e mercados de produtores(as). Papel importante pode ser desempenhado pelos equipamentos pblicos de segurana alimentar e nutricional (como, por exemplo, cozinhas de escolas e hospitais, restaurantes populares e cozinhas comunitrias, entre outros), quando articulados com outros componentes do Sisan, considerando que, muitas vezes, uma ou mais refeies ocorrem nesses locais, podendo ser as nicas realizadas no dia. Campanhas de promoo do consumo de alimentos frescos, como frutas e hortalias, realizadas em parceria com centrais de abastecimento e com a rede varejista para reduo do custo e aumento da oferta tambm so importantes estratgias realizadas nos centros urbanos.

  • Documento de Referncia22

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    4. Direito terra e ao territrio e a vulnerabilizao de grupos sociais rurais18

    Povos indgenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, assentados(as) da reforma agrria e trabalhadores(as) rurais sem terra encontram-se entre os grupos sociais com maior grau de vulnerabilidade social, resultado, entre outras, de uma ao de Estado que levou ao genocdio de muitos desses povos e comunidades. Desde a redemocratizao do Brasil e da Constituio de 1988, o direito terra e ao territrio de povos indgenas, povos e comunidades tradicionais e trabalhadores(as) do campo constitui-se em forte demanda social. Uma poltica de reforma agrria ampla e efetiva e processos de regularizao fundiria, ao lado de polticas direcionadas especificamente a esses grupos sociais, tm sido temas recorrentes no debate sobre a SAN no Brasil. A extrema concentrao da propriedade da terra demonstra a permanncia da questo agrria em nosso pas.

    Em relao s comunidades quilombolas, o Decreto n 4.887/2003 estabeleceu os procedimentos administrativos para a identificao, o reconhecimento, a delimitao, a demarcao e a titulao da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, regulamentando o artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. J o Decreto n 6.040/2007 instituiu a Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais(PCT) e definiu o que so PCT, tendo como principal objetivo promover o desenvolvimento sustentvel dos povos e comunidades tradicionais, com nfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econmicos e culturais, com respeito e valorizao sua identidade, suas formas de organizao e suas instituies (art. 2). No mbito desta Poltica, foi criada a Comisso Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, presidida pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS) e secretariada pelo Ministrio do Meio Ambiente (MMA).

    Ao longo desse perodo, o Cadastro nico pde aprofundar o dilogo com os movimentos sociais e expandir a estratgia de cadastramento diferenciada para Grupos de Populaes Tradicionais e Especficos (GPTE)19(Portaria GM/MDS n. 177 de 16 de junho de 2011), considerando as caractersticas especficas em relao ao seu modo de vida, cultura, crenas e costumes, e ainda, em relao a contextos de condies crticas de vulnerabilidade social20.

    Tem-se um cadastro dando visibilidade a aproximadamente 1,3 milhes de famlias pertencentes ao GPTE, para as quais sabe-se onde esto e como vivem, permitindo s trs esferas de governo propor e monitorar aes com maior eficcia e melhor avaliao de seus efeitos. No Governo Federal um conjunto de estratgias est direcionado a estes grupos: Ao de Distribuio de Alimentos, Bolsa Estiagem, Bolsa Verde, Brasil Quilombola, Programa Cisternas, Programa de

    18 Este item dialoga principalmente com as seguintes diretrizes do Plansan:

    Diretriz 2: Promoo do abastecimento e estruturao de sistemas sustentveis e descentralizados, de base agroecolgica e sustentveis de produo, extrao, processamento e distribuio de alimentos;

    Diretriz 4: Promoo, universalizao e coordenao das aes de segurana alimentar e nutricional voltados para quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, povos indgenas e assentados da reforma agrria.19 Grupos de Populaes Tradicionais e Especficos (GPTE) so:indgenas, quilombolas, ciganos, extrativistas, pescadores artesanais, pertencentes a comunidades de terreiro, ribeirinhas, agricultores, beneficirios de Programa Nacional de Crdito Fundirio (PNCF), acampados, atingidos por empreendimentos de infraestrutura, preso do sistema carcerrio, catadores de material reciclvel e em situao de rua.20 Brasil. Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. Cadastramento diferenciado. Diversidade no Cadastro nico Respeitar e Incluir. Braslia, DF; Secretaria de Renda e Cidadania, 1014. Essa publicao detalha a metodologia e o rol de aes e estratgias do Governo Federal voltadas a estes grupos.

  • Documento de Referncia 23

    Comida de Verdade no Campo e na Cidade

    21 Estados contemplados: MT e RS (3.000); AM (1.500); MS (3.090); RR (1.800); AM (1.500); RS (1.500).22 Fonte: http://www.palmares.gov.br/?page_id=88.

    Fomento s Atividades Produtivas Rurais, Programa Nacional de Crdito Fundirio, Programa Nacional de Documentao da Trabalhadora Rural, Programa Nacional da Reforma Agrria, Programa Pr-Catador e Tarifa Social de Energia Eltrica.

    Especialmente emblemtica a questo indgena marcada pela coexistncia de avanos no plano legal, institucional e de programas especficos, com lentido e, inclusive, retrocessos em sua efetivao. A Constituio de 1988 estabeleceu, em seu artigo 231, o reconhecimento aos povos indgenas de sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Compete Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Posteriormente, a Conveno n 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) responsabilizou os governos a desenvolver, com a participao dos povos interessados, uma ao coordenada e sistemtica de proteo dos direitos desses povos e de garantia de sua integridade.

    Essas garantias legais favoreceram o fortalecimento de uma institucionalidade e de polticas pblicas especficas. No caso indgena, destaca-se a criao da Comisso Nacional de Povos Indgenas e da Secretaria Nacional de Sade Indgena (Sesai/ Ministrio da Sade). Mencione-se ainda a criao da Declarao de Aptido Indgena ao Pronaf (DAP I), em 2012; a publicao de chamadas pblicas de ATER para famlias indgenas entre 2012 e 201421; e a implementao de planos de gesto ambiental e territorial de terras indgenas (PGTA), com metas estabelecidas no mbito do Plansan.

    A poltica indigenista foi tambm aperfeioada com a publicao do Decreto n 7.744/2012, instituindo a Poltica Nacional de Gesto Ambiental e Territorial de Terras Indgenas (PNGATI), expressando propostas provenientes de consultas aos povos indgenas entre 2009 e 2010. A PNGATI tem o objetivo de garantir e promover a proteo, a recuperao, a conservao e o uso sustentvel dos recursos naturais das terras e territrios indgenas, assegurando a integridade do patrimnio indgena, a melhoria da qualidade de vida e as condies plenas de reproduo fsica e cultural das atuais e futuras geraes dos povos indgenas (Decreto n 7.744, art. 1).

    Entre os problemas que afetam a questo indgena atualmente, destacam-se: lentido nos processos de regularizao fundiria; enfraquecimento institucional da Fundao Nacional do ndio (Funai) enquanto rgo responsvel pela Poltica Indigenista no pas; necessidade de fortalecer a capacidade operacional da Sesaina ateno sade indgena. No mbito do Poder Legislativo, cita-se a tramitao da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que transfere do governo federal para o Congresso Nacional a ltima palavra sobre a oficializao de terras indgenas. Tal medida demonstra o quanto se encontra acirrado o conflito fundirio no Brasil, com um evidente desequilbrio de foras, visto que a composio parlamentar caracterizada por uma maioria que representa os interesses do agronegcio. No mbito do Poder Judicirio, percebe-se que, muitas vezes, prevalecem decises nem sempre a favor dos direitos territoriais dos povos indgenas.

    Com relao garantia dos direitos territoriais para povos e comunidades tradicionais, mencionam-se a institucionalizao dos procedimentos para reconhecimento e titulao de comunidades quilombolas e as mesas de negociao quilombolas. At maro de 2015, 2474 comunidades foram certificadas (reconhecidas como tais) pela Fundao Cultural Palmares22, porm, apenas 217 comunidades foram tituladas pelo Instituto Nacional de Colonizao

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    e Reforma Agrria (Incra)23, revelando uma grande lacuna entre o reconhecimento e a efetivao do direito territorial. Assim como no caso dos indgenas, a necessidade de acelerar os processos de regularizao fundiria uma das principais necessidades da agenda quilombola atualmente.

    Alm de indgenas e quilombolas, h inmeras violaes dos direitos territoriais de outros segmentos, como os(as) pescadores(as) artesanais, as quebradeiras de coco do babau, os povos tradicionais de matriz africana, os ribeirinhos, os ciganos e outros povos e comunidades tradicionais. Muitos desses segmentos ainda so invisveis do ponto de vista de suas especificidades. Note-se, contudo, que algumas aes pblicas, lideradas pela Secretaria de polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir), tm contribudo para problematizar a invisibilidade destes povos. Esse o caso do Brasil Quilombola, do Plano Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e do Brasil Cigano.

    Em relao pesca artesanal, a FAO elaborou as Diretrizes Voluntrias para alcanar a Sustentabilidade da Pesca Artesanal no contexto da Segurana Alimentar e Nutricional e a Erradicao da Pobreza (2013), reforando a importante funo que a atividade da pesca artesanal, realizada por homens e mulheres, possui na segurana alimentar e nutricional, na erradicao da pobreza e na utilizao sustentvel dos recursos pesqueiros nos pases.

    J no Brasil, o resgate e implantao da Poltica de Desenvolvimento Territorial da Pesca favorecer o empoderamento das comunidades, a insero competitiva do segmento nas cadeias produtivas do setor e a gesto sustentvel dos recursos pesqueiros, pois ser ferramenta imprescindvel para adotar medidas concretas para acelerar o processo de regularizao fundiria destes povos e para mitigao dos impactos de grandes projetos de infraestrutura sobre a pesca artesanal.

    No que se refere reforma agrria, entre 2003 e 2014, tiveram acesso terra 787,5 mil famlias 689 mil assentadas pelo Incra e 98,5 mil por meio do Crdito Fundirio. Isso representa 54% do total de famlias assentadas na histria24. Mudanas foram efetuadas, a partir de 2012, com o objetivo de dar mais qualidade e sustentabilidade poltica de reforma agrria promovendo a viabilidade econmica, social e produtiva do futuro assentamento. Foi assumido como desafio pensar uma nova reforma agrria, com qualificao dos projetos de assentamento, governana fundiria sobre as reas reformadas, promovendo-se o acesso terra com condies dignas de viver no campo e na floresta, de forma integrada dinmica da agricultura familiar. Foi ampliada a cobertura dos servios prestados pelo Incra em assentamentos e a integrao de outras polticas de governo para o Programa de Reforma Agrria permitiu, em 2014, um investimento adicional de aproximadamente R$ 1,7 bilho, em aes como Bolsa Famlia, Minha Casa Minha Vida, Mais Mdicos e gua para Todos. Somando-se ao aprimoramento dos processos de obteno de terras e de criao de assentamentos, as novas reas reformadas tm mais garantia de serem viveis para o desenvolvimento da agricultura de economia familiar. Em 2014, foi regulamentado outro instrumento de obteno de terras, que a adjudicao de imveis rurais, tendo como objeto a incorporao de reas de devedores da Unio para a reforma agrria.

    Polticas especficas de assistncia tcnica e de apoio comercializao tm sido implementadas. A criao do Selo Quilombola e do Selo Indgena permite atribuir identidade cultural aos produtos

    23 Fonte: http://www.incra.gov.br/quilombolas24 BRASIL, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. 12 anos de transformaes, lutas e conquistas. Braslia, 2015.

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    dessas populaes. No mbito do Programa Brasil sem Misria, 15.020 famlias quilombolas foram contempladas com chamadas de ATER entre 2011 e 201425. Ao lado delas, mencione-se a promoo da SAN e do desenvolvimento dos povos indgenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais por meio da valorizao dos produtos da sociobiodiversidade. O Plano Nacional de Promoo das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade (Portaria n 239/2009), com coordenao do MMA, MDS, MDA e Conab, visa o fortalecimento de mercados, de processos e da organizao social e produtiva, tendo como lastro o uso sustentvel da biodiversidade pelos povos e comunidades tradicionais em consonncia com a Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB). Destacam-se alguns resultados concretos do Plano Nacional de Promoo das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade (PNPSB): aumento da pauta dos produtos do Programa de Garantia e Preos Mnimos para Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMbio), compras institucionais de produtos da sociobioversidade, ampliao da emisso de DAP para extrativistas, criao da estratgia Mais Gesto e fortalecimento de Arranjos Produtivos Locais.

    Observa-se, porm, o impacto das grandes obras sobre os recursos naturais existentes em muitas terras indgenas, quilombolas e de diferentes povos e comunidades tradicionais, bem como dos(as) camponeses(as), os(as) quais deveriam ser consultados(as) previamente e respeitados(as) caso discordem da implantao desses projetos (Conveno n 169 da OIT).

    5. Desigualdades de gnero e implicaes na produo e consumo da alimentao saudvel26

    A prevalncia de insegurana alimentar moderada ou grave maior em domiclios cuja pessoa de referncia do sexo feminino, conforme o indicador de segurana alimentar coletado por meio da Pesquisa Nacional de Amostra por Domiclios (PNAD/IBGE) de 2013. E as mulheres so mais pobres do que os homens, sobretudo no meio urbano. Um recorte de raa/cor tambm nos mostra que, em grande parte das unidades da Federao, as chefes de domiclio com menor renda, em sua maioria so pretas ou pardas. Expresso de dupla discriminao.

    As mulheres desempenham papel fundamental para garantir a segurana alimentar e nutricional, tanto como produtoras de alimentos, quanto tambm como cuidadoras e responsveis pela alimentao dos integrantes de sua famlia. No entanto, as desigualdades de gnero se manifestam no acesso s polticas pblicas e na diviso sexual do trabalho.

    Em 2009, de acordo com o IBGE, enquanto 88% das mulheres realizavam afazeres domsticos, entre os homens esse percentual era de apenas 49%. Esse quadro vem se alterando positivamente, pois entre 2002-2009, houve incremento no envolvimento masculino com os afazeres, passando de 45% em 2002 para 49% em 2009.

    As desigualdades das relaes sociais de gnero destacam a importncia de que sejam fortalecidas e ampliadas polticas pblicas afirmativas para as mulheres nas esferas federal, estadual e municipal. Neste contexto, a reivindicao dos movimentos de mulheres para a criao de espaos de dilogo e de pactuao de programas pblicos ganhou importante significado na ltima dcada. Consolidou-se a criao da Secretaria Especial de Polticas para

    25 Estados contemplados: MG, BA, PE e MA (5.520); AL, GO, MA, PA e PI (4.500); AP, BA, MT, MG e PA (5.000); RR (1.800). Fonte: http://www.mda.gov.br/sitemda/pagina/ater-quilombola.26 Este item transversal a todas as 8 Diretrizes do Plansan.

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    as Mulheres, em 2003; realizaram-se duas Conferncias Nacionais de Polticas para as Mulheres (em 2004 e 2007); e foram elaborados Planos Nacionais de Polticas para as Mulheres (I e II) decorrentes dessas Conferncias.

    Do ponto de vista da garantia de renda, o Programa Bolsa Famlia , muitas vezes, o nico rendimento prprio das mulheres mais pobres. A titularidade preferencialmente feminina fortalece a participao da mulher na gesto da renda familiar, surtindo efeitos positivos de empoderamento, influenciando a natureza das relaes, os padres de comportamento entre os sexos e o reconhecimento enquanto sujeitos de direitos. Do total de famlias que recebem Bolsa Famlia, 93% tm como titulares responsveis mulheres, das quais 68% mulheres negras.

    Na rea rural, onde as mulheres agricultoras familiares e agroextrativistas contribuem, em mdia, com 42,4% do rendimento familiar27, delas, em grande parte, a responsabilidade pela produo destinada ao autoconsumo familiar e pelas prticas agroecolgicas, conservao e reproduo de sementes crioulas.

    Tambm essencial reconhecer o papel das pescadoras artesanais, que representam 41,34% do total de pescadores cadastrados no Registro Geral da Pesca (RGP)28, para a garantia da soberania alimentar, conservao e manejo sustentvel dos recursos naturais, e seu papel produtivo nas atividades do beneficiamento inicial do pescado, do reparo e da confeco de redes de pesca, alm de outras atividades.

    O fortalecimento das estratgias produtivas dos grupos organizados de mulheres depende, fundamentalmente, da ao do Estado e do engajamento da sociedade na superao das desigualdades de gnero, pois as mulheres ainda acessam em menor nmero os recursos produtivos, servios e crditos destinados produo.

    Nos ltimos 12 anos, no mbito da agricultura familiar e camponesa, o Estado Brasileiro passou a adotar mecanismos para garantir e oportunizar o acesso a polticas pblicas para mulheres, em relao ao acesso a terra e cidadania;incluso produtiva e socializao dos cuidados no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Tcnico e Emprego (Pronatec), no mbito do Brasil Sem Misria, por exemplo, do total de 1,7 milhes de matrculas realizadas at janeiro de 2015, 67% so de mulheres.

    Destacam-se ainda a criao, em 2004, do Programa Nacional de Documentao da Mulher Trabalhadora Rural, para fornecer, gratuitamente, documentao civil bsica e trabalhista para mulheres assentadas na reforma agrria e agricultoras familiares; a titulao conjunta obrigatria entre homens e mulheres para reforma agrria; a criao de linhas especiais de concesso de crdito para as mulheres, como o Pronaf Mulher; a Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica (PNAPO); a implementao de apoio e ofertas de servios de assistncia tcnica especfica para as agricultoras familiares, especialmente no mbito das Chamadas de Ater Agroecologia; o estabelecimento de um percentual mnimo de 30 a 40% que deve ser adquirido em favor das agricultor as mulheres ou de suas organizaes; o Programa de Organizao Produtiva de Mulheres Rurais; e tambm o fomento do acesso a mulheres ao Programa de Aquisio de Alimentos.

    27 Fonte: IBGE, 2010. 28 Ministrio da Pesca e Aquicultura. Boletim do Registro Geral da Atividade Pesqueira 2012. http://www.mpa.gov.br/files/Docs/Pesca/Boletim%20do%20Registro%20Geral%20da%20Atividade%20Pesqueira%20-%202012%281%29.pdf

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    Vale tambm o destaque sobre a urgncia de se aprofundar o conhecimento e as proposies para os desafios enfrentados pelas mulheres tambm nas cidades. Na sua imensa maioria com jornadas duplas de trabalho e muitas vezes tripla, so as principais responsveis pelos trabalhos domsticos e cuidado s crianas, idosos e doentes no ambiente familiar. Trabalham, estudam, organizam e preparam as refeies familiares. preciso fomentar uma cultura onde o cuidado famlia e o trabalho domstico sejam valorizados e compartilhados entre todos os integrantes da famlia. So necessrias iniciativas para romper o isolamento social e oferecer oportunidades de trabalho, garantia de igual remunerao por igual trabalho, associadas oferta suficiente de creche,pr-escola para as crianas, assim como servios de ateno para pessoas com deficincia e idosos, para os quais se requer investimentos pblicos. Espaos de sociabilidade e estratgias especficas de ateno sade dirigida s mulheres so necessrias para apoio amamentao, orientaes de introduo de alimentos para as crianas aps os seis meses de idade, preveno de excesso de peso e doenas crnicas e educao alimentar e nutricional em geral.

    6. Fatores limitantes do acesso universal gua como alimento e como recurso produtivo29

    O acesso gua de qualidade, alm de ser elemento sagrado para muitos povos tradicionais, um direito humano bsico que necessita ser efetivado para toda a populao. Requer o uso sustentvel da terra, a proteo dos mananciais, das beiras de nascentes dos rios e das florestas.As mudanas climticas acentuam as crises associadas seca, falta de gua e s enchentes, como se tem verificado no perodo recente. A estiagem que tem atingido o semirido brasileiro considerada uma das mais crticas dos ltimos 50 anos30, afetando o abastecimento de gua e os sistemas produtivos locais, com impactos diretos na segurana alimentar e nutricional da populao e no desenvolvimento socioeconmico da regio. Ao mesmo tempo, uma crise hdrica sem precedentes atinge a regio Sudeste, submetendo situao de insegurana hdrica a regio mais densamente povoada do pas. No se trata, portanto, apenas de intempries ou incidentes climticos. Verifica-se a conjugao de eventos climticos com a fragilidade de polticas pblicas para uma gesto mais efetiva dos recursos hdricos, em conformidade com a realidade de cada bioma.

    reconhecido o papel desempenhado pela construo de cisternas para minimizar os efeitos da seca, que teve como precursor a Articulao do Semirido (ASA), organizao da sociedade civil que desenvolve aes relacionadas convivncia com o semirido, distinto do antigo modelo de combate seca que baseado na construo de grandes obras e concentrao do acesso aos recursos hdricos. A ASA vem apontando que o problema da pobreza do Nordeste estaria relacionado no falta de gua, mas sua concentrao e desigualdade no acesso. Em 2003, o programa das Cisternas foi institudo como poltica de Estado, sendo a ASA seu maior e principal parceiro.

    29 Este item dialoga principalmente com a Diretriz 6 do Plansan: Promoo de acesso universal gua de qualidade e em quantidade suficiente, com prioridade para as famlias em situao de insegurana hdrica e para a produo de alimentos da agricultura familiar e da pesca e aquicultura.30 Organizao Meteorolgica Mundial. Declarao sobre o Estado do Clima. Genebra, Sua, 2013. Disponvel em http://migre.me/q48Oc

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    A partir de 2011, o programa gua para Todos, ao do Plano Brasil sem Misria, instituiu como meta a universalizao do acesso gua via cisternas no semirido at 2014. A meta foi cumprida e mais de 1,1 milho de unidades para captao de gua da chuva foram entregues nos municpios do Nordeste e do norte de Minas Gerais31. Alm da universalizao do acesso gua no semirido, o programa est se expandindo para outras regies, como forma inclusive de enfrentar os impactos da desertificao, consequncia das mudanas climticas que ocorrem no Brasil e no mundo.

    Destaca-se, ainda, a expanso da Segunda gua ou gua para a produo, com a utilizao de tecnologias sociais apropriadas para este fim. Entre 2011 e 2014, foram entregues mais de 98,6 mil tecnologias sociais que podem armazenar at 52 mil litros de gua para produo. As escolas rurais da regio tambm esto sendo atendidas com a construo de mais de 960 cisternas.

    Tais aes devem ser ampliadas no semirido e em outras regies afetadas continuamente pela falta de gua de qualidade, como na Amaznia, visando a captao, armazenagem e uso de gua da chuva, ou outras formas de captao para consumo humano. necessrio o investimento em tecnologias sociais voltadas para uso produtivo da gua na atividade agrcola familiar e de povos indgenas e povos e comunidades tradicionais, associada a uma poltica de assistncia tcnica com uso de tecnologias sustentveis e troca de saberes, valores e conhecimento sobre o uso da gua. As famlias rurais e povos e comunidades tradicionais beneficiados por polticas de garantia de gua devero ser priorizados no atendimento de outras polticas pblicas, como as de disponibilizao de sementes, com foco em sementes crioulas, assistncia tcnica e polticas de acesso a terra.

    necessrio fortalecer a noo da gua como bem pblico; proteger as fontes de gua; continuar a expandir as tecnologias sociais de acesso gua em todo o pas, alm do semirido; garantir sua qualidade de forma articulada aos processos de ampliao de saneamento bsico; e investir na recuperao e conservao dos cursos de gua, mananciais e nascentes. Faz-se necessrio, ainda, implementar sistemas coletivos de abastecimento de gua de pequeno porte nas regies mais afetadas pela seca e universalizar o abastecimento de gua e saneamento nas escolas e creches pblicas e em outros equipamentos e servios pblicos coletivos associados promoo da alimentao adequada e saudvel.

    7. A ateno sade e a segurana alimentar e nutricional32

    A ateno bsica sade, muitas vezes, o primeiro local onde detectada a insegurana alimentar e nutricional de indivduos, famlias, povos indgenas e povos e comunidades tradicionais. As consequncias da insegurana alimentar e nutricional da populao recaem sobre o sistema de sade, exigindo deste a oferta de um conjunto amplo de aes e servios para a promoo da alimentao adequada e saudvel e a preveno e controle dos agravos nutricionais, bem como sua articulao com outros setores com vistas ao desenvolvimento de polticas pblicas intersetoriais que promovam a sade e a SAN.

    31 Fonte: Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (http://migre.me/q48M2).32 Este item dialoga principalmente com a Diretriz 5 do Plansan: Fortalecimento das aes de alimentao e nutrio em todos os nveis de ateno sade, de modo articulado s demais polticas de segurana alimentar e nutricional.

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    33 No tocante sade de crianas menores de cinco anos, verifica-se que, entre 1989 (Pesquisa Nacional de Sade e Nutrio PNSN) e 2006 (Pesquisa Nacional de Demografia e Sade PNDS) houve reduo significativa da desnutrio (dficit de peso para idade) passando de 7,1% para 1,7%. Entretanto, a tendncia de reduo no ocorreu de maneira uniforme em todos os grupos populacionais, visto que em indgenas chega a 26,0% (I Inqurito Nacional de Sade e Nutrio de Populaes Indgenas 2008-09); e em quilombolas a 14,8% (Chamada Nutricional Quilombola, 2006).34 De acordo com a Pesquisa Nacional de Demografia e Sade da Criana e da Mulher, realizada em 2006, 17,4% das crianas e 12,3% das mulheres em idade frtil apresentam hipovitaminose A, enquanto 20,9% e 29,4% desses grupos populacionais, respectivamente, apresentam anemia por deficincia de ferro.35 BRASIL. Poltica Nacional de Alimentao e Nutrio (Pnan), 2012. Necessidades alimentares especiais, compreendidas como as necessidades alimentares, sejam restritivas ou suplementares, de indivduos portadores de alterao metablica ou fisiolgica que causem mudanas, temporrias ou permanentes, relacionadas utilizao biolgica de nutrientes ou a via de consumo alimentar (enteral ou parenteral).36 O beribri uma carncia nutricional causada pela insuficincia de vitamina B1 (tiamina).O beribri causa distrbios sensitivos e motores, principalmente a paralisia dos membros inferiores, a ocorrncia de edemas e problemas cardacos.

    As mudanas no padro alimentar da populao brasileira tm levado ao aumento da prevalncia de diversas doenas crnicas relacionadas ao excesso de peso e obesidade. Por outro lado, ainda observa-se a presena de desnutrio infantil33 e carncias nutricionais em populaes especficas, especialmente as deficincias de ferro e vitamina A34, que ainda persistem como problemas de sade pblica no Brasil, alm das necessidades alimentares especiais35, as quais tambm constituem-se como importantes demandas para o Sistema nico de Sade (SUS).

    O complexo cenrio de sade da populao brasileira, no qual convivem condies agudas e crnicas, exige que o modelo assistencial no SUS se organize em Redes de Ateno Sade (RAS) regionalizadas, que associem aes e servios dos municpios e estados para ofertar ateno integral populao. Um dos componentes da ateno integral sade a ateno nutricional, que compreende todos os cuidados em alimentao e nutrio, desde aes de promoo e proteo sade, preveno, diagnstico e tratamento de doenas e agravos ao longo da vida.

    Nesse sentido, a ateno bsica, por sua capilaridade, um espao privilegiado para a ateno nutricional. Nela as equipes realizam a vigilncia alimentar e nutricional, desenvolvem estratgias de promoo do aleitamento materno e da alimentao complementar saudvel para crianas at dois anos, articulao com escolas e centrais de abastecimento, rede de supermercados, sacoles e feiras livres no territrio para realizao de aes de promoo da alimentao adequada e saudvel. Ainda so realizadas aes de preveno, controle e tratamento de doenas, por meio da suplementao de ferro, vitamina A e outros micronutrientes para crianas, oferta de cuidados especficos e suplementao com tiamina para pessoas com beribri36 e o cuidado a casos de desnutrio, excesso de peso, obesidade e outras doenas relacionadas alimentao e nutrio. Contudo, apesar dos avanos ocorridos nos ltimos anos, necessrio expandir e qualificar a cobertura da ateno bsica com resolutividade e dos Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASF), para garantia de acesso a essas aes.

    Ressalta-se que a ateno nutricional tambm ocorre em servios de ateno ambulatorial, hospitalar e domiciliar, alm da rede de urgncia e emergncia. Nesse sentido, no contexto das redes de ateno sade e em funo do cenrio epidemiolgico que mostra mais da metade da populao com excesso de peso, torna-se fundamental a organizao de linhas de cuidado para preveno e tratamento da obesidade, que articule aes, servios, recursos e estruturas da ateno bsica, ateno especializada ambulatorial e hospitalar, urgncia e emergncia, sistemas de apoio (diagnstico, teraputica e assistncia farmacutic