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DIREITO CIVIL ATUAL

23 de maio de 2016, 10h47

Por Marcel Edvar Simes

Verificamos, na ltima coluna, como o conceito de ao em sentido materialcorresponde, de forma geral, ao conceito de garantia das relaes jurdicas,nos termos em que esse ltimo conceito foi concebido pelo PandectismoGermnico no sculo XIX. Consiste a garantia no conjunto de meios queo ordenamento jurdico confere ao sujeito ativo de uma relao jurdicapara que este possa ver realizadas as suas posies jurdicas subjetivas(oseu direito subjetivo, por exemplo).

Esses meios podem ter extenso variada em cadacaso podem ser muitosos meios,ou um s(o possuidor vtima de esbulho pode, no momentoimediatamente seguinte, optar entre se valer do desforo imediato ouajuizar ao de reintegrao de posse, mas um locador de imvel urbanosomente poder retom-lodo inquilino ajuizando a competente aodedespejo). Independentemente de quaisos meios ou de qual a sua extenso,porm, lcito perguntar: se todos eles podem ser reconduzidos ao conceitounificante de garantia (ou de ao em sentido material), haveria um regimejurdico prprio para esse conceito unificante? Um regime que seria comuma todas as suas espcies? A resposta afirmativa, na medida em que a ao(em sentido material) ela prpria, tambm, uma posio jurdica subjetivaativa da espciepoder formativo.

O conceito de poder formativo (Gestaltungsrecht), em sua formulaoseminal, creditado ao pensamento de Emil Seckel[1], que o v inicialmentecomo direito de formao ou direito de configurao. Ao traduzir Seckelpara o italiano, Chiovenda optou (conscientemente) por traduzirGestaltungsrechtpor direito potestativo, dando origem a uma confuso athoje no totalmente solucionada nos pases de lngua latina que se basearamno mestre daSapienza.

Pontes de Miranda traduz Gestaltungsrechtpara o portugus empregando aexpresso direito formador ] . Mas, no Brasil, assim como na Itlia, acabouse disseminando no meio jurdico, lamentavelmente, o uso do termo direitopotestativopara designar a figura termo esse que duplamente infeliz. Emprimeiro lugar, por repetir a inexatido da traduo de Chiovenda. Em

segundo lugar, na medida em que uma verificao analtica atual revela queo poder formativo , na realidade, uma posio jurdica subjetiva ativaelementar, vale dizer, uma posio jurdica subjetiva ativa quehabitualmente integra um direito subjetivo, aparece dentrodo feixe deposies elementares que forma um direito subjetivo, no constituindo uma

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figura autnoma que esteja ao ladodo direito subjetivo[3]. Prefervel, assim,na atualidade, o termo em portuguspoder formativo, que vem se impondonos escritos de autores mais afeitos preciso cientfica[4].

O poder formativo um poder de carter eminentemente jurdico, atribudoa um sujeito de direito por normas secundrias da espcie normas deproduo (Bobbio[5]) tambm chamadas normas de alterao (Hart[6]) que permite ao seu titular tocar no apenas a prpria a esfera jurdica, masa esfera jurdica de terceiro, nesta realizando a insero, a modificao ou aextino de umaposio jurdica(umpoderou dever). A alterao se faz,portanto, primeira e fundamentalmente no nvel jurdico, e no ftico.

So exemplos do exerccio de poderes formativos geradores a oferta decontrato (artigo 427 do Cdigo Civil) e a aceitao da oferta pelo destinatrio;o exerccio do poder de representao pelo procurador em relao aorepresentado (artigo 116 CC); o poder de opo, dentre outros. So exemplosde poderes formativos modificativos o poder de escolha, nas ditasobrigaes alternativas(artigo 252 CC); o poder do credor de constituir emmora o devedor (artigo 397, pargrafo nico, CC); o poder do devedor deconstituir em mora o credor (artigo 400 CC), dentre outros. So exemplos doexerccio de poderes formativos extintivos o poder de operar compensao(artigo 368 CC); o poder do cnjuge que pede o divrcio direto (artigo 226,pargrafo 6, da Constituio Federal); os poderes de resoluo e de resilionas relaes jurdicas obrigacionais contratuais (artigo 475 CC); os poderesorientados anulao e decretao de nulidade (artigo 166 CC) de negciosjurdicos invlidos; o poder de disposio inserto no direito real depropriedade (artigo 1.228 CC), dentre outros. Como se nota, alguns dessespoderes precisam ser exercidos judicialmente, outros no o que consiste,contudo, em mera vicissitude na vida e no exerccio do poder formativo, nolhe alterando a substncia.

O poder formativo uma das oito posies jurdicas subjetivas elementares,identificadas originalmente pelo gnio de Wesley Newcomb Hohfeld[7]eque receberam depois desenvolvimento magistral na obra de GiuseppeLumia[8]; evidentemente, uma posio jurdica subjetiva elementar ativa,isto , umpoder, que atribudo ao ocupante do polo ativo de uma relaojurdica. A posio jurdica subjetiva elementar passiva que correspectivaao poder formativo recebe o nome de sujeio. Vale dizer: quando, no poloativo de uma relao jurdica, surge a posio jurdicapoder formativo, nopolo passivo dessa relao surge, junto e ao mesmo tempo, a posio jurdicasujeio. Esse par, poder formativo/sujeio, necessrio e indissocivel.

sempre muito revelador, no que tange ao estudo desses pares de posiesjurdicas elementares, iniciar o exame a partir da posio passiva. A sujeiose caracteriza pelo fato de que o seu destinatrio se encontra numa posioem que no precisa fazer nem deixar de fazer coisa alguma a fim depromover a realizao do poder formativo do sujeito ativo, alis, no podefazer nem deixar de fazer coisa alguma para que o poder formativo, umavez exercido, alcance a sua finalidade e realize o interesse do sujeito ativo.S resta ao sujeito passivo que se encontra na posio de sujeio suportaros efeitos do exerccio do poder formativo sobre a sua esfera jurdica,assistindo insero, modificao ou extino de posies jurdicas nessaesfera.

por isso que se pode afirmar, sem receio de errar, que o poder formativo ,de certo modo, como que um poder de dar normasa outra sujeito tornando explcita a razo pela qual esse poder tambm por vezeschamado, na literatura, de competncia. No so to diferentes assim
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(embora sejam diferentes) a competncia de um sujeito de direito deprivado em dar normasa outro sujeito (conferindo, modificando ouextinguindo uma posio jurdica na esfera de outro sujeito) e acompetncia conferida a um rgo pblico legislador (e.g., o parlamento)para editar normas legais (normas legais essas que conferem, modificam ouextinguem posies jurdicas na esfera dos sujeitos em geral na sociedade). Eno por outra razo, o prprio princpio da autonomia privada pode serconcebido como exerccio de um poder formativo, um poder formativo

orientado escolha de categoria jurdica (o que ilumina, sobremaneira, adenominada teoria preceptiva do negcio jurdico, do maior civilista italianodo sculo XX, Emilio Betti[9]).

A ao de direito material , tambm, por tudo o que foi dito, uma posiojurdica subjetiva elementar ativa do tipopoder formativo. Essa percepo jfora alcanada por Chiovenda, ainda que o grande processualista estivesse ase debruar, em seus estudos, sobre a ao em sentido processual.

Ser um poder formativo constitutivo, modificativo ou extintivo? A respostano nos parece nica. Quando se observa o Tratado das Aesde Pontes deMiranda, e se medita acerca dos efeitos que a ao de direito material podeter sobre a esfera jurdica do sujeito passivo, a depender se se trata de aodeclaratria, constitutiva, condenatria, executiva ou mandamental, pode-secontemplar que tais efeitos so ora geradores, ora modificativos oraextintivos de posies jurdicas naquela esfera.

Enquanto poder formativo, a ao tem os traos tpicos dessa posio: i)exerce-se unilateralmente pelo titular; ii) prescinde de comportamento dosujeito passivo para se realizar; iii) habitualmente, consuma-seinstantaneamente no momento em que ultimado o seu exerccio.

Interessante comparar o funcionamento e o modo prprio de ser dos pares

de posies jurdicas elementares pretenso/dever de comportamento epoder formativo/sujeio, para melhor compreenso da natureza da aoem sentido material.

O titular de uma pretenso (Anspruch, na terminologia original empregadapor Windscheid)precisade um comportamento do sujeito passivo para verrealizada, atendida, a sua posio jurdica. Esse comportamento pode sercomissivo ou omissivo, mas deveser adotado pelo sujeito passivo, docontrrio, a pretenso no atinge a sua finalidade, no se realiza, e ointeresse que lhe subjacente no satisfeito (essa a razo pela qual aposio jurdica passiva correspectiva pretenso recebe o nome de dever

de comportamento ou dever comportamental). Ter pretenso poder exigir,e a exigncia claramente dirige-se ao alterde uma forma dependente daresposta desse alter.

Essa dinmica prpria entre pretenso e dever de comportamento no severifica no par formado por poder formativo e sujeio. De fato, ofuncionamento desse par exatamente o inverso: o titular de um poderformativoprescindede qualquer comportamento do seu sujeito passivo, oqual suporta, em sua esfera jurdica, o exerccio daquele poder (no estobrigadoa nada, mas sim sujeitoao exerccio do poder formativo e suasconsequncias).

A ao material, enquanto poder formativo, opera exatamente dessa forma:aquele que se encontra na chamada situao do acionado(polo passivo)apenas suporta os efeitos do exerccio da ao pelo sujeito ativo, o qual irse valer de todos os meios que o ordenamento jurdico lhe confira para verrealizada a impositividade do seu direito subjetivo. O acionado est apenas


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sujeitoao exerccio da ao do sujeito ativo sobre a sua esfera jurdica, querse trate de ao que deva ser canalizada por meio da devida aoprocessual (veja-se o exemplo do bem que, num processo de execuo, retirado do setor patrimonial da esfera jurdica do devedor para serentregue ao credor, em virtude de uma dvida de dar coisa certa), quer setrate da ao do credor de uma dvida de fazer que, em virtude da urgncia,manda terceiro executar o fato custa do devedor, sem autorizao judicial e, portanto, sem ao processual (artigo 249, pargrafo nico, CC).

A ligao entre as posies jurdicaspretensoe ao, porm, necessita demaiores esclarecimentos, assim como se mostra da maior importnciaentender o mecanismo pelo qual se d a canalizao da ao material pormeio da ao processual, envolvendo trs momentos: o de direito material,o de direito pr-processual e o de direito processual (afinal, esse omecanismo que ir ocorrer na maior parte dos casos no Direito brasileirocontemporneo). Esses aspectos sero tratados em nossa prxima coluna.

*Esta coluna produzida pelos membros e convidados daRede de Pesquisa deDireito Civil Contemporneo(USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona,UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[1]SECKEL, Emil.Die Gestaltungsrechte des brgerlichen Rechts. In:Festgabeder Juristischen Gesellschaft zu Berlin zum 50jhrigen Dienstjubilum vonRichard Koch. Berlin: Liebmann, 1903, pp. 205-253. Gestaltcomporta ossignificados em portugus deforma,formao, estrutura, estruturao,organizao, configurao. Devido a essa amplitude de campo semntico,torna-se difcil uma traduo exata, mas, considerando-se que Seckelaceitava o Gestaltungsrechtcomo um verdadeiro direito subjetivo (aindaque diferenciado) com o que, alis, no podemos concordar no atualestgio da cincia jurdica , a traduo mais correta seria direito deconfigurao.

[2]PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. V. Rio de Janeiro:Borsoi, 1955, pp. 300 a 313.[3]Nesse sentido, MONCADA, Lus Cabral.Lies de Direito Civil. 4 ed.Almedina: Coimbra, 1995, pp. 66-69.[4]Cf. TOMASETTI JR, Alcides. Comentrio.RT 723/208-223; PENTEADO,Luciano Camargo.Direito das Coisas. 3 ed. So Paulo: RT, 2014, pp. 179-182.[5]Cf. BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho. Trad. esp.Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Fernando Torres, 1980, pp. 322-328.[6]Cf. HART, Herbert. The Concept of Law. Trad. port. de A. Ribeiro Mendes,O Conceito de Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 105.[7]Cf. HOHFELD, Wesley Newcomb.Fundamental legal conceptions asapplied in judicial reasoning and other legal essays. New Haven: YaleUniversity, 1923.[8]LUMIA, Giuseppe.Lineamenti di teoria e ideologia del diritto. 3 ed.Milano: Giuffr, 1981, pp. 102-123 (traduo em portugus, com adaptaes emodificaes, do captulo atinente Teoria da Relao Jurdica, por AlcidesTomasetti Jr., mimeo, So Paulo, 1999).[9]BETTI, Emilio. Teoria geral do negcio jurdico. Trad. port. de Fernandode Miranda. Coimbra: Coimbra, 1969, pp.168 e ss.

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Marcel Edvar Simes procurador federal, chefe da Procuradoria Federal Especializadajunto ao Ibama em So Paulo, professor de Direito Civil no Instituto de Direito Pblico deSo Paulo (IDP So Paulo) e mestre em Direito Civil pela USP.
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Revista Consultor Jurdico, 23 de maio de 2016, 10h47

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