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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Geraldo Alves Lacerda
CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:
da narrativa às operações cognitivas em traumatizados
Belo Horizonte
2014
Geraldo Alves Lacerda
CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:
da narrativa às operações cognitivas em traumatizados
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Linguística e
Língua Portuguesa.
Orientador: José Carlos Cavalheiro da Silveira
Belo Horizonte
2014
Geraldo Alves Lacerda
CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:
da narrativa às operações cognitivas em traumatizados
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Linguística e
Língua Portuguesa.
____________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Cavalheiro da Silveira (Orientador) – FM/UFMG
____________________________________________
Profa. Dra. Rosilane Ribeiro da Mota – EBA/UFMG
_____________________________________________
Prof. Dr. Milton do Nascimento – Letras/PUC Minas
Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2014.
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Lacerda, Geraldo Alves
L131c Cons-ciências sem fronteiras: da narrativa às operações cognitivas em
traumatizados / Geraldo Alves Lacerda, Belo Horizonte, 2014.
90 f.: il.
Orientador: José Carlos Cavalheiro da Silveira
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Narrativa (Retórica). 2. Self (Psicologia). 3. Imaginação. 4. Filosofia e
ciência cognitiva. 5. Trauma psíquico. I. Silveira, José Carlos Cavalheiro da. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação
em Letras. III. Título.
CDU: 159.93
Dedico esta dissertação a minha guerreira mãe,
que sempre foi guerreira antes de ser mãe e
nunca se esqueceu de ser mãe ao ser guerreira.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família, aos meus irmãos, aos amigos e a quem me acompanhou
com paciência e motivação.
Agradeço aos meus professores que me ajudaram e iluminaram meu caminho dentro
dessa floresta escura da linguagem. Em especial, agradeço ao José Carlos Cavalheiro da
Silveira (meu orientador), ao Milton do Nascimento (pela disponibilidade em compartilhar
seu cérebro em banquete), ao Marco Antônio de Oliveira (pelo intenso saber), ao Hugo Mari
(pela mediação nas discussões), à Maria Angela Paulino Teixeira Lopes (pela gentileza), à
Juliana Alves Assis (pelo rigor profissional), à Josiane Andrade Militão (por ser desafiadora),
à Sandra Maria Silva Cavalcante (pelo seu jeito doce e professoral), ao João Henrique Rettore
Totaro (pelas gentilezas), à Arabie Bezri Hermont (pela produtividade), à Márcia Marques de
Morais (pelas contribuições ao coordenar essa turma toda).
Agradeço aos meus colegas de jornada pelo companheirismo e por compartilhar os
sofrimentos e alegrias pelos quais passamos.
Agradeço à PUC pelo acolhimento e pela existência de tamanho espaço de construção
do saber. Agradeço aos funcionários da secretaria (Rosária, Giovani e Berenice).
Para que a uva
se transmute em vinho,
precisa ser pisada, amassada e deixada
de lado.
Fiquemos com a embriaguez do vinho!
(Autoria própria)
RESUMO
Este trabalho parte do tema geral da formação do conhecimento humano que é observado, de
maneira metonímica, nas significações emergentes do corpo, a fim de alcançar as operações
cognitivas subjacentes a tais significações. Para tanto, consideramos como nosso objeto de
análise algumas emergências, tais como comportamentos, enunciados, emoções e a
psicofisiologia de sujeitos que experienciaram eventos traumatizantes. Isso nos possibilitou
categorizar tais sujeitos traumatizados em dois grupos: hipo e hiper-responsivos. Todas essas
emergências foram conceituadas, de forma paradigmática, como narrações de um sistema
corpóreo que se atualiza ao seu próprio ambiente, ao significar, em função da interação de
suas experiências com seus potenciais inatos. Tais narrações deste órgão que produz
linguagem, o corpo, tiveram discretizadas algumas operações cognitivas, a saber, recursão,
imaginação, eventivação, narração e memoração. Esta discretização tem a finalidade de
entender a construção dinâmica do self traumatizado, que se institui como um sistema
complexo recorrente e recursivamente atualizado, de forma imaginativa, como “Estou em
perigo”. Como conclusão, foi possível integrar em sistemas complexos ramificados em redes,
que interconectam categorias, campos conceituais e processos de análise, o teor
transdisciplinar do conhecimento que recusa fronteiras delineadas, a fim de promover a
construção de uma nova epistemologia que não responde mais por disciplinas, mas por uma
centralidade que coloca o corpo em sua dimensão mais plural, fundador de todas as formas do
conhecimento humano.
Palavras-chave: Narrativa. Evento. Self. Imaginação. Recursão.
ABSTRACT
This work starts the general theme of the formation of human knowledge, which is observed,
in a metonymic way, in emerging meanings of the body, in order to achieve the cognitive
operations underlying such meanings. Therefore, we consider as our object of analysis
emergencies, such as behaviors, statements, emotions and psychophysiology of subjects who
experienced traumatizing events. This allowed us to categorize these traumatized subjects
into two groups: hypo- and hyper-responsive. All these emergencies were conceptualized, in a
paradigmatic way, as narrations of a bodily system that updates itself to the environment that
surrounds it, when means, in function of interaction of its experiences with its innate
potentials. Such narrations of this organ that produces language, the body, had discretized
some cognitive operations, namely, recursion, imagination, eventivation, narration and
memoration. This discretization aims to understand the dynamic construction of the
traumatized self, which establishes oneself as a complex system recurrently and recursively
updated, in a imaginative way, as "I'm in danger". In conclusion, it was possible to integrate
in complex systems branched in networks, that interconnect categories, conceptual fields and
analysis processes, the transdisciplinary content of knowledge which refuse delineated
borders, in order to promote the construction of a new epistemology that no longer responds
to disciplines, but to a centrality that puts the body in its most plural dimension, founding of
all forms of human knowledge.
Keywords: Narrative. Event. Self. Imagination. Recursion.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Exemplos de avaliações idiossincráticas e negativas levando ao julgamento de
ameaça atual em TEPT persistente. .......................................................................................... 24
QUADRO 2 - Exemplos de avaliações com estratégias cognitivas e comportamentais
disfuncionais associadas. .......................................................................................................... 25
LISTA DE SIGLAS
DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
EBA - Escola de Belas Artes
EMDR - Eye Movement Desensitization Reprocessing
FLA - Faculdade da Linguagem no Sentido Amplo
FLE - Faculdade de Linguagem no Sentido Estreito
FM - Faculdade de Medicina
GU - Gramática Universal
PUC - Pontifícia Universidade Católica
TEPT - Transtorno de Estresse Pós-Traumático
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 21 1.1 Problema ................................................................................................................... 22 1.2 Formulação do objeto de estudo ............................................................................. 23 1.3 Corpus ........................................................................................................................ 23
1.4 Objetivos .................................................................................................................... 26 1.5 Justificativa ............................................................................................................... 27 1.6 Organização da dissertação ..................................................................................... 27
2 MÉTODO E METODOLOGIA ..................................................................................... 29
3 REFERENCIAL TEÓRICO .......................................................................................... 30
3.1 Algumas considerações acerca do modelo médico do trauma .............................. 31 3.2 O órgão da linguagem .............................................................................................. 36 3.3 Recursão .................................................................................................................... 41 3.4 Definição de narrativa .............................................................................................. 42
3.5 Definição de evento ................................................................................................... 45 3.6 Imaginação ................................................................................................................ 46
3.6.1 Pretence ............................................................................................................... 48
3.6.2 Predição .............................................................................................................. 50
3.6.3 Imagens mentais ................................................................................................. 52 3.6.4 Integração conceitual de duplo escopo .............................................................. 54
3.7 Memoração e self ...................................................................................................... 55
4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE .............................................................................. 58 4.1 Agrupamentos das narrativas ................................................................................. 58 4.2 Categorização analítica ............................................................................................ 59
4.2.1 Hiporresponsivos ................................................................................................ 60
4.2.2 Hiper-responsivos ............................................................................................... 68 4.2.3 Análise por agrupamento ................................................................................... 73
4.3 Análise global ............................................................................................................ 77
5 DISCUSSÃO .................................................................................................................... 79
6 CONCLUSÃO .................................................................................................................. 80
REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 82
ANEXOS.............................................................................................................................. 86
21
1 INTRODUÇÃO1
A natureza do conhecimento humano é tema de várias publicações na Filosofia, nas
Ciências Cognitivas e na Linguística Cognitiva. Pensar como nós conhecemos o mundo e a
nós mesmos é uma tarefa árdua e desafiante, pois os processos pelos quais o conhecimento é
formado ainda não foram totalmente desvendados. O que se tem feito em relação ao modo de
se pesquisar o que promove nosso conhecimento de mundo é separar o que já foi chamado de
“faculdades da alma”, uma a uma, e estudá-las, minuciosamente2, até a exaustão. Tal estudo
leva a uma mudança de patamar do conhecimento acerca de cada uma das faculdades que se
estuda e, assim, sucessivamente, pode ser feito com todas as faculdades da alma. Uma
possível crítica a esse tipo de estudo é que ele leva a uma compreensão de apenas uma parcela
do que seria o conhecimento humano. O contrário disso seria um estudo integrativo do
fenômeno do conhecer. O que se percebe é que um estudo holístico do humano como
conhecedor é bastante complicado de ser realizado por envolver uma quantidade de pesquisa e
dedicação muito maiores. Além disso, um estudo desse tipo é de difícil realização, devido à
indisponibilidade de métodos de mensuração adequados para ele e a necessidade de quebras
de paradigmas. Quando tentamos ajuntar todo o conhecimento que se tem de cada uma de
nossas operações cognitivas, criamos um Frankenstein de “faculdades sem alma”. Parece-nos
que um entendimento de como conhecemos, abordado de uma forma integrativa, assemelha-
se a uma epopeia ainda não escrita.
Visto dessa maneira, podemos nos aventurar a (d)escrever uma jornada épica na qual
nos colocamos diante do mar revolto do conhecimento humano tomado em sua representação,
isto é, podemos estudar como as pessoas representam seu conhecimento. Representar aqui é
utilizado no sentido de que as pessoas atuam no mundo de uma determinada forma em relação
ao conhecimento, consciente e inconsciente, que elas têm do mundo e delas mesmas nesse
mundo. Portanto, a forma como estudaremos o conhecimento humano aproxima-se daquilo
que os atores fazem no palco da vida e, consequentemente, afasta-se de uma representação
interna do mundo externo. Podemos entender essas representações como emergências desse
1 Caro leitor, na extensão de todo este trabalho você encontrará palavras não registradas no vocabulário oficial da
Língua Portuguesa – VOLP (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2014). O emprego de tais palavras, não
oficiais, justifica-se ora pela especificidade do tema aqui abordado, ora pela insuficiência de termos na Língua
Portuguesa para a tradução de termos técnicos e científicos em Língua Inglesa. Não destacaremos tais palavras
na extensão do texto, devido ao volume de utilização. 2 Há palavras como esta que foram adverbializadas a fim de dar ênfase à ideia a qual ela se liga. Temos
consciência de que palavra como, minuciosamente, metonimicamente, paradigmaticamente, imaginativamente,
etc., não estão registradas no vocabulário oficial da Língua Portuguesa. No entanto, pedimos licença ao leitor
para o uso das mesmas.
22
conhecimento, assim, elas são, portanto, formas indiretas de se ter acesso ao conhecimento de
uma dada pessoa. Nossas atuações no mundo dizem respeito ao nosso conhecimento de
mundo.
Neste trabalho, o conhecimento que nos interessa, isto é, as representações que dizem
respeito ao modo do conhecer humano que nos interessam, são aquelas emergências
encontradas em sujeitos que passaram por algum trauma de vida suficientemente impactante
para caracterizá-los como traumatizados. O que entendemos por emergência, neste texto, é
justamente aquilo que o sujeito manifesta em termos de comportamentos [automáticos-
reflexivos ou conscientemente intencionados], enunciados, emoções, alterações
psicofisiológicas e sentimentos [parte consciente da emoção].
Para tal empreendimento, elegeremos narrativas (TALMY, 2000) de nossos sujeitos
com trauma acerca do evento (TALMY, 2000) traumatizante. Tais narrativas são aspectos da
língua-E (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002) que nos possibilitarão entender a
maquinaria cognitiva envolvida em tais emergências. Neste texto, especificamente,
trabalharemos com algumas operações cognitivas, a saber: pensamento imaginativo (ROTH,
2007), recursão (CORBALLIS, 2014), memoração e self (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND,
2004). No que tange à linguagem, nós a entenderemos como um órgão (ANDERSON;
LIGHTFOOT, 2004), o qual deve ter suas propriedades funcionais exploradas.
Dito isso, faz-se necessário que expliquemos a que, exatamente, refere-se esta
dissertação. A fim de sanar as dúvidas que o leitor possa ter neste momento, passemos às
próximas seções de nossa introdução.
1.1 Problema
Pessoas que vivenciaram um evento traumatizante podem ou não evoluir para um
estado em que o trauma, recorrentemente, se constitui em um objeto da consciência e das
formas de atuação no mundo dessas pessoas, ou melhor, das emergências dessas pessoas. O
que faz com que isso aconteça, ou não, é o tema de várias pesquisas. No entanto, tais
pesquisas ainda não elaboraram uma resposta suficientemente convincente para explicar
porque pessoas diferentes evoluem de formas díspares diante de um evento traumatizante.
Esse parece ser um problema que exige uma resposta que leve em conta os diversos fatores
envolvidos no entendimento do conhecimento humano.
De toda forma, nosso problema não diz respeito às pessoas que evoluem
satisfatoriamente após um evento traumatizante e sim àquelas pessoas que evoluem com
23
recorrências mnêmicas intrusivas e prejuízos funcionais decorrentes daquele evento. Assim,
buscaremos responder à seguinte pergunta: por meio da identificação e análise de objetos
trauma-relacionados recorrentemente emergentes [na [da]consciência]3 de sujeitos
traumatizados, quais são os padrões4[cognitivos] encontrados nesses sujeitos, que os
caracterizam como traumatizados? Após respondermos essa questão, poderíamos afunilar
nossas dúvidas em outra pergunta: o que subjaz esses padrões [cognitivos]? Ou melhor, quais
operações cognitivas estão envolvidas na emergência dos padrões encontrados na primeira
pergunta?
1.2 Formulação do objeto de estudo
Como pôde ser notado nas perguntas referentes ao nosso problema (seção 1.1), nosso
objeto de estudo se pauta exatamente, primeiro, pelas emergências [na [da] consciência] de
sujeitos traumatizados que são relacionadas ao evento traumatizante e, segundo, por meio da
descrição e análise dessas emergências, pretendemos identificar o que subjaz tais padrões
cognitivos adotados por esses sujeitos. Como não temos meios de acessar diretamente as
funções cognitivas e sua atuação, iremos inferir tais funções de objetos que se apresentam à
consciência e são verbalmente enunciados como narrativas desses sujeitos traumatizados,
assim como as manifestações comportamentais e psicofisiológicas dispostas na literatura,
quando se fizer cabível.
1.3 Corpus
Nosso corpus constitui-se de dois Quadros (1 e 2) de enunciados coletados em sujeitos
traumatizados. Tal seleção foi realizada por Anke Ehlers e David Clark (2000). Nós
pesquisamos sobre o assunto trauma ou Transtorno de Estresse Pós-traumático em várias
fontes (ALEXANDROV; FEDOSEEV, 2012; BECK; SLOAN, 2012; FOREMAN; FULLER,
2013; SHIROMANI; KEANE; LeDOUX, 2009) e, com exceção do artigo escolhido por nós,
não encontramos relatos na forma de enunciados. Todas as demais fontes, ou têm o mesmo
3 Chamamos a atenção para o conteúdo desse colchete, pois as emergências não são somente no âmbito
consciente. Elas são também de âmbito emocional, comportamental e por outras ordens que não passaram por
processos de reflexão consciente. De toda forma, nossa análise visa às narrações, sendo assim uma análise de
emergências. Citaremos, em determinado momento, fenômenos não conscientes, tais como os psicofisiológicos e
os comportamentos automatizados de sobressalto ou reflexos. 4 Padrões têm uma conotação de fenômenos recorrentemente emergentes, tais como formas de pensamento,
emoções mais frequentes, narrativas recorrentemente presentes, etc. Cada padrão ou um conjunto de padrões
podem ser emergências de uma dada operação cognitiva ou um conjunto delas.
24
propósito de descrição do fenômeno em termos categoriais, ou até mesmo não descrevem
narrativas de sujeitos traumatizados. Vale ressaltar que Wilson e Lindy (2013) descrevem, de
maneira muito particular, o tema metáforas do trauma. No entanto, tal referência poderá nos
ser útil em outro trabalho, mas não agora. Logo, tomaremos os Quadros a seguir como nosso
corpus, pois eles são suficientes para nosso propósito.
Cada um dos enunciados aqui enumerados será abordado como fazendo parte de uma
expressão metonímica que representa o todo de um corpo que narra. Sendo assim, nós
chamaremos tais enunciados de narrativas, pois para nós, a parte (metonímia) representa o
todo (narrativa) sem deixar de ser parte desse todo.
Assim considerado, podemos notar, no Quadro 1, algumas narrativas de avaliações
negativas agrupadas pelos autores do artigo (EHLERS; CLARK, 2000) e enumeradas por nós
para facilitar a análise.
Quadro 1 - Exemplos de avaliações idiossincráticas e negativas levando ao julgamento
de ameaça atual em trauma persistente.5
O QUE É AVALIADO? AVALIAÇÃO NEGATIVA
Circunstância em que o trauma aconteceu 1 “Nenhum lugar é seguro.”
2 “O próximo desastre irá irromper logo.”
O Trauma aconteceu comigo 3 “Eu atraio desastres.”
4 “Os outros podem ver que eu sou uma vítima.”
Comportamento/emoção durante o trauma 5 “Eu desejo que coisas ruins aconteçam comigo.”
6 “Eu não posso lidar com estresse.”
Sintomas iniciais do TEPT
Irritabilidade, explosão de raiva
7 “Minha personalidade tem mudado pra pior.”
8 “Meu casamento irá fragmentar.”
9 “Eu não posso confiar em mim mesmo com relação às
minhas próprias crianças.”
Embotamento emocional 10 “Eu estou morto por dentro.”
11 “Eu nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas
novamente.”
Flashbacks, lembranças intrusivas e
pesadelos
12 “Eu estou ficando louco.”
13 “Eu nunca vou superar isso.”
Dificuldade de concentração 14 “Meu cérebro tem estado danificado.”
15 “Eu irei perder meu emprego.”
Reações de outras pessoas depois do trauma
Respostas positivas
16 “Eles pensam que eu estou fraco para lidar comigo
mesmo.”
17 “Eu sou incapaz de me sentir próximo de alguém.”
Respostas negativas 18 “Ninguém existe para mim.”
19 “Eu não posso confiar em outras pessoas.”
Outras consequências do trauma
Consequências físicas
20 “Meu corpo está arruinado.”
21 “Eu não irei nunca ser hábil para lidar com a vida normal
novamente.”
Perda de emprego, dinheiro, etc. 22 “Eu irei perder minhas crianças.”
23 “Eu irei ficar sem casa.” Fonte: Adaptado de Ehlers; Clark, 2000.
5Tradução nossa do Anexo B adaptado.
25
No Quadro 2 são citadas as avaliações que Ehlers e Clark (2000) entendem estarem
promovendo a emergência de estratégias, comportamentos e cognições disfuncionais. Os
autores escolhem o termo disfuncional para tais estratégias por elas produzirem mal-estar,
adoecimento e manutenção do transtorno. Tais estratégias disfuncionais podem ser
consideradas como emergências comportamentais e cognitivas que sustentam os sintomas.
Quadro 2 - Exemplos de avaliações com estratégias cognitivas e comportamentais
disfuncionais associadas.6
(continua) AVALIÇÃO ESTRATÉGIA DISFUNCIONAL
24 “Se eu pensar sobre o trauma...
...eu irei enlouquecer.
...eu irei desmoronar.
...eu irei perder o controle e me ferir.
...eu terei um ataque do coração.
...eu irei danificar seriamente minha saúde.”
Tentar de forma intensa não pensar sobre o trauma; manter
a mente ocupada o tempo todo; controlar os sentimentos;
beber álcool e usar drogas.
25 “Se eu não controlar meus sentimentos
firmemente...
...eu não serei hábil para trabalhar e perderei
meu emprego.
...eu irei perder a paciência e ofenderei
pessoas.”
Entorpecer emoções; evitar tudo que possa causar
sentimentos negativos ou positivos.
26 “Se eu não apurar como esse evento poderia
ter sido prevenido...
…alguma coisa similar irá acontecer
novamente.”
Ruminar sobre como o evento poderia ter sido prevenido.
27 “Se eu não encontrar um jeito de punir o
assaltante, ele terá vencido e eu não serei um
homem apropriado por mais tempo.
Ruminar sobre como se vingar de assaltantes.
28 Se eu for ao local do evento...;
29 Se eu usar as mesmas roupas novamente...
...eu irei ter outro acidente.
...eu irei ter um colapso nervoso.”
Evitar o local do evento.
Evitar usar roupas similares.
30 “Se eu não tomar precauções extras...
...eu irei ser atacado novamente.”
Carregar arma; vigilância para pessoas perigosas; evitar
multidões; ter certeza de estar próximo à saída.
31 “Se eu não checar os espelhos retrovisores...
...alguma coisa irá dirigir-se para o meu carro
novamente.”
Manter-se checando os espelhos.
32 “Se eu fizer planos (tais como para um
feriado) ...
...a próxima coisa terrível vai acontecer.”
Não fazer qualquer plano para o futuro.
33 “Se eu ver meus amigos...
...eles irão me perguntar sobre o trauma e eles
irão pensar que eu sou um patético, porque eu
ainda estou tão desconcertado.”
Evitar ver amigos.
34 “Se eu fizer as coisas que costumava fazer
para me divertir...
...eu irei ser punido novamente.
Desistir de atividades prazerosas.
6Tradução nossa do Anexo C adaptado.
26
(conclusão) ...eu irei ser lembrado do trauma e não irei ser
hábil para enfrentar.
...eu serei dominado pela emoção.”
35 “Se eu mostrar meu rosto... pessoas irão
ficar aborrecidas por causa de minhas
cicatrizes.”
Evitar outras pessoas; cobrir a face com as mãos;
maquiagem pesada; olhar para baixo.
36 “Se eu for dormir...
...eu irei ter pesadelos.
...eu não irei notar os invasores.”
Ficar de pé até muito tarde.
37 “Se eu tiver mais estresse...
...eu irei ter um ataque do coração.
...eu irei ter um colapso nervoso.”
Evitar qualquer coisa que possa ser estressante.
Fonte: Adaptado de Ehlers; Clark, 2000.
1.4 Objetivos
Algumas das pessoas que, após um trauma, apresentam idiossincrasias em sua
significação de mundo que as tornam disfuncionais em campos de atuação como trabalho,
estudo, produção intelectual, relações afetivas e familiares, etc., podem ser consideradas como
traumatizadas. Podemos resumir os achados idiossincráticos, limitantes, dessas pessoas como
compondo o contexto da frase “Estou em perigo!”, pois os padrões comportamentais,
cognitivos e emocionais são compatíveis com uma atuação diante de uma situação de risco
iminente à vida da pessoa, nesse caso, traumatizada. No entanto, essa(s) situação(ões) de risco
iminente à vida ocorreu(eram) apenas em algum(ns) momento(s) do passado, mas no
momento da enunciação não é percebido um risco de fato. Daí, infere-se que existe algo que
produz, consciente ou inconscientemente, uma atualização do evento traumatizante do
passado, no presente. Esse algo pode compor o que anteriormente chamamos de “faculdades
da alma”, ou seja, nossas capacidades ou poderes ou funções ou operações cognitivas que
dirigem nossos estados mentais e, melhor dizendo, corporais. No caso dos sujeitos
traumatizados, tais operações cognitivas estão diretamente atualizando o trauma do passado
no presente.
Como pôde ser notado na seção 1.2, nosso objeto de estudo se pauta, em primeiro
lugar, pelas emergências em sujeitos traumatizados e, em segundo lugar, pelas operações
cognitivas que subjazem essas emergências. Sendo assim, nosso objetivo central é elaborar
uma leitura daquilo que subjaz tais emergências em termos de funções cognitivas nos [dos]
sujeitos traumatizados, utilizando alguns pressupostos teóricos da Linguística Cognitiva, a
qual é tomada como ciência integrativa que rompe barreiras disciplinares e coloca o corpo
como fundador de todas as formas do conhecimento humano. Tentaremos explicar que a
27
recursão e o construto imaginação estão intimamente relacionados ao promover tais
emergências.
1.5 Justificativa
Sujeitos traumatizados são conhecidos nos meios médicos como portadores do
Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) segundo critérios classificatórios
estabelecidos pela American Psychiatric Association (APA, 2002), instituição que
regulamenta a redação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), o
qual se caracteriza por uma abordagem puramente descritiva, não baseada em inferências
teóricas, mas com base em critérios operacionais com vistas ao diagnóstico multiaxial
categorial. Cada categoria de transtorno deve ser qualitativamente diferente das outras. É
importante ressaltar que existem muitas diferenças entre diagnosticar e reduzir uma pessoa a
um rótulo. O diagnóstico é uma necessidade prática que visa facilitar a comunicação entre os
profissionais da área médica e proporcionar uma possibilidade de previsões prognósticas,
além de favorecer as investigações científicas e fundamentar medidas terapêuticas e
preventivas (CHENIAUX, 2008).
Com o propósito de ampliar a abordagem dos manuais classificatórios médicos, este
trabalho se justifica tendo em vista que os manuais médicos de critérios diagnósticos operam
com apenas um método de análise, dito categorial, deixando de lado várias outras formas de
abordar um mesmo fenômeno. Logo, é importante que surjam novas e inovadoras formas de
se ler padrões psicopatológicos emergentes de sujeitos traumatizados, assim como de outros
quadros ditos como transtornos. A abertura de um leque de possibilidades de análise do
fenômeno do trauma e sua mais ampla compreensão, na perspectiva de como o homem
conhece, é nossa principal justificativa para a condução e elaboração deste trabalho, pois
formas menos estanques e mais integrativas de análise de emergências fenomenológicas são
mais bem vindas ao paradigma das Ciências Cognitivas, principalmente, à Linguística
Cognitiva.
1.6 Organização da dissertação
Esta seção é meramente formal e pode ser deixada a parte pelo leitor apressado. Mas,
para aqueles de leitura minuciosa, ela servirá para organizar as ideias em relação à
distribuição do conteúdo deste trabalho, o qual sucederá da maneira descrita a seguir.
28
No capítulo 2 abordamos, de forma sucinta, o referencial teórico que compõe nossa
revisão bibliográfica. Esse capítulo serve apenas para orientar o leitor em relação ao método e
metodologia aplicados.
Já no capítulo 3 apresentamos todo o referencial teórico abordado para organizar
nossos argumentos em relação ao que foi exposto do início ao final deste trabalho. Iniciamos
com alguns achados do modelo médico que nos orientam, psicofisiologicamente falando, a
dividir os sujeitos traumatizados em dois grupos: aqueles hiper-responsivos e aqueles
hiporresponsivos. Essa divisão é mais bem abordada na seção 3.1. Já a seção 3.2 apresenta
nossa visão de linguagem como órgão. A seção 3.3 organiza nosso conceito de recursão, o
qual é aplicado na seção precedente e também em algumas posteriores. A seção 3.4 define
como vemos nosso corpus, ou seja, como metonímias de narrações. A seção 3.5 define
evento como eventivação. A seção 3.6 nos dá fundamentos para defendermos nossa
conclusão, trazendo dados da literatura a respeito do construto imaginação e suas derivações,
pretence, predição, imagens mentais e integração conceitual. A seção 3.7 ajuda-nos a entender
a memoração na emergência do self.
No capítulo 4, nós realizamos a análise de nosso corpus em função do nosso
referencial teórico. O capítulo 5 apresenta nossa discussão e o capítulo 6 nossa conclusão de
que o pensamento imaginativo, necessariamente, recursivo é o ponto chave das emergências
em sujeitos traumatizados.
29
2 MÉTODO E METODOLOGIA
O método adotado foi a revisão crítica da bibliográfica da literatura científica
pertinente ao nosso objeto de pesquisa. Portanto, revisamos brevemente o fenômeno do
trauma na perspectiva médico-categorial, o construto teórico imaginação (ROTH, 2007), os
conceitos de narrativa e evento (TALMY, 2000) com os quais trabalhamos, o conceito de
linguagem como órgão (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004), o conceito de recursão
(CORBALLIS, 2014) e a memoração no self (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004).
A metodologia adotada foi a análise descritiva e exploratória, pois o que deu suporte
aos nossos argumentos foram eventos linguísticos, descritos exploratoriamente e analisados,
tendo como base as prerrogativas da Linguística Cognitiva.
30
3 REFERENCIAL TEÓRICO
Nosso referencial teórico gira em torno de uma tentativa de investigação do fenômeno
do trauma pelo viés da Linguística Cognitiva como forma de ciência integrativa, a fim de que
possamos entender melhor como sujeitos traumatizados significam seu conhecimento de
mundo. A pretensão à integração vem da necessidade de entender o homem de forma mais
abrangente como propomos na introdução. Para atingirmos tal pretensão, tomamos o homem
como um sistema dinâmico. Uma definição de sistema dinâmico utilizada na física e adaptada
ao nosso propósito, neste trabalho, é a de Monteiro (2006, p. 41), que entende o primeiro
termo, sistema, como sendo “um conjunto de objetos agrupados por alguma interação ou
interdependência, de modo que existam relações de causa e efeitos nos fenômenos que
ocorrem com os elementos desse conjunto”. Já o segundo termo, dinâmico, diz respeito à
variação temporal de algumas grandezas que caracterizam seus objetos constituintes.
Monteiro (2006, p. 50) afirma que em um “sistema dinâmico (como memória) a resposta num
dado instante depende dos valores das entradas passadas”. Tal afirmação nos permite
acrescentar que entendemos a cognição humana como um sistema dinâmico potencialmente
recursivo que utiliza seu próprio output como input.
O Springer Complexity7, um programa transdisciplinar de estudos em complexidade,
define sistemas complexos como sistemas que compreendem muitas partes em interação,
tendo a capacidade de gerar uma nova qualidade de comportamento coletivo macroscópico,
cujas manifestações são a formação espontânea de estruturas temporais, espaciais ou
funcionais distintas (SPRINGER COMPLEXITY, 2014). Em obra publicada por esse
programa, encontramos em um dos artigos a defesa da aplicabilidade da teoria dos sistemas
dinâmicos complexos à cognição humana. Em tal artigo, os autores entendem que a teoria dos
sistemas complexos dinâmicos provê os meios formais para analisar como o acoplamento
entre corpo, cérebro e meio ambiente leva aos padrões comportamentais que se sobrepõem ao
longo do tempo (HASELAGER; BONGER; VAN-ROOIJ, 2003). Isso somado à definição de
Monteiro (2006), esclarecemos mais um pouco o raciocínio de que a cognição humana é um
sistema dinâmico. Agora podemos fazer outros esclarecimentos que serão apresentados nas
seções a seguir, tal como aquilo que entendemos como importante nos modelos médicos de
7 Springer Complexity é um programa interdisciplinar que publica o melhor em pesquisa e ensino de nível
acadêmico acerca de ambos os aspectos, fundamentos e aplicação, dos sistemas complexos – atravessando todas
as disciplinas tradicionais das ciências naturais e da vida, engenharia, economia, medicina, neurociência,
ciências social e computacional.
31
abordagem do fenômeno do trauma.
3.1 Algumas considerações acerca do modelo médico do trauma
Ao longo de toda a evolução da espécie humana, a seleção natural e outros fatores
evolutivos vieram a selecionar características promotoras da sobrevivência e adaptatividade
(SYMONS, 1992) frente a eventos traumatizantes, tais como catástrofes naturais, guerras,
estupros, etc. Nossos ancestrais, em interação com o ambiente, tiveram selecionados tais
mecanismos de sobrevivência, adaptatividade e superação que levaram à manutenção da
espécie. Mas alguns desses mecanismos de sobrevivência podem se mostrar desregulados, ou
para mais ou para menos, resultando em alterações cognitivas e comportamentais
disfuncionais em algumas pessoas expostas a eventos traumatizantes, os quais ultrapassam os
limiares (PRIGOGINE; STENGERS, 1993)8 da normalidade e resulta em aspectos
caracterizados como “doença”. Em relação ao trauma, muitos teóricos, ao observar essa
desregulação que culminava em disfunções adaptativas, cunharam termos como “trauma
psíquico”, “trauma emocional”, “choque nervoso”, “neurose traumática”, “neurose de
guerra”, etc., na tentativa de descrever esses achados psicofisiológicos e comportamentais das
consequências desses traumas nos sujeitos que os vivenciaram. Essas descrições foram
acumuladas e validadas como um construto categórico, o qual foi reconhecido como
transtorno pelo DSM III9 apenas em 1980 (CAMINHA, 2004; SADOCK; SADOCK, 2007;
VENTURA, 2011). A categorização do trauma como um transtorno tornou possível a
construção de uma narrativa diagnóstica nos dizeres médicos. Essa narrativa pode ser tomada
como a forma que os sujeitos traumatizados conhecem e significam o mundo e eles mesmos.
Tais disfunções adaptativas em uma pessoa que vivenciou um evento traumatizante, só
são utilizadas para categorizar um sujeito como portador de um transtorno, caso estejam
presentes por mais de um mês e sejam desencadeadas por um estressor externo com
sobrecarga suficiente para afetar quaisquer outras pessoas, segundo Sadock e Sadock (2007) e
em consonância com o DSM IV10.
O estressor externo é revivido pela pessoa em sonhos e pensamentos, determinando
8 “A noção de limiar está ligada, antes de mais nada, às noções de qualitativo e de quantitativo. Um limiar é
transposto quando a variação de um fator - variação que até esse momento não tinha produzido qualquer efeito,
ou então tinha produzido um efeito sobre a sua medida – produz repentinamente um efeito global novo e
desmedido. Na linguagem popular abundam os testemunhos que revelam o conhecimento da existência dos
limiares: a palavra a mais, a gota que faz transbordar o copo, o ponto de não retorno.” (PRIGOGINE;
STENGERS, 1993, p. 83) 9 Terceira edição do DSM. 10 Quarta edição do DSM.
32
comportamentos evitativos, hipervigilância e alterações cognitivas como má concentração,
além de sintomas de depressão e ansiedade. Sendo assim, o trauma é diagnosticado, após a
exposição a um evento traumatizante, por sintomas da ordem: do reexperimentar do evento
traumatizante; do comportamento evitativo em relação a estímulos associados direta ou
indiretamente ao evento traumatizante; dos sintomas dissociativos; e da disfunção
autonômica. O quadro de critérios diagnósticos proposto pelo DSM IV-TR11 pode ser
consultado no Anexo A. Esse quadro de critérios compõe todas as emergências implicadas no
diagnóstico médico categorial do trauma. Recentemente, o DSM teve sua quinta edição
publicada, levando ao estabelecimento de algumas diferenças nos critérios diagnósticos em
relação à quarta edição. Esse fato não interfere na proposta desta dissertação, pois, como
apresentamos nos objetivos, visamos à descrição do trauma por meio de outra linha teórica,
que se afasta da categorial.
Na medida em que o trauma foi narrado de forma categorial no DSM, pudemos lidar
com tais categorias diagnósticas de modo que permitissem outras inferências classificatórias
estatisticamente validadas, tal como a prevalência do trauma na população mundial a qual está
em torno de 10 a 12% em mulheres e entre 5 a 6% em homens, sendo mais prevalente em
adultos jovens (SADOCK; SADOCK, 2007). Na população norte-americana encontra-se uma
prevalência de trauma na vida de 10,3% em homens e de 18,3% em mulheres (YEHUDA;
DAVIDSON, 2000 apud CAMINHA, 2004). Talvez tais diferenças de prevalência entre os
distintos gêneros, masculino e feminino, estabeleçam-se em decorrência de diferenças
culturais de criação e educação dadas pelos pais às crianças em função do gênero (FIVUSH,
2014). Assim também, os sintomas descritos no Anexo A puderam ter sua duração
mensurada, identificando-se sua permanência de meses a muitos anos. Pôde-se perceber a
ocorrência de flutuação sintomática com piora em momentos de maior estresse de vida e
melhora em momentos mais harmônicos. Da mesma forma que se mensurou que, sem
tratamento, cerca de 30% dos sujeitos se recuperam, 40% mantém sintomatologia leve, 20%
sintomatologia moderada, e 10% não se alteram (SADOCK; SADOCK, 2007). Outro dado
importante é que algumas pessoas tiveram mudança permanente da personalidade, prejuízo
funcional, laboral e da qualidade de vida, além do aumento da taxa de problemas da saúde
física e transtornos médicos (APA, 2008).
Por meio de todos esses dados estatísticos, pudemos perceber que ocorre,
insistentemente, uma atualização do trauma no sujeito traumatizado talvez ao longo de toda
11 Quarta edição revisada do DSM.
33
uma vida, tendo em vista que a sintomatologia e o (re)experienciar do evento traumatizante
pode se manter indefinidamente. Sendo assim, a forma usada para conhecer o mundo fica
drasticamente influenciada pelo trauma ocorrido no passado.
Toda essa sintomatologia tem uma explicação ou um modelo neurobiológico. Não é
nosso objetivo fazer tal leitura neurobiológica aprofundada aqui, em virtude das afinidades
teórico-metodológicas. Mas, de toda maneira, relataremos alguns dados na consideração de
padrões comportamentais, cognitivos e emocionais apresentados por tais sujeitos
traumatizados, segundo esse modelo de entendimento do trauma. Nós consideramos que os
seres humanos não se resumem à sua neuroquímica ou aos seus sistemas biológicos.
Acreditamos que esses sistemas fazem parte do sistema maior, influenciando-o e também
sendo influenciado por ele de forma dinâmica e auto-organizadora12 (CAPRA, 1982, 2002;
LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008). Além disso, o sistema humano está inserido em
outros sistemas: a natureza e a cultura. Então o sistema humano se constitui pelos
microssistemas internos e pelos macrossistemas externos, não podendo ser resumido à sua
biologia, mas podendo ser definido, em partes, metonimicamente, por meio dela e da cultura
circunjacente. Cada um desses sistemas tem seus limiares e cada um deles constrange13 um ao
outro (PRIGOGINE; STENGERS, 1993). Tanto a biologia quanto a cultura influenciam
grandemente as formas que adotamos para conhecer o mundo, pois estes dois âmbitos do
sistema, dinamicamente, influenciam a auto-organização do sistema humano, sem, no entanto,
determina-la.
Um aspecto importante a se considerar é que a neurobiologia peculiar desses sujeitos
com trauma resulta em alterações cognitivas importantes no âmbito da memória, tais como
12 “A plasticidade e flexibilidade internas dos sistemas vivos, cujo funcionamento é controlado mais por relações
dinâmicas do que por rígidas estruturas mecânicas, dão origem a numerosas propriedades características que
podem ser vistas, como aspectos diferentes do mesmo princípio dinâmico – o princípio de auto-organização. Um
organismo vivo é um sistema auto-organizador, o que significa que sua ordem em estrutura e função não é
imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo próprio sistema. Os sistemas auto-organizadores exibem um
certo grau de autonomia; por exemplo, esses tendem a estabelecer seu tamanho de acordo com princípios
internos de organização, independentemente de influências ambientais. Isso não significa que os sistemas vivos
estejam isolados do seu meio ambiente; pelo contrário, interagem continuamente com ele, mas essa interação não
determina sua organização. Os dois principais fenômenos dinâmicos da auto-organização são a autorenovação –
a capacidade dos sistemas vivos de renovar e reciclar continuamente seus componentes, sem deixar de manter a
integridade de sua estrutura global – e a autotranscendência – a capacidade de se dirigir criativamente para além
das fronteiras físicas e mentais nos processos de aprendizagem, desenvolvimento e evolução.”(CAPRA, 1982, p.
263) 13 Nessa passagem vemos a definição de constrição com que trabalhamos: “Epistemologia, biologia e física
serão, no entanto, suficientes para apresentar as diversas dimensões do problema que aqui tencionamos colocar,
isto é, o da passagem de um conjunto de noções onde a constrição se identifica com limitação do que pode
existir, a outro conjunto onde, pelo contrário, a constrição é algo a partir do que qualquer outra coisa pode
acontecer, e onde determinação é algo a partir do que qualquer outra coisa pode acontecer, e onde determinação
e abertura, longe de se oporem, se reúnem.” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 63)
34
memórias do trauma hiperconsolidadas, indeléveis e com recorrência intrusiva interrompendo
o sono e os pensamentos. Essas memórias são evocadas até por estímulos remotamente
ligados ao trauma original. A hiperconsolidação das memórias pode ser explicada, do ponto
de vista neurobiológico, pelo excesso de catecolaminas por ocasião do trauma não refreado
pelos corticosteroides. Outros aspectos são o embotamento afetivo, as intrusões mnêmicas, os
fenômenos dissociativos e os flashbacks que seriam influenciados pelos opioides endógenos
(GRAEFF, 2003).
É percebido que pessoas normais podem responder a eventos traumatizantes, tanto
com reação de “luta ou fuga” quanto com “congelamento” ou dissociação. Orr, Metzger e
Pitman (2002) afirmam que de um quarto a um terço dos sujeitos que apresentam o
diagnóstico de trauma não apresentam reatividade aumentada frente a estímulos associados ao
trauma. Tais autores supõem que os métodos psicofisiológicos atuais podem não ser sensíveis
o bastante ou que esses sujeitos hiporresponsivos podem ter formas de trauma mais brandas,
do ponto de vista psicofisiológico. Sendo assim, é possível dividir sujeitos com trauma, pelo
menos, em dois grupos: aqueles hiper-responsivos (luta ou fuga); e aqueles hiporresponsivos
(congelamento). Esses dois grupos de sujeitos hiper ou hiporresponsivos
psicofisiologicamente falando, em testes laboratoriais, corresponderiam às maneiras deles
atuarem no ambiente. Nos sujeitos hiper-responsivos, alguns dos sintomas do trauma, que são
decorrentes de uma hiperestimulação autonômica, são: irritabilidade, insônia, sobressalto
excessivo; e hipervigilância. Nesse estado, o sujeito pode, diante de estímulos mínimos,
apresentar taquicardia, taquipnéia e tensão muscular, ou mesmo um leve barulho pode causar
sobressalto acentuado (FIGUEIRA; MENDLOWICZ, 2003). O estado de alerta constante
pode levar a prejuízos atencionais, afetando a leitura e os estudos. Este estado de hiper-
responsividade (hiperestimulação e hipervigilância) pode ser definido em termos de arousal
(PFAFF, 200614). Os sujeitos hiporresponsivos são aqueles que apresentam mais sintomas
conversivos, dissociativos e de embotamento afetivo.
Até aqui, nós respondemos a nossa primeira pergunta, a qual nos pedia para, por meio
da identificação e análise de objetos trauma-relacionados recorrentemente emergentes em
sujeitos traumatizados, estabelecer um conjunto de padrões [cognitivos] emergentes desses
sujeitos. Tais padrões podem ser divididos em duas categorias: hiper e hiporresponsivos. Os
padrões mais comumente encontrados nos sujeitos hiper-responsivos, psicofisiologicamente
14 Para mais esclarecimentos, o leitor pode consultar a obra citada, na qual Pfaff descreve o arousal generalizado
que se apresenta nos humanos como: maior alerta a estímulos sensoriais de todos os tipos; uma função motora
mais ativa; e maior reatividade emocional.
35
falando, são aqueles de hiperestimulação autonômica, tais como irritabilidade, insônia,
sobressalto excessivo, hipervigilância, taquicardia, taquipnéia e tensão muscular [critério D do
Anexo A]. Outros, ainda, são memórias do trauma hiperconsolidadas, indeléveis e com
recorrência intrusiva interrompendo o sono, os pensamentos e o comportamento [critério B do
Anexo A].
Os padrões de sujeitos hiporresponsivos são, mais comumente, aqueles característicos
de sintomas conversivos, dissociativos, de perda de memória e embotamento afetivo [critério
C do Anexo A].
Em relação aos padrões de objetos trauma-relacionados, da ordem das narrativas
enunciadas por nossos sujeitos, ficaremos com aqueles encontrados nos Quadros 1 e 2 do
nosso corpus, o qual foi apresentado na seção 1.3. Essas não são todas as narrativas possíveis,
mas são um conjunto delas que refletem também os mesmos grupos de padrões dos sujeitos
hiper-responsivos ou hiporresponsivos. Aqui, fazemos apenas uma ressalva: não conhecemos
o padrão global dos produtores de tais narrativas, então nossa classificação das narrativas em
relação a esses dois padrões é puramente especulativa.
Esses dois padrões de atuação (hiper e hiporresponsividade) encontrados nos sujeitos
com trauma podem também influenciar as emergências que dizem respeito a várias outras
funções cognitivas, como, por exemplo, a integração do self, a qual foi demonstrada por
Fivush (2004) em um trabalho com memória autobiográfica declarada e não declarada na
construção do self de mulheres abusadas. Fivush (2004) percebeu que a narrativa de mulheres
com padrões dissociativos e de negação predispunha-se a descrever um autoconceito menos
integrado do que a narrativa de mulheres abusadas que utilizaram de estratégias de
enfrentamento adequadas. O exemplo de Fivush (2004) nos mostra a importância da
identificação e divisão desses padrões de atuação, no caso do trauma, uma vez que a
emergência de um dado padrão cognitivo é resultante de aspectos peculiares das operações a
ele subjacentes.
Sendo assim, nas seções que se seguem, tentaremos, por meio da análise de algumas
operações cognitivas, reunir dados suficientes, a fim de poder responder à nossa segunda
pergunta: o que subjaz aos padrões cognitivo hiper e hiporresponsivos em sujeitos com
trauma?
Para introduzir a seção seguinte, deixamos claro que, para que os sujeitos
traumatizados construíssem suas narrativas, foi necessária uma linguagem. Então, é mister
que definamos com qual conceito de linguagem trabalharemos nesta dissertação. Assim, como
já prenunciado na introdução, a próxima seção será aquela na qual apresentaremos a
36
linguagem como um órgão.
3.2 O órgão da linguagem
As línguas podem ser estudadas em função de sua história (Linguística Histórica com
as hipóteses monogênica e poligênica), das relações de umas com as outras, das relações entre
língua e meio (Ecolinguística), das conformações anatômicas possíveis ao se falar (Fonética),
das variações acústicas (Fonologia), dos aspectos perceptuais do discurso, etc. Esses aspectos
superficiais da linguagem podem ser estudados com relativa facilidade de acesso. No entanto,
outro aspecto do estudo da linguagem que é mais peculiar, por assumir um âmbito mais
virtual, é a natureza e a forma do conhecimento linguístico que, de forma ubíqua, está
presente nos seres humanos normais (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).
Desde o estabelecimento da Linguística como ciência, ela assumiu um carácter
investigativo da língua em seus aspectos históricos e foi grandemente influenciada por
Ferdinand de Saussure (1989). Esse autor se interessou em reorientar o estudo da parole, fala,
para a langue, sistema de signos, que dava emergência às estruturas linguísticas das línguas.
Saussure afirmava que as bases para se construir um sistema linguístico não se encontravam
nos indivíduos e sim primariamente no social, na comunidade discursiva que emprega um
código particular. Mais tardiamente, outros vários linguistas, como Leonard Bloomfield
(1933), adotaram a hipótese behaviorista de investigação da linguagem, a qual usava métodos
empíricos de investigação que desconsideravam a existência da mente (ANDERSON;
LIGHTFOOT, 2004).
O fato de pensar que a mente estava fora do alcance das ciências daquela época, fez
com que o foco de estudo da Linguística fosse as expressões externas da linguagem. Nesse
período, o objeto de investigação não foi mais a Linguística Histórica, e sim os modos
externos de apresentação da linguagem, ou seja, os conjuntos de sons, palavras, sentenças,
etc., mais especificamente a língua-E nos termos de Chomsky (HAUSER; CHOMSKY;
FITCH, 2002). O que se fazia, naquela época de influências behavioristas, era mudar o foco
de estudo devido às limitações de ferramentas, ao invés de desenvolver as ferramentas certas
para alcançar o objeto de estudo desejado. Só nas últimas décadas do século XX, após o
declínio do tal pressuposto behaviorista de que a mente não poderia ser um objeto de estudo
científico, pôde-se chegar a um consenso muito mais amplo sobre a necessidade de entender a
mente em seus próprios termos. Assim, como consenso do resultado de vários campos de
pesquisa na área da linguagem, pensamos que a Linguística também pôde assumir-se
37
enquanto um ramo da Ciência Cognitiva a partir do momento em que seu objeto de estudo
passa a ser a língua-I, internal language, que é, necessariamente, um aspecto da estrutura da
mente/cérebro: o órgão da linguagem, definido em algum nível de abstração, o qual deve ser
estudado como tal e cujo estudo pode levar a novos insights sobre a arquitetura da cognição
(ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Novamente nós escolhemos nos voltar ao tema da
dissertação, o conhecimento humano, nesse caso, o conhecimento linguístico.
Chomsky (1959) foi o primeiro a fazer uma crítica devastadora aos conceitos
skinnerianos de aquisição da linguagem e de aprendizado da segunda língua, questionando
como poderia uma criança aprender tão rapidamente uma língua natural por mecanismos
unicamente skinnerianos. Chomsky mudou o ponto de investigação de “O que as pessoas
fazem ao falar uma língua?” para “Como elas fazem para falar dada língua?”. E assim passou-
se a investigar a estrutura do conhecimento que se tem para falar dada língua, isto é, o órgão
da linguagem como abordado por Anderson e Lightfoot (2004). Chomsky viu a linguagem,
então, como um fato interno dos falantes, uma forma de conhecimento, ou língua-I, em
oposição à sua manifestação externa como enunciados, textos, conjuntos de sentenças,
convenções sociais ou língua-E (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).
O estudo da língua-E nos permitiu, ao longo dos tempos, entender um conjunto de
elementos observáveis, tais como: os sons e a articulação das palavras por meio da fonologia;
as unidades morfológicas das palavras, frases e sentenças, por meio da fonética e da sintaxe e
do formalismo como um todo; além do entendimento do texto e do hipertexto, etc. Mas,
segundo Anderson e Lightfoot (2004), não existe razão para acreditar que tais elementos
externos sejam objetos de pesquisa bem definidos e coerentes, pois, por exemplo, não existe
nenhum algoritmo geral para caracterizar uma dada língua e não existem razões para esperar
encontra-lo. Dessa forma, linguagem, no sentido da língua-E, não é uma entidade bem
definida, pois ela não existe independente de atos concretos de fala e não há nenhuma razão
para acreditar que o seu estudo irá revelar quaisquer propriedades nesse sentido. Assim, ao
estudo da língua, segue-se que, se quisermos desenvolver uma verdadeira ciência da
linguagem, essa deve ter como objeto de estudo, em vez da língua-E, a noção de língua-I das
gramáticas, as propriedades do órgão da linguagem de uma pessoa (ANDERSON;
LIGHTFOOT, 2004). Faremos dessa maneira em relação aos atos linguageiros15 de nossos
sujeitos, uma vez que utilizaremos as manifestações da linguagem para entendermos os
mecanismos linguísticos que subjazem aos atos linguageiros considerados.
15 “O uso da linguagem enquanto prática social, cultural, pessoal, em uma dada situação” (CHARLOT, 2000, p.
124).
38
Em relação ao órgão da linguagem, Anderson e Lightfoot entendem que:
O Órgão da linguagem trata a linguagem humana como a manifestação de uma
faculdade da mente, um órgão mental, cuja natureza é determinada pela biologia
humana. Suas propriedades funcionais devem ser exploradas assim como a
fisiologia explora as propriedades funcionais dos órgãos físicos.16 (ANDERSON E
LIGHTFOOT, 2004, p. I, tradução nossa)
Novamente, enfatizamos o fato de que Noam Chomsky e colegas foram os primeiros a
empenharem-se, justamente, não no entendimento das manifestações externas da linguagem, e
sim no entendimento do que ocorre dentro de um falante, naquilo que está por trás das
manifestações linguísticas habitualmente estudadas. Eles tomaram a Linguística como um
componente do estudo da mente, ou melhor, do estudo de um dos sistemas de conhecimento
humano, o órgão da linguagem, que forma uma importante parte da nossa organização
cognitiva. Para que esse estudo dos processos cognitivos internos (o que eles chamaram de
língua-I) ocorresse, foi e é necessário o desenvolvimento de um nível de abstração
considerável (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).
A Linguística tomada em seu caráter cognitivo assume que, em vez de ser vista como
um fenômeno externo, como uma coleção de sons, palavras, textos, etc., existentes
independentemente de qualquer sujeito em particular, deve ser vista como uma ciência
interessada na organização interna e na ontogenia do conhecimento linguístico. Dessa forma,
a linguagem como aspecto da cognição humana assume uma propriedade específica da nossa
espécie e, portanto, está enraizada em nossa natureza. Mais especificamente, a linguagem está
enraizada na natureza do nosso conhecimento (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).
Portanto, o conhecimento humano de língua natural é, em grande parte, uma
capacidade biologicamente determinada e específica da espécie humana que assume um
caminho crescente durante a maturação ontogenética. O órgão da linguagem, assim como o
órgão da visão ou quaisquer outros órgãos do sentido, precisa da experiência, isto é, da
exposição do organismo ao mundo circunjacente para desencadear a organização de
propriedades específicas do sistema envolvido com a linguagem. Nessa visão, o crescimento
da linguagem resulta mais de capacidades inatas específicas do que de bases puramente
indutivas da observação da linguagem ao redor de nós. Isso é sustentado pelas similaridades
entre as diversas línguas no mundo, assim como pela improvável responsabilização do
aprendizado, por si só, no crescimento linguístico (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Por
16 The Language Organ treats human language as the manifestation of a faculty of the mind, a mental organ
whose nature is determined by human biology. Its functional properties should be explored just as physiology
explores the functional properties of physical organs.
39
meio dessa consideração, de que o conhecimento linguístico iminentemente depende da
experiência, podemos especular se a experiência traumatizante não moldaria esse
conhecimento linguístico a ponto dele se organizar em volta daquele evento.
Em relação à aquisição de uma língua natural, temos duas considerações, a saber, a
especificidade de domínio da faculdade da língua e a especificidade da espécie humana em
adquirir linguagem. A primeira assegura, em vários exemplos, a natureza biológica da
linguagem, enquanto a segunda é vista no fato de que toda criança normal adquire uma língua,
se exposta habitualmente, enquanto outros animais não aprendem sistemas sintáticos, mesmo
se exaustivamente ensinados.
Um fato importante em relação à aquisição da linguagem é que crianças apreendem
infinitamente mais conhecimento do que aquele a que elas são expostas [Problema da pobreza
de estímulo]. Isso significa que existe um sistema produtivo, uma gramática, que engloba
tanto os fatos para os quais as crianças foram expostas, como também permite a produção e
compreensão de uma ampla série de enunciações (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Tem
se tentado explicar o problema da pobreza de estímulo através de algumas hipóteses possíveis,
vamos a elas e às suas refutações: i. A criança não generaliza. Essa hipótese afirma que
crianças não produzem formas linguísticas que elas nunca ouviram. Isso pode ser
experimentalmente falseado pelo fato das crianças construírem, amplamente, formas
linguísticas que os adultos não falam; ii. Nós formamos novas sentenças por analogia. Essa
hipótese também pode ser falseada pelo fato de observarmos que algumas analogias são
válidas e outras não, sendo que comumente as crianças não fazem as analogias não válidas;
iii. Crianças são corrigidas pelos adultos quando enunciam formas não válidas. Essa hipótese
exige que os adultos corrijam as crianças insistentemente e que elas aceitem essas correções.
De fato, nenhuma das duas condições são encontradas; iv. O problema da pobreza de estímulo
não existe. Essa hipótese garante que o ambiente é rico o bastante para suprir toda a
diversidade de estímulos necessária para o aprendizado das formas linguísticas faladas pelas
crianças. Isso é um absurdo, pois em dois anos, crianças já usam de todo seu conhecimento
linguístico com perfeição e o ambiente não consegue suprir todo esse conhecimento
linguístico em tão pouco tempo; v. A linguagem é inteiramente determinada pela genética.
Essa hipótese também é absurda, pois ninguém nasce falando, e mais especificamente,
ninguém nasce falando uma dada língua se não for exposto a ela; vi. De fato, a linguagem
emerge através da interação entre nossa herança genética e o ambiente linguístico ao qual a
criança é exposta. Embora não saibamos se a existência de informações independentes da
experiência, que emergem na gramática de crianças, seja o resultado da codificação direta no
40
genoma ou se ela resulta da epigenética, propriedade do desenvolvimento do organismo, ela é,
de qualquer forma, inata. É assumido que o genótipo linguístico (Gramática Universal,
doravante GU) seja uniforme em nossa espécie. A GU não é a gramática de uma língua, e sim
o conjunto de princípios pelos quais se pode inferir, na base de dados limitados disponíveis no
ambiente, a capacidade gramatical inteira que constitui o conhecimento linguístico de um
falante maduro (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). A GU é formada por regras profundas
que se aplicam a todas as línguas. A hipótese (vi), a qual é a mais plausível dentre todas,
também promove sustentação à nossa especulação de que a experiência do evento
traumatizante dá suporte ao conhecimento linguístico de sujeitos traumatizados.
O genótipo está diretamente implicado na aquisição da gramática por quaisquer
crianças. Esse genótipo gera estruturas cerebrais finitas que produzem uma infinidade de
sentenças possíveis, ou seja, gramáticas finitas são constituídas num conjunto de operações
que produzem variações infinitas nas expressões emergentes (ANDERSON; LIGHTFOOT,
2004). O que faz com que a gramática produza infinitas variações é o fato de ela ser
organizada pela recursão (HAUSER; FITCH; CHOMSKY, 2002).
A recursão provê a capacidade de gerar uma série infinita de expressões de um
conjunto finito de elementos. Hauser, Fitch e Chomsky (2002) afirmaram isso num artigo que
aborda o problema da linguagem levando em consideração conhecimentos da Linguística, da
Biologia Evolutiva e da Psicologia Evolutiva. Em tal artigo, os autores defendem que existe
uma faculdade da linguagem no sentido amplo (FLA) e outra no sentido estreito (FLE). A
FLA inclui o sistema sensório-motor, o sistema intencional-conceptual e o mecanismo
computacional da recursão. A FLE inclui apenas a recursão e é o componente presente apenas
na comunicação desempenhada por humanos. Para eles, a faculdade humana da linguagem
está organizada de forma hierárquica, gerativa, recursiva, e virtualmente ilimitada em seu
âmbito de expressão. Os autores também afirmam que a recursão não é exclusiva da
linguagem, ao contrário, está presente em outras funções, tais como navegação, números e
relações sociais. Para nossa pesquisa, as considerações desses autores são importantes no
sentido de indicar que a recursão na linguagem é uma capacidade exclusivamente humana e é
ela que possibilita as infinitas combinações das expressões linguísticas na língua-E.
Já que tocamos tanto no assunto da recursão organizando a linguagem e sua expressão,
voltemo-nos ao tema com maior afinco.
41
3.3 Recursão
Para explorar o assunto recursão, preferimos a obra de Corballis (2014). Em tal obra, o
autor entende que vai além da visão chomskyana de que a linguagem é recursiva, ao dizer que
o pensamento é recursivo. Ele aponta dois tipos de pensamentos que exemplificam a presença
da recursão, a saber, a viagem no tempo mental e a teoria da mente. Para ele, nossa
capacidade de inserir os pensamentos dos outros nos nossos próprios, inserir experiências e
memórias passadas ou futuras em atuais, o que ele chama de viagem no tempo mental, são
provas explícitas da recursão no pensamento. A viagem no tempo mental é o que ele
denomina de “a habilidade de evocar episódios passados à mente e também para imaginar
episódios futuros”17 (CORBALLIS, 2014, p. XI, tradução nossa).
O segundo aspecto do pensamento abordado por Corballis (2014, p. XI, tradução
nossa) é a teoria da mente a qual é definida por ele como “a habilidade para entender o que
está indo na mente dos outros”18. Para o autor, esse aspecto é igualmente recursivo, pois
podemos não só pensar no que o outro está pensando, mas também, pensar no que o outro
pensa que eu mesmo estou pensando e assim por diante.
Além de a recursão ser uma propriedade da mente humana que distingue nossa
linguagem da comunicação de outros animais, ela delineia nossa habilidade para refletir sobre
nossa própria mente e acerca da mente dos outros, por simulação. A recursão permite-nos
viajar mentalmente no tempo, inserindo conscientemente o passado ou o futuro na consciência
presente. Outra característica assumida pela recursão é que ela toma seu próprio output como
input, formando um loop que pode ser estendido infinitamente, a fim de criar sequências ou
subestruturas de tamanho ou complexidade ilimitada. Na prática, as limitações da recursão
são dadas pelas limitações do tempo em que elas devem ocorrer para serem funcionais, além
do espaço de memória de trabalho para lidarmos com operações recursivas na mente e da
nossa capacidade e fisiologia orgânica, tal como o tamanho dos pulmões, etc. Sendo assim,
ocorrem loops dinâmicos em sistemas recursivos, tais como a linguagem e o pensamento.
A recursão pode ser entendida como um princípio que dá origem a um processo que
emerge em uma estrutura. Um princípio é algo que governa um processo qualquer. Um
processo recursivo - como o pensamento, a linguagem e a imaginação - pode dar origem a
estruturas que não são recursivas por si mesmas, tais como uma língua e uma escrita
quaisquer. Vários exemplos de línguas supostamente não recursivas são levantados por alguns
17 The ability to call past episodes to mind and also to imagine future episodes. 18 The ability to understand what is going on in the minds of others.
42
autores citados por Corballis (2014). A recursão em Corballis é tomada como um princípio, e,
portanto, não deve ser considerada como um módulo mental, tal como entendido por Steven
Pinker (1997).
O pensamento recursivo provavelmente depende de outros atributos mentais, tais
como a memória de trabalho e o processamento executivo. A memória de trabalho é
necessária para que as informações a serem manipuladas de forma recursiva pelo pensamento
fiquem suspensas ao alcance do processamento executivo. O que emerge de nós tem por base
um entrelaçamento dinâmico de nossas operações cognitivas.
Até aqui, foi apresentada nossa proposta de abordar os mecanismos do conhecimento
humano, mais especificamente aqueles de sujeitos traumatizados. Tais mecanismos podem ser
abordados por suas emergências comportamentais, emocionais, cognitivas, psicofisiológicas
ou linguageiras. Tendo em vista que compusemos nosso corpus principal por enunciados,
retirados do trabalho de Ehlers e Clark (2000), de sujeitos que vivenciaram eventos
traumatizantes, precisamos definir, nessa ordem, o que são esses enunciados, como serão
tomados e também o que seria essa espécie de evento.
3.4 Definição de narrativa
Para abordar a ideia que temos de narrativa, usaremos a definição de Talmy (2000).
Antes disso, vamos ver o que embasa o pensamento do autor em relação ao estudo da
linguagem. Talmy (2000) entende que o estudo da linguagem perpassa basicamente três áreas,
ao se deixar de lado a Fonologia, encontramos a área formal, a psicológica e a conceptual. A
abordagem conceptual da Linguística Cognitiva ou, melhor ainda, da Semântica Cognitiva
concentra seu interesse nos padrões e processos pelos quais o conteúdo conceptual se organiza
na língua, isto é, a maneira como a linguagem estrutura o conteúdo conceptual. Acima de
tudo, a Linguística Cognitiva busca verificar o sistema global integrado de estruturação
conceptual na linguagem por meio do estudo: da estruturação de categorias conceptuais
básicas; das categorias ideacionais e afetivas; das estruturas semânticas de formas
fonológicas, lexicais e sintáticas; e das inter-relações de estruturas conceptuais. Além disso, a
Linguística Cognitiva, como forma transdisciplinar que é, busca interesses comuns tanto da
abordagem formal quanto da psicológica. Primeiramente, ela examina, da perspectiva
conceptual, propriedades formais da linguagem e assim considera a estrutura gramatical em
termos de sua função representada conceptualmente. Secundariamente, procura explicar o
comportamento do fenômeno conceptual dentro da linguagem em termos de estruturas
43
psicológicas enquanto elabora as propriedades dessas estruturas em função de como a
linguagem a realiza. Assim, o termo “Linguística Cognitiva” unifica estruturas linguísticas
com estruturas psicológicas no estudo da linguagem. Nada menos do que buscamos fazer
neste trabalho, já que estaremos nos concentrando em tais estruturas psicológicas das
narrações dos nossos sujeitos. Além de tudo, cabe dizer que a definição de linguagem para
Talmy não inviabiliza nossas considerações acerca da linguagem como órgão. Pelo contrário,
linguagem aqui também tem função de órgão, já que as propriedades funcionais investigadas
por Talmy são justamente aquelas propriedades psicológicas da linguagem.
Narrativa, para Talmy (2000), deve ter um enquadramento amplo, a fim de averiguar e
caracterizar a estrutura de toda forma de narrativa existente e potencial, assim como o
contexto mais amplo dentro do qual a narrativa está situada. Tal narrativa tratada do ponto de
vista das Ciências Cognitivas, da Psicologia Cognitiva e da Linguística Cognitiva assume a
existência de uma mente que produz a narrativa, assim como também de uma mente que
compreende, de forma consciente, essa narrativa. Isso significa que existe aquele que é o
“produtor” e aquele que é “percebedor” da narrativa, sendo que eles podem ser ambos um só.
O percebedor também pode, por si só, experienciar um evento externo de ocorrência natural
e não-intencional, num dado período de tempo, como uma narrativa. Dessa forma, podemos
tomar narrativa enquanto compreendendo um produtor, nossos sujeitos com trauma, e um
percebedor, nós mesmos enquanto analistas daquela narrativa. Ao mesmo tempo, o evento
traumatizante pode ser visto como uma narrativa e é, portanto, narrado pelo sujeito
traumatizado. Mas, no nosso caso, assumiremos que esse corpo, que narra ao representar ou
atuar no mundo, fá-lo por meio de narrações. Veremos mais sobre isso posteriormente. Por
agora, basta dizer que nosso corpus é composto por fragmentos de narrativas já recortados de
narrativas maiores e não a narrativa do evento traumatizante inteira e sequencial. Nosso
quadro de análise, cognitivamente baseado, irá aplicar-se diretamente à cognição do produtor
da narrativa por nós escolhido, assim como à cognição do “experienciador” da narrativa,
nesse caso, a nós mesmos. Então, podemos perguntar: como esses nossos fragmentos de
narrativas podem ser postos no contexto cognitivo?
Narrativa, algo que é produzido e/ou experienciado cognitivamente, no sentido amplo
de Talmy (2000), pode ser colocada dentro do contexto cognitivo ao trazer a noção de
sistemas cognitivos. Sistema cognitivo consiste em um conjunto de capacidades mentais que
se complementam para desempenhar uma função particular integrada e coerente. Eles não são
inteiramente autônomos. Eles interconectam uma reunião de experiências mentais e formam
padrões globais, integrando sequências de experiências têmporo-espaciais dentro de um
44
padrão, que pode ser reconhecido conscientemente como uma história ou mesmo uma vida.
Daí, Talmy (2000) caracteriza e nomeia o sistema cognitivo de formação de padrão e o
sistema cognitivo de narrativa. Ao ser tomada dessa forma, a narrativa representa a operação
de um sistema cognitivo cujas características compartilham propriedades que são comuns
entre sistemas cognitivos de forma geral, de modo que este último pode, em contrapartida, ser
usado para melhor entender a natureza das propriedades da narrativa. Assim, o sistema
cognitivo de narrativa atua por meio da narração.
Em acréscimo ao conceito de narração até aqui apresentado, nós, assim como Talmy
(2000), tomamos as culturas e subculturas das quais os produtores e experienciadores de
narrativas cognitivamente participam, pois esses sistemas podem constituir um sistema
cognitivo coerente, mais amplo, que informa muito da estrutura cognitiva, da estrutura
afetiva, dos pressupostos, dos valores e, de forma geral, da “visão de mundo” daqueles
sujeitos. Esse sistema cognitivo culturalmente baseado dentro da organização psicológica
desses sujeitos pode afetar ou determinar um conjunto de características narrativas, e assim
ele é um alvo adicionalmente apropriado para o tipo de quadro analítico proposto aqui. Haja
vista a discussão em relação a como a cultura e o gênero podem dar voz ou silenciar nossa
narrativa de memória autobiográfica do trauma já realizada anteriormente na seção 3.1
(FIVUSH, 2014). Além de nossa discussão, na seção 3.2, sobre como a cultura pode, em
interação com a herança genética, promover a aquisição da linguagem em crianças, assim
como do padrão linguístico de sujeitos com trauma.
Talmy (2000) acredita que o sistema cognitivo de narrativa está robustamente ativo e
comanda muitas de nossas fontes atencionais e é responsável por nossa sensação de termos
sido apanhados por uma história e estarmos relutantes em interrompê-la até sua conclusão.
Isso significa que o sistema cognitivo de narrativa é uma especialização temporal do sistema
cognitivo de formação de padrões.
A linha de pesquisa da semântica cognitiva adotada por Talmy (2000) tem o objetivo
de examinar propriedades estruturais em comum entre linguagem e cada um dos outros
sistemas cognitivos maiores, como percepção, raciocínio, afeto, memória, projeção
antecipatória e estrutura cultural. A linguagem, aqui, é tomada por meio da análise dos
sistemas cognitivos de formação de padrões e de narrativa.
Talmy (2000) adota o modelo de sistemas cognitivos sobrepostos, no qual cada
sistema tem certas propriedades estruturais que são unicamente dele próprio, certas
propriedades estruturais que compartilha com um ou poucos sistemas cognitivos e certas
propriedades estruturais que ele compartilha com mais de um ou todos os outros sistemas
45
cognitivos. Esse modelo não foge à organização da cognição como um sistema dinâmico
complexo e auto-organizável, como dissemos no início desse capítulo.
O autor trabalha em sua obra com um quadro heurístico que trata do contexto narrativo
em três divisões. Tais divisões são os domínios, os estratos e os parâmetros. Em resumo, os
parâmetros são princípios de organização muito gerais, os estratos são propriedades
estruturais que pertencem à narrativa e os domínios são áreas diferentes dentro do contexto
narrativo total para o qual se pode aplicar os primeiros dois conjuntos de categorias analíticas
(TALMY, 2000).
Os domínios são: a própria narrativa; o produtor da narrativa; o experienciador da
narrativa; a cultura na qual a narrativa e seu produtor e experienciador estão situados; e o
mundo espaço-temporal circunvizinho.
Os estratos são as estruturas: temporal; espacial; causal; e psicológica.
Os parâmetros são: a relação de uma estrutura com outra; a quantidade relativa; o grau
de diferenciação; as estruturas combinatórias; e o acesso avaliativo. Além disso, esses
parâmetros, juntamente com outros não relatados aqui, parecem constituir o conjunto de
princípios de organização que se aplica em comum ao longo de todos os sistemas cognitivos
maiores.
Assim, Talmy (2000) toma narração como uma operação de um sistema cognitivo
atuando de forma contextual e em íntima conexão com outras operações cognitivas, a fim de
dar a possibilidade de conhecermos o mundo. Isso significa dizer que é por meio de
narrações que construímos conhecimento linguístico de mundo. Melhor dizendo, a narração
faz parte de nossa arquitetura de conhecimento linguístico de mundo.
Em relação às narrações do nosso corpus, visto que, em grande parte, elas referem-se
ao evento traumatizante no passado, ou, de certa forma, retomam algo dele, faz-se necessário
definir o que entendemos como evento. E mais ainda, é importante definirmos qual a relação
entre eventivação e o modo como conhecemos o mundo.
3.5 Definição de evento
Narrativas progridem coextensivamente para sistemas de estruturação básica de um
domínio que Talmy (2000) denominou estratos. Os estratos da estrutura temporal têm
unicamente a propriedade de “progressão” e se estruturam sob a forma de “eventos” e
“texturas”. Por meio do particionamento conceitual juntamente com a propriedade cognitiva
de atribuição de qualidade de individuação, a mente humana é capaz de criar limites no
46
continuum temporal tanto na percepção quanto na concepção. Esse limite no continuum
temporal leva esse recorte temporal a ter a propriedade de ser uma entidade única, cuja
percepção ou conceptualização é aquela de um evento. Logo, um evento possui, em interação
dinâmica, uma parte concebida como um continuum e outra concebida do seu domínio
quantitativo recortado. Em função de estarmos lidando, também aqui, com uma operação
cognitiva, preferimos, neste trabalho, utilizar a palavra eventivação, pois esse neologismo
remete ao dinamismo da operação de particionamento conceptual e atribuição de identidade,
ambas operações realizadas pela mente no continuum temporal da percepção e da concepção.
Pinker (2007), em sua obra, também aborda a noção de evento de forma compatível com a de
Talmy (2000), em vários pontos. No entanto, preferimos esse último autor, pelo fato da sua
obra ser mais completa, didática, mais aplicável ao nosso corpus e de manejo prático
surpreendente.
Para Talmy (2000), um evento varia em função de uma série de parâmetros, podendo
ser discreto, com um início e fim claros, ou podendo ser contínuo, experienciado como não-
limitado dentro do âmbito da atenção. Um evento pode ser um processo quando seus
conteúdos mudam ao longo do período dele próprio. No entanto, o conteúdo do evento pode
permanecer inalterado ao longo da sua extensão, caso em que o evento é estático, constituindo
uma situação ou circunstância. Um evento pode ser global, abrangendo, por exemplo, o
comprimento inteiro de uma narrativa, ou local, ou mesmo microlocal, pensado como
abrangendo apenas um ponto do tempo. Além disso, um evento poderia se relacionar com
outro evento ao longo de qualquer dos parâmetros de relacionamento, por exemplo, ser
incorporado nele, alternado em parte com ele, ao mesmo tempo sobrepondo-o, ou exibir parte
para correlações com parte dele.
Assim, nosso conhecimento de mundo é, necessariamente, além de narrado,
eventivado. Isso significa dizer que a nossa mente particiona o continuum de nossa percepção
e até mesmo de nossa concepção, por meio da eventivação. Dito isso, vamos a mais uma
função cognitiva imprescindível para nosso projeto de análise narrativa: a imaginação, um
construto da ordem do pensamento.
3.6 Imaginação
Outra faculdade cognitiva responsável pela forma como conhecemos o mundo é a
imaginação. Ela é abordada, belamente, na obra de Roth (2007). Nessa obra, a autora propõe
que a imaginação deve ser tomada, em sua saliência, como um construto ou um agrupamento
47
de construtos relevantes para o entendimento da mente e do comportamento humanos. Para
ela, a palavra “imaginação” tem conteúdo lexical com várias significações, que incluem:
formação de imagens mentais sensoriais [contemplando os cinco sentidos]; estados da mente,
tais como sonhar acordado e fantasiar; planejamento de curso de ações e estratégias possíveis
conhecidos como contrafactuais ou pensamentos “e se...?”; imaginação criativa, cujos
resultados são concepções ou ideias altamente originais e novas, além de produtos culturais; e
o pensamento metafórico (ROTH, 2007). Logo, tal construto é usado para se referir a muitas
“coisas” diferentes que nos possibilitam conhecer [pensar] o mundo. Sendo assim, tais coisas
podem e devem ser pesquisadas separadamente.
Em relação às pesquisas no campo de investigações psicológicas, Roth (2007) relata
que imaginação, em seus vários aspectos, dá origem a campos de investigação também
separados, a saber: imagens mentais, as que são ativadas sensorialmente; fenômeno do
desenvolvimento, em especial a pretence, definida como a atividade infantil de imbuir
eventos, objetos ou entidades com propriedades imaginárias; crenças fantásticas, por exemplo,
em fadas, anjos, magia e amigos imaginários; teoria da mente, isto é, a capacidade de
conceber os pensamentos e sentimentos dos outros, considerados como imaginário social em
alguns exemplos; pensamento contrafactual, que implica em imaginar “o que poderia ter sido”
ou “e se...?”; e a criatividade.
Pudemos ver que só dentro do campo psicológico de investigação existem vários
papéis ocupados pelo construto imaginação, então uma possível crítica levantada por Roth
(2007) em relação a tal amplitude conceitual é que ela impossibilita a distinção entre
imaginação e outras formas de cognição. Mas, ao mesmo tempo, sendo a imaginação um
conjunto de construtos, ela pode ser entendida como a emergência de várias habilidades da
mente em interação integrada e, consequentemente, não pode ser entendida de forma
discretizada, isolada. Mesmo que a imaginação não possa ser isolada de outras funções
cognitivas, Roth enfatiza a importância de podermos diferenciar, por exemplo, o pensamento
imaginativo do pensamento sem os acréscimos da imaginação, usando para tal, o pensamento
característico de alguns sujeitos do espectro autista. Esse exemplo pode nos abrir espaço de
trabalhar com o conjunto de construtos, imaginação, sem confundi-lo com outras formas de
cognição, em especial, diferenciando-o do próprio pensamento em geral (ROTH, 2007). E, ao
mesmo tempo, incluindo-a como uma modalidade de pensamento, e, sendo assim, numa
modalidade de construtos da ordem da recursão. Isso significa que, por extensão, a
imaginação é essencialmente recursiva, assim como toda modalidade de pensamento
(CORBALIS, 2014).
48
Em relação ao campo das Neurociências, Geake e Kringelbach (2007) propõem que
imaginação pode ser vista e estudada tanto como um produto mental, estado cognitivo
estimulado por outros estados cognitivos internos (espontâneos ou estimulados pelo exterior),
quanto como um processo mental que cria e manipula produtos mentais em função de
necessidades, tais como planejamento estratégico ou qualquer ato de pensamento criativo.
Esses mesmos autores (GEAKE; KRINGELBACH, 2007, p. 308, tradução nossa) identificam
os componentes da imaginação apresentados por Roth como subcomponentes sobrepostos do
pensamento imaginativo e os resumem como “predição através de antecipação; imagens
perceptiva, sensorial e motora, incluindo a dor; pretence; mindedness e empatia (teoria da
mente); pensamento contrafactual incluindo ilusão; e criatividade”,19 os quais são propostos
por meio de abordagens experimentais no campo das Neurociências ao longo da mesma obra.
Outro modo de entendermos a imaginação é pela forma de estudo do pensamento
adotada nas Ciências Cognitivas que, deliberadamente, dividiram as formas do pensamento
entre aquelas que são: eficientes e direcionadas a um objetivo, além de serem mais racionais e
mais acessíveis aos métodos científicos; e aquelas que são ricas, caóticas e ineficientes. A
imaginação parece ser um agrupamento de conceitos que perpassa essa distinção dicotômica e
engloba formas de pensamento que podem ser racionais e intuitivas, mutuamente. Além disso,
a imaginação tem um importante componente cultural que a molda e, em contrapartida, a
imaginação molda a cultura. Assim sendo, a imaginação, em todas as suas formas, deve ser
entendida tanto do ponto de vista das Ciências Cognitivas, quanto interdisciplinarmente por
intermédio de perspectivas transdisciplinares (ROTH, 2007).
Para o nosso trabalho, consideraremos, com maior ênfase, alguns temas do construto
imaginação de determinados capítulos da obra organizada por Roth, tais como a predição
(abordado nos capítulos 2, 11 e 14), pretence (capítulos 2, 4 e 11), as imagens perceptivas
(capítulo 9), o pensamento contrafactual (capítulos 3, 4 e 11), e, brevemente, a teoria da
integração de duplo escopo de Mark Turner (capítulo 10).
3.6.1 Pretence
Pretence é um substantivo da língua inglesa que não encontra equivalente em
Português sem perdas consideráveis. Portanto, escolhemos manter a palavra em sua língua
original. A pretence é um dos aspectos do construto imaginação que pode ser mensurado pelo
19 Prediction through anticipation; perceptual, sensory and motor imagery, including pain; pretence; mindedness
and empathy (theory of mind); counterfactual thinking including delusion; and creativity.
49
comportamento de sujeitos que pretend. A pretence emerge no jogo simulado da criança, por
volta do segundo ano de vida, e é acompanhada pela habilidade de criar mundos mentais
habitados por uma multiplicidade de seres, objetos, propriedades e narrativas não reais. Logo,
a pretence, como aspecto da imaginação, invoca aspectos inventivos em algum grau de
extensão, mas vai além da inventividade em outro âmbito, pois pretence capacita a mente para
distinguir entre o hipotético e o real. Além de que pretence refere-se a operar mentalmente em
um mundo pretend. Whiten e Suddendorf (2007) entendem que inventividade é um aspecto da
imaginação mais amplo do que pretence, quando ambos são tomados em seus status
psicológicos. Inventividade é a capacidade para gerar inovação e diversidade de respostas
comportamentais para qualquer dada circunstância ambiental.
Whiten e Suddendorf sugerem que pretence:
É uma manifestação de uma capacidade mais geral para a representação secundária,
que pode subscrever um conjunto de habilidades cognitivas nos grandes símios,
incluindo raciocínio meio-fim, acompanhamento de deslocamentos invisíveis de
objetos, e ler estados mentais simples, para os quais existem evidências
experimentais mais robustas do que existem para pretence per si.20(WHITEN;
SUDDENDORF, 2007, p. 31, tradução nossa)
Logo, a pretence capacitaria os grandes símios e, por conseguinte, os humanos a
realizar vários âmbitos do ato imaginativo que serão abordados ao longo dessa seção, tais
como a predição e o pensamento contrafactual. Taylor, Carlson e Shawber (2007)
demonstram que pretence é fundamental para as crianças explorarem comportamentos pela
via da fantasia do desempenho de papeis de amigos imaginários leais e indisciplinados. Os
autores especulam que se algum adulto se especializasse em pretence, ele poderia libertar-se
da atenção consciente e tornar o processo de simulação automatizado. Eles admitem que, em
crianças, a automatização da pretence é espontânea e que existem particularidades na
fenomenologia da pretence nessas duas fases do desenvolvimento humano que ainda precisam
ser decifradas. Pensamos que sujeitos com trauma poderiam ajudar a explicar essas diferenças
da fenomenologia apresentada, pois essas pessoas apresentam, significativamente, alterações
na discriminação da realidade em detrimento dos mundos ameaçadores imaginados por elas.
Em relação à criação de amigos imaginários na infância, Taylor, Carlson e Shawber
(2007) propõem três explicações e, dentre essas, destacam como mais adequada a explicação
20 It is a manifestation of a more general capacity for secondary representation, which may underwrite a cluster
of cognitive abilities in great apes, including means–end reasoning, tracking invisible displacements of objects,
and reading simple mental states, for which there is more robust, experimental evidence than exists for pretence
per se.
50
que sugere que crianças com amigos imaginários produzem altos níveis de ativação de
fantasias associadas a níveis baixos de inibição dos pensamentos e ações. Essa combinação
poderia predispor indivíduos a ter dificuldades de controlar conscientemente os produtos de
sua imaginação, o que geraria a ilusão de atuação independente, por parte do amigo
imaginário. Um dado empírico apresentado por Taylor, Carlson e Shawber (2007) e
encontrado em Carlson et al. (2004)21 deixa evidente que o grupo de crianças que
descreveram amigos imaginários incontroláveis tiveram pior desempenho em medidas de
controle inibitório do que outras crianças, embora as crianças com amigos imaginários como
um todo mostraram maior controle inibitório do que aquelas sem eles. Supomos que altos
níveis de ativação de pensamentos imaginativos catastróficos associados a baixos níveis de
inibição de pensamentos intrusivos e ações podem, teoricamente, explicar os padrões hiper e
hiporreativos dos sujeitos com trauma. Do mesmo modo, pensamos que os hiper-responsivos
têm, de fato, inibição de ação adotando a esquiva e a fuga, além das outras características
motoras comumente emergentes nesse grupo, tal como o sobressalto excessivo. Os
pensamentos e memórias intrusivos contínuos associados às ruminações são um exemplo de
pensamentos não refreados encontrados em ambos os grupos. Já os hiporresponsivos adotam
padrões comportamentais pouco inibidos ao apresentarem conversão motora como
emergência.
Taylor, Carlson e Shawber (2007) entendem que a valência negativa do conteúdo
imaginário em desacordo com os desejos, crenças e intenções conscientes podem contribuir
para a ilusão de atuação independente, tanto em crianças com amigos imaginários quanto em
escritores de ficção para adultos. Os dados desses autores também nos levam a pensar que o
mesmo poderia estar ocorrendo com sujeitos traumatizados, em que a valência negativa de
seus conteúdos imaginários pode facilitar a ilusão de que o ambiente ou os outros atuem para
lhe fazer mal, ou algo parecido.
3.6.2 Predição
A importância da imaginação na produção de trabalhos criativos e originais é sem
contestação (BOYER, 2007). No entanto, ela assume importância, sem igual, também nos
mais comuns processos cognitivos subjacentes as várias outras atividades. Nessa última
21 CARLSON, S. M., TAYLOR, M. and MARING, B. L.. Sustained interactions with imaginary others. In.:
Subbotsky, Eugene; and Taylor, M. (co-convenors), Causation in Non-physical Domains: Magical Thinking
and Human Communication. Ghent: International Society for the Study of Behavioral Development, 2004.
51
perspectiva, temos a predição, definida como envolvimento da imaginação nas construções
altamente estáveis e bastante previsíveis de situações possíveis. Segundo Boyer:
Em alguns domínios da experiência, as mentes humanas parecem automaticamente
sugerir ‘e se’ alternativos à experiência atual ou passada. Por exemplo, diante de um
resultado negativo, não podemos deixar de imaginar o que teria acontecido se as
condições reais fossem um pouco diferentes (BOYER, 2007, p. 239, tradução
nossa).22
Esse recurso aos “e se” alternativos nos dá a possibilidade de criar situações
imaginativas ou mesmo estratégias diferentes daquelas que tenhamos vivenciado inicialmente.
Nossa capacidade imaginativa nos possibilita planejar ações futuras ou mesmo perspectivar
eventos ainda não ocorridos. Em relação à tomada de perspectivas de eventos ainda não
ocorridos, podemos predizer a ocorrência de perigos potenciais em nossos ambientes para os
quais só existem sinais indiretos. Para Boyer (2007, p. 239, tradução nossa), em tais situações
“a produção de cenários ‘e se’ está amplamente fora do controle consciente e da deliberação,
embora os resultados, na forma de resultados possíveis, são conscientemente
experimentados.”23. Logo, o que no evento desencadeou o processo criativo preditivo ou
mesmo o motivo pelo qual ele foi desencadeado, são respostas que estão muito profundas em
nossos corpos, enquanto as emergências criativas desses processos profundos são
experienciadas de forma consciente. Pensamos que, em sujeitos traumatizados, a reação de
sobressalto tenta, de alguma forma, predizer uma possível ocorrência de ameaça ou dano
potencial e evita-los. O sobressalto pode ocorrer em resposta a pequenos estímulos que,
ocasionalmente, não estão relacionados diretamente ao evento traumatizante. Tal reação não é
conscientemente planejada, sendo pois, reflexiva, estando incrustada no corpo, enquanto a
experiência concomitante à reação é, geralmente, consciente.
Para Geake e Kringelbach (2007), predição pode ser vista como a forma mais simples
de imaginação e definida como a construção mental imaginativa de possíveis acontecimentos
ou experiências futuras. O cerebelo tem sido cada vez mais implicado em mecanismos
preditivos motores, mas também cognitivos e emocionais complexos, além de outras regiões
cerebrais, tais como gânglios basais, córtex orbitofrontal e vias dopaminérgicas. Alguns
estudos têm sugerido que a predição é, em grande parte, inconsciente ao invés de consciente.
22 In some domains of experience, human minds seem automatically to suggest ‘what if’ alternatives to current
or past experience. For instance, faced with a negative outcome, we cannot help imagine what would have
happened had the actual conditions been slightly different 23 The production of ‘what if’ scenarios is largely outside conscious control and deliberation, although the
results, in the form of possible outcomes, are consciously experienced.
52
Esse achado não é surpreendente, visto que o fato do processamento inconsciente ser mais
rápido que o consciente leva à possibilidade de ação mais imediata diante de uma previsão
com valência negativa em relação ao ambiente. Assim foi demonstrado por Morris e outros
(2001) em relação aos estímulos relacionados ao medo, que podem ser processados
independentes da percepção visual consciente. Mas no caso das predições com gerações de
imagens mentais, ela é consciente. Imagens mentais podem assumir um caráter transmodal,
isto é, imagens mentais produzidas como se estivessem vindo de uma modalidade sensorial
desencadeadas por percepções em outro domínio sensorial, tal como imagens visuais
desencadeadas pela audição (GEAKE; KRINGELBACH, 2007).
3.6.3 Imagens mentais
Pearson (2007) propõe que o termo imagem mental seja usado para descrever um
estado de consciência quase perceptual em que a mente parece capaz de simular ou (re)criar a
experiência sensorial. Esta experiência sensorial recriada pode ser da ordem do visual,
auditivo, olfatório, gustativo e háptico, ou seja, imagens mentais podem ser criadas em todas
as modalidades sensoriais, sendo que as imagens visuais e auditivas são as mais frequentes. O
que perpassa todos os modos de imagens é uma aparente correspondência entre a experiência
consciente de manter uma imagem na mente e a experiência consciente associada a perceber
aqueles estímulos particulares no mundo real. Percebemos que, em sujeitos traumatizados, a
experiência consciente da imagem mental na mente e seu referente no mundo real assumiu, no
passado, uma grande carga afetiva, a qual se repete, mesmo sem a experiência consciente
completa do referente no mundo real, no presente. Entendemos que a fenomenologia quase-
perceptual de imagens mentais é, ao mesmo tempo, sua característica mais marcante e mais
controversa, já que é ela que, em sujeitos com trauma, desencadeia o quadro experiencial.
Pearson (2007) propõe que imagens mentais podem assumir ou um caráter
experiencial de memória perceptual verídica ou de objeto fantástico da imaginação que nunca
foram percebidos diretamente. Esses caracteres experienciais podem assumir particularidades
em termos de nitidez, detalhe e frequência de ocorrência, sendo que alguns sujeitos podem
nunca relatar experiências de imagens perceptuais em quaisquer das modalidades. Mas, de
forma geral, mesmo que a experiência consciente não esteja presente, podemos encontrar
alguma forma de julgamento perceptual sem objeto referente externo, o que indica que há
manipulação imagética.
Pearson (2007) faz um levantamento de vários autores para propor que nossa cognição
53
exerce efeitos restritivos mais intensos sobre enquadramentos de referência, ou perspectiva,
de imagens mentais geradas a partir da memória de longo prazo. Isso, primeiramente, porque
essas imagens mentais são mais dependentes de informação não-perceptual abstrata, ou seja,
essas emergências imaginativas, produzidas a partir da memória de longo prazo, não têm uma
fonte perceptual imediata e elas são geradas por informações abstratas, sem objeto perceptual
presente. Logo, tais emergências imaginativas têm maiores restrições em suas manipulações
mentais. Secundariamente, as emergências imaginativas produzidas pela memória de longo
prazo não apresentam o frescor sensorial, ou melhor, características de superfície perceptuais
tão nítidas quanto àquelas produzidas diretamente de objetos perceptuais. O frescor sensorial
de uma imagem mental reduz as restrições cognitivas da manipulação dessas imagens,
possibilitando maior liberdade imaginativa. Pensamos que, talvez, em sujeitos traumatizados,
tais imagens mentais da memória de longo prazo também tenham restrições em relação à sua
manipulação e elaboração o que, de certo modo, sustenta a sintomatologia mnêmica, mas, sem
dúvidas, tais imagens preservam o frescor sensorial, diferentemente de outras imagens
advindas da memória de longo prazo, possivelmente pela sua permanente atualização.
Pearson (2007) também identificou, em diversos autores, que o uso da linguagem
prejudica o pensamento imagético criativo. Visualizar eventos com carga emocional negativa
associado a uma tarefa verbal leva ao maior aumento da frequência de intrusões de memória
negativa do que apenas visualizar o evento negativo. Isso baliza dados sugestivos de que
interferir com o processamento verbal durante a codificação pode aumentar a quantidade de
informação perceptual armazenadas na memória de longo prazo, ou seja, estimular o
processamento verbal durante a codificação de informação perceptual leva à elevação da
qualidade do frescor sensorial de emergências cognitivas da memória de longo prazo.
Consequentemente, a elevação da qualidade perceptual da memória de longo prazo leva ao
aumento da frequência de pensamentos intrusivos dessa memória, principalmente em relação
à memória autobiográfica de eventos traumatizantes. Contrariamente, a realização de uma
tarefa visuoespacial concomitante à visualização de um evento afetivamente negativo leva a
uma redução do conteúdo perceptual na memória, resultando numa menor frequência de
pensamentos intrusivos do evento em questão. Pearson (2007, p. 205, tradução nossa) conclui
que “isto sugere que as mesmas condições que aumentam o pensamento imaginativo por
aumentar a codificação e o armazenamento de informação perceptual na memória, podem ter
potencialmente consequências danosas, se a valência emocional das imagens associadas for
54
tanto negativa quanto alta24.”
Os dados citados são compatíveis com uma das formas de tratamento de memórias do
trauma, a saber, o Eye Movement Desensitisation Reprocessing (EMDR), que usa o
processamento do trauma por meio de movimentos oculares. Assim, o EMDR reduz intrusões
e a valência afetiva de memórias traumáticas por meio de movimentos oculares (SHAPIRO,
2001).
Da mesma forma, podemos especular que, em eras nas quais não existia a tecnologia
da escrita, as alegorias e as parábolas tinham grande importância por levar a uma,
provavelmente, maior fixação das narrativas ao associá-las a imagens mentais que causariam
muito mais intrusões imagéticas nos ouvintes. Assim, esse fato deve ter sido muito importante
nas sociedades que preservavam as tradições culturais pelas narrativas orais, como deve ter
sido significativo nas pregações de Jesus Cristo, posteriormente, escritas, de forma alegórica,
na Bíblia.
3.6.4 Integração conceitual de duplo escopo
Segundo Roth (2007, p. XXXIII, tradução nossa), “Turner afirma que um processo
análogo – a capacidade para a integração conceptual ou ‘blending’ – repousa no núcleo de
toda cognição imaginativa25”. Essa afirmação de Turner, citada em Roth, possibilita-nos um
agrupamento de todos os construtos trabalhados aqui referentes à imaginação, assim como nos
permite a agrupação de todos aqueles construtos trabalhados na obra organizada por Roth.
Sendo assim, pretence, predição, imagens mentais são necessariamente organizadas pela
integração conceitual e são todos, recursiva e dinamicamente, organizados.
Turner (2007) admite que em sua obra conjunta com Fauconnier, The Way We Think
(2002), eles propuseram que o mecanismo que dá origem à imaginação humana seria a
capacidade mais forte, dentre os animais, de integração conceptual, denominada mescla de
duplo-escopo. Os autores acreditam, altamente, na existência de tal mecanismo, embora
apresentem pouca evidência científica quanto a isso.
Para Turner, nas redes de duplo-escopo, as duas entradas conceptuais têm diferentes e
até discordantes enquadramentos estruturais. A mescla tem enquadramentos estruturais que
24 This suggests that the same conditions that enhance imaginative thought by augmenting the encoding and
storage of perceptual information in memory, may have potentially damaging consequences if the emotional
valence of the associated images is both negative and high. 25 Turner argues that an analogous process—the capacity for conceptual integration or ‘blending’—lies at the
core of all imaginative cognition.
55
recebem projeções de cada um desses enquadramentos estruturais de entrada. A mescla
também possui estrutura própria, emergente dela mesma e não encontrada em nenhum dos
enquadramentos de entrada. As diferenças ou discordâncias dos enquadramentos de entrada
oferecem desafios à integração imaginativa, gerando um enquadramento na mescla altamente
criativo. A referência e o que ela representa são fundidos na mescla como um único elemento.
3.7 Memoração e self
Nossa abordagem de memória e self, nesta dissertação, será fundamentada na obra de
Beike, Lampinen e Behrend (2004). Tal obra apresenta como temas: a emergência da
memória autobiográfica; a natureza narrativa da memória pessoal; e a emoção e o tempo na
memória autobiográfica. Todos os temas são entrelaçados ao conceito de self apresentados
pelos autores em questão. Sendo assim, o foco do livro é a relação entre self e memória
autobiográfica, um subtipo de memória, que é também denominada de memória pessoal ou
memória episódica para ser distinguida da memória para fatos. A memória autobiográfica é a
memória para eventos que aconteceram com a própria pessoa que memora. Ela é uma fonte de
informação sobre nossa própria vida, torna-nos capazes de fazer julgamentos sobre nossa
própria personalidade e fazer predição de nosso próprio comportamento e do comportamento
dos outros. Ela também promove o sentido de continuidade e identidade. A memória
autobiográfica pode ser considerada composta de narrativas verbais, imagens visualmente
descritas e emoção (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). Ela emerge, de forma ampla,
por volta dos 3,5 aos 4,5 anos de idade (BARTH; POVINELLI; CANT, 2014). Vale ressaltar
que não entendemos memória como um estoque estanque que pode ser acessado por nós, e
sim como um processo dinâmico com algum grau de estocagem atualizado pela dinâmica
interna e externa, momento a momento, durante nossas interações com o mundo. Por isso
escolhemos o neologismo memoração para afirmar a dinâmica dessa operação cognitiva.
Em relação ao self, ele tem sido abordado pela ciência por meio de alguns aspectos de
sua natureza, tais como sua fluidez, seus aspectos temporais e sua relação com objetivos
momentâneos e duradouros. O pensamento, as emoções e as percepções são compreendidos
como pertencendo ao self, isso define uma abordagem psicológica ao redor do self. Podemos
fazer uma diferenciação do self em duas instâncias, o “eu” e o “me”. O “eu” num sentido
subjetivo do self como um pensador, conhecedor e agente causal e o “me” num sentido
objetivo do self como os traços únicos e reconhecíveis que constituem o autoconceito de
alguém (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). Quando se liga o self à memória, podemos
56
dizer que selves rememorados são construtos cognitivos e emocionais que se sustentam
mutuamente. Sendo assim, self e memória pessoal se entrelaçam para formar o núcleo da
experiência humana (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). O livro editado por Gallagher
e Shear (1999) apresenta o tema, self, abordado por várias linhas de pesquisa e pode ser
consultado por quem quiser expandir seu conhecimento sobre o assunto. Para esta dissertação,
o que foi e será exposto, é suficiente para a análise do objeto de estudo.
Alguns autores defendem a origem corpórea do self. Dentre esses estão aqueles que
pesquisam aspectos cinestésicos do autoconceito de crianças. Tais autores apostam que, em
qualquer dado momento, existe uma dimensão múltipla do self que pode ou não ser
representada ou reconhecida. Tais dimensões emergem gradualmente durante o
desenvolvimento humano. À vista disso, não se deve surpreender que, em vários pontos do
desenvolvimento, esses aspectos possam, ou não, ser acessíveis (BARTH; POVINELLI;
CANT, 2014). Pensamos que, diante da teorização da origem corpórea do self, poderíamos
encontrar, por exemplo, narrações nas quais isso fosse evidenciado. Como nosso corpus é
coletado de sujeitos com trauma, essa busca pode ser empreendida nesse sentido com a
finalidade de entendermos se isso ocorre ou não em nossos sujeitos.
Um dos múltiplos aspectos do self é, exatamente, o cinestésico da experiência, o qual
possibilita a equivalência entre o que se vê e o que se experimenta. Esse aspecto pode ser
observado nos comportamentos ditos como de autorreconhecimento (BARTH; POVINELLI;
CANT, 2014).
Outro aspecto do self é o autoconceito, o qual está intimamente ligado à memória
autobiográfica de modo que a maneira como nos definimos influencia nosso foco atencional
(interno e externo) e nossos registros mnêmicos de nossas experiências ordinárias. Quem nós
somos também influencia o que recuperamos no momento de lembrar eventos
autobiográficos. Tanto o autoconceito influencia o que se memoriza, quanto o que é
rememorado influencia o autoconceito. De forma alguma a memória é um componente
passivo da cognição, em vez disso, seu conteúdo é influenciado pelo nosso autoconceito no
momento em que ocorreu o evento memorizado. O conteúdo da memória muda nosso
autoconceito ao longo do tempo, assim como também muda nosso autoconceito no momento
em que rememoramos nossos selves passados, ou seja, esses conceitos são dinâmica e
mutuamente influenciados (HOWE, 2014).
No self cognitivo, o “eu” emerge a partir do segundo ano de vida, sendo um evento
chave para a memória autobiográfica. Nessa mesma época, a aquisição de linguagem vem
fornecendo uma saída expressiva para as lembranças autobiográficas que se desenvolvem.
57
Dessa forma, a expressão linguística preserva, por meio da repetição e reintegração, e altera,
através da reconstrução, registros mnêmicos experienciados pessoalmente (HOWE, 2014). A
habilidade narrativa autobiográfica alcança um ápice em crianças em torno dos 5 a 6 anos de
idade (HOWE, 2014). As expressões linguísticas também fornecem um filtro, ao
concentrarem-se em aspectos específicos da experiência e, por necessidade, silenciar outros,
através do qual chegamos a compreender nossas vidas e nossos selves (FIVUSH, 2014).
Primeiro, existe a emergência de um self não verbal nas crianças e depois esse self
pode ser transladado para uma língua natural, constituindo a memória autobiográfica verbal. É
provável que tanto o self quanto a consciência emerjam antes da língua natural e que sejam
modificados por essa última (HOWE, 2014).
Apesar de toda controvérsia em relação ao self, existe concordância em dois aspectos,
a saber: o processo de individuação, ou separação do ambiente, é gradualmente construído
desde o nascimento; e o self tem pelo menos dois aspectos, que são o “eu” que pensa, conhece
e age e o “me” que constitui o autoconceito. Acredita-se que antes do reconhecimento
explícito do self como “me”, há um “eu” que está sendo ativamente desenvolvido desde o
nascimento (HOWE, 2014).
A noção de self como sujeito da experiência pode ter sua emergência ligada a outros
processos, tais como percepção sensorial, autocontrole e imitação que se desenvolvem desde
o nascimento (HOWE, 2014).
Em relação à memória antes da emergência do self cognitivo, organizador da
experiência, podemos especular que pelo fato do estoque ser dinâmico e maleável em resposta
às novas experiências, é extremamente improvável que o que lembramos dos primeiros
eventos, especialmente aqueles que não estão codificados com relação ao self, permaneça
inalterado pelas experiências acumuladas de uma vida (HOWE, 2014).
58
4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
Nosso procedimento de análise será realizado por meio de uma tentativa de classificar
as narrativas26 de nosso corpus de acordo com o que foi apresentado no capítulo 3 sobre
referencial teórico. Tal capítulo nos fornece as bases teóricas para construirmos nossa análise,
de modo que o leitor assimile os fundamentos teóricos e as definições conceituais adotadas
por nós. Tentaremos seguir a mesma ordem das seções apresentadas no capítulo 3 e faremos,
inicialmente, um agrupamento de todas as narrativas para fins de facilitação do acesso do
leitor a elas.
4.1 Agrupamentos das narrativas
Esta seção tem como objetivo facilitar o acesso do leitor às narrativas que serão
comentados na seção 4.2. Assim, faço um agrupamento de todas as narrativas vistas no
capítulo 1, seção 1.3.
1 “Nenhum lugar é seguro.”; 2 “O próximo desastre irá irromper logo.”; 3 “Eu atraio
desastres.”; 4 “Os outros podem ver que eu sou uma vítima.”; 5 “Eu desejo que coisas ruins
aconteçam comigo.”; 6 “Eu não posso lidar com estresse.”; 7 “Minha personalidade tem
mudado pra pior.”; 8 “Meu casamento irá fragmentar.”; 9 “Eu não posso confiar em mim
mesmo com relação às minhas próprias crianças.”; 10 “Eu estou morto por dentro.”; 11 “Eu
nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas novamente.”; 12 “Eu estou ficando
louco.”; 13 “Eu nunca vou superar isso.”; 14 “Meu cérebro tem estado danificado.”; 15 “Eu
irei perder meu emprego.”; 16 “Eles pensam que eu estou fraco para lidar comigo mesmo.”;
17 “Eu sou incapaz de me sentir próximo de alguém.”; 18 “Ninguém existe para mim.”; 19
“Eu não posso confiar em outras pessoas.”; 20 “Meu corpo está arruinado.”; 21 “Eu não irei
nunca ser hábil para lidar com a vida normal novamente.”; 22 “Eu irei perder minhas
crianças.”; 23 “Eu irei ficar sem casa”. Várias dessas narrativas se assemelham àquela de
nossa suspeita [Estou em perigo]. Além disso, elas compreendem temas da ordem da(o):
insegurança; vitimização; vulnerabilidade; culpa; incapacidade; imperfeição;
inadequação; embotamento afetivo; e desconfiança.
As narrativas seguintes apresentam-se na forma geral de contrafactuais: 24 “Se eu
26 Como explicitamos na seção 3.3, tomamos tais fragmentos de narrativas como narrativas no sentido de Talmy
(2000).
59
pensar sobre o trauma... (... eu irei enlouquecer... eu irei desmoronar... eu irei perder o
controle e me ferir... eu terei um ataque do coração... eu irei danificar seriamente minha
saúde.)”; 25 “Se eu não controlar meus sentimentos firmemente... (... eu não serei hábil para
trabalhar e perderei meu emprego... eu irei perder a paciência e ofenderei pessoas.)”; 26 “Se
eu não apurar como esse evento poderia ter sido prevenido... (... alguma coisa similar irá
acontecer novamente.)”; 27 “Se eu não encontrar um jeito de punir o assaltante, ele terá
vencido e eu não serei mais um homem apropriado.”; 28 “Se eu for ao local do evento... (... eu
irei ter outro acidente... eu irei ter um colapso nervoso.)”; 29 “Se eu usar as mesmas roupas
novamente... (... eu irei ter outro acidente... eu irei ter um colapso nervoso.)”; 30 “Se eu não
tomar precauções extras... (... eu irei ser atacado novamente.)”; 31 “Se eu não checar os
espelhos retrovisores... (... alguma coisa irá dirigir-se para o meu carro novamente.)”; 32 “Se
eu fizer planos (tais como para um feriado)... a próxima coisa terrível vai acontecer.”; 33 “Se
eu ver meus amigos... (... eles irão me perguntar sobre o trauma e eles irão pensar que eu sou
um patético, porque eu ainda estou tão desconcertado.)”; 34 “Se eu fizer as coisas que
costumava fazer para me divertir... (... eu irei ser punido novamente... eu irei ser lembrado do
trauma e não irei ser hábil para enfrentar... eu serei dominado pela emoção.)”; 35 “Se eu
mostrar meu rosto... (... pessoas irão ficar aborrecidas por causa de minhas cicatrizes.)”; 36
“Se eu for dormir... (... eu irei ter pesadelos... eu não irei notar os invasores.)”; 37 “Se eu tiver
mais estresse... (... eu irei ter um ataque do coração... eu irei ter um colapso nervoso.)”.
4.2 Categorização analítica
Nesse agrupamento, seguiremos a proposta de separação dos sujeitos traumatizados
em dois grupos, aqueles com narrativas claramente com referência ao embotamento afetivo,
dissociação e conversão, ou seja, o grupo dos hiporresponsivos (subseção 4.1.1). E aqueles
com sintomas de hiperatividade autonômica, tais como irritabilidade, insônia, sobressalto
excessivo e hipervigilância, ou seja, o grupo dos hiper-responsivos (subseção 4.1.2). Em
relação às narrativas claramente com sintomas de hiporresponsividade, nós só encontramos
três em nosso corpus, a saber, as narrativas 10, 11 e 25. Condizente com o achado do trabalho
de Orr, Metzger e Pitman (2002) acerca da menor frequência de sujeitos hiporresponsivos
entre aqueles com trauma, é provável que essas três narrativas também indiquem essa menor
frequência, dentre todas as coletadas. É claro que essa classificação, levando em conta apenas
esses trechos de narrativas, pode levar a muitos problemas metodológicos, pois tal
classificação é realizada tomando-se a ativação autonômica mensurada diretamente nos
60
sujeitos. Já em nossas narrativas, sem sujeitos, é impossível fazer tal medida.
Em relação aos hiper-responsivos, aparentemente todas as outras narrativas se
vinculam a essa classificação, tendo em vista as próprias descrições colocadas nos Quadros (1
e 2) pelos autores do artigo (EHLERS; CLARK, 2000). Manteremos, então, nossa análise da
forma apresentada a seguir.
4.2.1 Hiporresponsivos
Narrativa 10: “Eu estou morto por dentro.”
I. Considerações categoriais – seção 3.127
A hiporresponsividade, nesse caso, é indicada pelo embotamento afetivo relatado pelo
produtor. Ele enuncia algo do tipo: “Não tenho mais sentimentos por dentro”; ou algo como
“Não sei mais reconhecer meus sentimentos como estando presentes.”. Existe uma dificuldade
de nomeação ou de reconhecimento das próprias emoções internas.
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando seu estado emocional interno como
sendo inacessível ou inexistente;
II.I.II. Produtor (eu28): sujeito traumatizado instanciando seu estado interno ao
enunciar uma narrativa;
II.I.III. Percebedor (tu): neste instante, o percebedor somos nós que analisamos a
narrativa. O sujeito produziu essa narrativa em algum ambiente de pesquisa direcionada a
algum pesquisador e não temos acesso à exatidão dessa situação. Sendo assim, tomamos em
todos os casos analisados, nós próprios como percebedores, além, é claro, do próprio
produtor como explicado na seção 3.4; Entendemos que, nessa narrativa, ocorre uma
hipergeneralização da dificuldade de acesso às emoções em todos os âmbitos. O sujeito
desconsidera todas as suas funções vitais e o alcance consciente de seus sentimentos ao dizer
27 Essa categoria será em grande parte especulativa, pois em alguns casos é difícil avaliar a qualidade da resposta
do narrador. 28 Para Benveniste (2006, p. 68-69, grifo nosso), “o discurso apresenta uma estrutura de oposição linguística do
eu por oposição ao tu e ele. Aquele que fala sempre apresenta o indicador eu quando se refere a si mesmo. Esse
ato de discurso que enuncia o indicador eu parece ser sempre o mesmo para aquele que o entende, mas para
aquele que o enuncia é sempre um ato novo por inserir o locutor num tempo-espaço de locução referentes a uma
circunstância discursiva, cada vez, únicos.
61
que está “morto por dentro”;
II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo externo é considerado como não capaz de
estimular ou desencadear quaisquer reações compatíveis com sinais de vida emocional
interna. O mundo circunvizinho é anulado da mesma forma como o mundo interno.
II.II. Atenção: ocorre um hiperfoco na falta de sensação interna e isso anula quaisquer
outros estímulos atencionais internos ou externos.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial: o termo “por dentro” é direcionador da “qualidade de estar
morto” para o interior do sujeito que narra. Esse termo direciona os aspectos qualificativos da
narrativa para aquele espaço referencial;
II.III.II. Estrutura temporal: o verbo no presente do indicativo “Estou” indica que a
qualificação do que se sente é realizada no momento presente;
II.III.III. Estrutura causal: o embotamento emocional ocorreu após o evento
traumatizante, então a pessoa que diz estar morta, no momento presente, evoca seu estado
interno do passado à mente como referência para comparar com o estado interno atual e
caracterizá-lo como “morto”;
II.III.IV. Estrutura psicológica: a estrutura psicológica está indicando
hipergeneralização de um aspecto interno para todos os outros, de modo que os outros
aspectos internos são anulados em detrimento daquele hipergeneralizado.
II.IV. Parâmetros: o produtor relaciona seus estados internos do passado supostamente
indicativos de estar vivo por dentro com os estados internos atuais indicativos de se estar
morto.
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:
III.I. O evento atual narrado é contínuo, pois é indicativo de que o sujeito está morto
por dentro e que não existe indicação de cessação do evento;
III.II. O evento indica uma situação de estado interno;
III.III. O evento é local, já que é internamente localizado.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
O mais impressionante dessa narrativa é o estado mental que se atinge a ponto de se
experienciar a sensação de já estar morto por dentro. O produtor experiencia uma sensação
de embotamento afetivo tão intensa que não percebe algo correspondente a sensação de se
62
estar vivo, no momento da enunciação da narrativa. A mente do produtor simula a experiência
sensorial consciente de estar morto por dentro, ao mesmo tempo em que parece perder a
distinção entre o hipotético e o real, pois não está, em definitivo, morto por dentro. Existe,
nesse caso, um déficit na atuação da pretence. É como se o processo de simulação estivesse
no automático e o sujeito não levasse em consideração a realidade à sua volta ao enunciar tal
narrativa.
Outra consideração é a relação da não inibição dos pensamentos negativos e da
anulação emocional (“morto por dentro”) durante a enunciação da narrativa em questão e, em
contrapartida, o alto nível do aspecto imaginativo da narrativa. A predição, nessa narrativa, é
de um estado de anulação interior, parecendo um processo recursivo em que se traz de volta a
sensação do trauma, que anula a sensação corporal atual. A imagem mental de anulação pode
estar presente trazendo a sensação quase perceptual de estar “morto por dentro”. O sujeito
pode estar, imaginativamente, trazendo essa sensação à consciência. O blending vem
mesclando as sensações internas com a sensação, possivelmente, do estado interno durante o
evento traumatizante, levando à emergência de uma mescla de que se está morto por dentro
temporalmente contínua e ininterrupta.
V. Recursão: ela se dá aqui na inserção da memória do estado interno, no momento do
evento traumático, na memória do estado interno atual, o que resulta na emergência
imaginativa de um estado atual de morte interna. A recursão também está iminentemente
ligada ao processo imaginativo de sobreposição de imagens mentais. Tal sujeito que imagina,
mescla memórias sensoriais e cognitivas de vários âmbitos (transmodalmente), a fim de
produzir uma emergência única e atual, nesse caso, de sensação de “morto por dentro”.
VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
O self rememorado, que é instanciado, constrói-se por meio de experiências e
vivências anteriores, especificamente, aquelas relacionadas ao evento traumatizante. Tanto o
autoconceito, “me”, influencia o que é rememorado de modo que a avaliação feita é negativa,
quanto a própria avaliação negativa leva a um autoconceito negativo. Em relação ao aspecto
cinestésico do self, o que se vê é um corpo vivo, que sente, que se meche, mas o que se
experiencia é um corpo que está morto e que não sente. Ocorre uma cisão entre o que se vê e
o que se experiencia em relação à construção do self.
Vemos o “eu” desse self, que pensa nele mesmo, verbalizando-o como “morto por
dentro”, enquanto o “me” do self tem seus traços identificados com a sensação de se estar
63
morto. O “eu” julga os traços do “me” compatíveis com o estado de se estar morto.
A memória da sensação interna de embotamento afetivo se atualiza constante e
continuamente, mas mantendo o tema de embotamento afetivo presente no tempo atual. Essa
memória dá origem a um self desintegrado, pois ele não é capaz de aperceber-se de seu estado
interno como faria antes do trauma.
Narrativa 11: “Eu nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas novamente.”
I. Considerações categoriais – seção 3.1
Este sujeito também é categorizado como hiporresponsivo, pois sua narrativa diz
respeito a um embotamento afetivo direcionado a objetos externos, no caso, pessoas do
convívio do produtor da narrativa.
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: produtor vítima de um evento traumatizante narrando sua
impossibilidade de sentir emoção para com pessoas do seu convívio;
II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado se instanciando enquanto falante de um
discurso a respeito de seu estado interno no que concerne às suas relações interpessoais;
II.I.III. Percebedor (tu): percebemos um sujeito que sofre com uma sensação de
embotamento afetivo em relação às suas relações;
II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo interno de embotamento afetivo é muito
mais importante nessa narrativa, sendo que o mundo das pessoas com quem o produtor se
relaciona é apenas um gatilho para desencadear a sensação, ou melhor, a falta de sensação
interna, isto é, o embotamento afetivo.
II.II. Atenção: a atenção tem como gatilho as relações interpessoais para direcionar seu
foco para a falta de sensação emocional interna.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial: o espaço a que a narrativa se refere é aquele das relações
interpessoais. Não existe um espaço específico, mas sim um espaço onde ocorrem as relações;
II.III.II. Estrutura temporal: essa estrutura se mostra como um evento contínuo para
além da eternidade. O “nunca” é um advérbio que indica que o produtor acredita que esse
quadro não vai acabar jamais e se estenderá enquanto o produtor existir;
II.III.III. Estrutura causal: essa estrutura é marcada pela contraposição dos advérbios
64
de tempo “nunca” e “novamente”, pois tal contraposição deixa claro que algo que nunca mais
ocorrerá, já ocorreu em algum momento do passado. É provável que esse momento do
passado se estenda anteriormente ao trauma e o momento a que o “nunca” se refere, estenda-
se do trauma ao momento atual;
II.III.IV. Estrutura psicológica: o sujeito produtor enuncia uma narrativa com
generalização e hipérbole em relação ao seu estado relacional social e ao seu estado
emocional interno. É provável que exista uma crença de incapacidade ativada.
II.IV. Parâmetros: os advérbios “nunca” e “novamente” se relacionam de forma muito
íntima, pois eles definem o estado emocional atual e o anterior ao trauma. A relação social a
que o produtor se refere também é marcada nessa narrativa. O acesso avaliativo aos
sentimentos é considerado inexistente por parte do produtor e sua capacidade de se relacionar
também.
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:
III.I. O evento de embotamento afetivo após o trauma é contínuo ao longo do tempo e
“nunca” cessará;
III.II. O trauma iniciou um evento de embotamento afetivo situacional permanente. A
situação se estende da mesma forma, do momento do trauma até o infinito da vida, pois ela
“nunca” vai terminar;
III.III. O embotamento afetivo assume um caráter local interno, mas, ao mesmo
tempo, ele se estende para as relações também, podendo-se dizer global.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
A pretence aparece aqui ao se levar em consideração a situação atual real de possível
dificuldade de se relacionar com pessoas e uma situação simulada de se relacionar com
pessoas num futuro qualquer, ou mesmo no passado, quando o sujeito produtor da narrativa
mantinha outro tipo de relação interpessoal. A não diferenciação do que é real e do que é
hipotético está clara quando se acrescenta o advérbio “nunca” à narrativa. Também podemos
notar a presença, com maior afinco, da predição de um futuro de embotamento afetivo
relacional com possíveis pares, pois as relações atuais se dão, possivelmente, com essa
sensação desde o evento traumatizante. É provável que a pretence juntamente com a predição
formem um mundo simulado que não leve em conta o mundo real. E o principal dessa
narrativa é que ela se faz de forma que esse “não leve em conta” é automático, ou seja, as
65
fantasias novamente não são refreadas e produzem narrativas que fazem evidenciar tal
processo.
O mundo ameaçador das avaliações negativas está recorrentemente presente e se
atualizando nas várias narrativas de nosso corpus. Os pensamentos negativos estão,
provavelmente, pululando a mente desse sujeito, pois esses pensamentos não são refreados
pela automatização da pretence e as ações na forma de discurso estão prontamente
relacionadas a essa automatização. A imagem mental de embotamento afetivo possui frescor
sensorial forte o bastante para que o sujeito se perceba sem emoção e isso significa que o
caráter experiencial dessa memória perceptual é verídico e com provável origem no trauma. O
blending mescla o estado atual de embotamento afetivo com as relações interpessoais,
produzindo uma mescla de relacionamentos sem afeto, além de mesclar o estado de
embotamento do momento do trauma com quaisquer outros momentos da vida da pessoa após
o trauma, gerando um sentimento de embotamento contínuo e ininterrupto evidenciado pelo
“nunca” da narrativa. Todos os aspectos simulados, hipotetizados, são mesclados com os
atuais e também com os aspectos negativos experienciados no tempo da ocorrência do
trauma e, assim, produzem uma mescla que emerge na forma de tal narrativa.
V. Recursão: aparece como uma viagem do tempo mental inserindo o tempo passado
no presente e no futuro. A recursão está atuando em todo o processo imaginativo e de
memória autobiográfica levando à produção da narrativa que circunscreve o passado, o
presente e o futuro.
VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
O “eu” do self que se avalia sendo “incapaz” de perceber traços do “me”, os quais
referenciam essa incapacidade enunciada na narrativa. Essa maneira definidora adotada pelo
“eu” para dizer do “me”, autoconceito, leva a um foco atencional na construção de uma
memória autobiográfica de incapacidade relacional para o futuro, assim como a emergência
de tal memória autobiográfica de incapacidade relacional leva à emergência de um
autoconceito negativo em relação a esse aspecto do self. A memória de embotamento do
trauma emerge continuamente atualizada, mas insistentemente com indicações de
embotamento afetivo. O self se constitui enquanto pessoa que não tem acesso às próprias
emoções. Os aspectos cinestésicos do self podem estar afetados levemente, nesse exemplo,
mas é fácil notar o quanto ele pode estar afetado nos quadros conversivos, onde o sujeito não
se vê enquanto agente de um membro, etc. Esse self, em definitivo, não emerge de forma
66
integrada; ele está dividido e gera uma memória autobiográfica descontínua.
Narrativa 25: “Se eu não controlar meus sentimentos firmemente...
…eu não serei hábil para trabalhar e perderei meu emprego.
…eu irei perder a paciência e ofenderei pessoas.”
I. Considerações categoriais – seção 3.1
Esse enquadramento narrativo é eminentemente hiporresponsivo, pois o produtor tenta
insistentemente controlar seus sentimentos, impedindo que eles sejam manifestados.
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: o produtor narra o que sustenta seu comportamento evitativo em
relação aos seus próprios sentimentos;
II.I.II. Produtor (eu): o produtor da narrativa se instancia por meio de uma operação
imaginativa de previsão contrafactual de futuros trágicos;
II.I.III. Percebedor (tu): percebemos enunciações narrativas imperativas do tipo
“se...então” sempre com possibilidades de pouca adequação social;
II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo a que a narrativa se refere é
contrafactualmente construído de forma que o “se” se refere ao mundo interno e o “então” se
refere ao desastre no mundo externo que o “se” deve evitar, caso o sujeito obedeça a ordem
“se...então”.
II.II. Atenção: ela se direciona para o mundo interno e a luta por manter as emoções
embotadas e inalcançáveis ao próprio sujeito.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial: são contraposições entre o espaço interno, emoções e algo
que deve ser feito nesse espaço para que não ocorra algo no espaço externo, o mundo;
II.III.II. Estrutura temporal: é marcadamente construída em torno do contrafactual com
um verbo no infinitivo na primeira parte dele e um verbo, quase sempre, no futuro do
presente, na segunda parte dele;
II.III.III. Estrutura causal: ela é marcada como algo que deve ser feito no presente para
se evitar algo que possa ocorrer causalmente no futuro próximo;
II.III.IV. Estrutura psicológica: existe claramente uma crença de descontrole
emocional e comportamental, pois o produtor se vê impelido ao descontrole comportamental,
67
caso não controle as emoções, embotando-as.
II.IV. Parâmetros: a relação construída pelo produtor da primeira parte com a segunda
do contrafactual é, eminentemente, causal e consequencial. Caso a primeira parte não se
cumpra, a segunda se seguirá.
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:
III.I. O evento é um contínuo no qual um evento desemboca na ocorrência do outro;
III.II. O evento ocorre na forma de um processo que evolui e gera repercussão;
III.III. O evento é local, dando-se no trabalho ou na relação com os filhos.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
Essa narrativa diz respeito a uma simulação no presente de um fato hipotético que
pode ocorrer no futuro, caso o presente não seja controlado. O sujeito da narrativa perde a
distinção entre o que é hipotetizado e o que, de fato, ocorrerá. O fato de se ter sentimentos e
não controla-los não, necessariamente, levará a ofensas às pessoas ou à perda do emprego,
mas o sujeito não leva isso em consideração. O evento do futuro é considerado real, mesmo
não tendo ocorrido ainda. A pretence promove uma quebra do espaço-tempo do sujeito que
produz a narrativa. Parece-nos que essa pretence também é automatizada e leva julgamentos
simulados a serem narrados como se fossem realidades presentes definidas. Novamente,
existem altos níveis de pensamento negativo catastrófico e baixos níveis inibitórios sobre
pensamentos intrusivos e sobre as próprias narrativas negativas sem freio do julgamento. O
sujeito da narrativa pretend uma predição por meio dos “e se”, que dão saídas evitativas para
o fato de se tentar, a todo custo, controlar o pensamento, as emoções e tudo que possa fazer
emergir alguma emoção. As tomadas de perspectivas que são utilizadas sempre levam ao
embotamento afetivo. A imagem mental que se gera é de que as emoções vão desencadear
situações negativas. O blending emerge justamente na forma da narrativa que mescla o
presente (se) e o futuro (então), além de ter elementos do passado que indicam sintomas do
trauma, tal como o descontrole emocional. O blending mescla o pensamento avaliativo
negativo com situações catastróficas no futuro, fazendo com que o produtor da narrativa não
consiga diferenciar a realidade da mescla imaginada.
V. Recursão: dá-se novamente como uma viagem no tempo mental, na qual o produtor
se projeta para o futuro, englobando o embotamento afetivo do evento traumatizante do
passado no futuro. A recursão traz emergências mnêmicas mescladas à imaginação,
68
promovendo a atualização do passado no presente e do futuro no presente de forma não
criteriosa. O produtor não julga a veracidade e a realidade da narrativa, apenas narra.
VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
O self que se vê enquanto sujeito da experiência de ter que controlar seus próprios
sentimentos percebe traços de seu autoconceito, “me”, que indicam um descontrole
comportamental em função desses traços. A memoração é uma condição de atualização das
experiências do sujeito, ao embotar as emoções pós-trauma e suas vivências posteriores a esse
evento com subsequente tentativa de manter o embotamento ativo, a fim de evitar reações
comportamentais desenfreadas. Esse relato muito diz a respeito da menor inibição das ações
promovida pela automatização da pretence.
4.2.2 Hiper-responsivos
Narrativa 1: “Nenhum lugar é seguro.”
I. Considerações categoriais– seção 3.1
Condizente com o que encontramos em Orr, Metzger e Pitman (2002) acerca da maior
frequência de sujeitos hiper-responsivos entre aqueles com trauma, é provável que essa
narrativa também indique essa concordância, pois ela denota um sinal de hipervigilância por
parte de seu produtor.
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando a circunstância na qual o trauma
aconteceu e projetando-a para o tempo-lugar presente;
II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado que se instancia enquanto falante de um
discurso;
II.I.III. Percebedor (tu): nós que fazemos a leitura;
II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o objeto do discurso dessa narrativa é justamente o
mundo como um todo. De forma generalizada e globalizante, todo o mundo é tomado como
perigoso e inseguro.
II.II. Atenção: a atenção desse produtor está voltada para a avaliação da circunstância
em que o trauma aconteceu. É lícito, então, que as operações cognitivas tenham esse fato
69
como norteador da narrativa, assim como a própria narrativa acerca desse fato norteie a
atenção para os dados que confirmem o que é dito do mundo no próprio mundo (interno e
externo) do falante.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial: o quantificador “nenhum” faz referência lógica ao
substantivo “lugar” para dizer da insegurança apresentada pelo produtor da narrativa diante de
quaisquer locais em que se encontre. Visto que nossa suspeita é de hiper-responsividade, esse
sujeito deve estar atento a quaisquer sinais que o mundo apresente que denotem insegurança,
mesmo que o dano potencial de tais sinais seja infinitamente menor do que aquele imaginado
pelo produtor em questão;
II.III.II. Estrutura temporal: o verbo “ser” no presente do indicativo diz respeito à
insegurança no momento presente;
II.III.III. Estrutura causal: pelo fato de ter ocorrido um evento que provocou grande
sensação de insegurança no passado, essa narrativa generaliza e projeta esse evento do
passado para quaisquer locais possíveis, tomando-os como inseguros;
II.III.IV. Estrutura psicológica: o que mais chama a atenção em relação à estrutura
psicológica desse produtor, nessa narrativa, são a avaliação e pressuposição negativas
mediadas pela crença de que o mundo é inseguro;
II.IV. Parâmetros: as relações acessadas pelo produtor da narrativa são,
fundamentalmente, as circunstâncias em que o trauma ocorreu e o contexto circunvizinho
atual.
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5
O evento atual de insegurança é tomado como uma continuação de um evento ocorrido
no passado, o trauma. A insegurança experimentada no evento traumático se arrasta ao longo
da vida da pessoa. A experiência do trauma é atualizada e se transforma num processo
traumatizante contínuo ao longo do tempo-espaço, ou seja, se torna um evento globalizante
têmporo-espacialmente falando.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
Nessa narrativa, a pretence pode estar automatizando a mescla da realidade [segura]
com a memória autobiográfica do evento traumatizante [inseguro e danoso], levando a uma
predição de um mundo inseguro no presente vivido. Esse fenômeno pode também ser
70
resultante de altos níveis de fantasias associados a baixos níveis de inibição de pensamentos e
ações, como encontrado nas outras narrativas.
Tal predição inverídica é imaginada por meio de imagens mentais de todos os âmbitos
sensoriais, mantidas na mente consciente com caráter quase perceptual, de forma que a mente
(re)cria, no presente, uma atualização, uma memória perceptual verídica, de um evento
traumatizante do passado. O caráter fenomenológico dessas imagens demonstra um grande
frescor sensorial a ponto do produtor dessa narrativa não diferenciar a imagem mental da
percepção sensorial atual, ou mesmo, corromper a percepção sensorial atual com um caráter
imaginário da memoração. Essa corruptela da informação sensorial pela memoração do
evento traumatizante surge em função do blending fundir emergências sensoriais com
memorações do trauma, emergindo em uma nova informação de insegurança globalizante e
indiscriminada. Pelo fato da memória biográfica está intimamente ligada à narrativa e às
imagens mentais, ela foi acrescentada a este comentário, ao anterior e ao próximo item a
seguir.
V. Recursão: essa operação aqui se mostra, primordialmente, em função de inserção
de memórias de locais inseguros dentro da percepção de locais atuais.
VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
Pelo fato da memória autobiográfica estar intimamente ligada à predição, às imagens
mentais e ao self, ela ocupa um lugar central na psicopatologia da narrativa do trauma. As
memórias intrusivas do evento traumatizante não podem ser vistas apenas como relatos do
evento traumatizante em si, e sim como influenciando todas as construções narrativas
preditivas e imaginárias, além daquelas que dizem respeito às mudanças no self em função do
trauma. Na narrativa 1, o produtor não está enunciando um fato do evento traumatizante em
si, e sim a retomada da insegurança experienciada naquele evento, a qual é projetada no
momento presente como um evento que, por meio da atualização mnêmica imaginária, é
mesclada à realidade e não acabou.
Narrativa 2: “O próximo desastre irá irromper logo.”
I. Considerações categoriais – seção 3.1
Novamente, como na narrativa 1, essa apresenta um produtor hiper-responsivo e
hipervigilante a dados do ambiente que possam indicar um desastre iminente.
71
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando as circunstâncias circunjacentes em
função daquelas nas quais o trauma aconteceu, sendo essas projetadas para o tempo-lugar
presente daquelas;
II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado que se instancia enquanto falante de um
discurso que, por si só, denota toda uma história de vida;
II.I.III. Percebedor (tu): nós, em nossa análise, como abordado anteriormente;
II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o objeto do discurso dessa narrativa é justamente o
mundo e os possíveis sinais de um desastre iminente.
II.II. Atenção: a atenção está direcionada justamente para quaisquer sinais que
informem sobre o próximo desastre que está para “ocorrer logo”. A narrativa direciona a
atenção para tais sinais e a atenção promove a produção de tais narrativas que sinaliza o foco
atencional em questão.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial: ocorre um visível deslocamento do espaço em que o trauma
ocorreu para o espaço atual percebido pelo produtor. Ao mesmo tempo em que o espaço
passado está sendo localizado num possível espaço-tempo de um futuro próximo [“logo”], a
narrativa apresenta uma estrutura espacial de um caminho em que o desastre é iminente;
II.III.II. Estrutura temporal: o tempo aqui é principalmente marcado pela partícula
“logo” que denota brevidade para a ocorrência de algo, nesse caso, “o próximo desastre”. O
verbo ‘ir’ no futuro do presente do indicativo, de fato, leva um evento do passado para ser
atualizado no futuro;
II.III.III. Estrutura causal: a causa da iminência do próximo desastre só pode ser
explicada por leituras causais comprometidas, pois esse narrador, que produz tal narrativa,
não está, de fato, num meio onde a ocorrência de desastres iminentes é provável, visto que ele
deve estar em um ambiente muito mais seguro do que ameaçador;
II.III.IV. Estrutura psicológica: essa narrativa mostra uma iminência de se ter que
decidir algo acerca do próximo desastre. Os focos atencional e perceptivo estão direcionados
para pistas ambientais que digam respeito a esse desastre iminente. A crença é de insegurança
contínua e persistente. A avaliação acerca da circunstância em que ocorreu o trauma atualiza a
narrativa para os sinais do mundo atual que dizem respeito a uma grande probabilidade de um
próximo desastre.
II.IV. Parâmetros: aqui ocorre uma relação do desastre com uma proximidade
72
temporal [“logo”], com uma dada frequência [“próximo”] encadeada e sua ocorrência de
forma precipitada e impetuosa.
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:
III.I. Essa narrativa assume um caráter de eventos discretos no tempo, ou seja, cada
desastre tem ocorrência recorrente, mas com fim e início determinados;
III.II. Cada desastre é um evento situacional no tempo-espaço, portanto, estático;
III.III. Esse evento narrado pode ser visto como local.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
Aqui também a capacidade de distinguir o hipotético do real da pretence está
deficiente, visto que o produtor da narrativa enuncia a certeza de um desastre iminente e
surpreendente em um ambiente de possível segurança. O mundo simulado de “desastre” deixa
de levar em conta o mundo real de segurança. Ocorre uma alteração na discriminação da
realidade em detrimento dos mundos ameaçadores imaginados pelo produtor. Esse mesmo
mecanismo se repete inúmeras vezes em várias de nossas narrativas. Assim como nas
narrativas anteriormente analisadas, também percebemos uma provável alta ativação de
fantasias com baixa inibição de pensamentos negativos e ações, pois esse sujeito apresenta-se
hiperativado para fuga ou luta, ou seja, hiper-reativo.
Assim como Taylor, Carlson e Shawber (2007) relataram que a valência negativa do
conteúdo imaginário em desacordo com conteúdos conscientes poderia contribuir com a
ilusão de atuação independente tanto em crianças com amigos imaginários, quanto em
escritores de ficção, aqui também a alta carga negativa da valência imaginativa pode levar o
produtor a entender que o ambiente atue para lhe fazer mal. O ambiente assume um caráter
intencional contra o produtor da narrativa.
A pretence também capacita a predição a sugerir “e se” alternativo à experiência atual
de segurança. Este “e se” alternativo é justamente aquele da insegurança, da iminência do
desastre. Este “e se” alternativo de insegurança nos dá a possibilidade de criar estratégias
diferentes daquelas vivenciadas anteriormente, no momento do trauma. Tais estratégias
alternativas são aquelas possivelmente protetivas de hiperativação autonômica, ou seja, de
hiper-responsividade. Tais cenários “e se” são, para Boyer (2007), automatizados, ou seja,
fora do controle consciente, assim, também estão de acordo com aqueles que pesquisam as
respostas de sobressalto em traumatizados (McMANIS, et al., 2001; POLE, 2007).
Tal como Morris (2001) demonstrou em relação aos estímulos relacionados ao medo,
73
processados por vias inconscientes, que imagens mentais podem assumir um caráter
transmodal, no qual imagens desencadeadas por uma percepção em um domínio sensorial
desencadeiam imagens mentais em outro(s) domínio(s) sensorial(is), assim também podemos
observar nesses sujeitos hiperativado [arousal] ou hiper-responsivos, em que quaisquer sinais
ambientais podem desencadear a formação de imagens mentais nos mais diversos domínios
sensoriais. Barulhos podem desencadear imagens visuais de perigo; cheiros podem
desencadear a lembrança do rosto de um estuprador, etc. Nessa narrativa, o produtor pode
também, por estar hiperativado, responder dessa forma transmodal relatada por Morris.
O blending está presente e é responsável pela mesclagem deste algo que “irá irromper
logo” com “o desastre” anterior, ou seja, o desastre do trauma. O produtor está mesclando a
memoração imaginativa do evento traumatizante com o “e se” de um evento futuro,
transformando o futuro na emergência de uma hipótese de desastre iminente.
V. Recursão: a recursão, novamente, ocorre na forma de viagem no tempo mental,
donde o produtor insere experiências e memórias autobiográficas passadas nas atuais e nas
futuras, promovendo um julgamento de desastre iminente reiteradamente.
VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
A memoração nessa narrativa é ativada por meio da imaginação recursiva que mescla
as memórias de imagens mentais à percepção atual, emergindo em uma narrativa de
hipervigilância em relação a um possível desastre iminente. O self desse sujeito não apresenta
aparente emergência de descontinuidade ou alterações identitárias, mas sem dúvida ele se
constitui enquanto hipervigilante, um self em perigo constante, um self iminentemente
vulnerável em relação ao ambiente.
A fim de que a análise não fique exaustivamente repetitiva, visto que nós já
mostramos como ela está sendo realizada, vamos passar a uma subseção resumo deste
capítulo que agrupa todas as narrativas por semelhanças.
4.2.3 Análise por agrupamento
I. Considerações categoriais – seção 3.1
Produtores hiporresponsivos: narrativas 10, 11, 25.
Produtores hiper-responsivo: narrativas 1, 2, 7, 8, 9, 30, 31, 36.
Narrativas de difícil avaliação: 3, 4, 5, 6, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23,
74
24, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 34, 35, 37.
II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4
II.I. Domínios:
II.I.I. Contexto: o Quadro 1 mostra as circunstâncias em que a narrativa ocorreu na
coluna “O QUE É AVALIADO”, então todas as narrativas são enunciadas nas circunstâncias
discriminadas naquele Quadro, as quais vão do item 1 ao 23. O Quadro 2 não especifica as
circunstâncias contextuais de enunciação da narrativa e sim a “ESTRATÉGIA
DISFUNCIONAL” adotada pelo sujeito ao avaliar sua produção narrativa;
II.I.II. Produtor (eu): em todas as 37 narrativas, o produtor foi um sujeito vítima de um
trauma violento que desenvolveu sintomas em decorrência da experiência traumatizante;
II.I.III. Percebedor (tu): em todos os casos, somos os analistas das narrativas.
II.II. Direcionamento atencional para:
O direcionamento atencional ocorre para circunstância têmporo-espacial nas
narrativas: 1 e 2;
A atenção direciona-se para o “eu” nas narrativas: 3, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16,
17 e 20;
O foco da atenção nas narrativas é nos outros em: 4, 9, 11, 16, 17, 18 e 19;
Narrativas cujo foco foi expresso por um único tema: foco no casamento, 8; foco no
emprego, 15; foco na vida, 21; foco na casa, 23; foco nos filhos, 22;
As narrativas 11, 16 e 17 têm foco de direção atencional duplo, tanto nos outros
quanto no próprio “eu”.
II.III. Estratos:
II.III.I. Estrutura espacial:
Ocorre um deslocamento da estrutura de aspectos do trauma, situação ou roupas, para
um momento futuro, na narrativa 29. É como se algo que foi realizado de forma semelhante
ao momento do trauma não pudesse mais ser realizado, pois poderá atrair outro evento
traumatizante;
Há um deslocamento de características do local onde ocorreu o trauma para o local
atual nas narrativas 1 e 30. É como se o produtor declarasse que existe algo no ambiente que
denote a ocorrência de um novo evento traumatizante e que, caso ele se previna na
identificação desse algo, ele será capaz de evitar o novo dano traumatizante;
Na narrativa 28, ocorre uma identificação da estrutura espacial local com o evento
traumatizante, situação na qual o produtor figura um possível dano atribuído ao local e não ao
75
evento. É como se o local criasse autonomia e intencionalidade para causar o dano.
Novamente, pode ser que haja uma ilusão de atuação independente do ambiente, assim como
exposto em Taylor, Carlson e Shawber (2007);
Em algumas narrativas, ocorre o deslocamento da situação em que ocorreu o trauma
para a situação atual: 3, 4, 5 e 6;
Em outras narrativas, ocorre o deslocamento do evento traumatizante, localizado no
espaço, para um caminho: 2, 13 e 14;
Narrativas que narram um caminho interno: 24, 25, 26, 27, 31 e 33;
Em apenas uma narrativa, foi evidenciado um caminho externo: 34;
A narrativa 8 faz referência à mudança de uma situação externa para uma situação
pior, que no caso é o casamento. A narrativa 15 diz de uma mudança situacional externa,
assim como acontece nas narrativas 18, 22 e 23. A narrativa 35 faz referência a uma situação
externa, assim como a 36;
A narrativa 7 não faz referência direta à estrutura espacial, mas podemos dizer que, em
algum grau, ocorre uma mudança de estrutura situacional interna, mudança da personalidade.
A 9 também adota esse formato, em que ocorre uma mudança da estrutura situacional interna
de confiabilidade do produtor em relação aos cuidados com as crianças. A narrativa 10 diz de
uma mudança de estrutura situacional interna [“por dentro”]. A narrativa 11 diz de uma
mudança situacional interna e externa. A narrativa 12 diz de mudança situacional interna. A
narrativa 16 apresenta uma situação interna, assim como as narrativas 17, 19, 20, 21, 32 e 37;
II.III.II. Estrutura temporal:
A temporalidade marcada pela conjugação verbal, de forma geral, ou se encontra no
presente do indicativo (1, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20), ou no
futuro do presente do indicativo (2, 8, 21, 22 e 23). De 24 a 37, as narrativas se organizam
com o formato temporal de um tempo no presente marcado pelo infinitivo do verbo e um
tempo no futuro marcado pelo futuro do presente. De forma geral, a temporalidade, ou se
expressa categorizando algo negativo no presente em função do passado (1, 3, 4, 5, 6, 18 e
19), ou categorizando um futuro negativo (2, 8, 20), ou categorizando o presente negativo
caminhando para um futuro negativo (7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 21, 22 e 23), ou unicamente
no presente (16 e 17);
II.III.III. Estrutura causal:
De 24 a 37, temos uma estrutura causal bem delineada, de forma que existe uma
função lógica com algo que deve ser feito no presente para evitar algo ruim no futuro. As
outras narrativas assumem particularidades, tais como as abordadas nas seções 4.2.1 e 4.2.2;
76
II.III.IV. Estrutura psicológica: foi apresentada como “AVALIAÇÕES NEGATIVAS”
pelos autores (EHLERS; CLARK, 2000). A característica mais marcante foi o tom
catastrófico de tais narrativas, geralmente, indicando um evento ruim em si mesmo, no mundo
ou em relação às pessoas em volta do produtor da narrativa. Tais catástrofes, geralmente,
referem-se a um futuro próximo e, muitas vezes, inevitável e repentino, já, outras vezes,
demandando alguma ação presente para evitar o dano num futuro próximo. Ou seja, todas as
narrativas têm um fundo psicológico de vulnerabilidade, como se o sujeito enunciasse “Estou
em perigo!”;
II.IV. Parâmetros: esse item é o mais diverso possível, já que depende da intricada
organização da narrativa e é de difícil agrupamento;
III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5
III.I. Evento discreto: 2, 8, 15, 22 e 23;
Evento contínuo: 1, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20 e 21. Da
narrativa 24 à 37, todas são eventos contínuos pelo caráter contrafactual da narrativa;
III.II. Evento processual: 2, 7, 8, 12, 13, 15, 22 e 23. Da narrativa 24 à 37 existem
processos pelo caráter contrafactual adotado por elas;
Evento situacional: 1, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 14, 16, 17, 18, 19, 20 e 21;
III.III. Evento global: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19 e 21;
Evento local: 7, 8, 9, 10, 14, 15, 20, 22 e 23;
Não ocorreram eventos microlocais. Os eventos enunciados nas narrativas de 24 a 37
têm suas classificações influenciadas pelo tipo de enunciado na segunda parte do
contrafactual e não têm como serem agrupados de forma integral, já que em alguns casos a
junção da primeira com a segunda parte resultará em eventos, ora local, ora global.
IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6
De forma geral, todas as narrativas apresentam alguma atuação imaginativa trazendo
do passado algo que tem a ver com o trauma para o presente ou projetando no futuro um
evento catastrófico. A pretence tem ação preponderante, ao se automatizar, levando à baixa
inibição dos pensamentos intrusivos e ações e, ao mesmo tempo, elevação das fantasias e
pouca diferenciação entre o real e o imaginado. A predição está presente de forma bem
intensa nos contrafacturais do Quadro 2. O blending sempre é responsável pela mesclagem
desses conteúdos têmporo-espacialmente localizados, enquanto a recursão é a responsável
pela inserção de um tempo-espaço noutros ou pela leitura mental.
77
V. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7
A constituição do self fica eminentemente influenciada pela memória do trauma a
ponto de que todas as narrativas [negativas] têm alguma inserção recursiva do evento
traumatizante. O self se constitui desintegrado nas narrativas de hiporresponsivos e sempre
considerando aspectos negativos de seu autoconceito em todas as narrativas. Os aspectos da
memória autobiográfica estão presentes, influenciando a negatividade das narrativas ou vice-
versa.
4.3 Análise global
A natureza do conhecimento humano é definitivamente influenciada pelas
experiências a que nossos corpos são expostos. Quando consideramos a expressão “nossos
corpos”, estamos fazendo referência a toda construção experiencial que se faz presente ao
atuarmos no mundo, visto que precisamos ver para poder enxergar e ouvir para poder falar.
Nossas experiências vão moldando nossos corpos e, por contiguidade, nosso sistema
cognitivo, o qual se prepara para poder superar possíveis dificuldades ambientais e integrar-se
ao meio circunjacente. Essa integração ocorre por meio de emergências adequadas à
adaptatividade e à sobrevivência. Em função das emergências comportamentais, emocionais,
psicofisiológicas e linguageiras, nós atingimos ou não estas adaptatividade e sobrevivência.
No caso dos sujeitos com trauma, esses dois aspectos ficam intensamente comprometidos por
emergências disfuncionais. Chamamos de disfuncionais aqui os dois padrões avaliados por
nós e categorizados em relação aos sujeitos traumatizados, isto é, hipo e hiper-responsividade,
pois, tais padrões levam a prejuízos funcionais desses sujeitos no meio circunjacente, já que
várias funções exercidas antes do trauma são marcadamente prejudicadas, ocasionalmente,
para o resto da vida desses sujeitos. Por meio desta consideração, de que o conhecimento
linguístico iminentemente depende da experiência, parece que a experiência traumatizante
molda esse conhecimento linguístico a ponto dele se organizar, em narrativas, em torno
daquele evento.
Podemos evidenciar, por meio de tais narrativas, significações idiossincráticas, nas
quais o órgão da linguagem opera em consonância com outros sistemas cognitivos para
produzir narrativas cuja natureza demonstra alterações, por exemplo, da pretence, ou melhor,
em sua capacidade de promover a distinção entre o hipotético e o real. O mundo simulado dos
sujeitos traumatizados, automaticamente, deixa de levar em conta o mundo real, produzindo
avaliações negativas a respeito do mundo real que não têm precedente no próprio mundo real
78
e sim no mundo simulado ou no mundo atualizado da memória autobiográfica. Vemos isso
em todas as narrativas coletadas nos Quadros 1 e 2.
De forma geral, ocorrem altos níveis de pensamentos imaginativos catastróficos
associados a baixos níveis de inibição de pensamentos intrusivos e ações. As ações não
refreadas podem ser notadas no sobressalto excessivo e nas reações de fuga, muito presentes
nos hiper-responsivos. Assim como os sintomas conversivos também demonstram ações não
refreadas nos sujeitos hiporresponsivos. Os pensamentos e memórias intrusivos e contínuos
associados às ruminações também são demonstrações de baixos níveis de inibição de
pensamentos de forma geral. As fantasias, então, tomam o palco da consciência e se fazem
self tanto do ponto de vista daquela parte do self que pensa, conhece e age, quanto daquela
parte que constitui o autoconceito.
A predição promovida pela criação de cenários “e se” é de extrema utilidade tanto do
ponto de vista consciente quanto do inconsciente, visto que as últimas são profundamente
estabelecidas em nossos corpos e se tornam automáticas e reflexivas, promovendo estratégias
de enfrentamento rápidas e possivelmente eficazes. Embora as estratégias sejam
inconscientes, os resultados possíveis são conscientemente experimentados pelos sujeitos
traumatizados e podem emergir na forma de narrativas, tais como estas de nossa análise. A
criação de tais cenários possíveis é vista eminentemente nos contrafactuais das narrativas de
24 a 37, mas esse tipo de predição inconsciente e automática pode ser vista em quaisquer
narrativas que promovam ou demonstrem reações de sobressalto ou mesmo conversão.
O frescor sensorial trazido pelas imagens mentais do trauma tem grande função no
automatismo, disfunção, da pretence. Já que a simulação de predições negativas ganha
vividez e reconhecimento quase sensorial pela atualização da memória autobiográfica do
evento traumatizante, a qual é justamente não refreada pelo automatismo da pretence,
fechando e sustentando o ciclo patopsicofisiológico. Todo esse processo é recursivamente
construído, visto que, o pensamento imaginativo é, por definição, pensamento e,
imediatamente, recursivo. Assim, o self destes sujeitos traumatizados recorrentemente se
constitui enquanto hipo ou hiper-responsivo após o evento traumatizante.
79
5 DISCUSSÃO
Gostaríamos de iniciar esse capítulo com a observação de que o conhecimento
emergente nesta dissertação veio a se concretizar como materialização do processo de estudo,
que de longe superou em muito tal materialização. O processo caótico de busca e organização
de informação é muito superior ao que ele deixa emergir, tal como a emergência desse
processo não é a soma de suas partes. Assim também entendemos que acontece com nosso
conhecimento de forma geral e, mais especificamente, com o conhecimento dos sujeitos
traumatizados. Eles deixam emergir apenas a ponta do iceberg de todo um processo caótico
bioquímico, psicofísico e existencial de um ser biopsicossociocultural, tal como o ser humano
é. E tal ponta do iceberg é substancialmente diferente da soma dos processos que a ela deu
origem.
De toda forma, atingimos nosso objetivo de ampliação do modo como entendíamos o
trauma e sua psicopatofisiologia. Hoje, vemos o processo por um olhar da narração e da
cognição como emergências da dinâmica da interação do sistema humano com o meio que o
circunda. Sendo que tais emergências dinamizam-se em torno da imaginação recursiva e suas
alterações, ou melhor, do seu deslocamento da “faixa da normalidade” a que o sistema tende
em pessoas categorizadas como traumatizadas.
Ademais, podemos fazer algumas observações acerca de dificuldades ou problemas
encontrados nesse tipo de trabalho descritivo exploratório, que é dependente de dados de
revisão da literatura, unicamente, não se utilizando de dados produzidos por testes ou mesmo
análise de dados produzidos por um método de coleta direta. Tais dificuldades podem ser
resumidas no parágrafo que se segue.
Nossas narrativas não foram diretamente colhidas por nós, dificultando o processo de
análise, assim como também não coletamos diretamente os dados psicofisiológicos para
cruzar com os dados das narrativas, o que dificultou nosso processo categorial em termos de
quais narrativas provinham definitivamente de sujeitos hipo ou hiper-responsivos. Mais um
ponto a ser considerado é que não sabemos quais eram os padrões cognitivos das pessoas
antes do evento traumatizante e se este padrão primário foi alterado ou não após o trauma.
Diante do exposto, podemos deixar espaço para outro momento, aquele de produção
de dados, ou seja, podemos pensar na montagem de experimentos que promovam a produção
de dados diretamente coletados em interações com sujeitos com sintomas de trauma, que
confirme ou neguem o que foi especulado nesta dissertação.
80
6 CONCLUSÃO
Após um trauma, algumas pessoas desenvolvem um padrão cognitivo,
comportamental, psicofisiológico, emocional e enunciativo de atuar no mundo que as
caracteriza como portadoras de Transtorno de Estresse Pós-traumático. Tais padrões podem
ser categorizados como o que chamamos de hiporresponsividade e hiper-responsividade. Os
hiporresponsivos são aqueles sujeitos que apresentam mais sintomas conversivos,
dissociativos, de embotamento afetivo e de pouca integração do self. Os hiper-responsivos são
aqueles com sintomas de hiperestimulação autonômica, tais como irritabilidade, insônia,
sobressalto excessivo e hipervigilância. Todos os dois grupos apresentam em comum um
conjunto de emergências, que se dão de forma idiossincrática em cada sujeito, e tais
emergências advêm [na [da] consciência] após o evento traumatizante. Tais objetos trauma
relacionados são aqueles considerados pelos sistemas classificatórios diagnósticos, como o
DSM, e são facilmente encontrados na literatura científica sobre o tema trauma. No entanto, a
literatura sobre esse assunto ainda apresenta um olhar ortodoxo e pouco integrativo do
conhecimento científico vigente na atualidade, não levando em consideração formas mais
dinâmicas e inter ou transdisciplinares de entendimento do conhecimento humano.
Parece-nos que a Linguística Cognitiva nos possibilita tal entendimento mais
integrativo e também possibilita um olhar diferenciado sobre o fenômeno do trauma e suas
consequências para a vida psíquica de sujeitos traumatizados. Essa disciplina nos orienta a
concluir, que grande parte das características idiossincráticas comuns aos sujeitos que
vivenciaram um evento traumatizante, ou melhor, grande parte do padrão cognitivo,
comportamental, psicofisiológico, emocional e enunciativo advém da atuação da imaginação
recursiva associada à atualização da memória [memoração] na constituição do self observado
em narrações produzidas por esses sujeitos. Melhor dizendo, pudemos notar que tais padrões
de responsividade, baixa ou aumentada em relação a estímulos internos ou externos adotados
pelos sujeitos traumatizados, têm como subjacências alterações nas operações imaginativas
sustentadas pela recursão, o que leva a um viés de leitura do mundo, dos outros e de si mesmo
[do self] deficiente, ou melhor, disfuncional em relação ao mundo atual vivido observado nas
narrações produzidas por esses sujeitos. Tais sujeitos com sintomas pós-traumáticos passam
a significar o mundo por um viés eminentemente imaginativo [recursivo] catastrófico e
ameaçador.
Para encerrar nossa conclusão, podemos notar que a Linguística Cognitiva, como
representante de um modelo científico integrativo de estudo da cognição humana por meio da
81
linguagem, nos possibilita um entendimento muito mais profundo da forma de conhecimento
humano adotada por sujeitos vítimas de eventos traumatizantes, pois, além de nos permitir a
observação do fenômeno do trauma, ela também nos propicia a explicação dos fenômenos
cognitivos subjacentes às ocorrências fenomenológicas observáveis. Sendo ela, uma forma de
integrar em sistemas complexos ramificados em redes, que interconectam categorias, campos
conceituais e processos de análise, o teor transdisciplinar do conhecimento que recusa
fronteiras delineadas, a fim de promover a construção de uma nova epistemologia que não
responde mais por disciplinas, mas por uma centralidade que coloca o corpo em sua dimensão
mais plural, fundador de todas as formas de conhecimento humano. Portanto, é um modelo a
ser considerado no estudo do trauma e também de outros transtornos da mente.
82
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86
ANEXOS
ANEXO A – CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DO DSM-IV-TR PARA
TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
(continua) A. Exposição a um evento traumático no qual os seguintes quesitos estiveram presentes:
1. A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que
envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçadores, ou uma ameaça à integridade física,
própria ou alheia.
2. A resposta da pessoa envolveu intenso medo, impotência ou horror. Nota: em crianças,
isso pode ser expressado por um comportamento desorganizado ou agitado.
B. O evento traumático é persistentemente revivido em uma (ou mais) das seguintes maneiras.
1. Recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens,
pensamentos ou percepções. Nota: em crianças pequenas, podem ocorrer jogos repetitivos, com
expressão de temas ou aspectos do trauma.
2. Sonhos aflitivos e recorrentes com o evento. Nota: em crianças, podem ocorrer sonhos
amedrontadores sem conteúdo identificável.
3. Agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente (inclui um
sentimento de revivência da experiência, ilusões, alucinações e episódios de flashbacks
dissociativos, inclusive aqueles que ocorrem ao despertar ou quando intoxicado). Nota: em crianças
pequenas, pode ocorrer reencenação específica do trauma.
4. Sofrimento psicológico intenso quando da exposição a indícios internos ou externos que
simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático.
5. Reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos que simbolizam ou
lembram algum aspecto do evento traumático.
C. Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da reatividade geral
(ausente antes do trauma), indicados por três (ou mais) dos seguintes quesitos:
1. Esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas com o
trauma;
2. Esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do
trauma;
3. Incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma;
4. Redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas;
87
(conclusão) 5. Sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas;
6. Faixa de afeto restrita (p. ex., incapacidade de ter sentimentos de carinho);
7. Sentimento de um futuro abreviado (p. ex., não espera ter uma carreira profissional,
casamento, filhos ou um período normal de vida).
D. Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada (ausentes antes do trauma), indicados por dois
(ou mais) dos seguintes quesitos:
1. Dificuldade em conciliar ou manter o sono;
2. Irritabilidade ou surtos de raiva;
3. Dificuldade em concentrar-se;
4. Hipervigilância;
5. Resposta de sobressalto exagerada.
E. A duração da perturbação (sintomas dos critérios B, C e D) é superior a um mês.
F. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social
ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Especificar se:
Agudo: se a duração dos sintomas é inferior a três meses;
Crônico: se a duração dos sintomas é superior a três meses.
Especificar se:
Com início tardio: se o início dos sintomas ocorre pelo menos seis meses após o estressor.
Fonte: SADOCK, 2007, p. 668.
88
ANEXO B – EXAMPLES OF IDIOSYNCRATIC, NEGATIVE APPRAISALS
LEADING TO SENSE OF CURRENT THREAT IN PERSISTENT PTSD
What is appraised? Negative appraisal
Fact that trauma happened ``Nowhere is safe''
``The next disaster will strike soon''
Trauma happened to me ``I attract disaster''
``Others can see that I am a victim''
Behaviour/emotions during trauma ``I deserve that bad things happen to me''
``I cannot cope with stress''
Initial PTSD symptoms
Irritability, anger outbursts
``My personality has changed for the worse''
``My marriage will break up''
``I can't trust myself with my own children''
Emotional numbing ``I'm dead inside'',
``I'll never be able to relate to people again''.
Flashbacks, intrusive recollections and
nightmares
``I'm going mad'', ``I'll never get over this''.
Difficulty concentrating ``My brain has been damaged'', ``I'll lose my job''.
Other people's reactions after trauma
Positive responses
``They think I am too weak to cope on my own''
``I am unable to feel close to anyone''
Negative responses ``Nobody is there for me''
``I cannot rely on other people''
Other consequences of trauma
Physical consequences
``My body is ruined''
``I will never be able to lead a normal life again''
Loss of job, money etc. ``I will lose my children''
``I will be homeless''
Fonte: EHLERS; CLARK, 2000.
89
ANEXO C – EXAMPLES OF APPRAISALS WITH ASSOCIATED
DYSFUNCTIONAL BEHAVIOURAL AND COGNITIVE STRATEGIES
(continua) Appraisal Dysfunctional strategies
If I think about the trauma…
…I will go mad.
…I will fall apart.
…I will lose control and hurt someone.
…I will have a heart attack.
…I will seriously damage my health.
try hard not think about the trauma; keep mind
occupied all the time; control feelings; drink
alcohol/ take drugs.
If I do not control my feelings tightly…
…I will not be able to work and lose my
job.
…I will lose my temper and offend
people.
numb emotions; avoid anything that could cause
negative or positive feelings.
If I do not find out how this event could have
been prevented…
…something similar will happen again.
ruminate about how event could have been
prevented.
If I do not find a way to punish the assailant he
will have won and l will not be a proper man
any longer.
ruminate about how to get even with assailant.
If I go to the site of the event…;
If I wear the same clothes again…
…I will have another accident.
…I will have a nervous breakdown.
avoid site of the event.
avoid wearing similar clothes.
If I do not take extra precaution…
...I will be attacked again
carry weapon; vigilant for dangerous people;
avoid crowded places; make sure to stay close to
exit.
If I do not check the rear mirrors…
…someone will drive into my car again
keep checking mirrors.
90
(conclusão) If I make plans (such as for a holiday)...
…the next awful thing is going to
happen
do not make any plans for the future.
If I see my friends…
…they will ask me about the trauma
and they will think that I am pathetic because
I am still so upset
avoid seeing friends.
If I do things that I used to enjoy...
…I will be punished again.
...I will be reminded of the trauma
and will not be able to cope.
...I will be overwhelmed by emotion.
give up pleasant activities.
If I show my face…
...people will be disgusted because of
my scars.
avoid other people; cover face with hands; heavy
make-up; look down.
If I go to sleep…
...I will have nightmares.
...I will not notice intruders.
stay up until very late.
If I have more stress…
…I will have a heart attack.
...I will have a nervous break-down.
avoid anything that could be stressful.
Fonte: EHLERS; CLARK, 2000.