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FACULDADE MERIDIONAL - IMED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO O DIREITO E O SEU SENTIDO: EXISTE RESPOSTA ADEQUADA (DEMOCRATICAMENTE) EM DIREITO? DIÁLOGO ENTRE CASTANHEIRA NEVES E LENIO STRECK JULIANA GOMES SILVA Passo Fundo, outubro de 2015

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FACULDADE MERIDIONAL - IMED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

O DIREITO E O SEU SENTIDO: EXISTE RESPOSTA ADEQUADA

(DEMOCRATICAMENTE) EM DIREITO? DIÁLOGO ENTRE

CASTANHEIRA NEVES E LENIO STRECK

JULIANA GOMES SILVA

Passo Fundo, outubro de 2015

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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL - IMED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

O DIREITO E O SEU SENTIDO: EXISTE RESPOSTA ADEQUADA

(DEMOCRATICAMENTE) EM DIREITO? DIÁLOGO ENTRE

CASTANHEIRA NEVES E LENIO STRECK

JULIANA GOMES SILVA

Dissertação submetida ao Curso

de Mestrado em Direito do

Complexo de Ensino Superior

Meridional – IMED, como

requisito parcial à obtenção do

Título de Mestre em Direito.

Orientadora: Professora Doutora Angela Araújo da Silveira Espíndola

Passo Fundo, outubro de 2015

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CIP – Catalogação na Publicação

S586d Silva, Juliana Gomes

O direito e seu sentido : existe resposta adequada (democraticamente) em direito? diálogo entre Castanheira Neves e Lenio Streck / Juliana Gomes Silva. – 2015.

150 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Meridional – IMED, Passo Fundo, 2015.

Orientador: Professora Doutora Angela Araújo da Silveira

Espíndola.

1. Direito - Filosofia. 2. Hermenêutica. 3. Democracia. I. Espíndola, Angela Araújo da Silveira, orientadora. II. Título.

CDU: 340.12

Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

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DEDICATÓRIA

Em memória de meus pais, que, na simplicidade, sempre souberam propiciar

respostas adequadas...

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AGRADECIMENTOS

Ao optar por um caminho desconhecido, desafiador e compensador, onde a

recompensa está no fato de termos reconhecido nossos esforços, não podemos

deixar de lembrar e agradecer a todos que embarcaram nesta ousada e incrível

aventura.

Agradeço primeiramente a Deus, pois ouviu minhas preces e carregou-me em

seus braços, permitindo que mantivesse firme em meus propósitos, não deixando

jamais desistir.

Agradeço imensamente à família, pois sem estes os propósitos seriam meros

projetos, não conseguiriam materializar-se. Ao meu pai Luiz e à minha mãe Irma

que estão presentes apenas em espírito, sei o quanto ficariam orgulhosos.

Aos meus amados irmãos: Loraídes, Gilmar, Loreni, Lorenice e Andréia, este

estudo apenas foi possível porque estiveram ao meu lado em todos os momentos.

Agradeço aos dindos Rubem, Gelson e Roveda. Eu não queria outros. À minha

sempre cunhada Beatriz, aos meus sobrinhos Oberdan, Andrielli, Luiz Henrique,

Junior e Bianca.

Ao seu Silvério, que acompanhou todas as vitórias e obstáculos, à Dona Ibraima,

pelas palavras e pela confiança. Aos meus enteados Nathalia Louize e André

Luiz.

À pessoa que canta e encanta meus dias Adamir André, que acreditou e não

mediu esforços para que os sonhos se tornassem realidade, soube entender

minha ausência, minhas limitações e até mesmo meu silêncio. A você, agradeço

pelo bem mais precioso: a nossa Gabi.

Agradeço à minha amada orientadora Angela, pelos ensinamentos, pela

delicadeza e pela leveza com que conduziu o presente estudo. À professora

Jaqueline, pelas preciosas sugestões, que foram de grande valia para o deslinde

do trabalho; ao professor André, a quem é sempre um prazer ouvir; ao professor

Márcio, pela disponibilidade, dedicação e pelas contribuições. Ao professor

Sérgio; ao professor Fausto; à professora Ana Paula; à professora Cecília; à

professora Salete; ao professor Neuro; e ao professor Mauro pelos ensinamentos.

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À Morgana, pelo profissionalismo e dedicação para com os mestrandos.

À querida Maura pela oportunidade. À minha amiga de todas as horas Cris. À

amiga Cinara, pelo profissionalismo, e, por fim, a todos que contribuíram direta ou

indiretamente para realização de um “sonho”, saibam: “sem vocês, nada seria

possível”!

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“São os aventureiros que construíram a história. Aqueles

que lançaram ao mar, mesmos que com instrumentos rudes,

é que descobriram ‘novas terras’. Muitos pereceram na

busca; outros ficaram inacreditados por muito tempo. Todos,

ao final, tiveram a glória de serem os precursores do novo”.

(Prefácio da Obra de Luis Alberto Warat)

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RESUMO

Este estudo se insere na linha de pesquisa “Mecanismos de Efetivação da

Democracia e da Sustentabilidade”, tendo como objeto de pesquisa, à luz das

diversas teorias, a possível resposta adequada em Direito. Delimitou-se como

objetivo geral abordar a crítica hermenêutica do Direito e defender a viabilidade

da resposta adequada à Constituição e à superação do paradigma ora dominante,

o racionalismo. Nesse sentido, os autores base foram Àntonio Castanheira Neves

e Lenio Luiz Streck. Tratou-se sobre o sentido do Direito e crise da jurisdição,

visando-se demonstrar que o paradigma ora dominante (racionalista) não atende

mais aos anseios e à realidade do nosso tempo, exsurgindo, assim, a partir da

compreensão hermenêutica, a questão norteadora do estudo: existe resposta

adequada em Direito? Como forma de responder à indagação proposta, adotou-

se o método dedutivo. Este estudo proporcionou demonstrar a necessidade de

(re)pensar o Direito e possibilitar respostas adequadas em Direito. Conforme

demonstra-se, existem princípios, considerados essenciais para efetivar esse

propósito. Assim, a possibilidade da resposta em Direito será aquela que estiver

adequada à Constituição, para tanto, é imprescindível o paradigma hermenêutico

filosófico, quando o objetivo for efetivar uma nova teoria da interpretação e

aplicação da Constituição.

Palavras-chave: Direito. Hermenêutica. Jurisdição. Resposta adequada.

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ABSTRACT

This study is inserted in the research line "Effective Mechanisms of Democracy

and Sustainability" having as object of research, in the light of different theories,

the possible appropriate response in Law. It was delimited as the general purpose

approach the hermeneutical criticism of Law and defend the viability of the

appropriate response to the Constitution and to the actual dominant paradigm’s

overcoming, the rationalism. In this sense, the authors considered as base were

Antonio Castanheira Neves and Lenio Luiz Streck. The study dealt about the

meaning of Law and about jurisdiction crisis aiming to demonstrate that the current

dominant paradigm (rational) no longer meets the aspirations and reality of our

time, emerging thus from the hermeneutic understanding, the guiding question of

the study: there is appropriate response in Law? In order to answer the question

proposed, we adopted the deductive method. This study provided the opportunity

to demonstrate the need to (re) think the Law and enable appropriate responses in

Law. As demonstrated, there are principles considered essential to realizing this

purpose. Thus, the possibility of a response in Law will be the one that is adequate

to the Constitution, to this end, the philosophical hermeneutic paradigm is

essential, when the objective is to effect a new theory of interpretation and

application of the Constitution.

Keywords: Right. Hermeneutics. Jurisdiction. Appropriate response.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 5

CRISE DA JURISDIÇÃO E O SENTIDO DO DIREITO........................... 5 1.1 A JURISDIÇÃO E SEUS LIMITES ................................................................... 5 1.2 O DIREITO E O SEU SENTIDO ..................................................................... 18 1.3 UM EMBATE ENTRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO ..... 36

CAPÍTULO 2 .................................................................................... 50

TEORIAS PARA UMA INTERPRETAÇÃO: ALÉM/AQUÉM DO ATIVISMO ........................................................................................ 50

2.1 BREVES REFLEXÕES: CONSTITUIÇÃO, DIREITO E DEMOCRACIA ........ 50 2.2 A TEORIA DO DIREITO DIANTE DA INSUFICIÊNCIA DO PARADIGMA DOMINANTE......................................................................................................... 62 2.3 A HERMENÊUTICA PARA ALÉM DO ATIVISMO ......................................... 68

CAPÍTULO 3 .................................................................................... 83

EXISTE RESPOSTA ADEQUADA EM DIREITO? ........................... 83

3.1 BREVES REFLEXÕES: O SENTIDO DA INTERPRETAÇÃO: HEIDEGGER E GADAMER............................................................................................................ 83 3.2 HERMENÊUTICA JURÍDICA NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA ......... 96

3.3 STRECK E A POSSÍVEL RESPOSTA ADEQUADA ................................... 109

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................ 125

REFERÊNCIAS .............................................................................. 132

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INTRODUÇÃO

Ao abordar a crise da jurisdição e o sentido do direito, delimitou-se

como objeto de pesquisa discorrer sobre a possível resposta adequada em

Direito. A relevância incide no direito fundamental democrático à resposta

adequada. Nessa seara, percebe-se que a crise que assola a jurisdição, reflexo

da crise na modernidade, emerge da crise de sentido, o que exige uma nova

forma de aplicar o Direito e consequentemente uma nova forma de compreender

a jurisdição. O Direito evolui, assim como a sociedade, portanto, necessário se faz

a compreensão do sentido dessa ciência jurídica, sendo a compreensão na sua

dimensão hermenêutica.

Nessa esteira, o Direito não pode ser compreendido como estrita

legalidade e a jurisdição atuando meramente na solução de conflitos. O

normativismo-legalista (racionalista) não atende mais aos anseios e à realidade

do nosso tempo, ou seja, estaria superado! Portanto, necessário se faz tratar

“sentido do direito”, o que nos remete à “crise da jurisdição”, nas palavras de

Castanheira Neves, “um diferente sentido do direito implicará correlativamente um

diferente sentido da jurisdição chamada a realizá-lo”.

Em relação ao objetivo institucional, a pesquisa insere-se na área de

concentração “Direito, Democracia e Sustentabilidade” do Programa de Pós-

Graduação em Direito da Faculdade Meridional (PPGD/IMED), a qual “propõe

estudos relacionais entre o Direito, a Democracia e a Sustentabilidade, entendida

como um valor de ordem pública incondicionado, intersubjetivo e intertemporal,

inerente aos direitos e aos deveres fundamentais das gerações presente e futuras

e como princípio informativo das atividades públicas e privadas, contemplando as

dimensões: políticas, jurídicas, éticas, humanas, ambientais, culturais e

socioeconômicas”. A área de concentração deste PPGD propõe, ainda, “discutir

os limites e as possibilidades do Direito e da Democracia na construção de um

desenvolvimento sustentável, por meio do alargamento do espectro de

participação ativa, justa e solidária dos diversos atores sociais, mediante a

compreensão discursiva dos desafios contemporâneos possibilitada pela difusão

da informação e do conhecimento. Aborda os meios de efetivação dos direitos

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pela investigação dos mecanismos (não-) jurisdicionais e da sua imbricação com

as formas de pressão e controle social exercidas nas atuais democracias”1. Desse

modo, considerando que a pesquisa problematiza a crise da jurisdição, propondo

uma reflexão acerca das possibilidades do Direito e da Democracia, o que, ao fim

e ao cabo, impactará necessariamente nas decisões judiciais, entende-se que

pesquisar sobre “o “Sentido do Direito” e a resposta adequada”, é temática

pertinente a área de concentração, restando localizada, em especial, na linha de

pesquisa “Mecanismos de Efetivação da Democracia e da Sustentabilidade”. Não

há como discutir-se ou problematizar o Direito e a democracia a partir da

pluralidade de suas decisões sem desaguar na decisão judicial e tudo que implica

a resposta adequada à Constituição.

Com esse propósito, o objetivo geral consiste em abordar a crítica

hermenêutica do Direito, bem como defender a viabilidade da resposta adequada

à Constituição e a superação do paradigma ora dominante, o racionalismo. Para

tanto, as ações específicas se desdobram em compreender a crise da jurisdição;

analisar o Direito a partir de uma perspectiva pós-positivista para além da

superação do positivismo exegético; identificar o paradigma normativista, o

paradigma funcionalista e o paradigma jurisprudencialista, propostos por

Castanheira Neves, para, a partir daí, sistematizar um sentido do Direito; defender

a resposta adequada a partir de um acesso hermenêutico ao Direito, valendo-se,

em especial, da perspectiva de Lenio Luiz Streck, para quem é preciso afastar o

protagonismo e o decisionismo judicial.

Ao abordar o “sentido do Direito”, e, por consequência a “crise da

jurisdição”, percebe-se que o paradigma ora dominante (racionalista) não atende

mais aos anseios e à realidade do nosso tempo. Dessa forma exsurge a partir da

compreensão hermenêutica a questão norteadora do estudo: existe resposta

adequada em Direito?

A resposta ao questionamento proposto exige um novo olhar

hermenêutico, que leve em conta a historicidade e o tempo; é preciso que a

1 Sobre a área de concentração e as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional, veja-se a apresentação disponível no link http://www.imed.edu.br/Ensino/direito/mestrado/area-de-concentracao.

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decisão judicial se baseie na tradição, e a possível resposta adequada seria

aquela que está adequada à constituição.

No primeiro capítulo, aborda-se a crise da jurisdição e o sentido do

Direito, trazendo à baila a jurisdição e seus limites, o Direito e seu sentido e, por

fim, um embate entre procedimentalismo e substancialismo. A crise que assola o

Direito estende-se à jurisdição, demonstrando a necessidade de constantes

análises que contribuam para novas compreensões sobre a jurisdição, já que o

Direito não é estático, evolui com a sociedade. Assim, sob um viés hermenêutico,

examina-se o “sentido do Direito”. Não obstante, trata-se das divergências

referentes a um modelo constitucional democrático que se fundamenta em

conteúdo substantivo e em procedimentos.

No segundo capítulo, aborda-se as teorias para uma interpretação que

venha a superar o ativismo, adotando uma linha de raciocínio que contribua para

reflexão sobre a Constituição, o Direito e a democracia, pois analisa-se a teoria do

Direito diante da insuficiência do paradigma dominante (racionalista), e aborda-se

a hermenêutica para além/aquém do ativismo. Posteriormente, avaliam-se as

decisões em conformidade com os princípios constitucionais e a implementação

de direitos fundamentais pelo Judiciário, ao qual é atribuído um papel de extrema

importância no Estado democrático de direito.

O terceiro capítulo pretende desvelar a existência da resposta

adequada em Direito, pois, na esfera jurisdicional, existem contradições entre a

prática decisória concreta e a hermenêutica. O que remete aos pensamentos de

Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, culminando na resposta adequada

numa perspectiva democrática, analisada por Lenio Luiz Streck, que sustenta

existir uma resistência da dogmática jurídica à “tese da resposta hermenêutica

adequada”.

Como forma de cumprir com objetivo proposto e a indagação

norteadora da pesquisa, o método de abordagem utilizado foi o dedutivo, o qual

possibilita uma reflexão a partir do geral para o particular. Justifica-se o uso do

método, como aquele que parte das teorias e leis gerais para predizer a

ocorrência dos fenômenos particulares. Nesse sentido, a Constituição contribuiu

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para desvelar o assunto, bem como os estudos (teses, artigos publicados em

periódicos), fontes digitais e demais materiais sobre o tema, tendo-se como

autores base Castanheira Neves e Lenio Luiz Streck.

De posse do material, a técnica de tratamento contemplou análise e

síntese. Primeiramente, organizou-se o material a ser analisado, de acordo com

os objetivos em questão. Posteriormente, aplicou-se o que foi definido na fase

anterior, fazendo leituras do material, fichando-os e realizando o tratamento

analítico.

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CAPÍTULO 1

CRISE DA JURISDIÇÃO E O SENTIDO DO DIREITO

A primeira parte da pesquisa concentra-se na crise que assola o Direito

e, por consequência, a jurisdição, problemática que exige uma nova forma de

aplicar a ciência jurídica e, consequentemente uma nova forma de compreender a

jurisdição. O Direito evolui, assim como a sociedade, portanto, necessário se faz a

compreensão em sua dimensão hermenêutica. Para tanto, é preciso examinar o

“sentido do Direito”, pois não pode ser compreendido como estrita legalidade e a

jurisdição atuando meramente na solução de conflitos. Assim, para refletir sobre a

jurisdição e seus limites, é necessário tratá-la no tempo e no espaço.

Ao abordar a complexidade do tema que envolve a crise do sentido do

Direito, e, por consequência, da jurisdição, adota-se como autor base António

Castanheira Neves, para quem “um diferente sentido do direito implicará

correlativamente um diferente sentido da jurisdição chamada a realizá-lo”. A

reflexão sobre a temática remete à análise das correntes procedimentalistas e

substancialistas.

1.1 A JURISDIÇÃO E SEUS LIMITES

Ao refletir sobre a crise da jurisdição e o sentido do Direito, é

necessário tratá-la no tempo e no espaço. Assim, a partir de um recorte histórico

aborda-se o “sentido do Direito”, e o “sentido da jurisdição”, buscando-se dar

visibilidade à possível ruptura do paradigma ora dominante “racionalista”. Trata-

se, portanto, de demonstrar que é preciso conferir um novo “sentido” para o

Direito, interpretando-o enquanto “alternativa humana”, ou seja, realizar o direito

sobre um novo paradigma, que venha a consolidar o Estado Democrático de

Direito. Dessa forma, neste capítulo, analisa-se a crise que assola o Direito, e, por

consequência, a crise da jurisdição, bem como busca-se a compreensão do

sentido do Direito.

Com o propósito de entender a formação jurídica e os vínculos que

influenciaram o “Direito moderno”, faz-se referência ao sistema e às fontes

europeias, essas com traços que remetem às fontes romanas, todavia, o

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rompimento entre o Direito praticado e o teórico é considerado um traço marcante

da formação jurídica.2

Antes de adentrar na jurisdição e em seus limites, é preciso refletir

sobre o Estado e sua transformação histórica, mesmo que privilegiando o Estado

moderno e as celeumas que envolvem o tema.3

Desde longa data, o perfil do Estado se reflete no modelo de produção do direito e na jurisdição. Seu crescimento está intimamente vinculado à criação - legislativa ou jurisdicional - do direito, revelando o vínculo existente entre Estado e Direito ou entre Poder e Justiça. Nem sempre o direito ou a atividade jurisdicional foram monopólios do Estado, ou melhor, nem sempre a civilização conheceu um Estado, uma vez que este surge apenas na modernidade e só então passou a imprimir uma concepção e valores à jurisdição e ao direito por ele conduzidos. Assumindo a modernidade como marco para o surgimento do Estado (moderno), tem-se que é só a partir de então que se pode falar em uma função nitidamente jurisdicional. Nos primórdios da civilização, antes do direito ser um monopólio estatal, ele era uma manifestação divina, revelado exclusivamente pelos sacerdotes, cuja atividade não pode ser identificada à função jurisdicional, limitando-se, apenas, a legitimar a defesa privada. O surgimento da jurisdição estatal, nesta perspectiva, coincide com a formação do Estado moderno. Ambos - Estado moderno e jurisdição estatal - nascem em oposição à sociedade medieval pluralista, que compreendia diversas fontes de direito e formas de resolução de conflitos, caracterizando-se pela multiplicidade e descentralização do poder.4

Assim, abre-se um adendo para referenciar o conceito e os elementos

do Estado, interpretados por Bonavides como uma necessidade a partir da

convivência humana, como consta nas teorias do Direito natural, que primavam

2 Explica o autor tratar-se de: “[...] uma das tantas distinções marcantes entre o commom law e o direito continental europeu, herdeiro do direito romano-cristão. John H. Merryman lembra que os grandes doutrinadores do cammom law são em geral magistrados, ao passo que, no sistema continental europeu, a doutrina é basicamente obra de teóricos e professores universitários. Esta peculiaridade do chamado sistema escrito, ou civil law, decorre de um importante conjunto de pressupostos culturais, dentre os quais se destacam a formação do Estado na Europa, que plasmou através da doutrina da separação de poderes, com a substituição dos direitos costumeiros medievais pelo direito produzido exclusivamente pelo Estado, inicialmente pelos monarcas, depois pelo Poder Legislativo” SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 35 3 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?) Tese (Doutorado em Direito) Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo: UNISINOS, 2008. p. 93 4 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 94-95

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7

pela organização da liberdade no âmbito social.5 Nessa seara, Ferreira Filho, com

base na doutrina nacional, explica que o Estado é uma associação humana

“povo”, arraigado em base especial “território”, vivendo sob o comando de uma

autoridade “poder”, e sujeita apenas a essa “soberania”.6

Streck e Morais sintetizam alguns parâmetros identificadores,

caracterizando-os, aos quais nominam de “formas estatais pré-modernas”; iniciam

com o “Oriental ou Teocrático” caracterizado como uma forma estatal definida

entre as antigas civilizações do Oriente ou do Mediterrâneo. Neste, a família, a

religião, o Estado e a organização econômica formavam um conjunto interpretado

pelos autores como confuso, pois não havia uma diferenciação aparente.

Consequentemente, não é possível distinguir o pensamento político da religião,

da moral, da filosofia ou de doutrinas econômicas. Dentre as características,

então, centravam-se a natureza unitária, não havendo divisão interior, territorial e

de funções, e, a religiosidade, a autoridade do governante e as normas de

comportamento eram tidas como expressão de um poder divino, configurando,

assim, a estreita “relação Estado/divindade”.7 Em relação à “Pólis Grega”, outra

forma estatal, os autores a caracterizam como: “cidades - Estado, [...] a pólis

como sociedade política de maior expressão, [...]; uma elite (classe política) com

intensa participação nas decisões do Estado nos assuntos públicos”. E, por fim, a

“Civitas Romana”, cujas características assentavam-se na base familiar de

organização; a noção de povo era restrita, e, considerados uma faixa estreita da

população, os magistrados eram tidos como governantes superiores. 8

Assim, de acordo com Streck e Morais:

5 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 11 ed. São Paulo, 2013. p. 40 6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso Direito Constitucional. 39. ed. São Paulo: Saraiva, p. 79 7 “Outras formas estatais da antiguidade [...]: a) não eram Estados nacionais, ou seja, o povo não estava ainda ligado por tradições, lembranças, costumes, língua e cultura, mas por produtos de guerras e conquistas; b) modelo social baseado na separação rígida das classes e no sistema de castas; c) governos marcados pela autocracia ou por monarquias despóticas e o caráter autoritário e teocrático do poder político; d) sistema econômico (produção rural e mercantil) baseado na escravidão; e) profunda influência religiosa”. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria de estado. 7 ed. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2012. p. 23 8 STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria de estado, 2012. p. 23

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[...] é possível afirmar que o Estado é um fenômeno original e histórico de dominação. Cada momento histórico e o correspondente modo de produção (prevalecente) engendram um determinado tipo de Estado. Observe, assim, que o Estado moderno, em sua primeira versão absolutista, nasce das necessidades do capitalismo ascendente, na ultrapassagem do período medieval. Ou seja, o Estado não tem uma continuidade evolutiva, que o levaria ao aperfeiçoamento: são as condições econômicas-sociais que fazem emergir a forma de dominação apta a atender os interesses das classes hegemônicas.9

Nesse sentido é importante destacar que o Estado reflete no modelo de

produção do direito e na jurisdição. Espindola comenta que a jurisdição brasileira,

bem como as demais jurisdições de tradição romano-canônica, ainda apresenta

resistência à tutela preventiva, pautando-se pelo paradigma racionalista, as

ideologias liberais-normativistas e no direito romano tardio. Desse modo, é

preciso avançar na interpretação da lei a partir de uma releitura da doutrina

moderna e das instituições processuais, pois

[...] o conceito romano de jurisdição e a resistência às ações de direito material encontram campo fértil na concepção de direito moderno dos séculos XX e XXI. Concretizar direitos não é apenas reparar lesão a direito material. Tutelar direitos não é aguardar a violação de uma norma jurídica ou simplesmente “dizer” o direito. Não raros são os direitos para os quais a tutela repressiva é inútil ou de escassos efeitos. Propor uma nova atuação jurisdicional por meio da releitura da história das instituições processuais, abandonando a concepção de processo como produto da racionalidade instrumental-procedimental e atentando para a tutela preventiva e para o contraditório diferido ou eventual, coloca-se como um dos desafios para o direito processual civil moderno. Trata-se de revisitar o conceito de jurisdição e o conceito da actio romana, resgatar o conceito de pretensão e direito material, de ações de direito material e de ação de direito processual, investigando as razões históricas e ideológicas da supressão das tutelas preventivas, para, então, propor uma superação do paradigma dominante sob a luz do tempo do direito. Tudo isso orientado pela busca do sentido do direito e da jurisdição chamada a realizá-lo. Esquivar-se desse desafio equivale a permanecer cúmplice da defasagem espacial e temporal; é contribuir para a objetificação do direito processual civil na tradição romano-canônica.10

9 STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria de estado, 2012. p. 28 10 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 62-65

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Em âmbito histórico, Silva delimita como marco significativo no século

XVII os sistemas filosóficos diferentes entre si, os quais se submetiam ao princípio

racionalista11. Assim, unidos por elementos comuns, sendo denominados de

“comunidade científica”, processo no qual eram vistos como responsáveis por

concretizar um conjunto de objetivos e formar sucessores, daí falar-se em quebra

de paradigmas para efetivar um progresso científico, mesmo que a criação do

mundo jurídico, tão presente na atual concepção do Direito, tenha sido uma

consequência do racionalismo. Todavia, essa percepção não precisa se perpetuar

como verdade.12

A crítica do autor busca demonstrar a necessidade de afastar o Direito

do racionalismo, acompanhando as transformações sociais e políticas ocorridas

no século XX, principalmente o direito processual. Para tanto, é imprescindível

recuperar sua historicidade, rompendo com dogmas, e introduzi-lo no domínio das

ciências da compreensão, tornando ineficaz sua utilização como instrumento do

“Poder”.13

De acordo com Castanheira Neves, “é vocação do judicium exorcizar o

poder só como poder e mais ainda a força arbitrária impondo razões de validade e

críticas à ação na interação, e o nosso tempo, que tem feito experiências cruéis

[...] desse poder [...]”. Infere o autor que se o tempo atual deve ser um tempo de

transformações em todos os domínios, não é de causar estranheza que a

compreensão e a valorização do “poder jurisdicional”, da jurisdição e do papel do

11 Exemplificando a assertiva: “Grotius considerava a verdade, tanto na matemática quanto na ética e no direito natural, tão permanente e eterna que nem mesmo Deus poderia transformá-la, Spinoza, ao contrário, sustentava que o Direito definia-se pelo poder, e a justiça ou injustiça de uma determinada ação somente seriam pensáveis dentro de um Estado, sendo uma consciência do exercício de decidir o que é bom e o que é mau”. SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 73 12 “O direito processual moderno, como disciplina abstrata, que não depende da experiência, mas de definições, integra o paradigma que no mantém presos ao racionalismo, especialmente ao Iluminismo, que a História encarregou-se de sepultar. Esta é a herança que temos de exorcizar, se quisermos libertar de seu jugo o Direito Processual Civil, tornando-o o instrumento a serviço de uma autêntica democracia. É ela a responsável pela suposta neutralidade dos juristas e de sua ciência, que, por isso, acabam permeáveis às ideologias dominantes, sustentáculos do sistema, a que eles servem, convencidos de estarem a fazer ciência pura”. SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 73-79 13 SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 73-79

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juiz, se encontram em discussão, justificando a necessidade se acompanhar a

modernidade.14

É como se o próprio apelo e importância atribuídos a jurisdição em geral viesse a revelar na jurisdição existente a falta da jurisdição para que se apela. E, então, se são diversos os problemas que assim se suscitam e se multiplicam, agudos e complexos, fundamental é reconhecer que, importantes embora os problemas estruturais, o decisivo é todavia o problema do sentido, do sentido da jurisdição hoje. Por isso se fala, e bem, de crise do juiz, de crise da justiça. 15

De fato, a separação entre teoria e prática resultou em conquistas às

classes dominantes, no momento em que “[...] sujeitaram os magistrados aos

desígnios do poder, impondo-lhes a condição de servos da lei”. Não obstante,

ainda, foi concentrada a produção do Direito no nível legislativo, não

reconhecendo aos juízes “[...] a menor possibilidade de sua produção judicial [...]”.

Visavam alcançar, assim, a utopia do racionalismo, a certeza do Direito, “[...]

soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento de

sua aplicação jurisdicional, pudesse torná-lo controverso e, portanto, incerto”,

ideologia testemunhada pelas cortes de cassação europeias.16

Referindo-se ao poder judicial e à sua função, Castanheira Neves

revela que a jurisdição é considerada um tema a ser debatido, devido aos

problemas no universo jurídico atual, os quais não se restringem ao âmbito estrito,

projetando-se a muitas dimensões no “mundo global”.17

Nesse contexto, Streck acredita ser pertinente algumas questões,

dentre elas:

[...] como é possível que juízes (constitucionais ou não), não eleitos pelo voto popular, possam controlar e anular leis elaboradas por um poder eleito para tal e aplicadas por um Poder

14 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 1 15 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 2 16 SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 36 17 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 1

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Executivo também eleito? O princípio da maioria pode ceder espaço para a supremacia da Constituição que estabelece, em seu texto, formas de controle sobre a assim denominada “liberdade de conformação do legislador”?18

As referidas questões, segundo o autor, provocam discussões

relacionadas ao Estado Democrático de Direito, à Justiça Constitucional e ao seu

papel.19 Este precisa ser analisado confrontando-se “[...] os poderes do Estado,

seus limites através da jurisdição constitucional e as condições de possibilidade

do exercício da assim denominada ‘liberdade de conformação do legislador’.20

Não é equivocado, desse modo, afirmar que a possibilidade de atuação

do legislador é menor quando estão presentes os direitos de liberdade.

Entretanto, “[...] quando se trata de liberdades econômicas, de mercado, ou de

prestações sociais (políticas públicas), o leque de opções legislativas (e do Poder

Executivo) é nitidamente maior [...]”. Todavia, “[...] não significa que os atos

legislativos e de governo não tenham que estar conformados com o texto da

Constituição e sua materialidade”.21 Portanto, verifica-se uma tensão entre

jurisdição e legislação, com o surgimento do paradigma do Estado Democrático

de Direito.22

Streck entende que é preciso dar a devida importância às discussões

que envolvem o tipo de justiça constitucional.

18 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 115 19 “O que importa ressaltar, desde logo, é que a experiência de inúmeras nações tem apontado para o fato de que o Estado Democrático de Direito não pode funcionar sem uma justiça constitucional. Guardadas as especificidades dos vários países, a justiça constitucional é condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, questão que vem à tona desde o momento em que se passa a entender que as normas constitucionais são normas dotadas de eficácia, quando se abandona o conceito de Constituição no seu sentido meramente formal e programático.” STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 115 20 Segundo Canotilho: “[...] a doutrina constitucional procurou, através de medidas (princípios) jurídico-constitucionais – princípio do excesso, princípio da exigibilidade, princípio da proporcionalidade e princípio da adequação – alicerçar um controle jurídico-constitucional da liberdade de conformação do legislador e (mais concretamente no campo da Constituição dirigente) situar constitucionalmente o espaço de prognose legislativa”. STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 116-117 21 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 116-117 22 Explicado por Streck, no seguinte sentido: “[...] O juiz constitucional aplica certamente direito; mas a aplicação deste direito acarreta consigo necessariamente que aquele que a faz proceda a valorações políticas”. STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. p. 118

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[...] encarregada de realizar o controle da constitucionalidade do ordenamento jurídico de cada país. O deslocamento do polo de tensão relacionado à clássica questão da divisão-separação de Poderes recebe, destarte, uma nova concepção a partir do estabelecimento de tribunais que não fazem parte – stricto sensu – da cúpula do Poder Judiciário, trazendo consigo, em sua estruturação, a efetiva participação do Poder Legislativo.23

Busca-se, ainda com base em Streck, situar a evolução do contexto até

o Estado Democrático de Direito, passando pelo Estado liberal e o Estado social.

No Estado liberal, “[...] o Direito tinha a função ordenadora e fixadora das bases

da legislação para se contrapor ao antigo regime e tudo o que ele representava.

Para essa tarefa, havia que se superar o jusnaturalismo”.24 Após a segunda-

guerra, tem origem um novo Estado de Direito, cuja preocupação centrava-se nos

direitos fundamentais e na democracia, estes, segundo Streck, “[...] sustentáculos

desse novo modelo, donde não pode haver retrocesso”. 25

Verifica-se que houve um constante e evolutivo processo até que de

fato se assentasse a legitimidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de

Direito, ao qual é atribuída a função de resguardar os direitos sociais-

fundamentais e a democracia. Passando a ser “[...] a condição de possibilidade do

23 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 118 24 “O triunfo da vontade geral traz ínsito um deslocamento da esfera de tensão e poder do Executivo (que representava o absolutismo) para a vontade popular-revolucionária (representada no Legislativo) que triunfou. Sem qualquer legitimidade, o Judiciário é colocado à margem desse processo. A própria noção de Constituição não assume lugar cimeiro no velho continente, porque tratava do público, em tempos de triunfo do privado. A relevância estava no Código Civil, e não no texto constitucional. A crise desse modelo liberal engendra a necessidade de alterações no papel do Estado e do Direito. Do problemático absenteísmo exigia-se um Estado que impedisse a revolução que poderia surgir da incapacidade do liberalismo em gerar uma sociedade que compatibilizasse progresso com distribuição de renda e justiça social. É o cenário próprio para o aparecimento do Estado de feição intervencionista, onde o polo de tensão do poder desloca-se em direção ao Executivo. Afinal, para realizar políticas públicas corretivas, era necessário um Estado forte e de um Direito apto a albergar os (necessários) atos promovedores de tais políticas [...]. Muda a feição do Estado; altera-se a feição do Direito (e das Constituições).” STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 124 25 “Por isso, para utilizar uma linguagem hermenêutica, é possível dizer que a noção de Estado Democrático de Direito que a tradição nos legou é um existencial. Qualquer problematização que se pretenda elaborar acerca da democracia e do agir dos agentes sociais se dará neste espaço, onde ocorre o sentido do Direito e da democracia. O Estado Democrático de Direito é, assim, um “desde-já-sempre”, condicionando nosso agir-no-mundo, porque faz parte de nosso modo de-ser-no-mundo. O Estado Democrático de Direito não é algo separado de nós. Como ente disponível, é alcançado pré-ontologicamente. Ele se dá como um acontecer. Nesse sentido, é possível dizer que o agir jurídico-político dos atores sociais encarregados institucionalmente de efetivar políticas públicas (lato sensu) acontece nessa manifestação prévia, onde já existe um processo de compreensão.” STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 124-125

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agir legítimo de uma instância encarregada até mesmo – no limite – para viabilizar

políticas públicas decorrentes de inconstitucionalidades por omissão [...]”.26

Para compreensão da formação jurídica, apresenta-se uma delimitação

efetuada por Ferreira Filho, para quem:

O Estado contemporâneo ocidental juridicamente se estrutura em obediência ao princípio da separação, ou divisão de poderes, conforme a sua versão clássica, dada por Montesquieu n’ O espírito das leis. Distinguem-se nele, pois três poderes, ou seja, três grupos de órgãos independentes, cada qual exercendo, com relativa exclusividade, uma função distinta por sua natureza das demais. O último desses três poderes seria o Judiciário, incumbido da função jurisdicional. Ou seja, da função de fazer justiça.27

Silva enfatiza a importância de constituir o Direito como instrumento

democrático que contribua com uma visão do fenômeno jurídico, contemplando a

dimensão hermenêutica e atribuindo-lhe a natureza de ciência da compreensão.28

Visualizam-se questões pertinentes a situar o jurista no tempo29

presente, quando abrange o Direito, segundo Espindola:

Há que se dar vazão ao processo histórico e cultural da (r)evolução do direito e consequentemente, à superação (ou pelo menos à conscientização) de uma crise paradigmática na qual se insere o direito hoje. Uma crise que envolve não só o pensamento jurídico e os compromissos jurídicos, mas também o modelo de produção do direito. O direito é pensado por meio de conceitos,

26 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 125-126 27 “Na verdade, é difícil compreender como se pode sustentar que, em sua substância, seja a função jurisdicional distinta da função executiva. O único ponto por que uma pode ser distinguida da outra é o modo de execução da lei que obedece o Judiciário. De fato, esta aplica a lei contenciosamente, isto é, com a possibilidade rigorosamente garantida de debate entre as partes interessadas no litígio. Abre-se perante ele sempre a possibilidade do contraditório, permitindo-se a todos os que serão afetados pela decisão fazerem ouvir suas razões, seus argumentos. E em razão dessa garantia que fazer presumir o acerto da decisão, ela goza de uma forma de imutabilidade – a coisa julgada. O modo, porém, não muda a natureza da função. Embora o faça contenciosamente, o juiz sempre está executando, dando aplicação à lei”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 28 SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 37 29 “A sociedade contemporânea está em rápida e permanente transformação, fato este que requer do jurista a consciência de que apenas “será sujeito da construção do tempo histórico, se tiver a capacidade de decidir, a partir de outra configuração temporal”. A sociedade é complexa, e, portanto, fazem-se necessárias, teorias igualmente complexas para enfrentar essa complexidade, os paradoxos e os riscos que passam a emergir. Reconstruir o Direito, tornando-o efetivo, é uma tarefa que pode ser iniciada mediante a observação do tempo”. ROCHA, Leonel Severo. Tempo e constituição. In: COUTINHO, Jacinto Nelson; MORAIS, José Luis Bolzan de; STRECK, Lenio Luiz. Estudos constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 216.

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desconsiderando que, na verdade, o direito existe nos fatos, na riqueza dos fatos.30

Portanto, a reflexão sobre os percursos lógicos, tidos como soluções

incontestes para solucionar conflitos jurídicos, os quais fazem parte do Direito

precisam ser revistos31. Silva menciona filósofos32 do século XVII que

representaram esse ideário, bem como seus representantes, que contribuíram

para o abandono do exame dos casos concretos, justificado pela complexidade

de que se revestem, ou seja, o abandono da realidade social.33

30 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 37 31 Na opinião de Faria: “[...] os cursos jurídicos, tradicionalmente reconhecidos como os mais aptos a veicular uma “cultura técnica legítima”, isto é, a inculca-la e a reproduzi-la num universo profissional específico, condenam os estudantes a uma (in)formação burocrática, incapaz de perceber e captar as razões dos conflitos e das tensões sociais. Ao mesmo tempo, esses cursos também cristalizam e reproduzem com propósitos hegemônicos um contraditório conjunto de crenças, juízos éticos, proposições científicas, justificações e saberes acumulados, expresso por meio de disciplinas específicas letigimadas por discursos produzidos pelos tribunais e institucionalizados pelas práticas jurídicas travadas em seu interior. Por esses motivos, um ensino jurídico desse tipo termina por atribuir significações arbitrárias da realidade social, projetando-as imaginariamente como possíveis e desejáveis, ainda que nem sempre factíveis, plasmando-as em discursos reificantes, a-históricos e com pretensões de generalidade. Em vez de: (a) apresentar os institutos jurídicos a partir das suas raízes no processo das relações; (b) identificar a existências de múltiplas formas estatais e para-estatais de resolução dos conflitos inter-pessoais e coletivos; (c) constatar a emergência de novos atores dispostos a atuar na mediação formal e informal das relações sociais, esse tipo de ensino jurídico limita-se – e o faz de modo nada inocente ou ingênuo – a: (a) valorizar uma abordagem sistemática e lógico-dedutiva; (b) privilegiar o princípio da autoridade; (c) importar, para dentro das faculdades de direito, o habitus profissional dos “juristas de oficio” com a finalidade de valorizá-lo como um “capital de conhecimento” capaz de distinguir os atores jurídicos formalmente aptos a operar os códigos e as leis dos atores “profanos” (os sociológicos, os cientistas sociais, os políticos, os burocratas, os rábulas, etc.); e (d) desprezar a riqueza da experiência cotidiana. Uma experiência fundamental pois revela, como afirma Hesphana, “a conflituosidade entre os paradigmas da prática e do discurso dos juristas acadêmicos, em contraposição com os dos juristas práticos; ou (o paradigma) do establishment do foro em confronto com o paradigma dos jovens magistrados e advogados; daí que os modelos de legitimação das práticas (e dos discursos) jurídicas não sejam o produto do consenso, mas antes de lutas pelo poder no seio do campo profissional; lutas em que cada grupo procura impor um paradigma que aumente o seu capital político dentro desse campo, reduzindo (ou excluindo) o poder dos concorrentes; assim, à luta pela reprodução do seu papel global de árbitros das relações sociais coma-se a tensão entre os vários paradigmas de efetivar essa arbitragem”. FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992. p. 92-93 32 Leibniz e Locke reproduzida por Savigny. 33 É preciso reconhecer o empenho de Savigny “[...] em aproximar o ensino do Direito da experiência dos tribunais [...] sua recomendação de que o jurista se mantenha atento às diversidades dos casos individuais, porém o instrumento apropriado para examiná-los haverá de obedecer à metodologia matemática, único critério capaz de conseguir a tão sonhada ‘integridade material’ do sistema, com expurgo da retórica forense, ciência de segunda classe, que apenas serviria, segundo a ideologia da segurança, para tornar inseguro o Direito. É visível a presença de Leibniz e especialmente de Locke no pensamento de Savigny.” SILVA, Processo e ideologia: o

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De acordo com Silva, é preciso revelar o compromisso do “Direito

Processual Civil com o Racionalismo”, especificamente as repercussões do

Direito processual civil formado na tradição romano-canônica, devido ao seu

componente ideológico.34 Na concepção de Espindola, “os avanços e as

contribuições do Iluminismo e do Racionalismo para a humanidade são inegáveis.

No entanto, resta saber se esse padrão epistemológico atende às expectativas

forjadas já nos séculos XX e XXI, períodos de mudanças em vários setores”. 35

Isso tudo suscita questionamentos relacionados à crença da separação

de poderes, da neutralidade do juiz, o princípio da segurança jurídica e a teoria

das fontes serem suficientes para atender às necessidades sociais de um novo

período, e ainda sobre,

[...] a sistemática do processo civil contribuiu para a realização do direito, para a emergência do direito enquanto direito no contexto das sociedades de massas? A certeza e a segurança foram (são) aspirações da Ciência Moderna. No entanto, os direitos sofrem mutações: os direitos, antes de natureza eminentemente privada, à luz do individualismo, desdobram-se em direitos sociais. Trata-se do cenário do desvelamento dos novos direitos, que passam a exigir um novo tipo de comportamento da ciência processual. Sejam aqueles direitos individuais, sejam os novos direitos, mais especialmente estes, o transcurso do tempo do processo passa a atingi-los fatalmente, exigindo uma cobertura judicial urgente. Um novo contexto se apresenta: o padrão epistemológico do direito processual civil precisa mudar substancialmente para adequar-se às novas exigências da sociedade, sob pena de perecer vitimado pelo ceticismo e insucesso. Há que se ir além da tutela jurisdicional ordinária, repressiva, reparadora. [...] A autonomia do direito processual civil foi levada muito a sério, edificando um sistema processual que não se relaciona com o direito e com o sentido do direito. O insucesso desta fórmula fez surgir inúmeros esforços intelectuais que culminaram com a perspectiva instrumentalista do processo, idealizando-se um processo de resultados, que acabou abrindo, de certo modo, espaço para a construção das tutelas jurisdicionais diferenciadas – uma alternativa ao processo ordinário. 36

paradigma racionalista, 2004. p. 38-39 34 SILVA, Processo e ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 57 35 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 62-63 36 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil

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O discurso jurídico não pode mover-se autossuficientemente num

universo hermeticamente fechado do direito vigente. É preciso se manter aberto a

argumentos pragmáticos, éticos e morais que transparecem no processo de

legislação e são enfeixados na pretensão de legitimidade de normas do Direito. A

correção de decisões judiciais mede-se pelo preenchimento de condições

comunicativas da argumentação que tornam possíveis uma formação imparcial do

juízo. Todavia, a problemática é a indeterminação do processo do discurso; as

condições procedimentais para argumentações em geral não são suficientemente

seletivas para obter uma única decisão correta.37 Daí a necessidade de se

aproximar da compreensão hermenêutica para minimizar os limites do

Judiciário.38

Já que o Judiciário se vê entre demandas e respostas, Faria argumenta

sobre paradigmas científicos e sociais cujos postulados, princípios e categorias,

no modelo processual brasileiro, se expressam pela unidade de jurisdição,

[...] juiz monocrático de primeiro grau, processo civil condicionado à iniciativa de uma parte, respeito à congruência entre o pedido e a sentença, tipicidade dos atos processuais, duplo grau de jurisdição, igualdade das partes, participação pelo contraditório e exigência do julgamento legal e não da equidade dos casos concretos, têm sido cada vez mais erodidos pelas crescentes contradições socioeconômicas dessas sociedades: afinal, para ajustar-se a situações cada vez mais tensas e explosivas, nas quais os tradicionais conflitos entre cidadãos versus cidadãos e cidadãos versus Estado vão sendo substituídos - em grau de importância e de impacto para a ordem social - pelos novos conflitos entre cidadãos versus conglomerados econômicos e entre os próprios interesses do capital entre si, a dogmática jurídica vai sendo obrigada a assumir tarefas com dimensões ignoradas pelo liberalismo político que a inspirou.39

do estado democrático de direito?), 2008. p. 63-64 37 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 287-288 38 Como bem assinala Faria: “Diante da realidade atual da América Latina (e com especial atenção para o Brasil), em cuja sociedades os movimentos sociais lutam por aprofundar o conteúdo democrático dos regimes recém-saídos do autoritarismo burocrático-militar, ambas concepções de direito têm enfrentado dificuldades para afirmar-se hegemonicamente na formação dos atores jurídicos e na determinação de seu “estilo” de atuação e do alcance de seu papel como mediadores privilegiados dos conflitos sociais.” FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992. 39 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 82-83

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A dogmática jurídica, algumas vezes, acaba substituindo o “caráter

tecnicista, o estilo generalizador e o ideário individualista dos códigos tradicionais

por soluções metaindividuais – o que não só contribui para desorganizar a

estrutura formal do ordenamento vigente”. Comprometendo a ideologia da

independência judicial tradicional, a separação entre o Direito e a política entre a

política e a economia, entre a legalidade e a justiça. 40

Assim, a efetividade do Direito precisa ser examinada dentro de uma

perspectiva mais ampla, principalmente quando o objetivo buscado é a

estabilidade jurídica e as reformas sociais. Enquanto houver tentativas frustradas

de assegurar o que constitucionalmente é garantido de forma igualitária, não

haverá efetividade do direito, pois os privilégios contribuem para gerar inúmeros

conflitos, demonstrando, assim, a importância da interpretação hermenêutica a

partir da Constituição. Nessa seara, necessário se faz romper a concepção

individualista e produzir um novo “sentido de ordem”, e, por conseguinte, um novo

sentido ao Direito.41

Ao mencionar a crise do sentido do Direito e por consequência da

jurisdição, bem como as formas de interpretar e compreender a jurisdição, é

possível observar que, tanto a jurisdição como a legislação era interpretada como

função soberana do Estado, à legislação cabia estabelecer as normas e à

jurisdição executá-las.

Dessa forma, ao refletir sobre a jurisdição e seus limites, aproxima-se

da necessidade de mudança de paradigma que convirjam para efetivação de

novos métodos de interpretação, contribuam para o Direito assumir sua dimensão

40 “Afinal, desde a sua criação na primeira metade do século XIX, as faculdades brasileiras de direito – a exemplo de outras que se foram estabelecendo na América Latina – sempre utilizaram paradigmas muito específicos de Ciência do Direito, apresentando-os sob os rótulos vagos e ambíguos de “humanismo” e “profissionalismo”, estruturando-os a partir das cátedras de direito civil, desenvolvendo-os a partir de uma “teoria geral” de caráter individualista e privatista e limitando-se a atuar como simples “escolas de legalidade”, isto é: como escolas formadoras não só dos manipuladores técnicos das instituições jurídicas, mas dos próprios quadros burocráticos do aparelho estatal. Essa ideia de paradigma tem aqui um significado bastante preciso e específico, implicando uma teoria básica, uma matriz disciplinar e algumas aplicações exemplares amplamente aceitas pelos cientistas, ao ponto de suspenderem o esforço crítico de discussão de seus pressupostos e de suas possíveis alternativas substitutivas”. FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 83-84 41 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 107

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hermenêutica. Trata-se de adotar novas formas de compreensão, que visem à

superação do Direito, sendo este não apenas um sistema de regras, mas

compreendido no plano da hermenêutica, atribuindo antes da compreensão a

antecipação de seu sentido.

Nesse contexto, revela-se essencial os papéis da jurisdição, do poder

judicial e o papel do juiz na concretização dos direitos fundamentais e na prática

democrática ao exercício da cidadania.

Para tanto, a compreensão e/ou a interpretação do Direito deve estar

adequada a Constituição, consolidando, assim, o Estado Democrático de Direito.

1.2 O DIREITO E O SEU SENTIDO

Ao tratar sobre o sentido do Direito42, visa-se construir um caminho que

contribua para sua autorreflexão institucionalizada, bem como para sua aplicação

e aperfeiçoamento, levando-se em consideração que “a finalidade dos meios

jurídicos consiste inicialmente em buscar decisões corretas, e por isso, justas, no

interesse das partes, através da revisão das decisões promulgadas”.43

Nesse sentido, inicia-se examinando os modelos de jurisdição em

Castanheira Neves, o normativismo-legalista, que, segundo o autor, estaria

superado, e um novo modelo seria necessário para esse fim.

Trata-se de um modelo que traz a perspectiva individualista do modelo

liberal, onde se constituiu uma compreensão voltada para a autonomia humana,

portanto, percebe-se que, do século XVI ao século XVIII, ocorre uma ruptura da

42 “O que é isto – o Direito? Com esta pergunta enunciamos um impasse fundamental: a determinação do conceito de Direito. Esse impasse cruza a história; está na base da construção das mais diversas instituições jurídicas e modela o modo como os seres humanos compreendem e interpretam o fenômeno jurídico. Trata-se, portanto, de uma questão extremamente complexa, porque é exatamente pela antecipação que fazemos do sentido do Direito (ou seja, um projeto significativo em torno daquilo que se pode entender por Direito numa perspectiva global) que dependerá o modo como o direito efetivamente será articulado nas questões particulares que são trazidas pelo cotidiano. Dito de outro modo, é da compreensão que se tem do todo Direito que se projetará os sentidos das demandas resolvidas na concretude do tempo presente. STRECK, Lenio Luiz. O direito como um conceito interpretativo. Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 2, p. 500-513, jul./dez. 2010. 43 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 294

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forma “teológica-metafísico-cultural transcendente”, que passa a ser

fundamentado por meio da razão e da liberdade.44

Liberdade que no Estado Moderno foi conquistada a partir dos ideais

do Estado Liberal, pois no Estado Absoluto cabia aos senhores feudais exercer o

poder político, jurídico, administrativo, legislativo, as regras eram impostas e as

decisões centralizadas no poder do soberano.45 Enquanto, no Estado liberal

firmavam-se os direitos, a separação das funções legislativas, executivas e

judiciárias, proporcionando a fluidez da lei, da legalidade e da igualdade.46

Fazendo-se uma correlação em relação à segurança jurídica, percebe-

se que esta não existia no Estado absoluto, ganhando espaço a partir do Estado

liberal.47 Em relação ao Estado social, a ordem jurídica, constitucional e

democrática corporifica-se, no momento em que as políticas estatais voltam-se à

harmonização das relações sociais e a segurança do cidadão.48 Assim, a

trajetória evolutiva do Estado moderno contribuiu para configuração de um Estado

Democrático de Direito, o qual exige “uma harmonização entre a racionalidade

jurídica e a racionalidade técnica”49

Desse modo, o normativismo-legalista possui um ingrediente próprio na

medida em que o homem tem um entendimento subjetivo entre o Direito e a

sociedade, ainda, “afirmava-se a secularização e a emancipação do econômico,

especialmente em relação aos quadros ético-religiosos”. Portanto, o “domínio da

práxis social era o domínio dos interesses, expressão da prática da liberdade”,

44 CASTANHEIRA NEVES, A. O papel do jurista no nosso tempo. Digesta: escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Lisboa: Coimbra Editora, 1995. p. 15 45 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 191 46 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 110 47 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, 2003. p. 110 48 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, 2013. p. 184-187 49 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 107

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que teve como consequência a “emergência do individualismo moderno iluminista

e do racionalismo”.50

Nessa seara o racionalismo consiste em “expressão ratio moderna

deixa de ser ontológico-metafísico-hermenêutica como a razão clássica e se volve

na razão autofundamentante nos seus axiomas”, da mesma forma,

“sistematicamente dedutiva nos seus desenvolvimentos – a razão cartesiana”.51

O positivismo “pretende apenas ser lógica, método, sistema e assim

manter-se respeitosamente distante das valorações, dos efeitos míticos e políticos

da sua própria prática social”. Percebe-se então, que a “ciência jurídica imuniza-

se contra a filosofia, a sociologia e a ciência política”.52

Denota-se, portanto, nessa perspectiva positivista, que o Direito foi

concebido para uma existência dissociada das outras ciências, como se bastasse

em si mesmo, e que nele mesmo encontraria respostas necessárias ao seu

funcionamento e aplicação, mantendo-se, assim, fechado a uma evolução

histórica.

Para tanto, a razão liberal mostrou “o Direito como um sistema

autossuficiente de preceitos legislativos, emanados da vontade soberana do

Estado, que miticamente se autolimita pela lei que ele mesmo cria”. Cabe

mencionar que o “liberalismo inaugura, um espaço imaginário, que permite

subtrair simultaneamente ao Estado e ao Direito, sua dimensão política

reduzindo-o a um cálculo de possibilidades racionais, com esquecimento das

condições da sua existência histórica”. 53

50 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Uma resposta culturalmente humana a um problema também humano: a crise da jurisdição e a emergência do Direito como plataforma civilizacional. In: TRINDADE, André Karam; ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira; BOFF, Salete Oro. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional. Passo Fundo: IMED Editora, 2013. p. 271 51 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 15 52 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. p. 104 53 WARAT, Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade, 1995. p. 128

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Nas palavras de Ovídio Baptista Silva, o “racionalismo procurou

transformar o Direito numa ciência lógica, tão exata e demonstrável como uma

equação algébrica”.54 Constata-se então, a imagem da ciência hermeticamente

fechada, oriunda unicamente de uma concepção do Estado que o cria e o limita,

e, dessa forma, transforma-o em um dado matemático.

Segundo Dworkin, “as proposições de Direito não são meras

descrições da história jurídica, de maneira inequívoca, nem são simplesmente

valorativas, em algum sentido dissociado da história jurídica”. Mas sim,

“interpretativas da história jurídica, que combina tanto elementos da descrição

quanto valoração”. 55

O Direito não pode dissociar-se da história e dos elementos de

valoração, pois não é um dado matemático, lógico, mais do que isso, é uma

ciência da compreensão que deve analisar, compreender e interpretar o próprio

sentido do Direto.

Enquanto os conceitos do direito romano servem, durante a modernidade, para definir as liberdades negativas dos cidadãos, para garantir a propriedade e o intercâmbio econômico das pessoas privadas contra intromissões de um poder político exercido administrativamente, do qual eles estavam excluídos, a linguagem da ética e da retórica conserva a imagem de uma prática política, na qual se realizam as liberdades positivas de cidadãos que participam em igualdade de condições.56

Para Espindola, “o Direito é, portanto, caracterizador de certa forma de

vida – de certa cultura ou civilização –, apresentando-se apenas como uma

possibilidade, e não como uma necessidade – a ser assumida”. 57 O Direito pode,

portanto, ser caracterizado pela forma vivenciada, pela cultura ou civilização,

deixando de certa forma de ser “necessário” para ser somente possível.

O normativismo-legalista pressupõe um modelo superado, dessa

forma, é apresentado “sob outras roupagens: pela restauração do liberalismo

54 SILVA, Processo e Ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 24 55 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 219 56 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 331 57 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional, 2013. p. 252

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radical, pelo pensamento jurídico analítico ou como alerta Castanheira Neves,

pelo funcionalismo sistêmico”. 58

Portanto, o normativismo-legalista, caracterizado pelo individualismo do

modelo liberal iluminista, compreendido pela autonomia humana, e perspectivado

perante um mero legalismo, não atende às perspectivas e aos anseios da

convivência comunitária na contemporaneidade, possibilitando, assim, a ruptura

de um a paradigma que parece estar superado, por um “novo paradigma” que

possibilite a “realização do Direito pelo Direito!”.59

Diferentemente do modelo normativista-legalista, cuja referência era o

individualismo, a perspectiva do funcionalismo jurídico versa sobre a sociedade.

Segundo Castanheira Neves,

[...] trata-se de um sistema funcional ou pensado funcionalmente que funcionaliza todos os seus elementos e as suas dimensões. E nesta o próprio direito-também ele funcionalizado à estruturação, à regulação e à organização operatória global da sociedade, numa consequente perda de autonomia intencional e material, pois que se converte num instrumento, de particulares características prescritivas e institucionais, ao serviço das exigências provindas das instâncias e das forças políticas ou simplesmente sociais, culturais, econômicas.60

Constata-se que o funcionalismo jurídico é um sistema que a tudo

funcionaliza, e o Direito não fica alheio a essa funcionalização, eis que faz parte

de um todo, servindo como instrumento da política, perdendo, assim, sua

autonomia.

Sendo assim, “trata-se da político-socialização do Direito que teve as

suas mais próximas determinações em duas linhas diferentes, mas também

convergentes”. A primeira é a política e refere-se ao “aparecimento do Welfare

State, do Estado-Providência, a outra diretamente social e tem a ver com a

58 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional, 2013. p. 270 59 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 15 60 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 16-17

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emergência social enquanto o campo e o critério de todos os problemas

humanos”, nas palavras de Castanheira Neves61 “do nascimento à sobrevivência,

portanto, cabe à sociedade resolvê-los, e ao Estado enquanto ‘Estado de direitos

sociais’ por meio do desenvolvimento econômico e social há de garantir e a que

tudo se funcionaliza”.

O aparecimento do Estado como Welfare está relacionado a um

processo histórico, e, nas palavras de Streck, “pode-se dizer que ele acompanha

o desenvolvimento do projeto liberal transformado em Estado do Bem-Estar

Social”. Dessa forma, ocorre a passagem do Estado Mínimo para o Estado

Intervencionista.62

Neste sentido, abandonou-se o modelo no qual as relações eram

reguladas pelo mercado, mantendo-se o Estado somente como ente fiscalizador,

assumindo, assim, o próprio Estado, a titularidade da obrigação de prover as

necessidades de bem-estar social.

Percebe-se que a legislação é um instrumento jurídico, mas

diferentemente do que ocorria na função normativa-legalista que buscava “a

garantia dos direitos e da segurança jurídica”, tornou-se “instrumento da própria

acção política”, ou seja, “passou a governar-se com leis”.63

Para tanto, importante se faz diferenciar a racionalidade finalística

(formal), da racionalidade axiológica (material). A primeira é adotada pelo

funcionalismo jurídico, que se preocupa somente como a forma e não com seu

conteúdo, trata-se de um modelo funcionalista que busca a funcionalidade e

eficiência, agindo como instrumento da política, dessa forma, pode-se dizer que

tem finalidades externas ao Direito.

61 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 17 62 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. 63 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 17

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Portanto, “a decisão judicial, na concepção funcional do Direito, é vista

como a realização de uma estratégia político-social, teleologicamente

programada. É a decisão-solução enquanto momento tático”.64

Constata-se então, que, por essa característica teleológica, a decisão

judicial já está programada, para atingir um fim determinado.

Portanto, como bem alerta Castanheira Neves, “o Direito é, afinal,

puramente política no funcionalismo político; simplesmente tecnologia ou

administração no funcionalismo social e econômico.”65 Dessa forma, “o

funcionalismo jurídico não envolve as funções que o Direito exerce na sociedade,

mas, as funções que se pretende realizar através dele”. 66

Depreende-se que o funcionalismo está presente nas mais diversas

áreas, na política, na administração, na econômica e no jurídico, sendo assim, o

funcionalismo jurídico, por meio da política, a tudo instrumentaliza, a seu favor e

na medida dos seus próprios interesses. Passa, portanto, de uma linha que

valoriza o bem, o justo e torna-se uma linha que busca a utilidade e a eficiência.

A segunda linha, denominada racionalidade axiológica (material),

preocupa-se com o conteúdo sem desprezar a forma de alcançá-lo. No entanto, a

mudança do “pensamento clássico para o pensamento moderno faz com que as

categorias da ação e do comportamento em geral não mais sejam as do bem, do

justo, da validade (axiológica-material), e sim as do útil, da funcionalidade, da

eficiência”.67

Infere-se que essa passagem da racionalidade axiológica para a

racionalidade finalística causou um engessamento dos valores em relação aos

fins e dos fundamentos em relação aos resultados.

64 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 65 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 66 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 67 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 272

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Para Espindola,

[...] é preciso compreender que a emergência do Direito enquanto direito impõe assumir o caráter hermenêutico do Direito e também um questionamento da jurisdição e do papel do juiz, não há todavia como trilhar esse caminho, nesta quadra da história sem superar a ideia da funcionalização do Direito e da jurisdição. 68

Portanto, o Direito como a jurisdição tornando-se instrumento da

política, perde seu sentido, pode-se dizer sua autonomia. Dessa forma, “[...] não

se pode permitir que os mesmos se funcionalizem, ou seja, que sejam

manipulados a serviço de estratégias de poder utilizadas pelos governos para

implementar políticas”. 69

Contudo, o funcionalismo jurídico é um modelo que trata o Direito como

instrumento político, pode-se dizer, aplicado a finalidades externas ao direito,

podendo levar assim a arbitrariedade. Dessa forma, o direito perde seu “sentido”,

bem com sua autonomia e passa a ser um instrumento dissociado da sua

finalidade. Percebe-se, então, a necessidade de tratarmos um novo modelo,

permitindo, assim, a realização do Direito.

Por fim, tem-se o último modelo de jurisdição desenvolvido por

Castanheira Neves, o jurisprudencialismo. Contraponto entre o normativismo-

legalista e funcionalismo jurídico, trazendo uma nova perspectiva:

[...] do homem (do homem-pessoa), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com sua normatividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao serviço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concreta, prática dinamizada pelas controvérsias também pratico-concretas, mas cuja intencionalidade capital é a realização nessa prática e através dela, como básica condição mediadora, do homem-pessoa convivente e assim do homem no seu “direito” e no “seu dever ou na sua responsabilidade”. 70

68 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 69 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 70 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 18

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Percebe-se que, nesse modelo, o homem (pessoa) assume papel

fundamental, resgatando-se a convivência do homem com seu direito, e se o

homem possui direitos, também há de possuir deveres.

Para Espindola, a perspectiva da jurisdição adota uma postura em que

o homem precisa se recompreender, e reconhecer-se não somente na sua

individualidade, mas um reconhecimento comunitário da própria pessoa e de sua

dignidade ética.

Nessa perspectiva, uma concepção da jurisdição, da função judicial e do papel do juiz passa, necessariamente pela recompreensão do próprio homem, de seus compromissos, passa pelo reconhecimento comunitário da pessoa e da sua dignidade ética, mas também assume implicações normativas, consequentes dessa recompreensão e reconhecimento. 71

Diante dessa nova forma de ver o Direito, é necessário que o homem

assuma um papel diferente ao que vem desempenhando na sua relação com a

sociedade, e posteriormente o juiz, na sua atuação jurisdicional, abandone o

modelo tradicional de uma aplicação automática, aritmética da lei ao caso

concreto.

Assim, o jurisprudencialismo assume o paradigma da jurisdição centrado no juízo e não na subsunção lógico-dedutivista ou na simples decisão arbitrária. Juízo esse que não se identifica com qualquer raciocínio lógico, mas que antes, realiza o sentido prático de julgar. É um juízo de ponderação pratica, de índole pratico-argumentativa, que assume como critérios fundamentos- ou seja, um juízo que, mediante uma ponderação argumentativa racionalmente orientada, convoca posições divergentes e conduz a uma solução comunicativamente fundada [...] Trata-se portanto de juízos axiológico-normativamente críticos sobre o objeto problemático de resolução, cuja principal função social está na afirmação de valores em seu concreto cumprimento. Assim para o jurisprudencialismo, a perspectiva legalista é imanente e o seu tempo é o presente (não o passado, como na perspectiva legalista, nem no futuro, como na perspectiva funcionalista), sendo indispensável o juiz e a sua responsabilidade ética de projeção comunitária. 72

71 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 257 72 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 276-277

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Nessa postura, do homem e do juiz, o denominado sentido prático de

julgar corresponde a uma decisão fundamentada em juízos de valor – reitere-se,

não somente a aplicação da lei – mas essa aplicação associada a uma análise

acurada e próxima da situação concreta, busca-se, então, nessa perspectiva, a

responsabilidade ética de uma projeção comunitária, o Direito como ciência da

compreensão.

Vivencia, seguindo o pensamento de Castanheira Neves, um “apelo à

razão contra a atávica irracionalidade”. Nesse contexto, ao mencionarmos a crise

que assola o Direito e, por consequência, a jurisdição, percebe-se que esta crítica

refere-se à “falta de jurisdição para que se apela”.73

De qualquer sorte, “[...] a crise não traduz apenas o negativo

circunstancial, a quebra anómica que se sofre e lamenta, mas, sobretudo, a

consumação histórico-cultural de um sistema, a perda contextual de sentido das

referências até então regulativas [...]”. Percebe-se que a referida crise envolve a

efetiva dificuldade de compreensão na identificação das normas e valores que se

deve seguir. É nesse contexto que o paradigma ora dominante parece estar

esgotado, “[...] o paradigma que vigora esgotou-se, um novo paradigma se exige.

Portanto, “o essencial dos sistemas e dos paradigmas não está na sua estrutura,

mas no seu sentido: a estrutura organiza e permite, mas só o sentido funda e

constitutivamente sustenta”.74

Nesse cenário, percebe-se que são vários os fenômenos que acabam

por afirmar que o normativismo-legalista (racionalismo) e/ou positivismo jurídico

estaria superado, dentre os quais é possível mencionar os problemas estruturais

ou externos, entretanto, o problema considerado decisivo para Castanheira Neves

seria o problema intencional ou interno, que se refere ao problema do sentido.

É preciso demonstrar a impossibilidade de “compreendermos hoje o

Direito pela perspectiva exclusiva de um estrito legalismo”. No entanto, não se

73 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 74, 1998. p. 1-2 74 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,1998. p. 2-3

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pode afirmar que o legalismo “esteja de todo abandonado e não se tenha como

uma referência comum e um modo da juridicidade ainda concorrente ou

alternativo”. Mas é certo que “[...] são muitos já os fenômenos da sua superação e

com directa repercussão nas tarefas da função jurisdicional”. Segundo o autor, o

“positivismo jurídico está definitivamente morto devemos dar substância a uma

razão jurídica alargada (LENOBLE)”. 75

Constata-se que o paradigma ora dominante se restringe ao aspecto

formal da norma e acaba por desmerecer seu conteúdo ou sua substância,

acarretando uma frustração aos expectadores que recorrem ao Direito como

forma de terem seus direitos garantidos, assegurados e principalmente

interpretados de forma adequada.

Para Espindola, “uma jurisdição eminentemente repressiva, e

reparadora não atende ao sentido do Direito [...]. O Direito não é algo em geral e

abstrato, mas é substância, é valor. Não basta reparar a lesão a direitos ou a

violação a direitos, mas é preciso preveni-las”. 76

Percebe-se que existe, por parte dos juristas, a “reprodução de um

senso comum. Oculta-se o sentido do Direito, “transformando os juristas em

mitlaufer jurídicos, que, incapazes de criar um Direito, reproduzem receitas de um

Direito sem sentido (e sem tempo) ou, pior, de um Direito funcionalizado,

instrumento do poder ou de governo”. 77

Portanto, os magistrados tornaram-se mero reprodutores de um Direito

funcionalizado, instrumento que atua por meio da política, um direito sem sentido

e em desacordo com nosso tempo.

Baptista Silva menciona:

75 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 4 76 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Uma resposta culturalmente humana a um problema também humano: a crise da jurisdição e a emergência do Direito como plataforma civilizacional. In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional., 2013. p. 259 77 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 259

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Com a separação entre a teoria e prática, as classes dominantes conseguiram dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desígnios do poder, impondo-lhes a condição de servos da lei; (b), ao concentrar a produção do Direito ao nível legislativo, sem que aos juízes fosse reconhecida a menor possiblidade de sua produção judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcançar a certeza do Direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento da sua aplicação jurisdicional, pudesse torná-lo controverso e portanto incerto.78

Segundo o autor, a separação que ocorreu entre a teoria e a prática

acabou sujeitando os juízes como mero servos da lei, bem como, ao transferir ao

Legislativo a produção do Direito na tentativa de alcançar a “certeza do Direito”,

impossibilitou a produção judicial, pode-se dizer, vivenciamos um direito movido

pelas incertezas, meramente legalista e sem qualquer interpretação.

Portanto, ao mencionarmos a superação do paradigma ora dominante,

necessário se faz abordar os fenômenos que consideram sua superação:

a) “A recuperação da autonomia normativo-intencional do direito

perante a legalidade (a mera legalidade), através de uma renovada

distinção entre iue lex”. Esse fenômeno vem a comprovar a falta de

autonomia do direito face a estrita legalidade, bem como a distinção

entre o Direito e a lei por meio de dois polos principais. “[...] o

primeiro pólo é o actual reconhecimento da separação dos ‘direitos’”

(direitos fundamentais, especificamente) em relação a lei e da

preferência jurídica perante esta”. Enquanto o segundo é a “[...]

reafirmação de direitos fundamentais, como projecção dos

proclamados ‘direitos do homem’”.

b) o segundo fenômeno diz respeito aos “limites normativos-jurídicos

da lei, ao abrirem um espaço que só a jurisdição na sua realização

concreta do direito, em necessária intenção normativamente

constituenda, pode preencher”. 79

78 SILVA, Processo e Ideologia: o paradigma racionalista, 2004. p. 36 79 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 5-7

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Tais fenômenos comprovam a superação do paradigma dominante, o

primeiro demonstra a necessidade da recuperação da autonomia do Direito, que

acabou sendo obstaculizado pelo legalismo. O segundo, por sua vez, trata dos

limites normativos da lei que busca a efetiva realização do Direito.

Contudo, nos dias atuais, marcados por um tempo de constantes

mudanças, e na tentativa de superar um modelo de jurisdição que não atende à

realidade e aos anseios jurídicos, econômicos, sociais e culturais, paradigma ora

dominante normativista-legalista ou racionalista, bem como um modelo que a tudo

funcionalizou, sendo este o funcionalismo jurídico, necessário se faz, a ruptura

de um paradigma que encontra-se superado, possibilitando, assim, à jurisdição

não somente a atribuição de uma função repressiva, reparatória e individualista,

mas, sob outra perspectiva, pode-se dizer coletiva e preventiva. Busca-se,

portanto, a realização do “Direito pelo Direito”, a qual seria então, a possível

solução para a concretização de direitos e a consolidação do Estado

Democrático.

De fato o sentido do Direito implica um diferente sentido da jurisdição.

Nas palavras de Castanheira Neves: “[...] pensar o sentido da jurisdição é pensar

a sua relação ao direito (juris-dictio): um diferente sentido do direito implicará

correlativamente um diferente sentido da jurisdição chamada a realizá-lo”. Para

tanto, “[...] é fundamental ter presente a impossibilidade de compreendermos hoje

o direito pela perspectiva exclusiva de um estrito legalismo”. 80

Compreender o sentido da ciência jurídica é compreender a existência

do próprio homem, sua dimensão histórica, cultural e social. Trata-se, portanto, de

um sentido que “[...] se postulam valores [...], da dignidade humana, da liberdade,

da igualdade, da comunitária participação e da responsabilidade social”. Tais

valores, pode-se dizer, são “[...] dimensões analíticas da humanidade do homem,

80 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 4

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ou daquela humanitas em que afirma o autêntico ‘reconhecimento do homem pelo

homem’”.81

O sentido da jurisdição não pode ser compreendido pela estrita

legalidade, tampouco pelo modelo que a tudo funcionaliza - o funcionalismo

jurídico, onde se preocupa somente com a forma, ou seja, com o procedimento,

desmerecendo seu conteúdo e/ou a substância. Pelo contrário, compreender o

sentido do direito é interpretar seu conteúdo por meio da hermenêutica. É realizar

o Direito pelo Direito!

[...] significa que o direito tem uma carga axiológica que o homem assume como sujeito-objeto. O direito, portanto, não é apenas uma ordem com estrutura, funções, notas caracterizadoras e efeitos observáveis. Apenas estes não desvelam o Direito. Tampouco a referência Estado (a estadualidade) é necessária ou suficiente para reconhecer-se o Direito. O direito tem um sentido, que importa compreender. Daí falar-se que tem sentido a pergunta pelo sentido do Direito! 82

Dessa forma, é impossível compreender o Direito tão somente pela

ordem com sua estrutura e funções, eis que ele vai muito além dessa perspectiva.

Reconhecê-lo é compreender que o Direito tem um sentido próprio, e sua

compreensão é o desafio do nosso tempo.

Assim, é preciso primeiramente compreender a situação e posicionar-se perante ela abandonando as formas dogmáticas de pensar e superando a ideia de que é possível entender algo isolando-o de outras coisas. A questão é: o Direito não carece de método, e portanto, não se associa as ciências exatas, como pretendera o cientificismo moderno. Ao contrário o direito pretende as ciências da compreensão e não se pode negar a sua dimensão hermenêutica.83

Percebe-se que o Direito não pode ser compreendido somente pela

perspectiva dogmática, tampouco pode ser dissociado da realidade do nosso

tempo, no entanto, pertence à dimensão hermenêutica, pois sustenta a ciência da

81 CASTANHEIRA NEVES, Digesta: escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 1995. p. 222 82 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Uma resposta culturalmente humana a um problema também humano: a crise da jurisdição e a emergência do Direito como plataforma civilizacional. In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional., 2013. p. 253-254 83 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 253

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compreensão. E este é o grande desafio do nosso tempo! Dar sentido ao “direito”

o que nos remete ao “sentido da jurisdição”.

Visualizando uma alternativa para o Direito, Castanheira Neves traz

uma perspectiva histórica, na qual “o Direito é só uma resposta possível para um

problema necessário”, dessa forma, [...] “o Direito só será uma solução possível”

desde que se confirme algumas condições denominada pelo autor condições

“constitutivas emergente do Direito”.84

Assim, as condições constitutivas emergentes do Direito dependem

“[...] de que o homem se assuma como sujeito ético mediante o seu próprio

reconhecimento como pessoa [...]”. Nesse contexto, “as duas primeiras

condições não dependem do homem-são expressões ‘naturais’ da existência

humana no mundo”, entretanto, a terceira condição “já depende dele, pois é

função de como o homem se compreenda e reconheça-sendo certo que não se

trata agora de realidade, mas de valor”. 85

Ao mencionar as condições constitutivas do Direito, percebe-se que o

homem deve reconhecer-se como pessoa, levando em conta o seu caráter ético.

É a compreensão do homem pelo “valor”, entretanto, somente a terceira condição

depende do homem, as duas primeiras dizem respeito à própria existência

humana.

Para Espindola:

O direito é, portanto caracterizador de certa forma de vida – de certa cultura ou civilização-, apresentando-se apenas como uma possibilidade, e não como uma necessidade – a ser assumida. A decisão pelo Direito, segundo o pensamento de Castanheira Neves, é a decisão pela instauração do humano como pessoa. Portanto, tem-se que o Direito não é qualquer institucionalização, mas a institucionalização de certa índole, na qual o homem se reconhece não apenas como o destinatário, mas verdadeiramente como o sujeito do Direito. Trata-se, portanto, de uma alternativa humana, nos termos de Castanheira Neves. O que implica na

84 CASTANHEIRA NEVES, Digesta: escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 1995. p. 299 85 CASTANHEIRA NEVES, Digesta: escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 1995. p. 299

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conclusão de que o Direito é, parafraseando Hannah Arendt, “o direito ao direito”. 86

Nesse contexto, o Direito representa uma forma de vida, de cultura,

expondo-se apenas como uma possibilidade e não como necessidade. Tem-se a

referência do humano como pessoa, que se reconhece como sujeito do Direito, o

qual passa a ser uma alternativa humana.

Comenta Espindola:

O direito é uma “resposta culturalmente humana” ao problema também humano “da convivência no mesmo mundo e num certo espaço histórico-social”; ele não é um dado, mas antes, é “constituído por exigências humano-sociais particulares” e, portanto, sua validade é continuamente constituída pela práxis, pois o direito é, diferentemente convocado e, nessa convocação, problematizado pelo homem concreto que vive e comunitariamente convive os acontecimentos práticos (volvidos em casos e acontecimentos práticos) da inter-acção histórico social”. Desse modo, o “Direito é, na verdade, a alternativa humana nesta nossa circunstância, em que ele já pode ser concebido como alternativa”. 87

Nesse sentido, sendo o Direito uma possível solução para os

problemas humanos, que emergem por meio de casos práticos, e de seu contexto

histórico social, o Direito passa a referir-se como uma alternativa humana.

Cabe mencionar que a crise que incide sobre o Direito (ceticismo e

dogmatismo) põe “em risco o próprio homem e sua cultura, na medida em que,

não sendo necessário [...], pode deixar de ser assumido e afirmado como a

resposta para o problema universal da convivência”. 88

Nesse sentido, ao percebermos o Direito como alternativa, estamos, de

certa forma, abandonando-o, e esse abandono reflete também o contexto

histórico e cultural da convivência comunitária.

86 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Uma resposta culturalmente humana a um problema também humano: a crise da jurisdição e a emergência do Direito como plataforma civilizacional. In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional, 2013. p. 252-253 87 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 253 88 ESPINDOLA, In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF, (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade, 2013. p. 254-255

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Segundo Castanheira Neves:

E não somente por que há sempre duas maneiras de construir uma estrada- para usarmos o impressivo símile de ALBERTO MORAVIA. Uma maneira humana, aquele que vê na estrada um instrumento de valor muito relativo ao serviço do homem que, por isso mesmo, haverá de adaptar-se `a paisagem humana em que vai ser implantada, sem sacrificar não apenas as comunidades instaladas na região, mas as próprias aquisições estéticas e os monumentos e ruínas da história; outra a maneira racional ou da violência – pois, diz MORAVIA, “o único meio verdadeiramente racional é a violência” -, aquele que se vê projectado da estrada um fim em si procurará construí-la “do modo mais rápido, mais rectilíneo e mais expedito que seja possível sem considerar seja o que for senão ela”. Não somente, dizíamos porque há sempre a possibilidade de escolher entre uma forma humana e uma forma puramente racional de construir o progresso. 89

De fato, há sempre mais de uma possibilidade para construção de algo.

Quando se escolhe a possibilidade humana, relevante seria o valor como

instrumento, bem como o contexto histórico vivenciado, se a opção for pelo

racional a preocupação será em considerar a forma mais rápida; que se prolonga

em linha reta. Eis as duas formas para construção do progresso que se apresenta

hoje como um desafio.

Pode-se inferir que a projeção para um futuro possível para o Direito, e

consequentemente para a jurisdição, tem nas palavras de Espindola o seguinte

sentido:

[...] é a matriz axiológica que justifica o Direito naquilo que ele é e naquilo que ele há de ser. Desse modo, as bases de uma discussão que se programa a projetar um futuro possível para a jurisdição, enquanto processo emancipador, não pode deixar de tomar o homem-pessoa como sujeito, com autonomia e dignidade éticas, e não como mero objeto da imperatividade do Direito. Tampouco uma refundação da jurisdição, umbilicalmente ligada ao Estado Democrático de Direito, não pode deixar de interrogar-se sobre o sentido do Direito. São valores e princípios que dão sentido a ordem e ao sistema de justiça– o Direito “não é, portanto, uma qualquer ordem socialmente eficaz, mas a ordem que tem seu fundamento nas valências éticas por mediação das quais nos reconhecemos uns aos outros como pessoas, sendo igualmente esse fundamento que legitima a obrigatoriedade que ela nos dirige” - e viabilizam sempre uma integração das diferenças, eis que, nessa ordem integradora, é possível que os homens reconheçam-se uns aos outros como pessoas, e não

89 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1998. p. 18

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como meros objetos da imperatividade do Direito. Nessa perspectiva está imbricada historicidade da cultura e Direito – não podem inferir-se de qualquer pressuposto ontológico-metafisico, pois tem um caráter histórico, constituindo respostas a problemas postos pela prática.90

Percebe-se que o futuro da jurisdição depende necessariamente que

se reconheça o homem-pessoa como sujeito de direitos, bem como deve ser

percebida sua autonomia e dignidade ética, e não como objeto da imposição

legal. Há que ser levada em consideração a existência de valores e princípios

que dão sentido ao sistema, bem como a perspectiva histórica da cultura e do

Direito, o que implica compreendê-lo como uma “alternativa humana”.

Os modelos de jurisdição em Castanheira Neves para a realização do

Direito são: o normativismo-legalista (racionalista), o funcionalismo jurídico, e o

jurisprudencialismo. Dito isso, importante se faz trazer a interpretação dos

modelos abordados.

O normativismo-legalista trata-se de um modelo que traz a perspectiva

individualista do modelo liberal iluminista e do racionalismo, constituiu-se por uma

compreensão voltada para a autonomia humana, no entanto, acabou por reduzir o

direito à mera legalidade. Posteriormente, surge o funcionalismo jurídico, o qual

consiste em um sistema que a tudo funcionaliza e o Direito não ficou alheio a

essa funcionalização. Nesse modelo, o Direito passou a ser instrumento da

política, perdendo, por conseguinte, sua autonomia. Por fim, o último modelo, o

jurisprudencialismo, tem um contraponto entre os dois modelos, entre

normativismo-legalista e o funcionalismo jurídico, trazendo uma nova perspectiva

do “homem-pessoa”, por meio de juízos de valor, resgatando-se a convivência do

homem com seu Direito, um reconhecimento comunitário da própria pessoa e de

sua dignidade ética, ou seja, constata-se o reconhecimento da ciência jurídica

como a ciência da compreensão.

Portanto, na contemporaneidade, marcada por um tempo de

constantes mudanças, e na tentativa de superar um modelo de jurisdição que

90 ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira. Uma resposta culturalmente humana a um problema também humano: a crise da jurisdição e a emergência do Direito como plataforma civilizacional. In: TRINDADE; ESPINDOLA; BOFF. (Org.). Direito, Democracia e Sustentabilidade: Anuário do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Meridional., 2013. p. 255

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não atende à realidade e aos anseios jurídicos, econômicos, sociais e culturais,

paradigma ora dominante normativista-legalista ou racionalista, bem como um

modelo que a tudo funcionalizou, sendo este o funcionalismo jurídico, conclui-se

necessária a ruptura de um paradigma que encontra-se superado, possibilitando

assim, à jurisdição não somente atribuição de uma função repressiva,

reparatória e individualista, mas sob outra perspectiva, pode-se dizer coletiva e

preventiva.

Busca-se, dessa forma, um “sentido para o Direito”, o que nos remete a

um diferente “sentido da jurisdição”, Assim, pode-se dizer, a realização do “Direito

pelo Direito” teria então como possível resposta “o Direito como alternativa

humana”, o que pressupõe um novo olhar hermenêutico adequado à Constituição,

consolidando assim o Estado Democrático de Direito.

1.3 UM EMBATE ENTRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO

Conferindo-se importância à crise do sentido do Direito e por

consequência da jurisdição, calha examinar a existência da corrente

procedimentalista que seria um contraponto ao substancialismo. Streck descreve

as correntes procedimentalistas91 e substancialistas92, comentando que embora

ambas reconheçam na justiça constitucional uma função estratégica nas

Constituições do pós-guerra, apresentam divergências. O autor comenta que

Habermas, ao sustentar a tese procedimentalista, critica com fervor

[...] a invasão da política e da sociedade pelo Direito. O paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da distinção entre política e direito à luz da teoria do discurso. Parte da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do Direito. Assim, no Estado Democrático de Direito, muito embora Habermas reconheça a importância da tarefa política da legislação, como crivo de

91“Habermas, Garapon e Ely”. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, p.257-301, maio/ago. 2003. p. 262 92 “Mauro Cappelletti, Bruce Ackerman, L.H. Tribe, M.J. Perry, H.H. Wellington, [...] no Brasil por juristas como Paulo Bonavides, Celso Antonio Bandeira de Mello, Eros Grau, Fábio Comparato”. STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263

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universalidade enquanto aceitabilidade generalizada por que têm que passar as normas a serem genérica e abstratamente adotadas, vê no Judiciário o centro do sistema jurídico, mediante a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação através da qual releva ao máximo o postulado de Ronald Dworkin da exigência de imparcialidade não só do executivo, mas, sobretudo, do juiz na aplicação e definição cotidiana do Direito.93

Sobre a visão de Habermas e suas críticas, Streck explica que elas

envolvem a leitura substancialista do modelo construtivo do Direito de Dworkin.

Na teoria habermasiana, a existência de tribunais constitucionais não é

autoevidente, restringindo-se à Alemanha e aos Estados Unidos, gerando

controvérsias o seu lugar na estrutura de competências da ordem constitucional.94

Nesse sentido, a legitimidade de suas decisões rompe com o

comprometimento de concretização dos valores materiais constitucionais,

conduzindo-se pela ideia da realização de valores materiais, transformando-se

“numa instância autoritária”. Tem-se, então, na concepção de Habermas, uma

inversão de valores e a invasão da esfera de competência dos tribunais,

concretizações materiais em detrimento do agir orientado para fins cívicos, “[...]

tornando-se o juiz e a lei as derradeiras referências de esperança para indivíduos

isolados”. 95

Segundo Streck, a proposta de Habermas abrange “[...] um modelo de

democracia constitucional que não tem como condição prévia fundamentar-se

nem em valores compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em

procedimentos”, os quais devem assegurar a formação democrática da opinião e

da vontade, exigindo uma identidade política não mais baseada em uma “nação

de cultura”, mas, em uma “nação de cidadãos”.96

93 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263 94 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263-264 95 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263-264 96 “Critica a assim denominada ‘jurisprudência de valores’ adotada pelas cortes europeias, especialmente a alemã. Uma interpretação constitucional orientada por valores que opta pelo sentido teleológico das normas e princípios constitucionais, ignorando o caráter vinculante do sistema de direitos constitucionalmente assegurados, desconhece, [...] não apenas o pluralismo das democracias contemporâneas, mas fundamentalmente a lógica do poder econômico e do poder administrativo. A concepção de comunidade ética de valores compartilhados, que justifica o

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No modelo weberiano, verifica-se a ênfase dada às normas no âmbito

das burocracias, e na concepção de Fiss é preciso atentar que as normas gerais

exercem um papel importante e inteiramente legítimo em todo o sistema jurídico,

portanto “a aderência às normas é exigida pela própria ideia de Estado de Direito

e pela máxima que insiste em um governo de leis e não de homens”.97

Para o autor, é preciso observar que há uma dependência gradual em

relação às normas gerais, podendo ser constatada na reprodução de normas

relativas a procedimentos uniformes, todavia, existem três fatores que podem

equilibrar este impulso.

Um deles é o compromisso ideológico com a justiça empírica, o qual modela o conteúdo das normas gerais deixando-o preferencialmente genérico e abrangente, de forma que seja passível de diversas interpretações. Um outro é o papel dos advogados, os quais possuem poder considerável para modelar e controlar os procedimentos judiciais e constituem um grupo a partir do qual os juízes são selecionados. [...] Um terceiro fator é a relativa autonomia dos juízes que se situam nos níveis inferiores da pirâmide. Apesar de os juízes de grau inferior estarem, em termos formais, vinculados às normas gerais, a hierarquia entre os juízes é, na verdade, tão fraca que eles podem, com frequência, se desviar das normas gerais com pouco temor de censura.98

Em comento ao modelo weberiano, Arendt argumenta que ele “não

comporta o Judiciário norte-americano”. Pois, em seu trabalho, identifica que “a

modelo hermenêutico proposto pelos comunitários (ou substancialistas), parece desconhecer as relações de poder assimétricas inscritas nas democracias contemporâneas. Com relação à função da justiça constitucional, Habermas sustenta que o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. Para ele, o Tribunal Constitucional não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos seus problemas e a forma de sua solução”. STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263-264 97 “O problema, portanto, deve consistir no fato de o processo de decisão manifestar um excessivo comportamento de submissão à norma ou uma excessiva rigidez”. FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Tradução Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 175-177 98 FISS, Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade, 2004. p. 178

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burocracia não é tanto a noção weberiana de norma pelas normas quanto é

norma por ninguém”.99

Fiss além de demonstrar a burocratização na concepção de Webber e

Arendt enfatiza que uma das preocupações, inerentes ao exercício legítimo do

poder judicial centra-se “[...] na identificação dos tipos de texto a serem

compreendidos e das regras que regem o processo interpretativo [...]”. Ao juiz,

cabe interpretar o texto jurídico distanciando-se da moralidade e ou da opinião

pública, mas de forma que sua visão se amplie e se direcione ao “Direito e às

humanidades”. 100

Dworkin argumenta:

Em geral, os juízes reconhecem o dever de continuar o desempenho da profissão à qual aderiram, em vez de descartá-la. Então desenvolvem, em resposta a suas próprias convicções e tendências, teorias operacionais sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades nesse desempenho. [...] suas divergências são interpretativas. Divergem, em grande parte ou em detalhes sutis, sobre a melhor interpretação de algum aspecto pertinente do exercício da jurisdição.101

Para Dworkin, cada juiz assume uma posição interpretativa

fundamentado em suas próprias convicções sobre “o sentido” ou o objetivo da

prática do Direito como um todo. Portanto, suas convicções são diferentes,

todavia, existem forças capazes de atenuar tais diferenças, inclusive conspirando

a favor da convergência, como por exemplo a natureza da interpretação, pois “[...]

a prática do precedente, que nenhum juiz pode ignorar totalmente em sua

99 “No mundo moderno, julgar necessariamente requer um compartilhamento do poder e da responsabilidade pela decisão. O poder jurisdicional é exercido por meio da multiplicidade de juízes. Podemos reconhecer esse fato e remanescermos preocupados com o vertiginoso crescimento do número de juízes, porque ele macula o poder jurisdicional e tende a reduzir o poder e a responsabilidade de cada juiz para com o direito. Reconhecidamente, não queremos juízes para que projetem suas predileções pessoais; desejamos que se comportem como agentes públicos, disciplinados pelas normas de seu ofício e profissão. [...] assuma total responsabilidade por suas decisões, assinando acórdãos e revelando seu voto. [...] A responsabilidade é compartilhada com a multiplicidade de outros juízes, com forças impessoais e mecanismos inanimados que permeiam organizações complexas. A norma de ninguém triunfa”. FISS, Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade, 2004. p. 179 100 “[...] a Constituição não é diferente de um poema ou de qualquer instrumento jurídico. Generalidade e abrangência são características de qualquer texto.” FISS, Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade, 2004. p. 274 101 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 109

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interpretação, pressiona pelo acordo; as teorias de cada juiz sobre o que

realmente significa julgar vão incorporar por referência [...] aspectos de outras

interpretações [...]” ocorridas na época. 102

Não obstante, Antoine Garapon enrijece suas críticas à invasão da

sociedade pelo Judiciário, fato que contribuiria para enfraquecer a democracia

representativa. Divergindo, portanto, “[...] não apenas da jurisprudência de

valores, como também de uma interpretação dirigida por princípios [...]”103, como é

a interpretação construtiva de Dworkin104.

Garapon comenta:

A justiça é objeto de uma súbita inversão de tendências: de secundária, ela se torna de repente prioritária. O direito era apenas a moral das relações frias, comerciais ou políticas; ele tende agora a tornar-se o princípio de toda relação social. Nossos

102 “Além disso, os juízes refletem sobre o direito no âmbito da sociedade, e não fora dela; o meio intelectual de modo geral, assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio, exerce restrições práticas sobre a idiossincrasia e restrições conceituais sobre a imaginação. “DWORKIN, O império do direito,1999. p. 110 103STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 264 104 Na concepção de Habermas: “A indeterminação de um processo de compreensão circular pode ser reduzida paulatinamente pela referência a princípios. Porém, esses princípios só podem ser legitimados a partir da história efetiva da forma da vida e do direito, no qual o próprio juiz se radica de modo contingencial. Na visão do realismo legal da Escola do direito livre e da jurisprudência de interesses, não é possível fazer uma distinção clara entre direito e política, lançando mão de características estruturais. O direito passa a valer, então, como um instrumento do controle do comportamento a ser acionado para fins racionais, isto é, fins políticos fundamentados utilitaristicamente de acordo com o bem-estar econômico. Quando pressupomos um sistema jurídico autônomo, que além disso se diferencia em regras primárias, determinadoras do comportamento, e secundárias, que reproduzem auto-referencialmente normas, a validade das prescrições jurídicas mede-se somente pela manutenção dos procedimentos juridicamente prescritos da normatização do direito. A ligação da validade do direito à sua gênese não permite uma solução simétrica do problema da racionalidade. A razão ou a moral são, de certo modo, subordinadas a história. Por isso, a interpretação positivista da prática de decisão judicial faz com que, no final das contas, a garantia da segurança jurídica eclipse a garantia da correção. Dworkin sustenta a possibilidade e a necessidade de decisões consistentes ligadas as regras, as quais garantem uma medida suficiente de garantia do direito. Contra o positivismo ele afirma a possibilidade e a necessidade de “decisões corretas”, cujo conteúdo é legitimado à luz dos princípios. No entanto, a referência hermenêutica a uma pré-compreensão determinada por princípios não deve entregar o juiz à história de tradições autoritárias com conteúdo normativo; ao contrário, esse recurso obriga-o a uma apropriação crítica de uma história institucional do direito, na qual a razão prática deixou seus vestígios. Dworkin tem em mente os direitos que gozam de validade positiva e merecem reconhecimento sob pontos de vista da justiça. Dworkin entende os direitos subjetivos como “trunfos” num jogo, no qual os indivíduos defendem suas pretensões justificadas contra abusos gerados por finalidades coletivas. A teoria dworkiniana dos direitos apoia-se na premissa segundo a qual há pontos de vista morais relevantes na jurisprudência, porque o direito positivo assimilou inevitavelmente conteúdos morais”. HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 248-253

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contemporâneos o invocam para árbitro de seus conflitos mais íntimos. Apesar de ter, no passado, se limitado a sancionar os desvios de conduta, o juiz, hoje exerce um verdadeiro magistério sobre as pessoas mais frágeis.105

Na visão de Garapon, o que era visto como uma ameaça à dissolução

dos laços sociais, agora passa a ser reconhecido como uma oportunidade de

socialização. Dessa forma, “a jurisdição passa a ser um modo normal de

governo”, no qual a exceção se firma como regra, e o processo enquanto

instrumento de solução de conflitos, torna-se um meio de administrar “[...] setores

inteiros, como a família ou a imigração”. Passa-se de uma concepção de justiça

negativa e punitiva para uma positiva e construtiva.106

Visando demonstrar o papel do Poder Judiciário em âmbito

constitucional, Streck explica a noção de Estado Democrático de Direito,

percebida mediante a valorização do Judiciário, principalmente em países como

Brasil. Em seu processo constituinte de 1986 a 1988, seguiu o modelo das

Constituições da Espanha e de Portugal, deixando evidente o caráter

compromissório e dirigente da Constituição; e daí advir consequências. 107

A noção referenciada pelo autor encontra-se vinculada à concretização

dos direitos fundamentais, tais como: igualdade, justiça social e a garantia dos

direitos humanos – fundamentais e sociais. Acopla-se a essa noção de Estado o

“conteúdo material das Constituições”, por meio dos direitos sociais-fundamentais,

os quais apontam para uma mudança do status quo da sociedade. Para o autor,

as políticas sociais advindas da ideia de Estado social, produziram uma autêntica

105 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. 2 ed. Rio de Janeiro, Revan, 1999. p. 49 106 “O direito não é mais o instrumento de conservação social, porém de sua contestação: ele se coloca então como fonte de uma sociedade que se constitui na busca de si mesma. Essa inversão de posição entre justiça e Estado traz pesadas consequências. Ao instaurar tal distância entre os poderes públicos e a fonte de valores, a democracia é condenada a uma transformação permanente que a distingue do Estado totalitário. Ao eleger a justiça como nova cena, a democracia condena o direito positivo a um déficit permanente. O direito contemporâneo, emancipado do Estado, excede sempre naquilo que lhe é estabelecido, e a justiça, notoriamente constitucional, coloca-se como espaço de arbitragem permanente entre o ideal da vontade de viver em sociedade e a dificuldade da ação política.” GARAPON, O juiz e a democracia: o guardião das promessas, 1999. p. 49 107 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 150-151

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institucionalização da moral no Direito. Tem-se, assim, que “a razão está em

Habermas, ao sustentar a co-originalidade entre Direito e moral.”108

Habermas interpreta que:

Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do direito. Tal reconhecimento recíproco é constitutivo para uma ordem jurídica, da qual é possível extrair direitos subjetivos reclamáveis judicialmente. [...] a doutrina do direito subjetivo começa quando os direitos morais subjetivos se tornam independentes, os quais pretendem uma legitimidade maior que a do processo de legislação política. O sentido garantidor da liberdade deveria outorgar aos direitos subjetivos uma autoridade moral independente da legalização democrática, a qual não poderia ser fundamentada no âmbito da própria teoria do direito.109

A isso se contrapõe um desenvolvimento que culmina na subordinação

abstrata dos direitos subjetivos sob o direito objetivo, sendo que a legitimidade

deles se esgota, no final de tudo, na legalidade de uma dominação política,

interpretada em termos de um positivismo do Direito. Na medida em que a

“cultura” e as “estruturas de personalidade” são carregadas de modo idealista,

também o Direito, aliviado de seus fundamentos sagrados, passa a receber

pressão. 110

Na concepção de Habermas, os argumentos em prol da legitimidade do

Direito devem ser compatíveis com os princípios morais da justiça e da

solidariedade universal. E, ainda na medida em que as questões morais e éticas

108 “Habermas pretende, mais uma vez, diferenciar, por um lado, Direito e Moral, e, por outro, reconstruir a relação de co-originalidade e de complementariedade entre eles. Segundo Habermas, os direitos subjetivos com os quais se constroem ordens jurídicas modernas têm o sentido de desobrigar os sujeitos de direito em relação a mandamentos morais, na medida em que garantem espaço para o agir de acordo com as preferências dos agentes. A relação entre Direito e Moral, para Habermas, é de complementariedade e não de subordinação. Essa relação de complementariedade vale também para uma visão extensional. As matérias jurídicas são ao mesmo tempo, mais restritas do que as questões moralmente relevantes, pois somente o comportamento exterior é acessível ao Direito, e mais amplas, já que o Direito, como meio de organização, não se refere apenas à regulamentação de conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Assim, as questões jurídicas tangenciam não apenas questões morais, mas também éticas e pragmáticas, bem como o acordo de interesses conflitantes.” STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 150-151 109 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 121-122 110 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 122-133

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se diferenciaram entre si, a substância normativa, filtrada discursivamente,

encontra a sua expressão na dimensão da autodeterminação e da

autorrealização. Certamente os direitos e a soberania do povo não se deixam

subordinar linearmente a essas duas dimensões.111

Streck refere-se ao motivo de se opor restrições às teses

procedimentalistas. No seu entendimento, há várias razões, primeiramente:

[...] quando Habermas opõe o paradigma do direito liberal/formal burguês ao paradigma do direito do bem-estar (Estado Social), dizendo que ambos estão superados, deixa de reconhecer a existência de um terceiro paradigma, que é o modelo do Estado Democrático de Direito e, com isso, corre o risco de objetificar a Constituição. Com efeito, sua análise subestima o Direito naquilo que é o seu plus normativo que ficou caracterizado exatamente no constitucionalismo do pós-guerra, na fórmula instituída no e pelo Estado Democrático de Direito, que supera as noções anteriores de Estado Liberal e Estado Social de Direito, questão que é bem definida, por exemplo, por autores como Elias Diaz. É evidente - porque explicitamente presente nos seus textos - que Habermas trabalha com a noção de Estado Democrático de Direito; entretanto, não reconhece a necessária diferenciação que existe entre o modelo do Estado Social de Direito e o modelo do Estado Democrático de Direito, que, insisto, supera a noção de Estado Social.112

Para o autor, ao trabalhar o texto constitucional somente no seu

sentido procedimental, “[...] abre-se espaço para o entulhamento (no sentido

hermenêutico-heideggeriano)”, comprometendo-se os direitos sociais e os direitos

111 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 122-133 112 Tem inicio assim, o problema: “Habermas cai em um certo sociologismo ao ignorar a especificidade do jurídico presente nas Constituições, que gerou todo um processo de revitalização do jurídico, naquilo que diz respeito à função social do Direito. O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito acrescenta um “mais” ao Direito do Direito do Estado Social, porque estabelece no próprio texto constitucional - e esse é o ponto que Habermas deixa de considerar – os diversos mecanismos para o resgate das promessas da modernidade. Ou seja, o que diferencia o projeto do Estado Democrático de Direito é exatamente a revalorização do jurídico, como contraponto a plenipotenciariedade da razão política que tantas seqüelas deixou. Como bem assinala Diaz, o Estado Democrático de Direito aparece como superação real do Estado Social de Direito. Assim, enquanto o modelo de Direito do Estado Social decorre de uma crítica reformista do paradigma do direito liberal – e nisso Habermas tem plena razão -, o modelo de Direito do Estado Democrático de Direito ultrapassa ambas as concepções. Na mesma linha, se é verdade que ambos os paradigmas se ancoram em um mesmo conceito de autonomia privada, Habermas não leva devidamente em conta a relevante circunstância de que o paradigma do Estado Democrático de Direito se ancora em um modelo em que a resultante social que se estabelece a partir da noção de cidadania advém de uma intersubjetividade, em que a relação sujeito-sujeito supera a serôdia relação sujeito-objeto, ultrapassando o monadismo típico do paradigma da autoconsciência.” STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 265-266

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fundamentais. Corre-se, ainda, o risco de interpretar o Direito, no que diz respeito

aos valores substantivos constitucionais, como um mero mecanismo “[...] redutor

de complexidades, impedindo o aparecer do sentido transformador próprio do

paradigma do Estado Democrático de Direito”. Por fim, é preciso atentar para não

“[...] transformar o Direito Constitucional em um Direito Constitucional simbólico,

frustrando as expectativas exsurgentes do contrato social”.113

Dessa forma, para Streck, o substancialismo é entendido como

contraponto ao procedimentalismo. Trata-se de teses diferenciadas, todavia, a

questão só é considerada novidade no Brasil, no “constitucionalismo brasileiro”.114

Contudo, fazendo uma comparação entre Capepelletti115, o qual

“parece não ter superado o problema do protagonismo judicial e do

instrumentalismo processual, enquanto Dworkin assumiu uma postura que pode

ser caracterizada de substancialista; sendo procedente dizer que nem Dworkin116,

nem Habermas assumiram uma postura favorável ao decisionismo.117

Tese da qual Streck mais se aproxima, quando trata da jurisdição

constitucional e de seu papel, por ser contrária a qualquer postura que remeta a

discricionariedades, desicionismos, enfim, vínculos com o “esquema sujeito-

objeto”.118

Não obstante, Gadamer referencia:

113 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 268 114 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 162 115 De acordo com Capelleti: “[...] não existe clara oposição entre interpretação e criação do direito [...]. De fato, o reconhecimento de que é intrínseco em todo ato de interpretação certo grau de criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade de total liberdade ao intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais.” CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 23-24 116 “Precisamos começar a refinar a interpretação construtiva, transformando-a em um instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social”. DWORKIN, O império do direito, 1999. p. 81 117 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 162 118 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 162

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Heidegger oferece uma descrição fenomenológica completamente correta, quando descobre o suposto “ler” o que “lá está” a pré-estrutura da compreensão. Uma compreensão guiada por uma consciência metódica procurará não simplesmente realizar antecipações, mas, antes, torná-las consciente para poder controla-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias coisas. Trata-se de buscar a atuação do intérprete, livre de todo e qualquer som que não lhe permita ouvir o que o texto quer dizer. Ou seja, são os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e presente. E, inversamente a isso, Heidegger descobre a crítica kantiana à metafísica “dogmática” a ideia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. 119

No sentido heideggeriano, a descoberta daquilo que cotidianamente

ocultamos trata-se de um “exercício da transcendência”120, esta deve se

concretizar

[...] de modo a percebermos que somos (Dasein) ao contrário de apenas sermos, retomando a crítica ao pensamento jurídico objetificador, refém, portanto, de uma prática dedutivista e rompendo com esse paradigma, que impede o aparecer do direito

119 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 405-406 120 “No projeto prévio de ser sempre ultrapassamos de antemão o ente. [...] Designamos esse ato prévio de ultrapassagem do ente com a palavra de origem latina transcendere e denominamos a ultrapassagem como transcendência. Transcendência é a possibilitação daquele conhecimento que não transpõe de modo ilegítimo a experiência por meio do voo que conduz além, ou seja, que não é “transcendente”, mas é possibilitador da experiência mesma. O transcendental certamente fornece a definição restritiva. No entanto, por meio da própria restrição surge ao mesmo tempo a definição positiva da essência do conhecimento não transcendente, isto é, do conhecimento ôntico possível como tal. [...] a verdade pré-ontológica, ou seja, a compreensão projetiva do ser é como tal uma compreensão do ser do ente, quer esse ente exista efetivamente de maneira fática ou não, quer ele seja por si subsistente ou não. Inversamente, a experiência do ente, a verdade ôntica, só é uma tal experiência em uma compreensão de ser. Verdade ôntica e verdade ontológica encontram-se em uma conexão originária – correspondente à diferença entre ser e ente. Essas não são duas esferas estabelecidas simplesmente uma por meio da outra “e” uma ao lado da outra, mas o problema é a unidade específica e a diferença entre elas em sua implicação recíproca. Eles mesmos, ou seja, esses que são diferenciados nessa distinção, só podem ser concebidos em sua essência a paretir do que essa diferenciação como tal possibilita. Em outras palavras: a transcendência não é apenas a possibilidade interna da verdade ontológica e também, indiretamente, da verdade ôntica, mas é justamente a condição de possibilidade desse “e também” da conexão entre eles; sim, ela é a condição de possibilidade da diferenciação entre ser e ente, da diferenciação em função da qual podemos de algum modo falar em ontologia”. HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 223-225

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naquilo que ele tem – ou ao menos devia ter – de transformador.

121

A hermenêutica deve ensinar a usar corretamente a razão na

compreensão da tradição. Nem a autoridade, nem o apelo à tradição podem

tornar supérflua a atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido

razoável do texto.

A descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico,

devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. Segundo essa teoria,

o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a

compreensão destes se completa, ele é suspenso. Heidegger, pelo contrário,

descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontra

determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-

compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total,

mas nela alcança sua mais autêntica realização.122

O círculo não é de natureza formal, nem objetivo, nem subjetivo, porém a compreensão como a interpretação do movimento da tradição e do movimento do intérprete. A antecipação do sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não é ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que os une com a tradição. A primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré-compreensão que surge do ter de se haver com a coisa em questão. A partir daí determina-se o que pode ser realizado como sentido unitário, e, com isso, a aplicação da concepção prévia da perfeição.123

A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender

está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que

tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a

transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode

estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e

natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição.124

121 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 223-225 122 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 439 123 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 441 124 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 417

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Refletindo-se que tal entendimento implica elevar ao primeiro plano o

que na hermenêutica anterior ficava à margem, com a distância de tempo e seu

significado para a compreensão, como diz Gadamer.125

É preciso observar, de fato, que o Direito contemporâneo caracteriza-

se pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, onde

desfruta não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de

uma supremacia material, axiológica, a qual é compreendida como uma ordem

objetiva de valores e como um sistema aberto de princípios e regras. A

Constituição transforma-se, assim, no filtro por meio do qual se deve ler todo o

Direito infraconstitucional. Esse fenômeno tem sido designado como

constitucionalização do Direito, uma verdadeira mudança de paradigma que deu

novo sentido e alcança ramos tradicionais e autônomos do Direito, como o civil, o

administrativo e o processual.126

Essa constitucionalização do Direito, como já observado, é

potencializada por algumas características vinculadas ao contexto filosófico do

pós-positivismo, fundamentalmente pela ideia de direitos fundamentais;

desenvolvimento da nova hermenêutica; normatividade dos princípios; abertura

do sistema e a teoria da argumentação, a qual tem tornado o debate jurídico atual

instigante.127

Nele, tem-se colocado temas que podem definir o futuro da

Constituição. Cabe destacar, nesse contexto, como alguns exemplos, o papel do

Estado e suas potencialidades como agente de transformação e de promoção dos

direitos fundamentais; a legitimidade da jurisdição constitucional e da

judicialização do debate acerca de determinadas políticas públicas; a natureza

substantiva ou procedimental da democracia e o conteúdo das normas

constitucionais que a concretizam. 128

125 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 443 126 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4 ed. São Paulo: Saraiva. 2014. p. 108-109 127 BARROSO, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2014. p. 109 128 BARROSO, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2014. p. 109

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Acrescenta Streck129 que a noção de um modelo de Direito, Estado

Democrático de Direito, leva em conta a noção de Constituição como conteúdo

jurídico.

Para Habermas130, uma compreensão procedimentalista consequente

da Constituição aposta no caráter intrinsecamente racional das condições

procedimentais que apoiam a suposição de que o processo democrático, em sua,

totalidade, propicia resultados racionais. Num modelo de discurso mais abstrato, a

amarração do indivíduo à intersubjetividade de uma estrutura preliminar de

entendimento possível fica mantida.

Porém, somente na perspectiva modificada da teoria da democracia é

possível desativar completamente as dúvidas empiricamente motivadas contra um

conceito discursivo de política deliberativa. 131

Streck132 afirma que Habermas tem absoluta razão quando diz que “a

moral está institucionalizada no Direito, sendo co-originária ao Direito”.

A corrente substancialista entende que o Judiciário precisa assumir o

papel de um intérprete, evidenciando, mesmo contra maiorias eventuais, a

vontade geral implícita e/ou explícita no direito positivo, essencialmente nos textos

constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua

cultura de origem. “Coloca, pois, em xeque o princípio da maioria, em favor da

maioria fundante e constituinte da comunidade política”. 133

Observa-se que o procedimentalismo atua como uma espécie de

“método, ou como um instrumento que se encontra à disposição dos agentes

sociais, jurídicos e políticos, afastando-se do paradigma hermenêutico, esse

objetivo decorre do caráter universal da pragmática habermasiana, por isso

valorar-se a pré-compreensão enquanto condição do sentido”. 134

129 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 169 130 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 354 131 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 354 132 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 169 133 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 164 134 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 172

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Dessa forma, abordou-se o sentido do direito e por consequência a

crise da jurisdição fazendo reflexões sobre a jurisdição e seus limites, trazendo a

baila o embate entre procedimentalismo/ substancialismo, demonstrando que a

compreensão do direito exige um novo olhar hermenêutico que leve em conta a

historicidade e o tempo.

A base abordada até o presente momento demonstra a importância de

tratar sobre a possível resposta adequada em Direito, abrindo, para além/aquém

do ativismo, centrando-se na Constituição, no Direito e na democracia; bem como

se analisam teorias para uma interpretação do Direito diante da insuficiência do

paradigma dominante (racionalista) e aborda-se a hermenêutica para além/aquém

do ativismo e garantismo no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO 2

TEORIAS PARA UMA INTERPRETAÇÃO: ALÉM/AQUÉM DO

ATIVISMO

O segundo capítulo pretende traçar breves reflexões sobre

Constituição, Direito e democracia, bem como a teoria do direito diante da

insuficiência do paradigma dominante (racionalista), e a interpretação

hermenêutica para além/aquém do ativismo.

Cabe salientar que as questões que conferem essencial importância à

decisão judicial recaem sobre a necessidade de garantir e concretizar os direitos

fundamentais. Nessa seara, a busca da resposta adequada em Direito necessita

da compreensão de seu sentido. Dessa forma, torna-se mister analisar, como diz

Streck, “[...] a crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, e seus reflexos

na sociedade, a partir do papel da justiça constitucional nesse novo

paradigma”.135

Nessa perspectiva, é preciso analisar a “Teoria do Direito”, a “Teoria da

Interpretação” e a “Teoria Hermenêutica”, pois as decisões devem partir dos

princípios constitucionais e da implementação de direitos fundamentais,

exercendo, o Judiciário, papel de extrema importância para a consolidação do

Estado Democrático de Direito.

2.1 BREVES REFLEXÕES SOBRE: CONSTITUIÇÃO, DIREITO E

DEMOCRACIA

Dentre as questões inerentes à decisão judicial, tem-se a interpretação

constitucional contemporânea, na qual, segundo Häberle, é preciso adotar uma

hermenêutica adequada à denominada sociedade aberta. Tal concepção exige

uma radical revisão da metodologia jurídica tradicional. Destaca o autor que não

existe norma jurídica, se não norma jurídica interpretada, ressaltando que

135 STRECK, Lenio Luiz. A jurisdição constitucional e o resgate das promessas da modernidade: a permanência do caráter compromissário (e dirigente) da Constituição. Rev. TRT - 9ª R. Curitiba, v. 29, n.52, p.17-53, Jan./Jun., 2004

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interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo

na realidade.136

Assim, a interpretação constitucional contemporânea torna-se parte do

direito de participação democrática. Essa é a sua proposta para uma

democratização da interpretação constitucional, ou seja, para a hermenêutica

constitucional da sociedade aberta. Para tanto, baseia-se em indagações sobre

as tarefas e os objetivos da interpretação constitucional e sobre os métodos,

processo de interpretação constitucional, regras de interpretação. A teoria da

interpretação de uma sociedade fechada reduz seu âmbito de interpretação, na

medida em que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos

juízes e nos procedimentos formalizados. Para o autor, uma teoria deve encarar o

tema “Constituição e realidade constitucional”, o que exige a incorporação das

ciências sociais e teorias jurídico-funcionais, bem como métodos de interpretação

voltados para o entendimento do interesse público e do bem-estar geral. “Há que

se perguntar de forma mais decidida sobre os ‘agentes conformadores da

realidade constitucional’”.137

Para Canotilho:

A concretização do Estado constitucional de direito obriga-nos a procurar o pluralismo de estilos culturais, a diversidade de circunstâncias e condições históricas, os códigos de observação próprios de ordenamentos jurídicos concretos. [...] a domesticação do domínio político pelo direito faz-se de vários modos e, por isso, deveremos ter cuidado em identificar conceitos como Rechtsstaat,

136 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. p. 9-18 137 “O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpreta-la ou pelo menos co-interpretá-la. Para uma investigação realista do desenvolvimento da interpretação constitucional, pode ser exigível um conceito mais amplo de hermenêutica: os intérpretes constitucionais em sentido lato. Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação. Se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional. Aqui não se cuida apenas da práxis estatal, mas também a relevância dessa concepção e da correspondente atuação do indivíduo ou de grupos, configuram uma excelente e produtiva forma de vinculação da interpretação constitucional em sentido lato ou em sentido estrito. Isto significa que não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista: a teoria da ciência, da democracia, uma teoria da Constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma mediação específica entre o Estado e a Sociedade”. HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997. p. 9-18

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Rule of Law, État légal, não obstante todos eles procurarem alicerçar a juridicidade estatal.138

Esse entendimento contextualiza as diversas circunstâncias e

condições históricas,“[...] o Estado só se concebe hoje como Estado constitucional

[...] submetido ao direito, um Estado regido por leis, um Estado sem confusão de

poderes”. Pois, o “[...] Estado de direito e Estado democrático [...] duas qualidades

surgem muitas vezes separadas”. Significa dizer que “[...] em Estado de direito,

omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se Estado democrático silenciando

a dimensão de Estado de direito”. Todavia “o Estado constitucional democrático

de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de

direito.”139

Para Streck:

[...] torna-se fundamental discutir, para uma melhor compreensão de toda essa problemática, o papel da Constituição e da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito, bem como as condições de possibilidade para a implementação/concretização dos direitos fundamentais-sociais a partir desse novo paradigma de direito e de Estado. Parece que a inserção da Constituição na noção de paradoxo – pelos “interesses” contraditórios que nasceu para albergar – traz implícita a discussão da problemática tensão entre legislação e jurisdição, pela simples razão de que a primeira é fruto da vontade geral (majoritária) e a segunda coloca freios nessa mesma vontade geral.140

Nesse sentido, cabe destacar a constitucionalização do Direito, a qual

é potencializada por algumas características vinculadas ao contexto filosófico do

pós-positivismo, fundamentalmente pela ideia de direitos fundamentais;

desenvolvimento da nova hermenêutica; normatividade dos princípios; abertura

do sistema e a teoria da argumentação, a qual tem tornado o debate jurídico atual

instigante.141

Na concepção de Espindola:

138 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 93 139 CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, 2003. p. 92-93 140 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 88-89 141 BARROSO, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2014. p. 109

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O peso da herança racionalista não permite que a estrutura do direito processual se compatibilize com as exigências de um novo contexto histórico, e as decisões judiciais deixam de concretizar direitos, limitando-se tão somente a dizer os direitos, ficando entre o dogmatismo do normativismo legalista e as arbitrariedades das posturas procedimentalistas que têm se erguido para combater aquele. Entre um extremo e outro, a Constituição não acontece no direito processual civil e este, embora atenda à função para a qual foi idealizado no berço do Estado Liberal, não altera a sua estrutura para acompanhar as exigências do Estado Democrático de Direito e sua sociedade.142

Para Garapon,143 “a justiça parece ser convocada não apenas como

um meio de cumprir a promessa democrática, mas também como uma maneira

de retardá-la [...]”, como se fosse perceptível que há um alto custo quando se

reflete sobre uma “democracia plena”144. Portanto, pertinente ponderar: o que é

Justiça e o que deve ser lavado em consideração?

A justiça é guardiã do direito, quer dizer, dos pactos anteriores aos quais somos ligados. Ela garante a identidade da democracia, entendida como uma forma que não permanece a mesma através dos tempos, mas que se mantém como uma promessa feita. Quer se trate de crime contra a humanidade, do sujeito de direito ou da Constituição, o juiz exerce sua autoridade ao proteger a memória dessa promessa inicial por tudo e contra tudo, inclusive contra a vontade do titular em exercício da soberania nacional. [...] O juiz seja constitucional ou judiciário, nada mais é do que o avalista dessa promessa de liberdade feita por cada um. A autoridade assegura a continuidade do sujeito de direito e, portanto, da democracia. Ela Liga o presente ao passado. 145

Para Streck, em se tratando da justiça constitucional, observa-se um

elevado “grau de comprometimento com a manutenção do status quo”, motivado

142“Assumir a defesa da jurisdição exige esse enfrentamento da atual problemática jurídico-jurisdicional: diagnosticar a crise de paradigmas na qual a modernidade vê-se envolvida e os grilhões que mantêm a jurisdição ainda presa a valores já incompatíveis com a contemporaneidade, mas também arriscar uma proposta que possa superar as armadilhas do paradigma racionalista e as idéias iluministas e liberais, revisando o papel do jurista para além do modelo normativista ou funcionalista do direito. É preciso revisar as estruturas do direito processual civil.” ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 238-239 143 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. 2 ed. Rio de Janeiro, Revan, 1999. p. 173-174 144 “[...] ela o germe de sua própria dissolução [...], a ficção da igualdade absoluta fosse qualquer coisa de insuportável, e a liberdade radical, algo desumano. O desaparecimento da autoridade, não mais sustentada pelo Estado e pela tradição e tampouco pelos costumes, provoca a comoção”. GARAPON, O juiz e a democracia: o guardião das promessas, 1999. p. 173 145 GARAPON, O juiz e a democracia: o guardião das promessas, 1999. p. 181-182

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pela interpretação de que o “[...] Direito a partir do viés transformador que lhe foi

dado pelo Estado Democrático de Direito [...]” pode efetivar transformações “[...]

qualitativas e quantitativas [...] na sociedade”.146

Significa entender que além de “[...] assegurar os procedimentos da

democracia – que são absolutamente relevantes – é preciso entender a

Constituição como algo substantivo, porque contém direitos fundamentais,

sociais, coletivos [...]”, os quais foram pactuados como possíveis de realização.

Portanto, “há que se deixar assentado que o constitucionalismo dirigente-

compromissório não está esgotado? A Constituição ainda deve constituir-a-ação

mormente porque, no Brasil, nunca constituiu”.147

Nesta esteira, menciona Streck,

No texto da Constituição de 1988, há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado (o ideal moral transforma-se em obrigação jurídica). O problema é que, em países como o Brasil, formou-se um silêncio eloquente acerca do significado da Constituição, naquilo que ela tem de “norma diretiva fundamental”. Um dos fatores que colabo(ra)ram para a pouca importância que se dá à Constituição se deve ao fato que as Constituições brasileiras, até o advento da atual, sempre haviam deixado ao legislador a tarefa de fazer efetivos os direitos ou objetivos materiais contidos no texto constitucional, que, com isso, se transformava, porque assim era entendida, em mero programa, uma mera lista de propósitos. E o grau de utilização histórica da jurisdição constitucional pode ser aferido de acordo com essas demandas.148

O constitucionalismo democrático e seu processo de concretização

torna-se essencial para a “[...] efetividade do seu sistema de direitos fundamentais

[...]”, a capacidade de controle, tanto por parte da sociedade como de todas as

esferas de poder, pois somente, assim garante-se “o valor dignidade da pessoa

humana”. A “[...] dimensão objetiva do sistema de direitos constitucionais [...] será

tanto mais efetiva quanto maior for a eficácia normativa da constituição [...]”, o que

fica na dependência, também, “[...] da operosidade das instituições encarregadas

do seu cumprimento”. Quanto ao Poder Judiciário, nesse contexto, lhe é atribuída

146 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 179 147 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 179 148 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 179

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a “[...] qualidade de último intérprete da Constituição – já que aqui prevalece o

sistema jurisdicional de controle da constitucionalidade – papel proeminente”.

Dessa forma, é possível afirmar que “[...] o constitucionalismo democrático

brasileiro defende uma jurisdição constitucional que atue como regente

republicano das liberdades positivas”.149

Para Dworkin,

Existem duas doutrinas conexas que sustentam, a partir desses fatos, que os juízes não estão interpretando o direito, mas inventando um novo direito. De acordo com essas doutrinas, as interpretações judiciais são, na verdade, partes de legislação fundamental que, uma vez estabelecidas por uma decisão judicial no mais alto nível, não podem ser mudadas por um parlamento majoritário. As duas doutrinas conexas são uma teoria do direito – o positivismo jurídico – e uma tese filosófica – o ceticismo moral arquimediano. O positivismo jurídico (na sua forma mais estrita) defende que o direito consiste nas decisões das autoridades políticas ou de outras pessoas às quais foram dados poderes de criar direitos por convenções sociais da comunidade em questão. Se o positivismo for sólido como uma teoria geral do direito, então o controle de constitucionalidade deve ser um poder constituinte disfarçado, já que nenhuma autoridade política ou qualquer outro alguém com poderes convencionados de criar direitos teria decidido se, por exemplo, a cláusula da igual proteção proíbe pagar às mulheres menores salários pelo mesmo trabalho ou a cláusula do devido processo proíbe fazer do aborto crime. Contudo, o positivismo jurídico é uma interpretação inadequada da prática jurídica, não somente em casos constitucionais, mas em geral. Ele ignora o fato de que tratamos como direito não apenas o que as autoridades políticas declararam, mas os princípios subjacentes ao que elas declararam, tenham eles reconhecido esses princípios, intentado estabelecê-los ou não. O direito é uma questão de integridade e não somente de decretos. Com isso, o positivismo jurídico não pode sustentar a pretensão de que o constitucionalismo é antidemocrático, porque ele é uma má teoria do direito.150

Segundo Streck151, o positivismo jurídico foi construído no decorrer da

modernidade como consequência do denominado jusnaturalismo. O autor faz

referência a Arthur Kaufmann e a Castanheira Neves, para explicar “[...] que o

positivismo jurídico representa uma consequência ou a consagração dos ideais

149CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação dos poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck. (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 34 150 DWORKIN, O império do direito, 1999. p. 7-8 151 STRECK, Lenio Luiz. O direito como um conceito interpretativo. Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 2, p. 500-513, jul./dez. 2010. p. 502

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jusnaturalistas, está-se a falar do jusnaturalismo moderno e não do jusnaturalismo

clássico (greco-medieval)”. Ressalta que o “[...] positivismo jurídico e Direito

positivo são coisas distintas”, pois “[...] o Direito positivo representa um conjunto

de normas jurídicas que regem uma determinada realidade social, geográfica e

historicamente determinada [...]”. Já o “positivismo jurídico” envolve “[...] uma

postura teórico-metodológica acerca do Direito positivo”.

Todas as doutrinas clássicas do Direito Natural conviveram com um Direito positivo. A grande questão é que esse Direito positivo devia estar enquadrado numa ordem objetiva de coisas encontrada na natureza. Já no caso do positivismo jurídico que tem lugar na modernidade, sua característica individualizante – registre-se, herança do nominalismo medieval – e seu caráter de representação sistemática do mundo acabarão por se opor ou simplesmente desconsiderar a existência de um Direito Natural tal qual apresentado pelas doutrinas clássicas. De todo modo, é possível afirmar que toda ideia de Direito natural professa um conceito segundo o qual se compreende por Direito tudo aquilo que, no seio do convívio humano, acontece de acordo com uma ordem de coisas pressuposta (vale dizer: uma ordem de coisas natural). Ordem essa que deve(ria) espelhar a harmonia e a perfeição encontrada em uma determinada natureza.152

Castanheira Neves comenta “[...] a Constituição se impõe como o pacto

social e o estatuto-jurídico fundamental da comunidade que através dela se

institui em sociedade jurídica e se organiza em Estado”. Ademais, considera o

152 “Entre os gregos, a ideia de natureza que comandará o conceito de direito será a ordem cosmológica; entre os medievais, essa ordem natural será remetida ao modo do ser perfeito: Deus. Daí que, no primeiro caso, fala-se de um direito natural cosmológico, ao passo que, no segundo, teríamos um direito natural teológico. O que interessa ficar ressaltado, para efeitos deste artigo, é que, em ambos os casos, há uma certa ordem natural a determinar o conteúdo correto (ou os critérios de correção) do Direito positivo, da lei humana; enfim, do conjunto de regras que regem, geográfica e historicamente localizadas, o convívio em comunidade. Essa ordem natural, obviamente, situa-se fora do tempo e fora da história: é transcendente e condiciona, regulativamente, o Direito produzido em tempos e lugares determinados. Com o renascimento e a modernidade ocorre uma transformação profunda no conceito de Direito que fora produzido pelas doutrinas clássicas do jusnaturalismo. O modo como esses dois movimentos históricos passaram a tratar de temas como a liberdade, a autonomia e a vontade afetarão, em toda sua amplitude, os estudos sobre o Direito natural e a justiça. Isso porque o racionalismo antropocêntrico rejeitará qualquer ideal de ordem que não seja colocado pela razão, isto é, pelo homem. Ou seja: dá-se um manifesto afastamento com relação a qualquer determinação limitadora da liberdade ou da autonomia individual que seja dada por realidades transcendentes. Assim, os pressupostos naturais do Direito natural cosmológico e teológico serão rejeitados – por serem representativos de uma ordem tradicional que deveria ser rompida – para que o sujeito moderno pudesse ser reconhecido como auto-nomos (aquele que coloca sua própria lei, sua própria ordem). Esse é o sujeito que “interdita”. E o faz pelo e por intermédio do Direito (pensemos, de pronto, em Thomas Hobbes). Isso se deu a partir de uma ruptura com as estruturas do pensamento da tradição: tudo que era dela oriundo passou a ser considerado dogmático; apenas aquilo que passasse pelo filtro da razão é que teria validade. Em termos simples: para os clássicos, as premissas que arquitetavam o cenário jurídico eram autoevidentes – dadas por uma determinada natureza – para os modernos, as premissas são postas pelo sujeito racional.” STRECK, O direito como um conceito interpretativo., 2010. p. 503

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autor que “[...] pela constituição a comunidade a si mesma define nos seus

valores político-jurídicos fundamentais [...]”. Nesse sentido, “[...] o positivismo

jurídico dominante vem a postular o prius e o fundamento mesmo, do Direito o

teríamos unicamente na juridicidade constitucional”. Portanto, os “[...] valores

ético-sociais, os valores jurídicos e própria intenção do Direito a assumir pela

ordem jurídica ter-se-iam de encontrar apenas nas intenções materiais e nos

pressupostos formais expressamente prescritos na constituição.153

Espindola sustenta:

Em um Estado cujo perfil seja ativo, a exemplo do Estado social e do Estado democrático de direito, a resolução de conflitos subjetivos é pretexto para que seja possível encontrar a melhor solução para um problema social. Deste modo, antes de investigar sobre que tipo de jurisdição se pretende para uma determinada sociedade, inevitável observar qual o perfil do Estado que se possui. Isso implica dizer que o direito, para além do simples texto de lei, tem sua substância moldada pela Constituição e que o juiz, para além de um funcionário público e do objetivo de resolução de um conflito intersubjetivo, é um agente de poder que, através da interpretação/hermenêutica da lei e do controle da constitucionalidade, faz valer os princípios constitucionais e o todo o conteúdo inerente ao Estado democrático de direito que estão sempre por trás de toda e qualquer lei. 154

Dessa forma, as decisões precisam “[...] partir dos princípios

constitucionais e da implementação de direitos fundamentais, exercendo, o

Judiciário, papel de extrema importância para a consolidação do Estado

Democrático de Direito”. Nesse sentido, é possível compreender que “[...] a

função nitidamente jurisdicional não se contenta com o modelo de solução de

controvérsias – de matriz eminentemente privada e individualista [...]”, muito

menos “[...] com uma jurisdição judicial (não jurisdicional) mas ultrapassa esses

modelos para atender o Estado democrático de direito, garantindo o acesso à

justiça [...]”, bem como “[...] proteção e promoção dos direitos fundamentais”.155

153 CASTANHEIRA NEVES, A. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros., 1995. p. 233 154 ESPÍNDOLA, Angela Araujo da Silveira. A refundação da jurisdição e a concretização dos direitos fundamentais. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.8, n.3, 3º quadrimestre de 2013. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica Acesso em: 12 fev., 2015. p. 2.110 155 ESPÍNDOLA, A refundação da jurisdição e a concretização dos direitos fundamentais., 2015. p. 2.110

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Segundo Espindola:

[...] A questão deixa de ser como o direito pode ser logicamente deduzido a partir da lei, da codificação, para ser “como o direito pode ser hermeneuticamente compreendido a partir da viva linguagem histórica”. O direito justo (a resposta certa) não se oferece presente e pré-existente, como uma substância ou como um estado – tal imagina o cientificismo, o racionalismo. Na verdade, acontece antes historicamente num processo sem fim, advém só num processo de compreensão, haja vista que inexiste uma justiça objetiva do direito fora desse processo.156

Entendimento que se vincula à concretização dos direitos fundamentais

e encontra respaldo na igualdade, na justiça social e na garantia dos direitos

humanos – fundamentais e sociais. Liga-se a essa noção de Estado o “conteúdo

material das Constituições”, por meio dos direitos sociais-fundamentais, os quais

apontam para uma mudança do status quo da sociedade. As políticas sociais

advindas da ideia de Estado Social produziram uma autêntica institucionalização

da moral no Direito.157

Nesse contexto, para os operadores do Direito, trata-se

[...] de afirmar que o jurista, especialmente o juiz, deve firmemente orientar sua atividade jurisdicional – que quando julga litígios de natureza pública, quer quando decide conflitos intersubjetivos de natureza privada - no sentido do horizonte traçado pela Constituição, qual seja, repita-se, a edificação de uma sociedade mais justa, livre e solidária, constituída sobre o fundamentalíssimo pilar da dignidade de todos os seus cidadãos. Isso significa, necessariamente, que a magistratura necessariamente deve ser co-partícipe de uma política de inclusão social, não podendo aplicar acriticamente institutos que possam representar formas excludentes de cidadania.158

Embora sejam inúmeras as questões que envolvem formas

excludentes de cidadania, como acesso à justiça, insegurança jurídica,

celeridade, dentre outros, o importante é observar que vem se revelando na

156 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 235 157 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 150-151 158 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 55

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sociedade, em ultima ratio, uma situação de perigo para a democracia.159

Faria explica que a “aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade das

diferentes normas em vigor”, sob um ponto de vista jurídico, são efetivas quando,

tecnicamente, podem ser aplicadas e exigidas dentro dos limites do sistema legal.

Sob um ponto de vista menos jurídico e mais sociológico, essas prescrições são

efetivas quando encontram na realidade socioeconômica as condições políticas,

culturais e ideológicas para sua aceitação e cumprimento por parte de seus

destinatários. Segundo o autor,

[...] essa distinção é bastante esquemática – na realidade, longe de se excluírem, as duas definições de eficácia se justapõem: deste modo, uma ordem jurídica não se torna apenas porque é um sistema de regras internamente coerente, em termos lógico-formais, ou porque está sustentada no monopólio da força por parte do Estado, graças às forças policiais encarregadas da segurança pública; ela também se torna eficaz porque os cidadãos incorporam em suas consciências a premissa de que todas as diretrizes legais devem ser invioláveis. Sem a “internalização” de um sentido “genérico” de disciplina e respeito às leis, aos códigos e às normas, a eficácia de uma ordem legal acaba sendo seriamente comprometida, independentemente do poder repressivo do Estado que a impõem.160

Assim, a questão da efetividade do Direito precisa ser examinada

dentro de uma perspectiva histórica mais ampla, pois o desejo de estabilidade

jurídica e a reinvindicação de reformas sociais têm sido uma busca constante pela

sociedade. E, com esse intuito, muitas lutas têm sido travadas tanto em âmbito

público quanto privado. Nessa esteira,

[...] o Direito deixa de ser apenas um mecanismo de conservação do existente, [...] ele também pode ser instrumento de Justiça, de equilíbrio contratual e de inclusão social na sociedade atual, instrumento de proteção de determinados grupos na sociedade, de garantia à dignidade da pessoa humana, do combate ao abuso do poder econômico e combate a toda a atuação que seja contrária à boa-fé no tráfico social e no mercado. O direito, assim, pode ter uma função emancipatória, que historicamente lhe foi sonegado. Basta que o intérprete disso se conscientize e preste

159 SENA, Adriana Goulart. Formas de resolução de conflitos e acesso à justiça. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.46, n.76, p.93-114, jul./dez., 2007. p. 109-110 160 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 106-107

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sua adesão ao programa transformador da Constituição brasileira em vigor.161

Na concepção de Faria162, as lutas políticas e os impasses

institucionais não passam de esforços e tentativas frustradas para tornar real o

que as Constituições asseguram formalmente ser direito dos cidadãos.

Segundo Faria, é preciso:

[...] emergir um direito original e legítimo, voltando mais a questões de justiça substantiva do que a problemas de legalidade e propiciando um diálogo mais aberto entre os operadores do sistema jurídico e seus usuários, diálogo esse de cujas sínteses – as sentenças judiciais – seria possível extrair-se um espírito sempre renovado capaz de impedir a estagnação cultural e motivar uma atuação profissional transformadora, cabe a uma magistratura com um conhecimento multidisciplinar, poderes decisórios ampliados e um processo mais flexível uma dupla responsabilidade: tornar menos vaga e mais precisa uma ordem jurídica ambivalente e reformular – por via jurisprudencial e a partir das próprias contradições sociais – os conceitos fechados e tipificantes dos sistemas legais vigentes. Tal responsabilidade não pode ser subestimada pela magistratura, sob pena de acabar vendo esgotadas, de modo progressivo, tanto a operacionalidade quanto o próprio acatamento de suas decisões em face da expansão dos conflitos coletivos. 163

Prossegue o autor destacando que é preciso atentar a um novo

[...] risco que entreabre a possibilidade de uma “desinstitucionalização” progressiva do Judiciário, na medida em que esse esgotamento de sua operacionalidade e esse desacato a suas decisões por parte de grupos profissionais e de movimentos sociais aumentaria ainda mais a concorrência de espações e loci mais eficientes na resolução formal ou mesmo informal dos conflitos sociais, como é o caso da crescente intermediação política do Executivo nas ocupações de fábricas por trabalhadores, apropriações dos órgãos públicos responsáveis por serviços básicos no campo da saúde, transportes e energia por seus próprios funcionários e greves deflagradas independentemente dos procedimentos normativos exigidos pelas leis que as regulamentem.164

Percebe-se a importância de assumir um compromisso ético-jurídico

para efetivar a democracia por meio da “[...] administração da justiça, uma vez

161 FACCHINI NETO, In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003. p. 54-55 162 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 107 163 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 108 164 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 108-109

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que os tribunais não constituem, nos dias de hoje, apenas um importante espaço

de luta para os movimentos sociais e populares emergentes”.165

Os tribunais, como toda ordem jurídica, por sua própria natureza

ambivalente, consagram a um só tempo as diferentes formas de discriminação

existentes e algumas concepções normativas propostas por grupos políticos

efetivamente empenhados com a reintrodução do próprio direito positivo no

interior das relações sociais, “[...] na medida em que os juízes podem exercer um

papel fundamental na adequação de novos procedimentos formais à formulação

de uma nova vontade coletiva – isto é, à produção de um novo sentido de

ordem”.166

Na concepção de Moreira, um procedimento jurídico precisa:

[...] compor-se de tal modo que sua abertura para a vontade democrática dos cidadãos assuma ares institucionais, isto é, devem ser institucionalizados procedimentos que afastem a contingência de decisões arbitrárias e que não permitam a constituição de uma normatividade jurídica autopoiética. Sendo injusta, a normatividade jurídica abre-se para dois caminhos: o primeiro, permanecer injusta e aí ela deixa de ser uma ordem legítima e passa a constituir-se como arbítrio, violência. O segundo, atrelar ao conceito de direito a possibilidade de que sua normatividade seja fruto não da vontade democrática dos cidadãos, mas do arbítrio e da violência. Criva-se nessa normatividade, a abertura para a falibilidade e com isso, a presunção de que preceitos jurídicos possam ser revistos, revogados.167

Interpreta-se que no momento em que a Constituição corre o risco de

ser descaracterizada e o Judiciário desinstitucionalizado, o Direito, por

consequência, perde o seu sentido, o que demonstra a importância de abordar a

teoria do Direito diante da insuficiência do paradigma dominante, temática à qual

dedica-se o item seguinte.

165 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 107 166 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 107 167 MOREIRA, Luiz. A fundamentação do direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos/Fortlivros, 1999. p. 166-167

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2.2 A TEORIA DO DIREITO DIANTE DA INSUFICIÊNCIA DO PARADIGMA

DOMINANTE

Faria argumenta sobre a importância de “[...] colocar em novos termos

a tradicional e importante questão da efetividade jurídica tal como tem sido

comumente formulada no âmbito da Teoria do Direito”, pois, “[...] segundo os

teóricos do Direito, a eficácia de uma ordem legal pode ser definida como o poder

de produzir efeitos jurídicos concretos na regulação de situações, relações e

comportamentos previstos por seus códigos e leis”. Nesse sentido, “[...] a eficácia

diz assim respeito a aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade das diferentes

normas em vigor [...]”, sendo que, juridicamente, as referidas normas “[...] são

efetivas quando, tecnicamente, podem ser aplicadas e exigidas dentro dos limites

do sistema legal”.168

Streck, contribuindo para esse entendimento, traz a lume o papel dos

intérpretes do Direito, objetivando demonstrar a “[...] necessária desconstrução de

uma tese de que vem servindo base, de há muito, para a caracterização dos

modelos de Direito e de juiz nos diversos e diferentes equívocos na teoria do

Direito”. O autor refere-se ao texto intitulado “Júpiter, Hércules, Hermes: três

modelos de juiz”, de François Ost, em que a proposição centra-se numa espécie

de “juiz-pós-moderno-sistêmico”, no qual

[...] (Hermes) que atuaria em rede e superaria, com grande vantagem, os “modelos anteriores”. Com efeito, para Ost, basicamente a teoria do direito trabalha com dois modelos de juiz, que também simboliza(ria)m “modelos de direito” (Júpiter e Hércules). O primeiro representaria o modelo liberal legal, de feição piramidal-dedutivo, isto é, sempre dito a partir do alto, de algum “monte Sinai”; esse direito adota a forma de lei e se expressa em forma de imperativo, vindo a ser representado pelas tábuas da lei ou códigos e as Constituições modernas, sendo que dessa parametricidade é que são deduzidas as decisões particulares.169

No que se refere ao modelo herculeano, a figura do juiz é interpretada

como “única fonte do Direito válido”, o que significa

168 FARIA, Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais, 1992. p. 106-107 169 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 102-103

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[...] uma pirâmide invertida, no dizer de Ost. É Dworkin quem, no dizer do autor, ao revalorizar até o extremo a figura do juiz moderno, atribui-lhe as características de Hércules. Embora diga que não pretende “equiparar” a tese de Dworkin aos realistas ou pragmatistas. Ost termina por colocar no Hércules dworkiano os “defeitos” que caracterizariam o juiz “monopolizador da jurisdição” no modelo de direito do Estado Social, em que o direito “se reduz ao fato”, enfim, à indiscutível materialidade da decisão. Esse juiz propiciaria um decisionismo, a partir da ploriferação de decisões particulares. 170

Como antítese, “[...] Ost apresenta um tertius genus, o juiz Hermes,

que adota a forma de rede nem um polo, nem dois, isto é, nem a pirâmide e nem

o funil, e tampouco a superposição dos dois senão uma multiplicidade de pontos

de inter-relação [...]”, ou seja,

[...] um campo jurídico que analisa como uma combinação infinita de poderes, tanto separados como confundidos, amiúde intercambiados; uma multiplicação dos atores, uma diversificação de regras, uma intervenção de réplicas; tal circulação de significados e informações não se deixa aprisionar em um código ou em uma decisão: expressa-se sob a forma de um banco de dados. Assim, segundo Ost, o direito pós moderno, o direito de Hermes, é uma estrutura em rede que traduz em infinitas informações disponíveis instantaneamente e, ao mesmo tempo, dificilmente matizáveis. Trata-se, em síntese, de uma teoria lúdica do direito. O juiz Hermes não é nem transcendência nem imanência; encontra-se em uma e outra dialética ou paradoxalmente (uma e outra).171

Nessa esteira, argumenta Espindola:

Uma jurisdição que se pretende democrática, apta a receber a tutela preventiva, precisa desconstruir os modelos de juízes, embora tenha neles – os juízes – forte aliados para viabilizar sua construção e consolidação em sintonia com os ideais do paradigma do Estado Democrático de Direito, superador do modelo liberal. Toda decisão judicial é uma opção ética que, portanto, mostra-se incompatível com a passividade de Júpiter, com o ativismo de Hércules e com a performance de Hermes. Os juízes não são deuses, não atendem a modelos ou fórmulas padrões, são homens de carne e osso que assumem a responsabilidade ética e constitucional que o Estado Democrático de Direito lhes confere. Não se pretende declarar a livre criação judicial do direito, tampouco uma rebelião do juiz contra a lei. Igualmente, não se afirma que a lei admite uma interpretação ilimitada (sem limites) ou que está aberta ao ativismo judicial. A lei, sobretudo a Constituição, na tradição romano-canônica, é

170 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 103 171 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 103

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instrumento de regulação social e continua sendo a expressão do princípio democrático.172

Nesse sentido, torna-se mister avaliar que, para preencher a função

socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do

Direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições de

aceitabilidade racional e da decisão consistente. E a passagem da perspectiva

histórica para a sistemática acontece explicitamente quando a justificação interna

de um juízo apoiada em premissas dadas preliminarmente cede lugar à

justificação externa das próprias premissas.173

Segundo Habermas:

O problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racionalmente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção. A hermenêutica propõe um modelo processual de interpretação. A interpretação tem início numa pré-compreensão valorativa que estabelece uma relação preliminar entre norma e estado de coisas, abrindo horizontes para ulteriores relacionamentos. 174

Dessa forma, “a hermenêutica tem uma posição própria no âmbito da

teoria do Direito, porque ela resolve o problema da racionalidade da

jurisprudência através da inserção contextualista da razão no complexo histórico

da tradição”. Ademais, “a indeterminação de um processo de compreensão

circular pode ser reduzida paulatinamente pela referência a princípios”. Todavia,

“[...] esses princípios só podem ser legitimados a partir da história efetiva da forma

da vida e do Direito, no qual o próprio juiz se radica de modo contingencial”.175

Na visão do realismo legal da Escola do direito livre e da jurisprudência de interesses, não é possível fazer uma distinção clara entre direito e política, lançando mão de características estruturais. O direito passa a valer, então, como um instrumento do controle do comportamento a ser acionado para fins racionais, isto é, fins políticos fundamentados utilitaristicamente de acordo

172 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 232-233 173 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 246 174 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 247 175 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 248

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com o bem estar econômico. Quando pressupomos um sistema jurídico autônomo, que além disso se diferencia em regras primárias, determinadoras do comportamento, e secundárias, que reproduzem auto-referencialmente normas, a validade das prescrições jurídicas mede-se somente pela manutenção dos procedimentos juridicamente prescritos da normatização do direito. 176

A ligação da validade do Direito à sua gênese não permite uma solução

simétrica do problema da racionalidade. A razão ou a moral são, de certo modo,

subordinadas à história. Por isso, a interpretação positivista da prática de decisão

judicial faz com que a garantia da segurança jurídica fique à sombra da garantia

da correção.177

Dworkin posiciona-se pela possibilidade e necessidade de decisões

consistentes ligadas às regras, as quais garantem uma medida suficiente de

garantia do Direito, o que se contrapõe ao positivismo. Assim, ele afirma a

possibilidade e a necessidade de “decisões corretas”, cujo conteúdo é legitimado

à luz dos princípios. Entretanto, a referência hermenêutica a uma pré-

compreensão determinada por princípios não deve entregar o juiz à história de

tradições autoritárias com conteúdo normativo; pelo contrário, esse recurso

obriga-o a uma apropriação crítica de uma história institucional do Direito, na qual

a razão prática deixou seus vestígios. Dworkin refere-se aos direitos que gozam

de validade positiva e merecem reconhecimento sob pontos de vista da justiça. 178

Tassinari, com base na lição de Streck, salienta:

A recepção de um ativismo judicial à brasileira [...] acabou gerando uma série de problemas ao constitucionalismo no Brasil, como: [...] a fragilização de uma teoria do direito voltada para as peculiaridades do contexto jurídico brasileiro; [...] a perda da autonomia do direito, em face do Lenio Streck chama de “predadores externos” do Direito, que consistem em decisões judiciais fundamentadas em critérios não jurídicos; e a defesa da discricionariedade, que elimina o compromisso democrático e a responsabilidade judicial na decisão das contendas jurídicas, o

176 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 249-250 177 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 251 178 HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. 252

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que se torna ainda mais preocupante em razão da caracterização de um cenário marcado por uma intensa procura pelo Judiciário.179

Há que se destacar, nesse contexto, a teoria discursiva do Direito, uma

vez que esta envolve examinar se podem os destinatários das normas jurídicas

questionar a validade das prescrições.180 Sob outros termos, de acordo com

Habermas, o “processo democrático que possibilita a livre flutuação de temas e

de [...] de argumentos, assegura um caráter discursivo à formação política da

vontade, fundamentando, deste modo, a suposição falibilista de que os resultados

obtidos de acordo com esse procedimento são mais ou menos racionais”.181

A ordem jurídica não é heterônoma, mas emana da produção discursiva da vontade política dos membros da comunidade jurídica [...]. Embora os cidadãos sejam autores do sistema jurídico, a produção discursiva da vontade democrática dos cidadãos exige um processo de institucionalização. Ora, como emana discursivamente da vontade dos cidadãos, a normatividade do Direito não é fechada sobre si mesma, antes precisa comprovar-se na factualidade das decisões democráticas.182

Verifica-se que a ordem jurídica, enquanto produto do discurso da

vontade política dos representantes eleitos pelos cidadãos, exige um processo de

institucionalização, que, por sua vez, ocorre através do processo legislativo.

Porém, para adquirir força normativa, é necessário que essa ordem comprove-se

nas decisões democráticas. Nesse sentido, o procedimento legislativo precisa

estar em condições de institucionalizar a vontade democrática dos cidadãos.

Para Moreira, a concretização “[...] vem a ser a concepção pós-

metafísica de uma autoconstituição da liberdade comunicativa, que se expressa

através da livre composição dos temas e contribuições que devem formar a

agenda de institucionalização”, em seguida, torna-se essencial “[...] a etapa de

179 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2013. p. 150 180 “A validade das proposições jurídicas são, em princípio, passíveis de revogação, embora não o seja o ordenamento jurídico, pois a aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apoia a sua pretensão de legitimidade. O problema de saber se o ordenamento jurídico é ou não válido é medido pelo espaço de liberdade que cabe a cada sujeito de direito. Tanto mais legítimo será o Direito quanto mais preservar o espaço da liberdade privada. A autonomia do cidadão se mede através da liberdade negativa que cabe a cada indivíduo. Desta forma as prescrições do ordenamento jurídico só são válidas quando as partes receptoras tiverem seu espaço de liberdade, sua autonomia, preservados. MOREIRA, Luiz. A fundamentação do direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos/Fortlivros, 1999. p. 163. 181 MOREIRA, A fundamentação do direito em Habermas, 1999. p. 164 182 MOREIRA, A fundamentação do direito em Habermas, 1999. p. 165

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correição processual”, pois o procedimento jurídico deve compor-se de tal modo

que sua abertura para a vontade democrática dos cidadãos assuma ares

institucionais, isto é, devem ser institucionalizados procedimentos que afastem a

contingência de decisões arbitrárias e que não permitam a constituição de uma

normatividade jurídica autopoiética. 183

Em sendo injusta, a normatividade jurídica abre-se para dois caminhos,

no primeiro, permanece injusta e aí ela deixa de ser uma ordem legítima,

passando a constituir-se como arbítrio, violência. Num segundo vislumbre, atrelar

ao conceito de Direito a possibilidade de que sua normatividade seja fruto não da

vontade democrática dos cidadãos, mas do arbítrio e da violência. Criva-se, nessa

normatividade, a abertura para a falibilidade e, com isso, a presunção de que

preceitos jurídicos possam ser revistos, revogados.184

Depreende-se, então, que a normatividade jurídica, quando injusta, e

permanecendo injusta, perde o status de uma ordem legítima, pois sai da esfera

comunicativa, passando a constituir-se em uma ordem arbitrária. Torna-se fruto

de vontades não democráticas, abrindo caminho, dessa forma, para a revisão e

possível revogação de preceitos jurídicos.

Assim, cabe dizer que o ordenamento jurídico passa a ser normativo no

momento em que incorpora a dimensão da liberdade comunicativa, pois essa

normatividade é tão somente mediata porque, para constituir-se como normativo,

o ordenamento jurídico precisa ser reconhecido como legítimo.185

Streck sustenta que é necessário “um novo modo de compreender a

interpretação jurídica, que tem como pressuposto uma teoria da decisão judicial,

apresentando-se, assim, como uma refutação final e direta ao problema do

ativismo [...]”, o que demanda uma associação entre “teoria democrática e aportes

filosóficos de propostas que transformem radicalmente a maneira de compreender

o problema hermenêutico”.186

183 MOREIRA, A fundamentação do direito em Habermas, 1999. p. 166 184 MOREIRA, A fundamentação do direito em Habermas, 1999. p. 167 185 MOREIRA, A fundamentação do direito em Habermas, 1999. p. 167 186 TASSINARI, Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, 2013. p. 150

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Refletir sobre a hermenêutica, como diz Häberle,187 é entender sobre

uma teoria constitucional que se concebe como ciência da experiência. Assim, é

preciso questionar, de maneira realista, qual interpretação foi adotada, a forma

como se desenvolveu e qual contribuição da ciência influenciou decisivamente o

juiz constitucional no seu afazer hermenêutico. Essa questão configura um

enriquecimento e uma complementação da teoria da Constituição, que questiona

sobre os objetivos e métodos, indagando, assim, sobre a “boa” interpretação.

2.3 A HERMENÊUTICA PARA ALÉM DO ATIVISMO

A jurisdição é um catalisador essencial, ainda que não único, da ciência

do direito constitucional, como interpretação constitucional. A estrita

correspondência entre vinculação (à Constituição) e legitimação para a

interpretação perde, todavia, o seu poder de expressão quando se consideram os

novos conhecimentos da teoria da interpretação, pois essa é um processo aberto.

Não é, contudo, um processo de passiva submissão, nem se confunde com a

recepção de uma ordem. A interpretação conhece possibilidades e alternativas

diversas. Assim, a vinculação se converte em liberdade na medida em que se

reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia

da subsunção. A ampliação do círculo dos intérpretes sustentada é apenas a

consequência da necessidade, por todos defendidos, de integração da realidade

no processo de interpretação. 188

A decisão judicial, bem como a independência funcional dos juízes não

podem se afastar da interpretação constitucional. Diante da objeção de que a

unidade constitucional se perderia com a adoção desse entendimento, deve-se

observar que as regras básicas de interpretação remetem ao “concreto” que

resulta da conjugação desses diferentes intérpretes da Constituição no exercício

de suas funções específicas. A própria abertura da Constituição demonstra que

não apenas o constitucionalista participa desse processo de interpretação, mas a

unidade da Constituição surge da conjugação do processo e das funções de

187 HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, 1997. p. 20-38 188 HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, 1997. p. 28-30

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diferentes intérpretes. Portanto, devem ser desenvolvidas reflexões sob a

perspectiva da “Teoria da Constituição e da Teoria Democrática”.189

De acordo com Streck:

Algumas posturas críticas sobre a hermenêutica jurídica – em especial a hermenêutica filosófica de Hans – Georg Gadamer – receberam uma nítida influência da ontologia fundamental de matriz heideggeriana, a partir de seus dois principais teoremas: o círculo hermenêutico [...] e a diferença ontológica [...]. Como tenho registrado em outros textos, o conjunto de obra de Heidegger constitui-se em base fundante de um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica embora – registre-se – o filósofo não tenha dedicado, em suas obras, espaço para o direito. Entretanto, a importância de Heidegger é facilmente perceptível pela viragem ontológica (ontologishe Wendung) no campo da hermenêutica jurídica, proporcionada por seu discípulo Hans-Georg Gadamer, cujas ideias deitam profundas raízes nos teoremas fundamentais elaborados pelo filósofo da Floresta Negra.190

Acrescenta ainda o jurista que “a fenomenologia hermenêutica permite

superar o esquema sujeito-objeto que tem tornado, historicamente, o pensamento

jurídico refém dos paradigmas objetivistas aristotélico-tomista e da subjetividade”.

Faz referência ao fato de “círculo hermenêutico” atravessar a relação “sujeito-

objeto [...] a partir da antecipação de sentido, impedindo o objetivismo e o

subjetivismo próprios do pensamento metafísico”. Entende Streck que “a

compreensão [...] ocorre no interior desse virtuoso círculo hermenêutico. Qualquer

interpretação que contribua para a compreensão deve já haver compreendido o

que se deve interpretar, dirá Heidegger”. Dessa forma, “não se pode esquecer

que o há-sempre-ter-estado e a historicidade do Dasein são as características de

nossa facticidade. Essa pré-estrutura projeta nosso compreender e antecipa os

sentidos que temos do mundo”.191

Todavia, para Streck, não significa ser

[...] prisioneiros dessa pré-estrutura. Compreender não é um modo de conhecer, mas um modo de ser. Por isso – e essa circunstância ficará bem explicitada na hermenêutica gadameriana desenvolvida em Warheit und Methode – compreender e,

189 HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, 1997. p. 31-33 190 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99 191 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99

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portanto, interpretar (que é explicitar o que se compreendeu), não depende de um método, saltando-se assim, da epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão. Quando Heidegger identifica um duplo nível na fenomenologia (o nível hermenêutico, de profundidade, que estrutura a compreensão, e o nível apofântico, de caráter lógico, meramente explicitativo, ornamental), abre as possibilidades para a desmi(s)tificação das teorias argumentativas de cariz procedimental. Na verdade, coloca em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento, questão que se torna absolutamente relevante para aquilo que tem dominado o pensamento dos juristas: o problema do método, considerado como supremo momento da subjetividade e garantia da “correção dos processos interpretativos”.192

A interpretação, prossegue o autor, depende da compreensão, a qual

se vincula a pré-compreensão, oportunizando uma estrutura prévia do sentido,

“[...] que se funda essencialmente em uma posição prévia [...], visão prévia [...] e

concepção prévia – que já une todas as partes do sistema”.193

Assim, tendo-se como autor base Lenio Luiz Streck, que discute em

suas obras a crise do paradigma jurídico, para além do ativismo e do garantismo,

tendo-se como pano de fundo os direitos fundamentais, bem como a visão do

autor sobre positivismo e neoconstitucionalismo, considerando-se que o

reconhecimento impõe deveres positivos em conformidade com a Carta Magna.

Menciona o autor:

[...] em face dos temores que determinados setores da sociedade têm acerca de um excessivo ativismo judicial, é necessário recordar, com Garcia Herrera, que cuando se defiendem los princípios constitucionales no se hace política sino defensa juridiscional de la Constitución. Mais ainda, torna-se relevante acrescentar que o Estado Democrático de Direito assenta-se em dois pilares: a democracia e os direitos fundamentais. Não há democracia sem o respeito e a realização dos direitos fundamentais-sociais, e não há direitos fundamentais-sociais – no sentido que lhe é dado pela tradição – sem democracia. Há, assim, uma co-pertença entre ambos. O contemporâneo constitucionalismo pensou nessa necessária convivência entre o

192 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99-100 193 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 100

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regime democrático e a realização dos direitos fundamentais, previstos nas Constituições.194

Nesta seara, considera-se essencial distinguir “ativismo judicial,

judicialização e garantismo judicial”. Em relação à judicialização, observe-se que

“[...] o Poder Judiciário decide questões de ampla repercussão, substituindo-se

aos Poderes Executivo e Legislativo”. Cabe dizer que ao ser “[...] chamado a se

manifestar sobre um caso concreto, o Poder Judiciário não pode se eximir de

fazê-lo e, ao decidir uma questão, pode, por vezes, emitir julgamentos [...]”,

quando se tratar de matéria especificamente “política e social”.195 O ativismo

judicial é uma expressão que tem sido utilizada de forma diversificada, na doutrina

e jurisprudência. Assim, na esfera jurisprudencial, envolve “[...] a adoção da

concepção de ativismo judicial como a necessária e permitida atuação do Poder

Judiciário, em que este se substitui ao legislativo e cria Direito em hipóteses de

lacuna normativa [...]”, objetivando efetivar “[...] valores consagrados na

Constituição Federal ao interpretá-la.”196

Nessa linha, verifica-se que o ativismo judicial

[...] certamente leva a uma indesejável e excessiva discricionariedade do juiz em Estados que se pretendem Constitucionais de Direito, como é o caso do Brasil. Ao se admitir a possiblidade de que o juiz se substitua ao legislador, desempenhando o seu papel, estará definitivamente comprometida a separação de poderes, o que conduzirá ao rompimento com os ideais democráticos. 197

Todavia, filiando-se ao entendimento de Barroso, Grupenmacher

comenta que se encontra vinculada à ideia de ativismo judicial “[...] uma

participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e

fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros

194 STRECK, Lenio Luiz. Teoria da constituição e estado democrático de direito: ainda é possível falar em constituição dirigente? In: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN, de Morais, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed.. Porto Alegre, Livraria do Advogadp, 2001. p. 8 195 GRUPENMACHER, Betina Treiger. Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades. RJLB, Lisboa, Ano 1, n. 4, p. 11-150, 2015. p. 126 196 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127 197 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127

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Poderes”.198 Dessa forma, ao Poder Judiciário cabe ampliar sua atuação, sem

que, com isso, fique vulnerável a separação constitucional de poderes, não

significa que possa atuar “como legislador positivo”.199 Não obstante, “caracteriza

também ativismo judicial a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos

normativos, especialmente no que concerne aos efeitos das respectivas

decisões”. 200

Fazendo referência à lição de Eduardo Maneira, o qual classifica o

ativismo judicial, de um lado em sentido forte (hard activism) e de outro em

sentido fraco (soft activism), Grupenmacher explica que:

O primeiro seria aquele que, diante da inexistência de parâmetro jurídico- normativo, adota argumentos filosóficos e pragmáticos para a solução do caso concreto. O segundo lança mão da Constituição para decidir sobre uma política pública ou regulamentar uma norma constitucional, quando houver omissão do legislador ou do agente do Poder Executivo.201

Por fim, tem-se “o garantismo ou constitucionalismo garantista”,

seguindo a interpretação proposta por Luigi Ferrajoli, o qual se afasta do

neoconstitucionalismo, inserindo-se no

[...] constitucionalismo positivista e garantista diferencia-se do constitucionalismo não positivista e principialista pela rejeição de todos aqueles que são os seus três elementos principais: [...] a conexão entre o direito e a moral; [...] a contraposição entre princípios e regras e a centralidade conferida à distinção qualitativa; [...] o papel da ponderação, em oposição à subsunção, na prática jurisdicional.202

Para Leal, “[...] o garantismo em sede constitucional democrática não

se configura per se em face de indicação literal de direitos humanos na

Constituição ou em função de uma judicacionalidade centrada na filosofia da

consciência [...]”. Sobre esse entendimento, há que se observar resistências,

198 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127 199 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127 200 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127 201 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 127 202 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 128

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motivadas pela “[...] confusão paradigmática distorsiva dos rumos hermenêuticos

do direito democrático, quando se utiliza dos contornos ideológicos do Estado

Liberal [...]”, pois essas têm por base decisões fulcradas “[...] numa visão

atomística da Sociedade Política por uma esfera pública (Estado) atada ao

privatismo jurídico [...] em que, erroneamente em nome da organização de um

regime democrático, o juiz se lança na rede de valores [...]”, decidindo conforme

os “[...] tecnicismos metodológicos do estado Burguês por assembleia de

especialistas ancorados no saber iluminista do séc. XVIII e no individualismo

civilista do séc. XIX”.203

Convém ponderar que abandonar antigas concepções hermenêuticas,

já enraizadas no ensino jurídico, buscando “[...] metodologias construtoras de uma

jurisprudência de valores e de conceitos [...] impede a transição da comunidade

para a sociedade política pelo status democrático”. Assim, mediante “[...] uma

jurisdição de juízes guardiães e depositários infiscalizáveis [...] e não pelo

legislador político direto [...] como legitimado universal a produzir, atuar e recriar o

direito por via abstrata [...] ou concreta [...] em ações [...] constitucionais,

ordinários, codificados ou não”. 204

Na visão de Streck:

[...] em face dos temores que determinados setores da sociedade têm acerca de um excessivo ativismo judicial, é necessário recordar, com Garcia Herrera, que cuando se defiendem los princípios constitucionales no se hace política sino defensa juridiscional de la Constitución. Mais ainda, torna-se relevante acrescentar que o Estado Democrático de Direito assenta-se em dois pilares: a democracia e os direitos fundamentais. Não há democracia sem o respeito e a realização dos direitos fundamentais-sociais, e não há direitos fundamentais-sociais – no sentido que lhe é dado pela tradição – sem democracia. Há, assim, uma co-pertença entre ambos. O contemporâneo constitucionalismo pensou nessa necessária convivência entre o

203 LEAL, R. Pereira. O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e certos. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, Ano 3, v. IV, 2009. (Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ). Disponível em: www.redp.com.br Acesso em: 12 jul., 2015. p. 118 204 LEAL, O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e certos, 2015. p. 118

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regime democrático e a realização dos direitos fundamentais, previstos nas Constituições.205

Percebe-se que o assunto “[...] ativismo judicial passou a ser

enfrentado com maior ênfase no âmbito da chamada doutrina

neoconstitucionalista [...]”. Significa dizer que os defensores dessa concepção

entendem que “[...] o magistrado deixa de atuar como mero aplicador da lei ao

caso concreto e passa a adotar novos métodos hermenêuticos que lhe permitem,

verdadeiramente, criar o Direito [...]”. Assim, legislar “[...] positivamente em

substituição à atividade desempenhada pelo Poder Legislativo”.206

O neoconstitucionalismo, enquanto doutrina de direito constitucional, substituiu, após a Segunda Guerra Mundial, o constitucionalismo tradicional, ao reconhecer normatividade à Constituição, atribuindo maior eficácia aos direitos e garantias fundamentais, e buscando a sua concretização com ampliação da atividade jurisdicional, sobretudo em relação às cláusulas abertas, aquelas com elevado conteúdo de indeterminação. Verifica-se, no referido fenômeno, o surgimento de uma hermenêutica constitucional que adota o método da ponderação na aplicação de princípios para a solução de casos concretos, em detrimento do tradicional método da subsunção, além da ampliação da jurisdição constitucional. 207

“É no contexto do neoconstitucionalismo que surgem as primeiras

ideias sobre o ativismo judicial, cujo berço é o sistema norte-americano, no qual

as decisões judiciais caracterizam fonte de Direito”. O período contribuiu para o

surgimento de inúmeras concepções sobre o ativismo judicial208. Contudo,

205 STRECK, Lenio Luiz. Teoria da constituição e estado democrático de direito: ainda é possível falar em constituição dirigente? In: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN, de Morais, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed.. Porto Alegre, Livraria do Advogadp, 2001. p. 8 206 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 124 207 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 124 208 Na concepção de Streck: o emprego do termo ativismo judicial no Brasil tem sido tratado de forma superficial “[...] essa incompreensão em torno do ativismo judicial não se restringe ao problema brasileiro. Também Peter Häberle, prestigiado constitucionalista alemão, em entrevista publicada no Conjur (Repúblicas jovens necessitam de ativismo judicial, in: www.conjur.com.br, 13.02.2009) entende ‘ser saudável’ para as ‘novas repúblicas’ o ativismo judicial praticado nos tribunais que, através de sua ação no tecido social, obriga os demais poderes a agirem também. Creio, porém, que devemos ter cautela diante da afirmação de Häberle. De pronto consigno que, quando o judiciário age – desde que devidamente provocado – no sentido de fazer cumprir a Constituição, não há que se falar em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Corte extrapola os limites impostos pela Constituição e passa a fazer política judiciária, seja para o bem ou para o mal. Ademais, a discussão de Häberle sempre precisará ser contextualizada pelo simples fato de que seu contexto vivencial concreto é outro – jurisprudência de valores [...] que é bem diferente daquele que se apresenta em terrae brasilis. Portanto, não me

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predomina “[...] aquela em que os magistrados, com o propósito de concretização

e interpretação de princípios e regras constitucionais e legais, passam a exercer a

jurisdição resolvendo as questões concretas [...], de forma proativa.”209

Para Streck:

O pós-positivismo deveria ser a principal característica do neoconstitucionalismo. Mas não é. Ou seja, o neoconstitucionalismo somente teria sentido enquanto “paradigma do direito” se fosse compreendido como superador do positivismo ou dos diversos positivismos. Pós-positivismo não é uma continuidade do positivismo, assim como o neoconstitucionalismo não deveria ser uma continuidade do constitucionalismo liberal. Há uma efetiva descontinuidade de cunho paradigmático nessa fenomenologia, no interior da qual os elementos caracterizadores do positivismo são ultrapassados por uma nova concepção de direito. Penso que o ponto fundamental é que o positivismo nunca se preocupou em responder ao problema central do direito, por considerar a discricionariedade judicial como uma fatalidade. A razão prática – que o positivismo chama de discricionariedade – não poderia ser controlada pelos mecanismos teóricos da ciência do direito. A solução, portanto, era simples: deixemos de lado a razão prática (discricionariedade) e façamos apenas epistemologia (ou, quando esta não dá conta, deixe-se ao alvedrio do juiz – eis o ovo da serpente gestado desde a modernidade).210

Observa-se que a utilização do conceito ativismo carrega “um ônus

argumentativo”, melhor dizendo, assiste-se a uma crítica inerente às decisões

judiciais, direcionadas mais especificamente ao Supremo Tribunal Federal,

baseada numa “[...] mera ideologização da visão de nossa prática judicial e do

seu discurso crítico. Portanto, o conceito de ativismo judicial, de maneira geral,

tem sido vítima de um uso retórico e simplista, não se revelando minimamente

eficaz [...]”, ou seja, há uma carência de debate consistente abrangendo a

jurisprudência brasileira.211

É possível dizer que:

parece conveniente que os juristas brasileiros recebam a entrevista como uma ode ou lovação ao ativismo”. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 22 209 GRUPENMACHER, Ativismo x garantismo judicial em matéria tributária – limites e possibilidades, 2015. p. 125 210 STRECK, Lenio Luiz. Contra o neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 4, Jan-Jun. p. 9-27, 2011. p. 12-13 211 CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Ativismo judicial: proposta para uma discussão conceitual. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 49 n. 193 jan./mar. 2012. p. 145

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O ativismo não é nenhuma novidade em nosso contexto político-social. Até bem pode ser no plano teórico, mas não o é novidade no plano prático jurisprudencial. Em verdade, teorias jurídico-constitucionais que creem em uma suposta proeminência do Poder Judiciário no jogo democrático descendem de uma ideologia jurídica. De fato, há uma crença generalizada no seio da teoria jurídica de que o Poder Judiciário é capaz de dar conta dos anseios sociais.212

De fato, é evidente que a referida teoria é enfatizada “[...] fruto de um

ideário moderno advindo da Constituição Federal de 1988 [...]”, entretanto, “[...] o

ativismo judicial – tal como se entende hoje em dia –, [...] é consequência de

quase dois séculos de atuação de nosso órgão responsável para julgar os litígios

individuais”. Evidencia-se “[...] um desvirtuamento do Poder Judiciário no Brasil na

medida em que ele conflita com os demais poderes”. 213

Portanto, é preciso avaliar que:

[...] em nenhum momento o Poder Judiciário foi tido pela própria Constituição de 1988 como responsável pela condução dos destinos de nossa comunidade política. Aqueles que pregam que é o Poder menos perigoso ou, então, que é o mais capacitado, em geral, colocam-no sob um perigoso fardo. Todos os sucessos ou fracassos da comunidade política não serão compartilhados igualitariamente pelos indivíduos de nossa sociedade, mas serão inteiramente atribuída ao Poder Judiciário.214

Seja como for, não há como esquecer que “[...] o próprio Poder

Judiciário poderá ser responsável pelos retrocessos de políticas conquistadas

democraticamente pela sociedade”. Em âmbito histórico, é possível identificar

erros atribuídos ao Poder Judiciário, procedente inferir que “[...] o ativismo judicial

no Brasil dá-nos conta de que nem sempre a atuação judicial é o melhor remédio

para os males sociais”.215

212 SILVA, Diogo Bacha e. Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro pelo controle dos demais poderes. Revista de Informação Legislativa, Brasília, Ano 50 Número 199 jul./set. 2013. p. 175-176 213 SILVA, Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro pelo controle dos demais poderes, 2013, p. 176 214 SILVA, Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro pelo controle dos demais poderes, 2013, p. 176 215 SILVA, Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro pelo controle dos demais poderes, 2013, p. 176

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O tema suscita divergências teóricas devido aos inúmeros

posicionamentos, no entanto, abordando-o sobre uma ótica neoconstitucionalista,

verificam-se as seguintes características:

a) todas elas pretendem-se pós-positivistas – isto é, surgem visando a contrapor o positivismo; b) em sua maioria, resgatam o papel dos princípios na intepretação do Direito; c) reconciliam Direito e Moral; e, por fim, a pretexto disso, d) afirmam o protagonismo judicial (ou o papel acentuado da jurisdição, com um aumento das faculdades interpretativas do julgador), a partir da defesa da discricionariedade judicial (ou elasticidade interpretativa).216

As referidas características conduziram a uma concepção de

constitucionalismo que, no Brasil, contribuiu para a defesa do ativismo judicial.

Procedente verificar que “[...] a transformação do perfil da jurisdição, como

responsável também pela concretização de direitos constitucionalmente

assegurados, acabou sendo levada a extremos, a ponto de conceder espaço para

uma atuação jurisdicional [...]”, a qual ultrapassou “[...] os limites definidos pela

Constituição e pela legislação democraticamente produzida”.217

Tal fato impulsionou Lenio Streck “[...] a nomear o constitucionalismo

do segundo pós-guerra de modo diferenciado: Constitucionalismo

Contemporâneo”. A adoção dessa expressão pelo autor teve por proposição

atacar dois pontos específicos, o primeiro “refutar o(s) neoconstitucionalismo(s)

(especialmente surgidos no âmbito do constitucionalismo espanhol)”; o segundo,

“buscar a superação do positivismo jurídico”.218

É bem verdade que o autor visou substituir a expressão

neoconstitucionalismo, adotando uma “[...] abordagem, que, em linhas gerais, se

opõe ao estabelecimento de uma relação de causalidade existente no trinômio

216 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial. Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 38-39 217 TASSINARI, A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial, 2012. p. 38-39 218 TASSINARI, A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial, 2012. p. 38-39

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moral-princípios-discricionariedade [...]”, incorporada nas “[...] posturas

neoconstitucionalistas, porque favorecem o ativismo judicial”.219

Cumpre observar:

[...] o ativismo judicial revela-se um problema criado pelo Direito (mas, evidentemente, com consequências em todas as demais esferas), sobre o qual a comunidade jurídica deve, primeiro, debruçar-se no interesse de perguntar por seu sentido, para posteriormente apresentar uma resposta, na senda de um constitucionalismo democrático. E, no questionamento de como pode ser compreendida a manifestação judiciária, é possível encontrar posicionamentos que retrataram a indexação da decisão judicial a um ato de vontade daquele que julga. 220

Em síntese Tassinari, filiando-se a Streck, demonstra que “[...] o

ativismo judicial é um problema de teoria do Direito. Mais precisamente, de teoria

da interpretação [...]”, portanto, envolve análise e formas de abordar o problema

que se refere à “interpretação no Direito”.221

Nesta senda menciona Trindade:

Quais os limites da interpretação do direito? É possível afirmar que uma lei admite múltiplas interpretações válidas? Há margens para juízos discricionários? Até onde pode ir o magistrado ao aplicar as normas jurídicas? [...] abordando o problema do protagonismo judicial na interpretação e na aplicação do direito. Como se sabe, desde o final do século XX observa-se o crescente poder que os juízes e tribunais passam a exercer sobre a vida coletiva, seja em razão do aumento quantitativo e qualitativo da busca pela justiça como um dos efeitos da crise geral que assola a sociedade moderna, seja como fenômeno social mais amplo, em que a perda de referências e de valores representa um sintoma do declínio da família, do desaparecimento da religião como ícone moral e da falência das instituições tradicionais. Ocorre que, não obstante a jurisdição constitucional ter se tornado uma peça fundamental da engrenagem do Estado Constitucional

219 “Com isso, tem-se que a caracterização do ativismo judicial decorre da análise de determinada postura assumida por um órgão/pessoa na tomada de uma decisão que, por forma, é investida de juridicidade. Dá-se um passo, portanto, que está para além da percepção da centralidade assumida pelo Judiciário no atual contexto social e político, que consiste em observar/controlar qual o critério utilizado para decidir, já que a judicialização, como demonstrado, apresenta-se como inexorável (o que não significa dispensar uma crítica voltada à análise e ao questionamento da atuação do Legislativo e do Executivo).” TASSINARI, A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial, 2012. p. 38-39 220 TASSINARI, A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial, 2012. p. 41 221 TASSINARI, A atuação do Judiciário em tempos de constitucionalismo contemporâneo: uma crítica ao ativismo judicial, 2012. p. 41

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e, então, todos os olhares terem se voltado para a figura do juiz, poucos ainda são os estudos e pesquisas sobre o protagonismo judicial e seus reflexos, sobretudo em terrae brasilis222.

Ao adentrarmos no tema que envolve a interpretação do direito, surge

questionamentos sobre as diferentes interpretações que acabam desaguando em

juízos discricionários e no protagonismo judicial.

Para Trindade e Morais:

[...] observa-se uma tendência voltada à superação do positivismo legalista e uma tímida virada da jurisprudência no sentido de efetivar o texto constitucional através de sua interpretação, ambas estimuladas pelos estudos que surgem no campo da hermenêutica e da argumentação jurídica. Desse modo, paulatinamente, as decisões dos tribunais estaduais e regionais que antes negavam direitos sociais cedem lugar àquelas que conferem eficácia imediata às normas constitucionais, assegurando a prestação de saúde, educação, moradia, previdência, entre outros. O mesmo movimento se verifica tanto no âmbito do Supremo Tribunal Federal – por exemplo, o RE n.º 271.286-AgR, relativo à concessão gratuita de medicamentos para portador do vírus HIV –, com a renovação de seus ministros e, sobretudo, com o advento das Leis n.º 9.868/99 e n.º 9.882/99, regulamentadoras do trâmite processual necessário da Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade, bem como da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça – por exemplo, RMS 11.183/PR, também relativo ao fornecimento de medicamentos –,registra um aumento significativo de demandas voltadas à efetividade dos direitos fundamentais.223

Segundo os autores, a partir da “[...] judicialização da política, os

tribunais passaram a adotar uma postura cada vez mais atuante, de maneira que

suas decisões começaram a interferir em uma esfera de domínio [...]” de

competência dos “[...] poderes Executivo e Legislativo: as políticas públicas e,

consequentemente, os orçamentos públicos”.224

222 STRECK, Lenio; TRINDADE, André Karam; et al., (Org), Os modelos de juiz. Cidade: São Paulo, Editora Atlas, 2015, p.163-164 223 TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.137-164, 2011. p. 155-156 224 TRINDADE; MORAIS, Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira, 2011. p. 155-156

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É fato que “[...] os tribunais deixaram de exercer uma função de mero

aplicador de leis e assumiram o papel de protagonista na concretização dos

direitos [...], de tal forma que passaram a interiorizar o ideário “[...] de que a

Constituição é um remédio para todos os males e de que, com ela – aliada a

outros instrumentos, tais como os princípios e as cláusulas abertas [...]”, sendo

passível, assim, “[...] chegar a qualquer resultado através da argumentação

jurídica [...]”. Assim, em relação ao “ativismo judicial”, um marco simbólico seria

“[...] a renovação na composição dos ministros do STF, em 2003, e a

promulgação da Emenda Constitucional n.º 45, em 2004 [...]”.225

Mediante a crescente adoção “de práticas ativistas”, as quais

extrapolam a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, alcançando todas as

instâncias judiciais, permeadas de aplausos e críticas da sociedade brasileira,

[...] caracterizado pelo alargamento da jurisdição constitucional, é que a doutrina tenta justificar o ativismo judicial a partir da ideia de que a Constituição propicia uma abertura principiológica, em que a ponderação exsurge como a técnica a ser empregada na aplicação dos princípios – entendidos como mandados de otimização –, a fim de produzir decisões justas, cujas respostas resultam de uma argumentação jurídica que respeite a proporcionalidade. Ocorre que tal postura, assim como seus procedimentos, apenas contribuem para o aumento do decisionismo judicial, uma vez que, na falta de uma teoria da decisão adequada, a jurisprudência constitucional não apresenta qualquer coerência, o que fragiliza a integridade do direito e, via reflexa, a própria democracia constitucional. 226

Nesse sentido, ao examinar a hermenêutica sob o viés da

“applicatio”227, Streck cita quatro aspectos: fontes, norma, interpretação e decisão,

os quais revestem o novo constitucionalismo provocando alterações no Direito,

bem como propiciando “[...] a superação do paradigma positivista, que pode ser

compreendido no Brasil como produto de uma simbiose entre formalismo e

225 TRINDADE; MORAIS, Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira, 2011. p. 155-156 226 TRINDADE; MORAIS, Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira, 2011. p. 157 227 STRECK, Lenio Luiz. Superando os diversos tipos de positivismo: porque hermenêutica é Applicatio? Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v. 34.2, jul./dez. 2014. p. 281

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positivismo, no modo como ambos são entendidos pela(s) teoria(s) crítica(s) do

Direito”.228

Segundo Streck,

[...] embora o positivismo possa ser compreendido no seu sentido positivo, como uma construção humana do direito enquanto contraponto ao jusnaturalismo, e tenha, portanto, representado um papel relevante em um dado contexto histórico, no decorrer da história acabou transformando-se — e no Brasil essa questão assume foros de dramaticidade — em uma concepção matematizante do social, a partir de uma dogmática jurídica formalista, de nítido caráter retórico, mas que, paradoxalmente, aposta em um solipsismo judicial que parece ignorar as conquistas semânticas da Constituição de 1988.229

Não se pode perder de vista que, “[...] se o formalismo e o positivismo

marca(ra)m indelevelmente o pensamento jurídico moderno, no Brasil é possível

dizer que, em muitos aspectos, ambos (ainda) se confundem [...]”. Em razão de

que “[...] engendrou-se um imaginário jurídico atrelado, ao mesmo tempo, ao

formalismo e às suas insuficiências para explicar o direito e a realidade [...], como

diz Streck “[...] o Direito é concebido no plano abstrato e entendido como sendo

apenas um objeto histórico-cultural [...]”, sendo que:

[...] ao positivismo, com as suas características que vêm delineando os caminhos da doutrina e jurisprudência, como: a não admissão de lacunas; o não reconhecimento dos princípios como normas; as dificuldades para explicar os - conceitos indeterminados, as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações, resvalando, com isto, em direção àquilo que o positivismo clássico - enquanto função judicial - visou evitar: a discricionariedade do juiz, que acaba se transformando em arbítrio judicial (ou decisionismos voluntaristas); refira-se, ainda, a inoperância em face dos conflitos entre princípios, culminando, via de regra, na sua negação, com a remessa da solução à discricionariedade do juiz.230

Na concepção de Streck, é preciso frisar que o contexto inerente à

afirmação das Constituições e sobre o papel da jurisdição constitucional, tratados

228 STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: porque hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 279 229 STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: porque hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 279 230 STRECK, Lenio Luiz. Superando os diversos tipos de positivismo: porque hermenêutica é Applicatio? Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v. 34.2, jul./dez. 2014. p. 279

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em inúmeros campos das ciências sociais, por diversos teóricos, mais

comumente por setores ligados à Sociologia, à Ciência Política e ao Direito,

direcionam-se, também para compreensão dos fenômenos “judicialização da

política e o ativismo judicial”.231

Como se verifica, os temas abordados dependem de um enfrentamento

do problema que passa pelo viés da interpretação do Direito e do tipo de

argumento que pode, legitimamente, compor uma decisão judicial.232

Dessa forma, em sendo o Judiciário constantemente acionado para

solucionar conflitos, torna-se essencial “[...] a distinção entre ativismo e

judicialização da política apresenta-se como indispensável [...]”, obstaculizando-

se, assim, que o Direito seja vinculado somente a “[...] um produto das decisões

judiciais, o que afetaria as bases democráticas que fundam o Estado brasileiro”.233

Não por outro motivo, Lenio Streck interpreta que o juiz não pode ser mais

considerado em sua individualidade, quando se trata de levar “o Direito a sério”, o

que somente se concretizará quando forem construídas “posturas teóricas”

dispostas a refletirem profundamente sobre o problema do ativismo judicial ou da

discricionariedade. 234

Abordou-se reflexões sobre Constituição, Direito e democracia,

analisando a teoria do Direito diante da insuficiência do paradigma dominante

(racionalista), bem como a hermenêutica para além/aquém do ativismo. Neste

momento, passa-se ao tema central do estudo que trata sobre a existência da

resposta adequada em Direito.

231 STRECK, Lenio Luiz. A interpretação do direito e o dilema acerca de como evitar juristocracias: a importância de Peter Häberle para a superação dos atributos (eigenschaften) solipsistas do Direito. Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília: IDP, Ano 4, 2010/2011. p. 3 232 STRECK, A interpretação do direito e o dilema acerca de como evitar juristocracias: a importância de Peter Häberle para a superação dos atributos (eigenschaften) solipsistas do Direito, 2010/2011. p. 3 233 TASSINARI, Clarissa. O papel da crítica hermenêutica do Direito: sobre as relações entre filosofia, teoria do direito e a atuação do Judiciário. FIDES, Natal, v.5 , n. 2, jul./dez. 2014. p. 19 234 TASSINARI, O papel da crítica hermenêutica do Direito: sobre as relações entre filosofia, teoria do direito e a atuação do Judiciário, 2014. p. 21

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CAPÍTULO 3

EXISTE RESPOSTA ADEQUADA EM DIREITO?

Em busca de um direcionamento sobre a existência da resposta

adequada em Direito, cuja relevância centra-se no cotodiano jurisdicional. Este

com contradições entre a prática decisória e a hermenêutica, buscando afastar as

interpretações de cunho metódico e que venham a desvelar o sentido do Direito,

revelando a responsabilidade nas decisões judiciais que serão interpretadas com

base nos conceitos de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer.

Não obstante, relevante se faz análise da resposta adequada numa

perspectiva democrática, trazendo à baila o posicionamento de Lenio Luiz Streck

sobre a resistência da dogmática jurídica e a “tese da resposta hermenêutica

adequada”.

3.1 BREVES REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO DA INTERPRETAÇÃO:

HEIDDEGER E GADAMER

O sentido da interpretação em Heidegger é baseado na pré-

compreensão do intérprete, esse não pode comprender o conteúdo da norma,

partindo de uma pretensão de conhecimento, entendido por gadamer como uma

interpretação que não considera a tradição, nem a historicidade. Observa-se,

assim, a importância de atribuir um sentido a interpretação. Dessa forma, inicia-se

com a visão de Heidegger e sua crítica em relação à ciência como conhecimento

metódico, exato e universalmente válido:

A exatidão é tomada como marca característica da ciência e demonstrações exatas são a finalidade e o orgulho da fundamentação científica. Todavia, a exatidão repousa sobre o caráter matemático da ciência em questão. Não obstante, esse caráter matemático não pode ser simplesmente impingido a uma ciência porque alguém se propôs a conformá-la como uma ciência exata. O que deve ser objeto em tal ciência precisa antes de mais nada permitir ou rechaçar de per si uma possibilidade de determinação matemática. Em uma ciência, a exatidão pode trazer a não-verdade consigo. [...] a exatidão não pertence de

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maneira essencialmente necessária à verdade. Se por “rigor da ciência” compreendemos o modo como o conhecimento adequado ao objeto pode ser conquistado e determinado, então a exatidão não está necessariamente na base desse rigor. [...] O caráter do rigor talvez possa ser um caráter necessário para a ciência. Entretanto, a pergunta persiste: esse caráter seria também uma determinação originária da ciência? Esse caráter do rigor também pode ser apenas uma consequência da constituição essencial e interna da ciência.235

Heidegger explica que a verdade exige adequar a coisa ao

conhecimento ou o conhecimento à coisa, portanto, compreende caracterização

mediante o rigor. Nesse sentido, “[...] o modo como pode ser conquistado e

determinado o conhecimento adequado ao objeto”, o rigor, significam “[...] um

determinado caráter da apropriação referente à adequação do objeto do

conhecimento”. Dessa forma, a “[...] adequação do conhecimento está apreendida

na definição escolástica de verdade: Adaequatio intellectus ad rem.” Se “a

verdade reside nas ligações de representações, não nas representações isoladas,

o fato de a verdade possuir o seu lugar no enunciado, na proposição, está acima

de qualquer dúvida”, de fato, tal concepção de verdade não foi abalada e

permanece segura na história da filosofia. 236

No momento em que “[...] a ciência como reconhecimento visa à

verdade, mas a verdade reside na proposição [...]”, ela oportuniza, enquanto

ciência, “[...] uma conexão de conhecimentos [...] conexão de proposições

verdadeiras”. Essas podem ser passíveis de comprovações ou não, do que se

deduz que: primeiro, “uma determinada concepção da verdade como verdade

proposicional”; segundo “[...] ao mesmo tempo, porém, a concepção da ciência a

partir do que em certa medida se sedimenta como o seu resultado”. “A ciência [...]

sedimenta-se em proposições e essa sedimentação de investigação torna-se

concreta nos ensaios e livros publicados”.237

Desse modo, a compreensão da ciência, em sua essência, não envolve

apenas o resultado, mas como se comportam suas proposições, ao ponto de se

235 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 46-47 236 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 47-48 237 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 50

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obter uma verdade centrada no sujeito e não no objeto.238

Segundo Gadamer:

O ser em si a que se orienta a sua investigação, seja a física ou biológica, é relativo à colocação do ser, dentro do seu questionamento. Não há o menor motivo para dar maiores razões à pretensão da física, de conhecer o ser em si. Tanto uma como a outra esboçaram previamente, como ciências, a região de seu objeto, e o conhecimento deste significa seu domínio. Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade da linguagem com a objetividade da ciência. A distância inerente à relação linguística para o com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. De outra parte, existe um nexo positivo e objetivo entre a objetividade da linguagem e a capacidade do homem para fazer ciência. Isso se mostra de um modo particularmente claro na ciência antiga, cuja procedência, a partir da experiência linguística do mundo, constitui ao mesmo tempo a sua caracterização e as suas debilidades específicas.239

Heidegger argumenta “[...] precisamos apreender a compreender o que

significam os fundamentos de uma ciência e em que medida a crise [...]” de seus

fundamentos mostram “[...] os limites essenciais da ciência como tal”. O autor

considera não ser primordial, o conhecimento sobre a crise das ciências, sua

tratativa e a maneira como isso ocorre. Porém, é decisivo estar disposto a

conhecê-la; o que pode contribuir “[...] para que as ciências se tornem melhores

[...]”.240

Para Heidegger, a compreensão da essência da ciência vincula-se à

determinação da verdade. Hermeneuticamente, é o afastamento do sujeito-objeto

e a relação sujeito-sujeito. Remete ao entendimento de que a hermenêutica

238 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 51 239 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 656-658 240 “[...] a crise na construção essencial e interna da ciência, ou, como se diz hoje, a “crise dos fundamentos da ciência”, deixou claro para nós que o que está propriamente em questão nessa crise é configurar a autocompreensão das ciências de maneira tão clara e originária que as ciências reconheçam aí seu próprio limite, a fim de ver reluzir ao mesmo tempo o que determina esse limite, isto é, o outro, aquilo que, embora seja trazido pela própria ciência, não pode porém ser concebido por ela como ciência, ou mesmo questionado como tal. Essa crise dos fundamentos é aquela crise que, se for corretamente compreendida, deixa clara a finitude da ciência em um sentido originário; ou seja, ela torna manifesto que a ciência é uma possibilidade essencial da existência do homem.” HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 41-43

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sempre se propôs como tarefa, restabelecer o entendimento alterado ou

inexistente.

Gadamer menciona que o problema hermenêutico se divide em:

[...] subtilitas intelligendi, compreensão, de uma subtilitas explicandi, a interpretação, e, durante o pietismo, se acrescentou como terceiro componente a subtilitas applicandi, a aplicação. Esses três momentos deviam perfazer o modo de realização da compreensão. É significativo que os três recebam o nome de subtilitas, ou seja, que se compreendam menos como um método sobre o qual se dispõe, do que como um fazer, que requer uma particular finura de espírito.241

Segundo o autor, a união da compreensão e da interpretação

ocasionou “[...] a completa desconexão do terceiro momento da problemática

da hermenêutica, o da aplicação, do contexto da hermenêutica”, pois, “na

compreensão sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser

compreendido à situação atual do intérprete”.242

Ao intérprete, em sua tarefa de decidir, cabe aplicar o melhor direito,

devendo adequar-se ao caso concreto. Para Gadamer, “na situação concreta ver-

se-á obrigado, seguramente, a fazer concessões com respeito à lei num sentido

estrito, mas não porque não seja justo”. Nesse sentido, “fazendo concessões em

face da lei não faz reduções à justiça, mas pelo contrário, encontra um direito

melhor”.243

Gadamer menciona a diferença entre o saber ético e o saber técnico,

[...] o que é justo não pode ser determinado por inteiro, independentemente da situação que me pareça de justiça, [...]. Nisso se torna patente uma modificação fundamental da relação conceitual entre meios e fins, que é a que constitui a diferença entre o saber ético e o saber técnico. A diferença não está no fato de que o saber ético não restringe a simples objetivos particulares, mas que afeta o viver corretamente, no seu todo – contra o que o saber técnico, naturalmente, é sempre particular e serve a fins particulares. Quando há uma tekne, é preciso que a aprendamos,

241 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 459 242 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 460 243 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 471-473

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e com isso saber-se-á também eleger os meios idôneos. Pelo contrário, o saber ético requer sempre, ineludivelmente, esse buscar o conselho consigo próprio. Ainda que se pensasse esse saber em um estado de perfeição ideal, esta seria a perfeição desse aconselhamento consigo próprio e não num saber do tipo técnico.244

A hermenêutica jurídica busca a compreensão dos textos, enquanto

método para auxiliar a práxis jurídica, objetivando sanar deficiências e “[...] casos

excepcionais no sistema da dogmática jurídica”.245

De toda sorte, o intérprete deve buscar compreender o caso concreto e

posteriormente aplicar o direito. Assim, a essencialidade relaciona-se a pergunta

e o sentido dessa, “[...] sentido da pergunta é simultaneamente a única direção

que a resposta pode adotar se quiser ser adequada, como sentido.246

Esta é a razão pela qual a dialética realiza nos moldes de perguntas e respostas, ou melhor, que todo saber passa pela pergunta. Perguntar quer dizer colocar no aberto. A abertura do perguntando consiste em que não está fixada a resposta. O perguntado tem de pairar no ar frente qualquer sentença constatadora e decisória. O sentido do perguntar consiste em colocar em aberto o perguntado em sua questionalidade. Ele tem de ser colocado em suspenso de maneira que se equilibrem o pró e o contra. 247

Heidegger faz uma síntese da sua obra “Introdução à Filosofia”, onde

demonstra a essência da verdade e da ciência, dessa originam-se teses, as quais

revelam que “a verdade está de tal modo correlacionada ao ente por si

subsistente que ela pode, mas não precisa advir a esse ente”. Para o autor, “[...] a

verdade não pertence, em hipótese alguma, à consciência essencial do ente por

si subsistente”. Assim, “se o ente por si subsistente é desvelado, ou seja, se a

descoberta existe faticamente, então isso só acontece porque um ser-aí

descobridor existe, isto é, um ente a cuja constituição ontológica pertence ao ser

descerrado, ou seja, o ser-um-aí”. Resultando, em “[...] dois modos fundamentais

244 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 472-477 245 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 482 246 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 534 247 GADAMER, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003. p. 535

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de desvelamento do ente: verdade como descerramento e verdade como

descoberta”. Os referidos modos encontram-se “[...] correlacionados ao ente em si

manifesto de maneira totalmente diversa”.248

Essa diversidade da correlação da verdade com o ser-aí e o ente por si subsistente remonta ao fato de que também a verdade do ente por si subsistente, a descoberta, se funda no descerramento que, por sua vez, pertence à constituição ontológica do ser-aí. A descoberta do ente por si subsistente só é possível junto com o ser-aí, mas isso, enquanto pertencente ao descerramento de um ser-aí. Mas, como o ser-aí é essencialmente descerrado, o caráter de conjunto próprio aos seres-aí sempre aponta, a cada vez, para um ser-um-com-o-outro. O ser-aí é qua ser-aí e é essencialmente ser-com junto a... somente com base nesse “com” de cada ser-aí singular são possíveis os diversos modos do um-em-relação-ao-outro, um-pelo-outro, um-contra-o-outro e um-sem-o-outro. No entanto, como a descoberta é sempre essencialmente descerrada, e só assim pode ser o que é, o desvelamento do ente por si subsistente é algo que o ser-aí necessariamente sempre já passou adiante. A descoberta é compartilhada na abertura do ser-aí, mesmo quando não há nenhum participante faticamente presente. O ser-aí é essencialmente na verdade. A verdade existe, isto é, seu modo de ser é a existência e esse é o modo no qual algo assim como o ser-aí é. 249

Heidegger menciona fenômenos que não representam a verdade,

denominados pelo autor como “não verdade”, dentre estes: “a falsidade, o erro, a

ilusão, a mentira e o embuste”, tudo faz parte do ser-aí, pois ele é na “verdade e

na não-verdade ao mesmo tempo”, movimentando-se “[...] faticamente em uma

livre opção entre duas coisas”.250

Segundo Heidegger, a Ciência é um tipo de verdade, sendo que essa

pertence ao ser-aí, pois:

Na medida em que esse ser-aí existe, ele é no seio da verdade. Se retivermos essa ideia de verdade, se tornarmos assim a ciência como um modo do ser-na-verdade, imediatamente nos depararemos com algo conhecido; a ciência consiste justamente em uma atitude particular. Sabemos, desde a Antiguidade, que a ciência é uma atitude considerada teórica - teórica em contraposição à prática. Teoria e prática significam: o mero pensar e especular de um lado, a execução e aplicação do que foi

248 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 159-160 249 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 159-160 250 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 163

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pensado e conhecido do outro lado.251

Ao avaliar que “[...] uma ciência só é ciência na medida em que

consegue circunscrever previamente a constituição essencial do ente que ele

trata. Esse é o caráter propriamente matemático [...]”. Heidegger sinaliza que toda

e qualquer ciência necessita examinar “[...] que o ente que ela transforma em

objeto já precisa estar [...] definido em sua essência, para que toda questão

concreta possa encontrar um fio condutor para localizar o que é objeto nessa

ciência”. 252

Heidegger usa o termo “ontológico” ou “ontologia”, para a compreensão

inquietante sobre a concepção do próprio ser, inferindo que “[...] o uso linguístico

tem se mostrado indeterminado e equívoco [...]”; em relação ao referido termo,

geralmente utilizado para ôntico “[...] no sentido de que deixamos o ente viger por

ele mesmo e não deixamos que se evapore em termos idealistas. Tendência

ontológica na filosofia atual significa então: tendência para o realismo”. Essa

tendência caracteriza-se “[...] pelo fato de não formular o problema da ontologia e

de nem mesmo compreendê-lo”. 253

Nesta esteira,

[...] a verdade científica é apenas um tipo e uma possibilidade de tornar o ente manifesto, e o ser-aí continua sim se comportando em relação ao ente sem levar a termo a ciência como tal. Todo e qualquer comportamento em relação ao ente, toda verdade ôntica de qualquer tipo só é possível com base na verdade ontológica. A verdade ontológica é mais originária do que a verdade ôntica; a verdade ontológica é possibilitadora da verdade ôntica.254

Há uma conexão entre verdade ôntica e verdade ontológica, que

correspondente à diferença entre ser e ente. Nas palavras de Heidegger “[...] a

transcendência não é apenas a possibilidade interna da verdade ontológica e

também, indiretamente, da verdade ôntica [...]”, ou seja, “[...] ela é a condição de

possibilidade da diferenciação entre ser e ente, da diferenciação em função da

251 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 177-178 252 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 201 253 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 215 254 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 218-219

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qual podemos de algum modo falar em ontologia”.255

Em síntese, para Heidegger, a “ciência é conhecimento positivo”,

significa dizer que o “conhecimento é direcionado para o ente”;

concomitantemente, o “[...] conhecimento é sempre necessariamente direcionado

a um respectivo âmbito do ente”. Entretanto, a Filosofia não é nenhuma dessas

duas coisas, pois primeiro “[...] não está direcionada para o ente, mas para o ser”;

segundo “não está direcionada para um âmbito, também não para todos os

âmbitos em conjunto, mas, se está direcionada para o ente, então isso se dá a

partir da pergunta sobre o ser [...]”, direciona-se para o ente na totalidade, o que

Heidegger considera “essencialmente impossível”.256

Streck, ao indagar o que há de errado com os projetos positivistas da

ciência jurídica, baseia-se em Heidegger para responder que:

[...] esse conceito corrente de ciência (como um universo teórico de proposições válidas-verdadeiras) esconde um modo mais originário do fenômeno da verdade. Isso porque a verdade deve ser percebida já em meio à lida com o mundo prático e não reduzida ao universo teorético das ciências. Afinal, a própria verdade “teórica” das ciências é produto da interpretação projetada pela compreensão. Portanto, há algo anterior à verdade da ciência que, de certa forma, lhe é condição de possibilidade. No caso do direito, o equívoco dos projetos positivistas está no próprio recorte na totalidade do ente que tais teorias efetuam para caracterizar o estudo do fenômeno jurídico. Dito de outro modo, o modelo excessivamente teórico de abordagem gera uma espécie de asfixia da realidade, do mundo prático. 257

Portanto, “[...] o contexto prático das relações humanas concretas, de

onde brota o direito, não aparece no campo de análise das teorias positivistas.

Isso gera problema de diversas matizes”. Streck argumenta ainda que “[...] o

principal problema aparece quando se procura determinar como ocorre e dentro

de quais limites deve ocorrer a decisão judicial”. As teorias, ao apostarem “[...] na

vontade do intérprete para resolver o problema [...]” geram “a discricionariedade

judicial”. Isso se evidencia que “sofrem de um letal déficit democrático”, o que

leva o autor ao seguinte questionamento: “como justificar, legitimamente, uma

255 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 2225 256 HEIDEGGER, Introdução à filosofia, 2008. p. 234 257 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010.*p. 253

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decisão tomada pelo poder judiciário?” A decisão não ressoa das teorias, nem

poderia “[...] uma vez que essa dimensão dos acontecimentos fica fora de seu

campo de análise”.258

Streck menciona que tem insistido na “[...] problemática da validade da

explicitação da compreensão (portanto, da validade da interpretação) deve ser

analisada a partir da destruição do método que é proporcionada por Gadamer”.259

Na concepção de Streck:

[...] não há nisso um déficit de metodologia ou de racionalidade. Essa ruptura não significou um ingresso na irracionalidade ou no relativismo filosófico. Gadamer deixa claro que a ausência do método não significa que se possa atribuir sentidos arbitrários aos textos. Na medida em que a interpretação sempre se dá em um caso concreto, não apenas fica nítida a impossibilidade de cisão entre quaestio facti e quaestio juris. A hermenêutica não trata apenas da faticidade; ela não apenas explica como se dá o sentido ou as condições pelas quais compreendemos. Na verdade, por ela estar calcada na circularidade hermenêutica, fato e direito se conjuminam em uma síntese, que somente ocorre concretamente, na applicatio (lembremos sempre que não se cinde conhecimento, interpretação e aplicação).260

Importante se faz a abordagem de Streck em relação às posturas

críticas direcionadas à hermenêutica jurídica, conforme mencionado no estudo,

principalmente a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, que recebeu

influência “[...] da ontologia fundamental de matriz heideggeriana, a partir de seus

dois principais teoremas: o círculo hermenêutico [...] e a diferença ontológica [...]”.

Streck menciona que “[...] o conjunto de obra de Heidegger constitui-se em base

fundante de um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica embora – registre-se – o

filósofo não tenha dedicado, em suas obras, espaço para o direito”. O autor

defende a importância de Heidegger, considerando que “[...] é facilmente

perceptível pela viragem ontológica (ontologishe Wendung) no campo da

hermenêutica jurídica, proporcionada por seu discípulo Hans-Georg Gadamer

[...]”.261

258 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010.*p. 253 259 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010.*p. 253 260 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010.*p. 253-254 261 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99

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Para Streck,

A fenomenologia hermenêutica permite superar o esquema sujeito-objeto que tem tornado, historicamente, o pensamento jurídico refém dos paradigmas objetivistas aristotélico-tomista e da subjetividade. O círculo hermenêutico atravessa a relação sujeito-objeto, a partir da antecipação de sentido, impedindo o objetivismo e o subjetivismo próprios do pensamento metafísico. A compreensão (Verstehen) ocorre no interior desse virtuoso círculo hermenêutico. Qualquer interpretação que contribua para a compreensão deve já haver compreendido o que se deve interpretar, dirá Heidegger. Não se pode esquecer que o há-sempre-ter-estado e a historiacidade do Dasein são as características de nossa facticidade. Essa pré-estrutura projeta nosso compreender e antecipa os sentidos que temos do mundo.262

O jurista alerta, no entanto, para a necessidade de ampliar os

horizontes em relação à pré-estrutura, “[...] não significa, [...] que sejamos

prisioneiros”, pois “compreender não é um modo de conhecer, mas um modo de

ser. [...] essa circunstância ficará bem explicitada na hermenêutica gadameriana

desenvolvida em Warheit und Methode - compreender é, portanto, interpretar [...]”,

consequentemente, é a capacidade de deixar claro, sem ambiguidades, o que

compreendeu, “[...] não depende de um método, saltando-se assim, da

epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão”.263

Heidegger revela “um duplo nível na fenomenologia”, o hermenêutico –

“de profundidade, que estrutura a compreensão” e o “de caráter lógico,

explicitativo”, oportunizando um rompimento mítico em relação às “[...]teorias

argumentativas de cariz procedimental”. Dessa forma, afasta os “[...] modos

procedimentais de acesso ao conhecimento, questão que se torna absolutamente

relevante para aquilo que tem dominado o pensamento dos juristas [...]”. Na visão

de Streck, é “[...] o problema do método, considerado como supremo momento da

subjetividade e garantia da correção dos processos interpretativos”.264

A contribuição de Streck para a interpretação de Heidegger e Gadamer

é essencial, ao demonstrar que:

262 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99 263 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99-100 264 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99-100

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[...] esse déficit de realidade produzido pelas posturas jusfilosóficas ainda prisioneiras do esquema sujeito-objeto será preenchido pelas posturas interpretativas, especialmente as hermenêutico-ontológicas, que deixam de hipostasiar o método e o procedimento, colocando o locus da compreensão no modo-de-ser e na faticidade (mundo prático), bem na linha da viragem ocorrida a partir de Wittgenstein e Heidegger. Assim, saltasse do fundamentar enquanto busca de um fundamentum inconcussum, em direção do compreender, onde este – o compreender – não é mais um agir do sujeito, mas, sim, um modo-de-ser que se dá em uma intersubjetividade. E isso é extremamente ruptural.265

Nessa seara, é imperioso entender que adotamos um movimento

direcionado a “[...] impossibilidade de fazer coincidir texto e sentido do texto

(norma), isto é, movemo-nos numa impossibilidade de fazer coincidir discursos de

validade e discursos de adequação”. Nesse cenário, verifica-se “[...] o embate

entre hermenêutica (filosófica) e a(s) teoria(s) discursiva(s)”. Significa dizer que

“[...] não conseguimos atingir um saber que possa abranger todos os modos de

aplicação dos textos jurídicos de uma vez”.266

Nesse sentido,

[...] a objetividade conteria as hipóteses aplicativas, em que o texto conteria a norma, ou, melhor ainda, o texto (a regra) conteria todas as normas (hipóteses de aplicação) possíveis. Se trabalhamos no interior de um paradigma (o paradigma da ontologische Wendung) no qual o direito assumiu um caráter hermenêutico, que decorre da própria característica que marcou o direito a partir do segundo pós-guerra, em que visivelmente a tradição nos mostra o papel interventivo da jurisdição constitucional, então a preocupação de qualquer teoria jurídica deve estar voltada ao enfrentamento das consequências desse fenômeno.267

Portanto, é preciso entender que “[...] o primeiro problema

metodológico – como se interpreta - tem uma resposta que está fundamentada na

superação do paradigma representacional, em que não mais cindimos

interpretação de aplicação”; já “[...] o segundo - como se aplica - parece bem mais

265 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes. Disponível em: http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima1/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf Acesso em: 12 maio 2015. p. 5 266 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 7 267 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 7

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difícil de resolver, isto é, aqui se trata de dar uma resposta talvez ao maior desafio

do direito nestes tempos de pós-positivismo: como evitar decisionismos,

ativismos, etc.”, objetivando “[...] alcançar uma resposta correta (adequada

constitucionalmente) em cada caso”.268

Nessa esteira,

[...] como transformar a Constituição - e a sua interpretação - em um direito fundamental do cidadão, no sentido de que o resultado dessa interpretação não seja fruto de um sujeito solipsista ou dependente de métodos igualmente elaborados a partir do (velho) paradigma representacional. Este é o cerne da discussão hermenêutica, pois.269

Fachin argumenta que o pensamento de Heidegger centra-se na

“filosofia sobre o ser”, afirmando “[...] que na modernidade houve um

esquecimento do ser em prol do ente”. Dessa forma, “[...] haveria uma diferença

ontológica entre ser e ente, uma vez que enquanto o ser conforma uma questão

estritamente humana, o ente diz respeito apenas à base material do ser”.

Portanto, o “[...] ente é apenas um meio para que o ser se desenvolva”.270

Segundo Fachin, Heidegger critica a ciência moderna:

[...] justamente por investigar o ente em detrimento do ser, colocando-o como objeto a ser entendido e estudado a partir de sua externalidade. Partindo do problema do ser, Heidegger coloca que a questão da existência humana precede o pensar (existo, logo penso), conformando aquilo que ele define por das sein (ser-aí). O homem, assim, não é um sujeito, mas o conjunto homem-mundo em um dado tempo; o homem apenas existe se no mundo e se estiver nele inserto em um dado tempo. 271

O autor sintetiza ideias essenciais “ser, portanto, é um problema

temporal, e não puramente espacial. Concebido em um todo que abarca o ente e,

portanto, o espaço, o ser tem uma dimensão histórica [...]”, nessa dimensão “[...] o

268 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 8 269 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 8 270 FACHIN, Luiz Edson. Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica. Rev. TST, Brasília, v. 77, n. 4, out./dez., 2011. p. 189 271 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 189

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homem se coloca na história por meio da linguagem (maneira pela qual pretende

cultivar o ser)”. A manifestação do ser pode ser verificada na “[...] cultura,

cultivada pela linguagem, e que se apresenta como uma questão aberta,

inclausurável, uma vez que a linguagem fenomenológica preenche-se pela

intuição [...]”.272

Conforme mencionado, a hermenêutica, para Heidegger, refere-se à

“[...] interpretação do objeto ente pela pré-concepção do intérprete ser, que só

existe enquanto tal em um dado tempo”. Revelando-se, dessa forma “[...] como

fenômeno da existência do ser, que abarca ontologicamente a totalidade por

traduzir o universo ente pela compreensão do sujeito ser”. Percepção que vai

influenciar “[...] importante segmento do pensamento contemporâneo [...]”.273

Cumpre registrar que foi a partir dos ensinamentos de Heidegger que

Gadamer “[...] passa a desenvolver sua base hermenêutica, colocando-a como

um processo que está para além do puro e simples interpretar, pois transcende o

texto escrito, compondo um colóquio dialético entre leitor e texto”. Para Gadamer,

“[...] a hermenêutica sintetiza um processo inerente ao saber humano e que tem

por escopo uma pré-compreensão ligada à existência humana e às suas

experiências”.274

Gadamer sustenta que “[...] todo saber humano tem uma pré-

compreensão porque não se pode desvincular a interpretação do ser [...]”.

Remetendo ao entendimento que a pré-compreensão está ligada ao intérprete

enquanto pessoa humana, esse carrega consigo um contexto histórico, social,

econômico e linguístico, guardando “[...] um arcabouço de saberes que irão

influenciar tanto a sua análise quanto a própria maneira de expressar a sua

272 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 189 273 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 189-190 274 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 190

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interpretação”. 275

Fachin, referindo-se à lição de Streck, salienta que “linguagem [é] a

casa do ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte

aberto e estruturado”. Para Gadamer, “[...] ter um mundo é ter uma linguagem”.276

Logo, para Gadamer, o intérprete precisa estar disposto a dialogar com

o texto “[...] para que, na proporção desta abertura, componha-se um plexo

dialético entre aquilo que é lido e aquilo que é pré-concebido [...]”. Dessa forma,

poderá firmar “[...] uma nova (e única) compreensão, que substituirá (ou não) os

pré-conceitos por conceitos novos e mais adequados”. Assim, o fenômeno

hermenêutico se torna compreensão e não mera percepção. 277

Depreende-se que a interpretação não é um método concebido para

obter uma verdade determinada, mas sim, um “fenômeno interpretativo” que se

vincula à “compreensão do ser”.278 Nessa contenda, é importante examinar a

resposta adequada numa perspectiva democrática, que tenha como base a pré-

compreensão e a compreensão, a partir da dialética textual.

3.2 HERMENÊUTICA JURÍDICA NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA

Afirma Streck279 “ao contrário do que se apregoa, tenho que a

hermenêutica filosófica, assim como a teoria integrativa dworkiniana, tratam

adequadamente de uma teoria da decisão”. Todavia, “[...] a diferença é que

ambas não admitem aquilo que está no cerne da expressiva maioria das teorias

jurídicas contemporâneas: a discricionariedade dos juízes”. Segundo o autor:

275 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 191 276 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 191 277 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 191 278 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 191 279 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 254

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Se a hermenêutica e a teoria integrativa não se preocupassem com a decisão, estas seriam relativistas, admitindo várias respostas para cada problema jurídico. Não há dúvida de que uma teoria jurídica democrática deve se preocupar com a validade normativo-jurídica do concreto juízo decisório. O que não se pode concordar é que, para alcançar esse juízo decisório, são possíveis juízos discricionários, o que reforça(ria) novamente o solipsismo interpretativo. 280

A questão da validade “[...] reside na circunstância de que não

podemos simplesmente confundir essa validade com uma espécie de imposição

ontológica [...]”, principalmente no que se refere às questões “[...] que se ocupam

determinados campos do conhecimento cientifico”. Não obstante, “[...] não

podemos mais pensar a validade como uma cadeia causal sucessiva que tornaria

verdadeiro um determinado conjunto de proposições jurídicas”. Nesse contexto, “a

validade é o resultado de determinados processos de argumentação em que se

confrontam razões e se reconhece a autoridade de um argumento”.281

Convém mencionar que “[...] a investigação dos compromissos do

direito processual civil com o paradigma dominante que transformou o direito em

uma ciência, sujeita aos princípios metodológicos das ciências duras [...]”,

contribuiu para “[...] a redução metodológica imposta no âmbito do ensino jurídico

[...]”, atingindo todo o Direito, sendo que “[...] o domínio jurídico mais danificado foi

o direito Processual [...]”, por tratar-se de um “[...] ramo do conhecimento jurídico

mais próximo do mundo da vida, da prática social e que, [...] pressupõe que o

acesso a seus domínios seja alcançado através da hermenêutica [...]”. Assim,

para a autora, é necessário superar “[...] o dogmatismo sedimentado [...] para que,

só então, o Direito recupere sua dimensão hermenêutica, a sua perspectiva

substancialista e, consequentemente, o seu sentido”. Para tanto, o enfrentamento

vai ao encontro do “[...] Estado Democrático de Direito e a dimensão

hermenêutica do direito, sem perder de vista o Homem, ou seja, garantir a

prevalência do direito, [...] e incluir a dimensão do tempo nos esquemas

discursivos”.282

280 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 254 281 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 254 282 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função?

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Para Espindola,

Enquanto os juristas estiverem mergulhados na cultura liberal individualista e a Constituição for compreendida como mera instrumentalidade formal, o Direito não representará uma possibilidade de transformar a realidade e toda a legislação, ainda que sofra alguma reforma, restará mantida intacta, sem sofrer a necessária filtragem hermenêutico-constitucional. Não basta a emergência de um novo paradigma, há que ser sepultado o paradigma dominante, pois os juristas ainda não compreendem o sentido do direito num ambiente constitucional, não têm o “cuidado” (sorge), não vivem na “angústia do estranhamento” e reproduzem o “sentido comum teórico do jurista”. Trilhar, portanto, o caminho que liberte do peso da herança racionalista e da tentação das posturas procedimentalista para lidar com a tensão entre Judiciário e Legislativo/Executivo é vital partir para um enfrentamento com o homem, sua cultura, sua ética antes de optar pela via da reforma dos poderes ou da legislação, pela edificação de regras de conduta ou de procedimento. É esse o significado das palavras de Heidegger: “Wege, nicht Werke” (caminhos, não obras). 283

É indiscutível a essencialidade do Poder Judiciário numa perspectiva

democrática, “[...] tendo em vista que a função de aplicar a legislação é um fator

de transformação social, um instrumento de realização dos direitos fundamentais,

de implementação de políticas públicas e de diálogo entre as partes do processo”.

Ainda assim, mediante “[...] o fenômeno do neoconstitucionalismo, em que o

Poder Judiciário ocupa papel de destaque, necessita de meios para a obtenção

de respostas constitucionalmente adequadas com o sentido material da

Constituição [...]”, pois a ocorrência de arbitrariedades confronta-se com a

democracia. A discussão volta-se ao papel da jurisdição constitucional, ou seja,

“[...] da escolha entre respostas conteudísticas e procedimentais ou, se quiser,

(ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 132-133 283 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 182-183

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entre verdade contra consenso [...], pois o direito é linguagem e a linguagem [...]

leva à interpretação”. 284

Assim, observa-se a importância de tratar sobre uma jurisdição capaz

de buscar respostas adequadas, levando em consideração a hermenêutica numa

perspectiva democrática.

Na concepção de Streck:

Contra o objetivismo do texto ou do sentido previamente dado ao texto (posturas normativistas-semanticistas) e o subjetivismo (posturas axiológicas lato sensu que desconsideram ou relativizam o texto) do intérprete, cresce o papel da hermenêutica filosófica e seu antirelativismo. Embora o avanço e a importância das teorias do discurso para o enfrentamento das demandas de um universo de direito pós-positivista, em que a jurisdição assume especial relevância, pela necessidade de controlar a indeterminabilidade das normas que não conseguem – por impossibilidade filosófica – abarcar as diversas hipóteses de aplicação, a hermenêutica filosófica, adaptada ao que venho denominando de Crítica Hermenêutica do Direito, pretende ir além dos discursos prévios de fundamentação trazidos pelas teorias discursivas como solução para o problema da subjetividade (e, portanto, da discricionariedade) do juiz.285

É preciso avaliar que “[...] o direito é um saber prático e que deve servir

para resolver problemas e concretizar os direitos fundamentais-sociais que

ganharam espaço nos textos constitucionais [...]”, é preciso superar barreiras que

obstaculizam “[...] o acontecer do constitucionalismo de caráter transformador

estabelecido pelo novo paradigma do Estado Democrático de Direito [...]”,

conjectura-se, dessa forma, a edificação de bases que viabilizem “[...] a

compreensão do estado da arte do modus operacional do Direito”.286

Ao refletir sobre a falta de efetividade da Constituição e sobre o que

isso representa, observa-se que vai além de um confronto de modelos de Direito,

considerado paradigmático. Na interpretação de Streck:

284 NASCIMENTO, Valéria Ribas. A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade. Revista Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 147-168, jan./jun., 2009. p. 156 285 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 11 286 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 11-12

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A Constituição ainda possui força normativa, pois penso que o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito (guardadas as especificidades de cada país e de seus respectivos estágios de desenvolvimento social e econômico) tem uma força sugestiva relevante quando associado à ideia de estabilidade que, em princípio, se supõe lhe estar imanente. Esta estabilidade está articulada com o projeto da modernidade política, que, sucessivamente implementado, respondeu a três violências “triângulo dialéctico”, através da categoria político-estatal: a) respondeu à falta de segurança e de liberdade, impondo a ordem e o direito (o Estado de direito contra a violência física e o arbítrio); b) deu resposta à desigualdade política alicerçando liberdade e democracia (Estado democrático); c) combateu a terceira violência - a pobreza – mediante esquemas de socialidade. 287

Identifica-se que “[...] o papel diretivo da Constituição continua a ser o

suporte normativo do desenvolvimento deste projeto de modernidade”.288 Para

Barroso, a constitucionalização quando vinculada ao “[...] Poder Judiciário, serve

de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado [...],

bem como condiciona a interpretação de todas as normas do sistema”.289

Fachin reporta-se à base hermenêutica de Gadamer, para demonstrar

que “quando um juiz interpreta uma norma que, geral como é, não pode conter

em si a realidade prática com toda sua correção [...]”, assim, ao adaptar-se às

exigências de “[...] um novo tempo, ele está a resolver um problema prático, o que

não significa que sua hermenêutica é arbitrária ou relativa”.290

Para Fachin, “aceitar que o ordenamento sempre conformará uma

contradição em potencial” é adotar uma “consciência crítica e dialética para com a

realidade [...], cuja centralidade do valor da pessoa impõe reler as relações

econômicas e, sobretudo, aquelas macroeconômicas”. Portanto, essa é “[...] a

consciência necessária para uma hermenêutica crítica do Direito, uma vez que o

287 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 12 288 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 12 289 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf Acesso em: 20 maio 2015.p. 17 290 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 197

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papel do conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também a

sua transformação”.291

Com base em Perlingieri, Fachin comenta que é preciso atentar para

[...] o dinamismo e à complexidade do Direito e de seu conteúdo, afirmando que a sensibilidade jurídica, formada no seio do próprio direito positivo, porém arrimada em valores sociais, é o maior contributo do Direito Civil Constitucionalizado à doutrina hermenêutica, pois a apropriação desta sensibilidade se traduz na aquisição de um instrumento lógico e com argumentos para utilizar não mecânica e repetitivamente, mas conhecendo os seus fundamentos culturais e as consequências também socioeconômicas de sua aplicação.292

Ora, a dinamicidade citada simboliza o choque de ideias entre teoria e

práxis, que, no entendimento de Gadamer, por causa do “[...] suposto objetivo

dogmático da teoria, também contribuiu para que a hermenêutica jurídica se

separasse do conjunto de uma teoria da compreensão”.293

Assim sendo, observa-se que “[...] as leis, tratados, convenções,

decretos e regulamentos devem ser conhecidos pelo jurista não apenas em sua

literalidade, mas sob uma hermenêutica aprofundada, funcionalizada e aplicativa

[...]”. Essa orientada pela premissa “[...] da promoção da dignidade pessoa

humana na permanente dialética entre a norma e fato, entre o formal e o social

[...]”, talvez possibilitando um resultado que venha ao encontro da “[...] constante

reinvenção e renovação do direito”, pois “ignorar a realidade no estudo do Direito

é negar a própria ciência jurídica, uma vez que esta não se encerra em um

conjunto de regras e princípios interconectados”.294

291 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 198 292 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 198 293 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 198 294 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 199

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O Direito compõe-se de uma função ordenadora para compor a estrutura de um todo maior, denominado estrutura social ou realidade normativa. Nesse sentido, é indispensável que tanto o direito quanto a sua teorização não percam jamais o sentido da realidade. Àqueles que acusam essa hermenêutica de arbitrária e frágil por não guardar um método único ou regras que melhor a definam, conferindo-se, assim, maior previsibilidade ao destinatário da norma, responde-se que o Direito não corresponde ao clássico conceito de ciência, assim como a hermenêutica não é o método por esta usado, uma vez que, se assim o fosse, a lei seria, antes da interpretação, destituída de qualquer sentido, significado ou significante, conformando tão somente um objeto, quando, na verdade, ela própria já é fruto de uma dada compreensão.295

Segundo Streck, é preciso analisar que Heidegger demonstrou que, em

Filosofia, é errado “pensar nas palavras como fonte de ‘essências de significado’”.

Disso se depreende que Heidegger era um crítico da “existência de uma filosofia

da linguagem”, em razão desta desconsiderar “o lugar mais originário” onde a

questão da linguagem nasce.296

Nesse sentido, afirma Heidegger que “a totalidade significativa da

compreensibilidade vem à palavra. Das significações brotam palavras. As

palavras, porém, não são coisas dotadas de significados”.297 Streck salienta que

Heidegger, após demonstrar “[...] como o enunciado é um modo derivado da

interpretação (que por sua vez foi possibilitada por uma (pré) compreensão

existencial) [...]”, demonstra que “[...] não é nas palavras que devemos buscar os

significados do mundo (ou do direito, para ser mais específico), mas é para

significar (o direito) que necessitamos de palavras”. Portanto, as palavras têm

esse fim, dotar as coisa de significado.298

A compreensão se efetiva no momento em “[...] que a articulação do

significado dado às coisas (ou ao Direito) esteja provido de sentido”. Explica

Streck:

295 FACHIN, Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão crítica, 2011. p. 199 296 STRECK, Lenio Luiz. Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261 297 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. p. 219 298 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261

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[...] o Dasein, em seu modo prático de ser-no-mundo, desde sempre já se move – compreensivamente – em um todo de significados – que em Ser e Tempo recebe o nome de significância – e é desta relação fática de compreensão afetivamente disposta que brotam as significações das palavras. Dito de outro modo: articulamos as palavras que temos disponíveis projetando sentidos a partir deste todo de significados. Ou seja, o discurso – que é o modo de manifestação da linguagem – é articulado sempre imerso nesta dimensão de (pré)compreensibilidade da significância. Esse é o significado da pré-compreensão. Ela não é uma criação da hermenêutica filosófica de Gadamer. Ao contrário, o próprio Gadamer admite em Verdade e Método que a pré-compreensão – tese fundamental para construção de sua filosofia – é uma descoberta heideggeriana.299

Observe-se que em Heidegger encontra-se o recurso eficaz contra o

relativismo. Sua obra “Ser e Tempo é um livro antirelativista” remonta de uma

época de pessimismos na esfera social, econômica e filosófica, na qual, segundo

Streck, “[...] não faltavam teses que interpretavam o mundo no sentido do juízo

final e do recomeço radical [...]”, portanto, considera que a obra “Ser e Tempo”

reconhece a “[...] verdade como dimensão em que o ser-aí (Dasein) desde

sempre se movimenta”. Nessa configuração, o problema da “significância”,

enquanto organização antecipada “[...] do enunciado e da constituição existencial

(prévia) da compreensão são as questões nucleares para a correta introdução ao

problema da pré-compreensão e sua relação com a verdade”.300

De um lado, tem-se a hermenêutica filosófica trabalhando “[...] no nível

de um como hermenêutico estruturante da compreensão, que antecipa o sentido

a partir do círculo hermenêutico [...]”, de outro “[...] as teorias discursivas – nas

suas variadas formas – permanecem no nível de um como apofântico, axiomático-

dedutivo, de caráter lógico”. Note-se que nem compreensão e aplicação ocorrem

em “etapas”, apenas “coincidem”. Denotando valor aos “[...] argumentos baseados

em juízos de coerência e integridade, que são condição de possibilidade para

qualquer interpretação”. Nesse sentido, Gadamer é categórico quanto ao

reconhecimento do “[...] terreno que a hermenêutica jurídica partilha com a

299 STRECK, Lenio Luiz. Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261 300 STRECK, Lenio Luiz. Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261

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retórica: o terreno dos argumentos persuasivos, e não dos argumentos

logicamente concludentes”.301

Assim, em tempos de “[...] Constituições compromissórias e sociais,

enfim, em pleno pós-positivismo, uma hermenêutica jurídica capaz de intermediar

a tensão inexorável entre o texto e o sentido do texto não pode [...]” ser

interpretada como “[...] uma teoria ornamental do Direito, que sirva tão somente

para colocar capas de sentido aos textos jurídicos”.302 Salienta Streck:

No interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, o compreender não ocorre por dedução. Consequentemente, o método (o procedimento discursivo) sempre chega tarde, porque pressupõe saberes teóricos separados da realidade. Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. A compreensão antecede, pois, qualquer argumentação. Ela é condição de possibilidade. Portanto, é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz primeiro decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento (a justificação). 303

Significa dizer que apenas é possível compreender, no momento em

que se admite a “[...] tese de que a linguagem não é um mero instrumento ou

terceira coisa que se interpõe entre um sujeito (cognoscente) e um objeto

(cognoscível)”. De fato há no conhecimento humano uma imensa lacuna, a qual

contribui para separar “[...] o homem das coisas e da compreensão acerca de

como elas são, não depende no plano da hermenêutica jurídico-filosófica de

pontes que venham ser construídas - paradoxalmente - depois que a [...]

antecipação de sentido já tenha sido feita”.304

Reconhece-se, dessa forma, a relevância da pré-compreensão, abre-

se a possibilidade de examinar a hermenêutica jurídica sobre uma nova

perspectiva. Pois “nossos pré-juízos que conformam a nossa pré-compreensão

não são jamais arbitrários. Pré-juízos não são inventados; eles nos orientam no

301 STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto. Revista Seqüência, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. p. 36 302 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 36-37 303 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 37 304 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 37

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emaranhado da tradição, que pode ser autêntica ou inautêntica”. Porém, “[...] isso

não depende da discricionariedade do intérprete e tampouco de um controle

metodológico”, pois ele “[...] não domina a tradição. Os sentidos que atribuirá ao

texto não dependem de sua vontade, por mais que assim queiram os adeptos do

(metafísico) esquema representacional sujeito-objeto”. 305 Desse modo, avalia

Streck:

O processo unitário da compreensão, pelo qual interpretar é aplicar (applicatio) – que desmitifica a tese de que primeiro conheço, depois interpreto e só depois eu aplico, transforma-se em uma espécie de blindagem contra as opiniões arbitrárias. A interpretação jamais se dará em abstrato, como se a lei (o texto) fosse um objeto cultural. Há, sempre, um processo de concreção, que é a applicatio, momento do acontecer do sentido, que ocorre na diferença ontológica. Não há textos sem normas; não há normas sem fatos. Não há interpretação sem relação social. É no caso concreto que se dará o sentido, que é único; irrepetível. 306

Referindo-se à obra Verdade e Método de Gadamer, Streck mostra que

veio a lume “[...] uma nova teoria da experiência Hermenêutica que vai além da

tradicional concepção que a equipara a uma metodologia científica”. Explica que

“baseado nas conclusões de Heidegger, opõe verdade a método e refuta a tese

de que este é consequência lógica daquela, afirmando que a Hermenêutica é uma

disciplina filosófica que estuda o fenômeno da compreensão em si [...]”, ou seja,

“processo do compreender”. Tem origem, assim, a verdadeira busca filosófica,

pois se “[...] o Historicismo acredita que a distância no tempo é uma barreira que

impossibilita a compreensão e que só pode ser superada com a ajuda de métodos

que permitam a transferência do intérprete ao passado”, contrapõe-se Gadamer,

ao demonstrar que “[...] essa distância no tempo é precisamente o fator que

permite a compreensão. Só quando as coisas se captam à distância do intérprete

é que podem ter seu verdadeiro sentido compreendido”. Acrescente-se que “[...] a

interpretação, a compreensão e a aplicação da norma não ocorrem em momentos

305 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 37 306 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 37

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distintos, mas são fruto de um fenômeno unitário [...]”, o que significa, então, que

não pode ser segmentado.307

Portanto, é em Gadamer que se entende ser o “[...] ato de interpretação

é também um ato de aplicação e compreensão, e se todo ato de aplicação do

Direito é um ato de aplicação da Constituição [...]”, desta forma, a Constituição é

sempre base para aplicação do Direito. Como diz Streck “[...] a Constituição,

enquanto fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, é condição de

possibilidade para que o intérprete possa compreender qualquer outro texto

normativo”. 308

Confirma-se, assim, que compreensão, interpretação e aplicação da

norma, segundo Gadamer, se dão em um só momento. São, concomitantemente,

uma compreensão, interpretação e aplicação da Constituição. “Portanto, não é

possível interpretar uma norma desvinculada da pré-compreensão que o

intérprete tem da própria Constituição”.309

Para Staffen,

[...] não faz sentido manter-se devoto, como se preso a dogma, as tradicionais formulações processuais. Não há hipótese plausível de coabitação entre processo como relação jurídica ou como instrumento a serviço da jurisdição e dos desígnios do Estado e qualquer exercício de hermenêutica filosófica. A relação de ascendência de uma parte sobre a outra impede qualquer exercício satisfatório e igualitário de linguagem. Ainda que supostamente presente um diálogo, estará cerceado por inúmeros obstáculos. Por isso, a partir de um modelo constitucional (garantista) de processo, a atividade de des-velamento requer a compreensão da facticidade e da historicidade das ações mediante um processo interpretativo substancialmente democrático, praticado via linguagem, nos ditames do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da isonomia, da autoridade competente, da presunção prévia de não-

307 COSTA, Rafael de Oliveira. Hermenêutica Constitucional e Hermenêutica Filosófica: Horizontes da Previsibilidade das Decisões Judiciais. Direito, Estado e Sociedade n. 44, p. 122 a 141 jan./jun., 2014. p. 125 308 COSTA, Hermenêutica Constitucional e Hermenêutica Filosófica: Horizontes da Previsibilidade das Decisões Judiciais, 2014. p. 126 309 COSTA, Hermenêutica Constitucional e Hermenêutica Filosófica: Horizontes da Previsibilidade das Decisões Judiciais, 2014. p. 126

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culpabilidade.310

Atribui-se, assim, importância à visibilidade sobre a “[...] pré-

compreensão e a compreensão de determinado acontecimento que exige a

participação dos interessados”, infere Staffen que “a decisão, muito embora na

sua concepção original vincule-se a ideia de revelação divina (Urtheil), não pode

ser resultado de um monólogo”. Nesse sentido, “[...] cânones do tipo relação

jurídica processual, instrumentalidade, jurisdição como atividade do poder devem

ceder espaço para um novo paradigma processual [...]”, que venha ao encontro

da garantia dos direitos fundamentais. “Por consequência, defensor dos

indivíduos frente ao Estado e demais poderes e de igual sorte, preocupado com a

inclusão e participação democrática dos destinatários do ato final em igualdade

material”. 311

Leciona Streck:

A introdução do mundo prático na filosofia feita por Heidegger e reafirmada mais tarde por Gadamer é que possibilita esse olhar ruptural em direção aos - agora ultrapassados - paradigmas metafísico clássico e moderno. Assim, no plano de uma hermenêutica superadora do esquema sujeito-objeto, é necessário ter presente que, para interpretar, necessitamos compreender. E para compreender, temos que ter uma pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do sentido – que se funda essencialmente em uma posição prévia (Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff) – que já une todas as partes do sistema.312

Para o jurista, a interpretação é responsável pela “[...] estrutura do

nosso modo de ser no mundo [...]”. Somente é passível compreender a partir

daquilo que se tem prévio conhecimento, ou seja, se atribui sentido a

compreensão que se tem sobre algo. Nas palavras do autor, “compreender é um

existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui. A faticidade, a

possibilidade e a compreensão são alguns desses existenciais”. Portanto, “é no

nosso modo da compreensão enquanto ser no mundo que exsurgirá a norma

310 STAFFEN, Márcio Ricardo. Hermenêutica e justificação jurídica: reflexões sobre a (in)aplicabilidade dos postulados de Robert Alexy na moda de uniformização de julgados. Revista do Direito UNISC, Santa Cruz do Sul, n. 44, p.164-191, set./dez., 2014. p. 10 311 STAFFEN, Hermenêutica e justificação jurídica: reflexões sobre a (in)aplicabilidade dos postulados de Robert Alexy na moda de uniformização de julgados, 2014. p. 10 312 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 52, p. 127-162, jan./jun. 2008. p. 134

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(sentido do texto) produto da síntese hermenêutica, que se dá a partir da

faticidade e historicidade do intérprete”.313

Convém assim ponderar sobre a superação da denominada “[...]

hermenêutica jurídica como técnica no seio da doutrina e da jurisprudência

praticadas cotidianamente [...]”, todavia, será preciso aceitar a distinção existente

“[...] entre o texto jurídico e o sentido desse texto, isto é, que o texto não carrega,

de forma reificada, o seu sentido (a sua norma). Trata-se de entender que entre

texto e norma não há uma equivalência e tampouco uma total autonomização

(cisão)”. 314

Nesse contexto, há que se verificar:

Entre texto e norma há, sim, uma diferença, que é ontológica (ontologische Differenz), isto porque – e aqui a importância dos dois teoremas fundamentais da hermenêutica jurídica de cariz filosófico – o ser é sempre o ser de um ente e o ente só é no seu ser. O ser existe para dar sentido aos entes. Por isso há uma diferença ontológica (não ontológico-essencialista, é óbvio) entre ser e ente, tese que ingressa no plano da hermenêutica jurídica para superar, tanto o problema da equiparação/imanência entre vigência e validade, como o da total cisão entre texto e norma, resquícios de um positivismo jurídico que convive com uma total discricionariedade no ato interpretativo, que descamba, inexoravelmente, em arbitrariedades, grau de zero de sentido, etc.

315

Importante registrar que “[...] na medida em que o ser é sempre o ser

de um ente, isto é, o ser não flutua no ar (não pode ser visto), portanto, só ocorre

nas coisas (entes), este não pode ser entificado”. É preciso lembrar que “[...]

sentido é aquilo dentro do qual o significado pode se dar, isto é, o significado é o

conteúdo predicado de um enunciado”. 316

313 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 134 314 “Na verdade, no interior da dogmática jurídica ocorre uma bricolagem de várias teorias e posturas, juntando teses absolutamente inconciliáveis, formando um sincretismo hermenêutico, vulgata de uma construção teórica que nada mais faz do que reforçar a discricionariedade positivista”. STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 134-135 315 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 135 316 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 135

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Tenha-se presente que “na fenomenologia hermenêutica, opera-se

com os conceitos de abertura (Erschlossenheit) e encobrimento (Verborgenheit),

em que o sentido é possibilitado pela abertura e desaparece pelo encobrimento,

mas sempre num horizonte de sentido que depende do modo de ser do Dasein”.

Assim, o sentido é um incansável vislumbrar, já que ocorre “[...] graças à abertura

ou o encobrimento próprio da existência. A fenomenologia hermenêutica será

justamente o modo de descrever as coisas como elas acontecem”. 317

Ao se abordar a possível resposta adequada, com base em Streck,

percebe-se que a hermenêutica se afasta do decisionismo e do subjetivismo.

Observando a perspectiva de Gadamer, o qual “[...] rejeita peremptoriamente

qualquer acusação de relativismo à hermenêutica jurídica. Isso porque,

paradoxalmente, falar de relativismo é admitir verdades absolutas, problemática,

aliás, jamais demonstrada”. A hermenêutica encontra-se distante do relativismo,

por negar a finitude e a temporalidade. 318

Nessa seara, é fundamental que o Poder Judiciário adote uma

perspectiva democrática, pois a função de aplicar o Direito decorre de

transformações sociais. Sendo um mecanismo de concretização dos direitos

fundamentais, exsurge a necessidade de meios que venham ao encontro de

respostas constitucionalmente adequadas “com o sentido material da

Constituição”. Nessa esteira, é preciso se afastar de arbitrariedades, pois essas

afrontam a democracia.319

3.3 STRECK E A POSSÍVEL RESPOSTA ADEQUADA

É possível afirmar que vários estudos abordam a problemática inerente

à possível resposta adequada. Streck é considerado marco teórico ao examinar a

temática, com base nas formas de interpretação e aplicação da constituição,

propicia reflexão sobre como (re)pensar o direito.

317 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 135 318 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 135 319 NASCIMENTO, A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade, 2009. p. 156

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O autor defende ser possível e necessário encontrar respostas corretas

em Direito, para tanto, propõe como fórmula “respostas adequadas

constitucionalmente”.320 Esse entendimento é condizente com a hermenêutica

filosófica, na qual o autor trabalha uma crítica hermenêutica ao Direito, inferindo

sobre a possibilidade de alcançar o que ele denomina de “resposta

hermeneuticamente adequada à Constituição. Sua linha de análise enfatiza a

interpretação das ciências jurídicas no Estado Democrático de Direito, inferindo

ser ela “[...] incompatível com esquemas interpretativos-procedimentais que

conduzam a múltiplas respostas, cuja consequência (ou origem) são

discricionaridades, arbitrariedades e decisionismo”.321

Castanheira Neves argumenta que:

[...] um modo específico de realização do direito (de execução da lei), a diferenciar metodologicamente de uma estrita e rigorosa aplicação da lei ou do direito. E se é assim, na verdade, que vemos hoje pôr-se em geral o problema da discricionariedade – no quadro da problemática geral da metodologia da aplicação do direito, e, por isso, menos como problema dogmático do que como problema metodológico -, é evidente que ele só pode pensar-se dessa forma depois que a Administração e a Justiça foram concebidas como funções chamadas as duas (não apenas esta, mas igualmente aquela) a desempenharem-se, em princípio, das suas respectivas intenções em termos de execução ou aplicação da lei.322

Espíndola sustenta que se revela atualmente um espaço viabilizador de

uma releitura de “[...] um novo paradigma hermenêutico ou, quiçá, para a

libertação do direito dos grilhões paradigmáticos, favorecendo, deste modo, o

reconhecimento de que o direito nasce do fato e não da lei”. Todavia, há

necessidade de disposição para efetivar essa releitura, para tanto é fundamental

se afastar e superar juízos pré-concebidos.323

320 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 265 321 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 337 322 CASTANHEIRA NEVES, A. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Coimbra Editora, 1995. 323 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 128

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A dinâmica da sociedade associada à “multiplicação de

direitos/ampliação dos status dos sujeitos”, revelaram a necessidade de

indagações referentes ao “[...] papel da jurisdição ante a concretização dos

direitos [...], bem como o reconhecimento da “[...] função social do direito

processual [...]”, numa perspectiva de superação desse como mero procedimento.

324 Assim, baseando-se em Castanheira Neves, Espíndola registra que:

[...] os problemas estruturais ou externos ao exercício da jurisdição e o problema intencional, ou seja, o problema do sentido, do sentido da jurisdição, o qual orienta a discussão sobre a Crise do Juiz, a Crise da Justiça. Crises essas que não podem se traduzir exclusivamente ao negativo circunstancial, mas, em especial, à consumação histórico-cultural de um sistema, ou seja, perda contextual de sentido das referências até então regulativas. Para adotar uma terminologia que já faz parte do modismo intelectual, a crise representa o cenário de um paradigma que, antes em vigor, agora se esgotou, clamando por um novo paradigma, por um novo modelo de pensamento. 325

A posição da autora firma-se no sentido de que “[...] a solução correta

ou adequada será um correlato funcional do que seja ou se pretenda que seja a

jurisdição enquanto tal”. Referenciando Castanheira Neves, “[...] pensar o sentido

da jurisdição é pensar a sua relação com o direito (juris-dictio), o que significa que

um diferente sentido do direito implicará correlativamente um diferente sentido da

jurisdição chamada a realizá-lo”. Portanto, torna-se essencial atentar para os “[...]

problemas estruturais do poder judiciário e da jurisdição, investigar sobre o

problema do sentido, do sentido da jurisdição [...]”.326

Isso tudo conduz novamente ao pensamento de Castanheira Neves,

para quem a possível resposta no Estado de Direito encontra respaldo no

reconhecimento da universalidade dos princípios normativos, como também na

324 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 128-129 325 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 128-129 326 ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 130

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concretização da Constituição. Numa perspectiva democrática, é preciso

considerar “[...] a defesa da jurisdição estatal como instituição indispensável [...]

para o exercício da cidadania”. 327

De acordo com Streck, “[...] o texto da Constituição só pode ser

entendido a partir de sua aplicação. Entender sem aplicação não é um entender”.

A interpretação do autor refere-se à “applicatio”,328 que significa “norma(tização)

do texto constitucional”. Explica que a Constituição, “[...] será, assim, o resultado

de sua interpretação (portanto, de sua compreensão como Constituição), que tem

o seu acontecimento (Ereignis) no ato aplicativo, concreto, produto da

intersubjetividade dos juristas [...]”, que nasce da dificuldade das relações

sociais.329

Para compreender a Constituição, é preciso confrontá-la “[...] com a

sociedade para a qual é dirigida [...]”, percebendo-se a “[...] ausência de justiça

social (cujo comando de resgate está no texto constitucional [...]”; constata-se que

“[...] os direitos fundamentais-sociais somente foram integrados ao texto

constitucional pela exata razão de que a imensa maioria da população não os têm

[...]”; daí observa-se que “[...] a Constituição é, também [...] a própria ineficácia da

327 “É preciso agora investigar sobre os modelos de juridicidade e seus correlativos modelos de jurisdição, entre os quais se pode continuar no caminho para uma resposta. Para tanto, assume-se a perspectiva da Castanheira Neves, a partir da qual são identificados os três modelos atualmente alternativos de realização jurisdicional do direito, os quais se apresentam entre o legislador, a sociedade e o juiz. Estes três modelos são: o normativismo legalista, o funcionalismo jurídico e o jurisprudencialismo”. ESPINDOLA, Superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas: um problema de estrutura ou função? (ou: por que é preciso navegar em direção à ilha desconhecida e construir o direito processual civil do estado democrático de direito?), 2008. p. 137-138 328 “Applicatio significa o ponto de estofo do sentido, em que fato é norma e norma é fato. Ou seja, é evidente que não há só textos; o que há são normas (porque a norma é o resultado da interpretação do texto). Mas também não há somente normas, porque nelas está contida a normatividade que abrange a realização concreta do Direito. No plano de uma hermenêutica jurídica de cariz filosófico, a norma será o locus do acontecer (Ereignen) da efetiva concretização dos direitos previstos na lei (compreendida na diferença ontológica existente entre texto e norma e vigência e validade). Deixemos bem claro: interpretação e aplicação são coisas incindíveis. Em vez de cisão, uma diferença, que, no plano da Crítica Hermenêutica do Direito, é trabalhada como - diferença ontológica entre texto e norma [...]”. STRECK, Lenio Luiz. Superando os diversos tipos de positivismo: Porque Hermenêutica é Applicatio? Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v, 34. n.2, jul./dez., 2014. p. 281. 329 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 350

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expressiva maioria dos seus dispositivos (que é, finalmente, o retrato da própria

realidade social) [...]”.330

Segundo Streck,

[...] a Constituição não é somente um documento que estabelece direitos, mas, mais do que isto, ao estabelecê-los, a Constituição coloca a lume e expõe dramaticamente a sua ausência, desnudando as mazelas da sociedade; [...] a Constituição não é uma mera Lei Fundamental (texto) que - toma lugar no mundo social jurídico, estabelecendo um novo - dever-ser, até porque antes dela havia uma outra - Constituição e antes desta outras quatro na era republicana... , mas, sim, é da Constituição, nascida do processo constituinte, como algo que constitui, que deve exsurgir uma nova sociedade, não evidentemente rebocando a política, mas permitindo que a política seja feita de acordo com a Constituição.331

Essas colocações decorrem da “[...] baixa compreensão acerca do

sentido da Constituição - naquilo que ela significa no âmbito do Estado

Democrático de Direito - inexoravelmente acarretará uma - baixa aplicação [...]”,

reduzindo, assim, a possibilidade da “[...] concretização dos direitos fundamentais-

sociais”. Streck vincula a baixa compreensão da Constituição ao “[...] senso

comum teórico que atravessa o imaginário dos juristas. Nele, os juristas operam

como se o Direito fosse composto por dois mundos [...]”, o primeiro de concepção

objetivista, no qual “[...] lei e Direito e texto e norma estariam colados - e o da

perspectiva subjetivista, em que o intérprete se assenhora dos sentidos da lei,

descolando - a norma do texto”. 332

330 STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: Porque Hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 282. 331 STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: Porque Hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 282. 332 “Ora, as condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmente) a existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídico-político-social. [...] em qualquer das teses que procuram resolver a questão de como se interpreta e como se aplica, localiza-se no sujeito da modernidade, isto é, no sujeito “da subjetividade assujeitadora”, objeto da ruptura ocorrida no campo da filosofia pelo giro linguístico-ontológico e que não foi recepcionado pelo direito. Isso significa poder afirmar que qualquer fórmula hermenêutico-interpretativa que continue a apostar no solipsismo estará fadada a depender de um sujeito individualista (ou egoísta, para usar a melhor tradução da palavra em alemão Selbstsüchtiger), como que a repristinar o nascedouro do positivismo através do nominalismo. Está-se lidando, pois, com rupturas paradigmáticas e princípios epocais que fundamentam o conhecimento em distintos períodos da história (do eidos platônico ao último princípio fundante da metafísica moderna: a

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É preciso considerar, portanto, que “[...] para superar o positivismo é

preciso superar também aquilo que o sustenta: o primado epistemológico do

sujeito (da subjetividade assujeitadora) e o solipsismo teórico da filosofia da

consciência [...]”. Não tem como fugir disso. Aliás, para Streck, as teorias

baseadas “no esquema sujeito-objeto” representam uma armadilha, a qual pode

ser superada por meio da hermenêutica, ao se refletir de forma adequada sobre

“[...] uma teoria da decisão judicial, livre que está tanto das amarras desse sujeito

onde reside a razão prática como daquelas posturas que buscam substituir esse

sujeito por estruturas ou sistemas”. Esse cenário talvez represente “[...] a chave

de toda a problemática relativa ao enfrentamento do positivismo e de suas

condições de possibilidade”.333

Não por outro motivo, é relevante demonstrar que:

[...] persistem equívocos nas construções epistêmicas atuais e como tais equívocos se dão em virtude do uso aleatório das posições dos vários autores que compõe o chamado pós-positivismo. Com efeito, isso fica evidente no conceito de princípio. O caráter normativo dos princípios – que é reivindicado no horizonte das teorias pós-positivistas – não pode ser encarado como um álibi para a discricionariedade, pois, desse modo, estaríamos voltando para o grande problema não resolvido pelo positivismo.334

A análise reflete a crítica de Streck à “tese da abertura (semântica) dos

princípios”, com a qual trabalha a teoria da argumentação, bem como outras que

o autor entende não possuírem “filiação a matrizes teóricas definidas”, daí sua

incompatibilidade “com o modelo pós-positivista de teoria do Direito”. Já que “[...]

o positivismo sempre nutriu uma espécie de aversão aos princípios”. 335

Sustenta Streck:

A superação do positivismo implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial ou, também poderíamos falar, no enfrentamento do solipsismo da razão prática. Implica, também, assumir uma tese de descontinuidade com relação ao conceito de princípio. Ou seja, no pós-positivismo, os princípios não podem

vontade do poder, de Nietzsche).” STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: Porque Hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 283. 333 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 267 334 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 267 335 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 267

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mais serem tratados no sentido dos velhos princípios gerais do direito nem como cláusulas de abertura.336

Nessa perspectiva, a teoria pós-positivista precisa superar, de acordo

com Streck, três elementos estruturais dos positivismos jurídicos, justificando o

autor que essa necessidade advém de o positivismo ter se caracterizado “[...]

pelas fontes sociais do Direito, pela separação entre Direito e moral e pela

discricionariedade delegada ao juiz nos hard cases ou nas incertezas da

linguagem em geral”; ainda é observável “[...] uma correspondência de tais

características com os obstáculos opostos pelo positivismo ao [...]

neoconstitucionalismo: a falta de uma nova teoria das fontes, a falta de uma nova

teoria da norma e a ausência de uma teoria da interpretação [...]”.337

Em seu entendimento, existe uma maneira de “unificar essas

características e os obstáculos, uma vez que é possível vislumbrar uma

imbricação ou cruzamento entre eles”. Para tanto, Streck argumenta que a

construção de uma teoria pós-positivista precisa observar alguns elementos.338

Não pode restar dúvida de que tanto a separação como a dependência/vinculação entre direito e moral estão ultrapassadas, em face daquilo que se convencionou chamar de institucionalização da moral no direito (esta é uma fundamental contribuição de Habermas para o direito: a co-originariedade entre direito e moral), circunstância que reforça, sobremodo, a autonomia do direito. Isto porque a moral regula o comportamento interno das pessoas, só que esta “regulação” não tem força jurídico-normativa. O que tem força vinculativa, cogente, é o direito, que recebe conteúdos morais (apenas) quando de sua elaboração legislativa. Observemos: é por isso que o Estado Democrático de Direito não admite discricionariedade (nem) para

336 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 268 337 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 268 338 “Há que se ter presente que o direito do Estado Democrático de Direito supera a noção de “fontes sociais”, em face daquilo que podemos chamar de prospectividade, isto é, o direito não vem a reboque dos “fatos sociais” e, sim, aponta para a reconstrução da sociedade. Isso é facilmente detectável nos textos constitucionais, como em terrae brasilis, onde a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, etc, além de uma gama de preceitos que estabelecem as possibilidades (e determinações) do resgate das promessas incumpridas da modernidade. Essa problemática tem relação direta com a construção de uma nova teoria das fontes, uma vez que a Constituição será o locus da construção do direito dessa nova fase do Estado (Democrático de Direito). Consequentemente, não mais há que se falar em qualquer possibilidade de normas jurídicas que contrariem a Constituição e que possam continuar válidas; mais do que isso, muda a noção de parametricidade, na medida em que a Constituição pode ser aplicada sem a interpositio legislatoris, fonte de serôdias teorias que relativizavam a validade/eficácia das normas.” STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 268

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o legislador, porque ele está vinculado a Constituição (lembremos sempre a ruptura paradigmática que representou o constitucionalismo compromissório e social).339

Entende-se, com base nos elementos caracterizadores de uma teoria

pós-positivista, que “[...] no paradigma do Estado Democrático Constitucional, o

direito, para não ser solapado pela economia, pela política e pela moral [...]

adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem [...]”

contra as próprias dimensões que o inventaram.340 Note-se que a “Nova Crítica do

Direito está para além do caráter lógico-argumentativo das teorias

discursivas/argumentativas, ligando-se ao mundo prático, ao círculo hermenêutico

e à diferença ontológica”.341 A partir desse raciocínio de Streck, Nascimento

argumenta que é “[...] imprescindível que se superem os paradigmas aristotélico-

tomista e da filosofia da consciência, ainda impregnados na jurisdição

constitucional brasileira”.342

Atenha-se que:

339 “[...]. Tudo isso significa assumir que os princípios constitucionais - e a Constituição lato sensu

(afinal, qualquer prospecção hermenêutica que se faça – seja a partir de Dworkin, Gadamer ou Habermas – só tem sentido no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito – ao contrário do que se possa pensar, não remete para uma limitação do direito (e de seu grau de autonomia), e, sim, para o fortalecimento de sua de autonomia. Consequentemente, nos casos assim denominados de “difíceis”, não é mais possível “delegar” para o juiz a sua resolução. Isto porque não podemos mais aceitar que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda se postule que a luz para determinação do direito in concreto provenha do protagonista da sentença. Isso significa que, para além da cisão estrutural entre casos simples e casos difíceis, não pode haver decisão judicial que não seja fundamentada e justificada em um todo coerente de princípios que repercutam a história institucional do direito. [...] tem-se por superada a discricionariedade a partir do dever fundamental de resposta correta que recai sobre o juiz no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito. Por tudo isso, torna-se necessário construirmos as condições para a elaboração de uma teoria da decisão jurídica, ou seja, no plano da validade, discutirmos as possibilidades (ou necessidades) de elaborarmos um efetivo controle das decisões judiciais. Uma democracia não se consolida com delegações em favor do Poder Judiciário. O direito não é aquilo que os Tribunais dizem que é. Se isso fosse verdadeiro, a doutrina não teria importância. E, na medida em que uma República de Juízes é impossível, alguns não o serão. Consequentemente, devemos pensar no espaço da democracia daqueles que não são juízes (que, como se sabe, são milhões de brasileiros). Este é o desafio de uma teoria crítica do direito nesta quadra da história.” STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 268-270 340 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 268-270 341 NASCIMENTO, A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade, 2009. p. 164-165 342 “Para isso, relacionando com o que Stein e Streck afirmam sobre necessidade da retomada da filosofia pelo direito, com a denominação filosofia no direito, pode-se também pensar a filosofia na Constituição, ou seja, uma “sabedoria” presente na sua aplicabilidade em sociedade [...]. Nesse contexto, através de discursos decisórios atentos ao verdadeiro exame dos elementos antecipatórios dos enunciados aplicados aos casos concretos, propõe-se chegar à efetividade da Constituição, elo conteudístico que une Estado e sociedade.” NASCIMENTO, A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade, 2009. p. 165

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[...] a hermenêutica da faticidade busca o verdadeiro, entendido como uma metáfora no sentido da busca pela resposta hermeneuticamente adequada à Constituição. Salienta-se que de forma alguma esta resposta ou verdade deve ser entendida como absoluta, no sentido metafísico aristotélico-tomista da antiguidade, ou com o sentido iluminista da modernidade. [...] O “caso concreto” somente pode ser entendido a partir da reposta adequada à faticidade e à historicidade, estabelecendo-se, assim, a impossibilidade de separação entre questão de fato e questão de direito.343

De toda sorte, deve-se ter presente que “[...] a hermenêutica

fenomenológica busca em discursos decisórios o sentido material do

constitucionalismo e dos direitos fundamentais”. É de se verificar que “o Poder

Judiciário, em tempos de neoconstitucionalismo, pode ser entendido como um

órgão que possibilita o desvelar do sentido democrático [...]”, visto que “[...] a

democracia não se manifesta de forma indireta por meio de representantes, mas

possibilita aos cidadãos ou às entidades de classe o acesso à jurisdição”.

Entretanto, o poder jurisdicional não pode se efetivar em bases arbitrárias, “[...]

valores próprios inautênticos ou juízos de ponderação”.344

Refutar a existência de uma resposta “para cada caso” adequada à

Constituição seria, “[...] portanto, uma resposta correta sob o ponto de vista

hermenêutico –, pode significar a admissão de discricionariedades interpretativas,

o que se mostra antitético ao caráter não-relativista da hermenêutica filosófica [...],

bem como “[...] ao próprio paradigma do novo constitucionalismo principiológico

introduzido pelo Estado Democrático de Direito, incompatível com a existência de

múltiplas respostas”.345

Os argumentos de Streck demonstram que:

É possível - e necessário – dizer, sim, que uma interpretação é correta e a outra é incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa ordem. E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreensão os conceitos interpretativos não resultam temáticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrário, determinam-se pelo fato de que

343 NASCIMENTO, A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade, 2009. p. 164-165 344 NASCIMENTO, A filosofia hermenêutica para uma jurisdição Constitucional democrática: fundamentação/aplicação da norma jurídica na contemporaneidade, 2009. p. 165 345 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 14

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desaparecem atrás daquilo que eles fizeram falar/aparecer na e pela interpretação. Aquilo que as teorias da argumentação ou qualquer outra concepção teorético filosófica (ainda) chamam de “raciocínio subsuntivo” ou “raciocínio dedutivo” nada mais é do que esse “paradoxo hermenêutico”, que se dá exatamente porque a compreensão é um existencial (ou seja, por ele eu não me pergunto porque compreendi, pela simples razão de que já compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre chegue tarde).346

Para o autor, “[...] uma interpretação é correta quando desaparece, ou

seja, quando fica objetivada através dos existenciais positivos, em que não mais

nos perguntamos sobre como compreendemos algo [...]", ou seja, por que a

interpretação levou a uma determinada compreensão e não a outra. Streck atribui

que “[...] o sentido se deu (manifestou-se), do mesmo modo como nos movemos

no mundo através de nossos acertos cotidianos, conformados pelo nosso modo

prático de ser no mundo”. Para ele, perde o sentido “separar/cindir a

interpretação” em casos fáceis e difíceis347.348 Dessa forma, acredita o autor que

“[...] é possível dizer, sim, que uma interpretação é correta e a outra é incorreta.

Movemo-nos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa

ordem”.349

Daí que, paradoxalmente, o caso difícil, quando compreendido corretamente, torna-se um caso simples. É aqui que - por ser correta (sequer nos perguntaremos sobre ela) - a interpretação “desaparece”. Ou seja, reiterado a partir da existencialidade compreensiva, o caso (que não é simples e nem complexo, mas, sim, um caso) passará ao nível da objetivação e sobre o qual não haverá perquirição acerca dos motivos da compreensão. Por tais razões, torna-se inviável – como querem, [...] os teóricos da teoria da argumentação - sustentar “raciocínios dedutivos” (causais-explicativos) para os “casos simples”.350

346 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 14 347 “Na medida em que o nosso desafio é levar os fenômenos à representação (pela linguagem), casos simples (easy cases) e casos complexos (hard cases) estão diferenciados pelo nível de possibilidade de objetivação, tarefa máxima de qualquer ser humano”. STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 39 348 STRECK, Hermenêutica, neoconstitucionalismo e o problema da discricionariedade dos juízes, 2015. p. 14 349 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 38 350 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto, 2007. p. 39

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De acordo com os argumentos de Streck, Costa conduz ao

entendimento de que “no paradigma do Estado Democrático de Direito, incumbe

ao Judiciário tomar decisões que satisfaçam simultaneamente à previsibilidade da

decisão e ao sentimento de justiça”. Ou seja, “[...] a prestação jurisdicional deve

ser capaz de aplicar razoavelmente as normas, produzindo decisões equilibradas

(previsíveis) e adequadas (justas) ao caso decidendo”. É com esse propósito que

nasce “[...] a trilogia [...] hermenêutica, a previsibilidade e a efetividade das

normas constitucionais [...]”, sendo fundamental analisar o “[...] papel do intérprete

na aplicação da norma, enquanto contribuição da Hermenêutica Filosófica, o que

parece ser a melhor forma de se construir um modelo de aplicação do Direito [...]”

e mediante a compatibilidade de diferentes percepções de justiça e

previsibilidade, deve ser oportunizado “[...] atingir o seu desiderato no âmbito da

jurisdição constitucional”.351

Diante disso, é vital “[...] que o intérprete leve em consideração o

diálogo permanente entre a Hermenêutica Constitucional e a Hermenêutica

Filosófica [...]”, pois a tendência à subjetividade na interpretação “[...] não deve

servir para fundamentar as decisões judiciais em preferências pessoais”. Portanto,

“[...] a previsibilidade das decisões judiciais, na medida em que, ciente da

influência da subjetividade no ato de julgar [...], o julgador pode tomar uma

decisão o mais imparcial possível”. Segundo Costa, “[...] o aplicador do Direito,

ciente da sua condição, não é escravo do método, porque não acredita na sua

autossuficiência, o que lhe permite trazer à baila a sua historicidade e os seus

pré-conceitos, para confrontação e superação [...]”, conforme o momento que

vivencia.352

Para Staffen, “existe uma alteração substancial grave do itinerário

decisório. Defender a justificação significa autorizar a antecipação do produto

final, independentemente dos critérios colecionados [...]”. A importância consiste

na justificação do julgador sobre as opções particulares que o levaram a decidir,

351 COSTA, Rafael de Oliveira. Hermenêutica Constitucional e Hermenêutica Filosófica: Horizontes da Previsibilidade das Decisões Judiciais. Direito, Estado e Sociedade n. 44, p. 122 a 141 jan./jun., 2014. p. 137 352 COSTA, Hermenêutica Constitucional e Hermenêutica Filosófica: Horizontes da Previsibilidade das Decisões Judiciais, 2014. p. 137

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pois “[...] fundamentar vincula-se à necessidade – no caso brasileiro, dever

constitucional - de se fundir fatos com fundamentos jurídicos de modo a se obter

um produto final indissociável dos argumentos”. Assim, “[...] cerceia juízos de

solipsismo judicial, proveniente da escola do Direito Livre e da

instrumentalidade”.353

De toda sorte, avalia Streck:

[...] a tese da resposta correta em um sistema “não avançado” não é uma possibilidade, e, sim, uma necessidade. Isso implica a superação do esquema sujeito-objeto, a partir dos dois teoremas fundamentais da hermenêutica: o circulo hermenêutico e a diferença ontológica, superando qualquer possibilidade da existência de grau zero de sentido (“ideologia do caso concreto”), resgatando a tradição autêntica (sentido da Constituição compreendido como o resgate das promessas da modernidade) e reconstruindo, a partir dessas “premissas”, em cada caso, a integridade a coerência interpretativa do direito. A resposta correta é uma metáfora, como o juiz Hércules de Dworkin também o é. 354

Ao referir-se à resposta apontada pela hermenêutica, a qual é

considerada “a resposta hermeneuticamente adequada à Constituição”, Streck

explica que ela precisa ser justificada explicitamente e obrigatoriamente com base

na Constituição, pois, no plano de uma argumentação racional, [...] a

hermenêutica não pode ser confundida com teoria da argumentação, não

prescinde, entretanto, de uma argumentação adequada [...]”. Reportando-se a

Gadamer, para quem “interpretar é explicitar o compreendido”, aponta que “[...] a

tarefa de explicitar o que foi compreendido é reservada às teorias discursivas e,

em especial, à teoria da argumentação jurídica”. Todavia, “[...] esta não pode

substituir ou se sobrepor àquela, pela simples razão de que é metódico-

epistemológica”. 355

Não por outra razão que:

[...] a tese da resposta constitucionalmente adequada (ou a resposta correta para o caso concreto) pressupõe uma fortíssima

353 STAFFEN, Hermenêutica e justificação jurídica: reflexões sobre a (in)aplicabilidade dos postulados de Robert Alexy na moda de uniformização de julgados, 2014. p. 20 354 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 150-151 355 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 152

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sustentação argumentativa e não um duelo retórico-persuasivo. A diferença entre hermenêutica e a teoria argumentativa é que aquela trabalha com uma justificação do mundo prático, ao contrário desta, que se contenta com uma legitimidade meramente procedimental. Isto é, na teoria do discurso, a pragmática é convertida no procedimento. Quando explicito o (já) compreendido, esse processo se dá no nível lógico-argumentativo, e não filosófico. 356

Em virtude dessas considerações, Streck destaca que “[...] filosofia não

é lógica. Esse proceder epistemológico é antecipado; não se confunde com o

próprio conhecimento”. Afirmando que é por meio da hermenêutica que se

corporifica “uma fenomenologia do conhecimento”. Nessa, é necessário que se

efetive a justificação (descrição), demonstrando o que foi compreendido, pois

somente “na explicitação é que haverá o espaço de uma teoria do conhecimento”.

357

Portanto, a resposta ao caso vincula-se à justificação, a qual deve ser

fundamentada e evidente, “[...] contendo a reconstrução do Direito, doutrinaria e

jurisprudencialmente, confrontando tradições, enfim, colocando à lume a

fundamentação jurídica que, ao fim e ao cabo, legitimará a decisão [...]”.358

A tese da resposta hermeneuticamente adequada é, assim, corolário da superação do positivismo – que é discricionário, abrindo espaço para várias respostas e a consequente livre escolha do juiz – pelo (neo)constitucionalismo, sustentado em discursos de aplicação, intersubjetivos, em que os princípios têm o condão de recuperar a realidade que sempre sobra no positivismo. Despiciendo lembrar, neste ponto desta discussão, que o positivismo é entendido, neste texto e no restante de minhas obras, a partir de sua principal característica: a discricionariedade, que ocorre a partir da delegação em favor dos juízes para a resolução dos casos difíceis (não abarcados pela regra). [...] Antes de tudo, trata-se de uma questão de democracia. [...] a crítica à discricionariedade judicial não é uma “proibição de interpretar”. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir

356 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 152 357 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 152 358 STRECK, Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 152

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horizontes. E Direito é um sistema de regras e princípios, comandado por uma Constituição.359

Em entrevista concedida à Revista do Tribunal de Contas de Minas

Gerais, Streck sintetiza sua posição em relação à tese da existência de uma

resposta correta:

Primeiro, é necessário entender o que é pós-positivismo. Da minha perspectiva, positivismo não é simplesmente a superação do positivismo exegético. Esse talvez seja o grande problema de algumas correntes que se dizem neoconstitucionalistas. No fundo, não há muita diferença entre alguns pressupostos defendidos pelo neoconstitucionalismo - principalmente o neoconstitucionalismo à brasileira - e o positivismo normativista, defensor da ideia de que “interpretar a lei é um ato de vontade”. São teorias voluntaristas. Pois é exatamente contra o axiologismo e o voluntarismo que proponho a adição da hermenêutica filosófica, claro que devidamente adaptada àquilo que venho denominando de Crítica Hermenêutica do Direito.360

Remetendo à “hermenêutica filosófica [...] tese que vem de Hans-

Georg Gadamer, que por sua vez se apoia na filosofia hermenêutica, de matriz

heideggeriana”, as quais já abordadas no estudo, Streck relata que a partir delas

verifica-se “[...] uma ruptura com o subjetivismo próprio da filosofia da

consciência. Gadamer constrói uma hermenêutica que não é metodológica”, na

obra “Verdade contra o Método”. Todavia, o autor chama a atenção para “[...] o

fato de ser uma hermenêutica não metodológica não quer dizer que se possa

dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, pois, como menciona Streck, “[...]

Gadamer rejeita qualquer forma de relativismo filosófico”.361

Infere Streck que

[...] a hermenêutica se afasta de qualquer tentação niilista ou relativista. Pode-se dizer que a hermenêutica é conservadora. A tradição constrange a atribuição de sentidos. Mas a tradição não torna o intérprete refém. Mas toda interpretação tem DNA. O direito tem DNA. É da reconstrução da história institucional e do revolvimento do chão linguístico que sustenta a tradição que

359 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e autonomia do Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, v. 1, n.1, p. 65-77, janeiro-junho 2009. p. 76-77 360 FERRAZ, Leonardo de Araújo; MARCHESANI, Juliana Mara; ARAÚJO, Silvia Costa Pinto Ribeiro de. Entrevista Professor Lenio Luiz Streck. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Minas Gerais, Ano XXIX, v. 81, n. 4, out./nov./dez., 2011. p. 13 361 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 13-14

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exsurgirá a resposta. Pela hermenêutica, substitui-se a subjetividade pela intersubjetividade forjada a partir de um a priori compartilhado. Na hermenêutica, não há repostas antes das perguntas. Não há conceitos sem coisas. Por isso, Gadamer vai dizer que interpretar é aplicar (applicatio). 362

O jurista ainda acrescenta às pesquisas de Heidegger e Gadamer as

obras de “Josef Esser, Friedrich Müller, Arthur Kaufmann e Ronald Dworkin”, ao

mencionar que “o sentido se dá na concretude”, o qual está inserido “[...] na

fenomenologia hermenêutica, entendida globalmente [...]”. Para ele, os referidos

autores possibilitam “[...] pensar em um acesso hermenêutico para o Direito”, que

vá além do “esquema sujeito-objeto”. Abordando-se sobre o prisma do Direito,

“[...] podemos dizer que a hermenêutica é uma teoria que se coloca entre o

objetivismo e o idealismo (subjetivismo). Nem o intérprete é escravo da lei

(estrutura) nem ele é o ‘dono’ dos sentidos”. Assim, “a tese da resposta correta

que desenvolvo é a tese da resposta adequada à Constituição. Trata-se de uma

imbricação das teses de Gadamer e Dworkin”, considerados “antirrelativistas”, o

que leva ao entendimento de que “[...] a discricionariedade é uma questão que

deve ser combatida. Embora Gadamer não fale em resposta correta, há várias

indicações acerca da interpretação correta”. 363

Considera Streck que não há uma “[...] única resposta correta nem é

uma entre várias. É apenas a resposta, que exsurgirá dessa reconstrução da

história institucional”. Em virtude dessas considerações, indica cinco princípios

que podem viabilizar o alcance da resposta adequada:

Na verdade, são princípios-padrão que devem ser seguidos para que alcancemos a resposta correta (adequada à Constituição). No primeiro, devemos preservar a autonomia do direito, afastando os predadores do direito (juízos morais, políticos e econômicos). Esses são os predadores externos. Há também os predadores internos, isto é, aqueles elementos que fragilizam a autonomia do direito, como o ensino jurídico standard, o uso da ponderação, que se transformou em álibi para decisionismos, a discricionariedade, a transformação dos princípios em valores, etc. No segundo princípio (padrão), devemos estabelecer as condições para a realização de um controle da interpretação. Democracia quer dizer controle. Aqui, a discricionariedade é o grande inimigo. Em terceiro lugar, estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais. Aqui estamos em

362 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 13-14 363 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 14

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face do dever de accountabillity hermenêutica. É a fundamentação da fundamentação. Por último, deve-se garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada. 364

Ao ser questionado sobre a teoria da decisão, Streck menciona que, no

Brasil, após a promulgação da Constituição Federal, ocorreram múltiplas

demandas, destacando que “[...] precisamos de uma nova teoria das fontes, uma

nova teoria da norma, uma nova teoria da interpretação e, finalmente, uma nova

teoria da decisão”.365

Dado que “[...] a Constituição brasileira possui um catálogo extenso de

direitos sociais, que se transformam em direitos sociais-fundamentais, é

inexorável que ocorra uma judicialização nesse campo da aplicação do Direito”.

Para Streck é preciso fazer uma distinção “[...] entre judicialização, que é um

problema de competência (ou incompetência) dos Poderes, e o ativismo, que é

um problema de comportamento dos juízes”. Segundo esse doutrinador, “no

Brasil, é possível constatar que o ativismo se transformou em uma vulgata

judicialização. E isso deve ser combatido”. Orientando, assim que “as decisões

não podem ser frutos do solipsismo [...] do julgador”. Portanto, “[...] não se pode

substituir aquilo que chamamos de produção democrática do Direito. É neste

espaço que precisamos de uma teoria da decisão”. 366

364 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 18 365 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 16 366 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO, Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 16

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo proporcionou perceber que o assunto não esgotou-se, pois,

no momento em que se entende que o Direito evolui com a sociedade, precisando

ser tratado o seu sentido no tempo e no espaço, e, ainda, que o paradigma ora

dominante (racionalista) não atende mais aos anseios do tempo presente, por

óbvio que o tema se reveste de fundamentalidade no tempo presente, merecendo

novas tratativas no futuro. Segundo Espindola, é importante aventar “[...] uma

nova atuação jurisdicional por meio da releitura da história das instituições

processuais, abandonando a concepção de processo como produto da

racionalidade instrumental-procedimental [...], desafios para o Direito processual

civil moderno”.

A propósito, Castanheira Neves registra que se o tempo atual deve ser

um tempo de transformações em todos os domínios, não é de causar estranheza

que a compreensão e valorização do “poder jurisdicional”, da jurisdição e do papel

do juiz, se encontram em discussão, justificando a necessidade de acompanhar a

modernidade.367 Para ele, “[...] decisivo é [...] o problema do sentido, do sentido

da jurisdição hoje. Por isso se fala, e bem, de crise do juiz, de crise da justiça”. 368

A realização do Direito em Castanheira Neves reflete a superação do

normativismo-legalista, objetivando ir ao encontro do tempo presente repleto de

constantes e contínuas transformações, as quais demandam um novo modelo de

jurisdição que atenda aos anseios jurídicos, realizando o “direito pelo direito” e a

consolidação do Estado Democrático de Direito. Portanto, refere-se a um

diferente sentido da jurisdição, para a qual se torna essencial uma compreensão

367 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, 1998. p. 1 368 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, 1998. p. 2

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do direito para além de um “estrito legalismo”.369 Assim, identifica-se que o

sentido da jurisdição depende da compreensão do sentido do Direito, que precisa

ter a interpretação de seu conteúdo vinculada a uma concepção hermenêutica e

não apenas a perspectiva dogmática, o que é considerado um desafio na

contemporaneidade.

Castanheira Neves e Espindola discorrem, acerca do futuro da

jurisdição, que é preciso reconhecer o homem-pessoa, sujeito de direitos, o que

inclui sua autonomia e dignidade ética, não como objeto da imposição do Direito,

mas analisar a ciência jurídica como uma “alternativa humana”. Revela-se, assim,

o modelo de jurisdição em Castanheira Neves, o jurisprudencialismo,

contemplando uma nova perspectiva do homem o “homem-pessoa”,

reconhecendo o Direito como ciência da compreensão.

Depreende-se que um “sentido para o Direito” corresponde a um

diferente “sentido da jurisdição”, para tanto, a realização do “Direito pelo Direito”,

enquanto possível resposta, deve estar em consonância com “o direito como

alternativa humana”, pressupondo um novo olhar hermenêutico adequado à

Constituição. Todavia, a importância à crise do sentido do Direito e da jurisdição

ainda abarca examinar a existência da corrente procedimentalista que seria um

contraponto ao substancialismo.

Nessa seara, Streck revela as correntes procedimentalistas370 e

substancialistas371, esse é contraponto ao procedimentalismo, são teses

diferenciadas, questão considerada novidade no Brasil, no “constitucionalismo

brasileiro”.372 Segundo Capelletti,373 “parece não ter superado o problema do

protagonismo judicial e do instrumentalismo processual, enquanto Dworkin

assumiu uma postura que pode ser caracterizada de substancialista; sendo

369 CASTANHEIRA NEVES, Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, 1998. p. 4 370 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 262 371 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, 2003. p. 263 372 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 162 373 CAPPELLETTI, Juízes legisladores?, 1999. p. 23-24

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procedente mencionar que nem Dworkin374, nem Habermas assumiram uma

postura favorável ao decisionismo.375 Tese que Streck defende quando se trata da

jurisdição constitucional e de seu papel, por ser contrária a qualquer postura que

se firme com base em discricionariedades, desicionismos, ou que remeta ao

“esquema sujeito-objeto”.376 Ora, se o procedimentalismo atua como uma espécie

de “método, ou como um instrumento que se encontra a disposição dos agentes

sociais, jurídico e políticos”. Por óbvio, afasta-se do paradigma hermenêutico e da

pré-compreensão, condição essencial para se refletir sobre sentido.377

Dessa forma, a busca da resposta adequada em Direito necessita da

compreensão de seu sentido. Depreende-se, assim, que as decisões devem partir

dos princípios constitucionais e da implementação de direitos fundamentais,

exercendo, o Judiciário, papel de extrema importância para a consolidação do

Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, a interpretação constitucional contemporânea torna-se

parte do Direito de participação democrática. Se a teoria da interpretação se

efetiva numa sociedade fechada, corrobora para uma redução, na medida em que

se concentra na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos

formalizados.378 Não por outro motivo Streck afirma ser essencial discutir tanto o

papel da Constituição quanto o da jurisdição constitucional “[...] no Estado

Democrático de Direito, bem como as condições de possibilidade para a

implementação/concretização dos direitos fundamentais-sociais a partir desse

novo paradigma de direito e de Estado”. É preciso “[...] assegurar os

procedimentos da democracia – que são absolutamente relevantes – é preciso

entender a Constituição como algo substantivo, porque contém direitos

fundamentais, sociais, coletivos [...]”, os quais foram pactuados como possíveis

de realização. 379

374 DWORKIN, O império do direito., 1999. p. 81 375 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 162 376 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013. p. 162 377 STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 2013, 2013. p. 172 378 HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997. p. 9-18 379 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 179

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Streck380 demonstra que o positivismo jurídico foi sendo construído no

tempo/espaço e denominado jusnaturalismo. Referenciando Arthur Kaufmann e

Castanheira Neves, mostra que “[...] o positivismo jurídico representa uma

consequência ou a consagração dos ideais jusnaturalistas, está-se a falar do

jusnaturalismo moderno e não do jusnaturalismo clássico (greco-medieval)”.

Enquanto que o “[...] positivismo jurídico e Direito positivo são coisas distintas”.

Esse é norteado por um “[...] conjunto de normas jurídicas que regem uma

determinada realidade social, geográfica e historicamente determinada [...]”,

enquanto “positivismo jurídico” se baseia numa “[...] postura teórico-metodológica

acerca do Direito positivo”.

Concorda-se com Streck no que diz respeito à necessidade de

ressignificar a interpretação jurídica, que tem como pressuposto uma teoria da

decisão judicial, apresentando-se, assim, como uma refutação final e direta ao

problema do ativismo, aí se revela um vínculo entre “[...] teoria democrática e

aportes filosóficos de propostas que transformem radicalmente a maneira de

compreender o problema hermenêutico”.381 Faz-se importante compreender,

nesse universo, que “[...] qualquer interpretação que contribua para a

compreensão deve já haver compreendido o que se deve interpretar, dirá

Heidegger”.382

De toda sorte, a interpretação depende da compreensão, a qual se

vincula à pré-compreensão, oportunizando uma estrutura prévia do sentido, “[...]

que se funda essencialmente em uma posição prévia [...], visão prévia [...] e

concepção prévia – que já une todas as partes do sistema”.383 Na visão de Streck

e de estudiosos que adotam a mesma linha doutrinária, o ativismo judicial é

considerado um problema do Direito, mais especificamente da teoria da

interpretação, envolvendo questões inerentes à análise e às maneiras de abordar

os problemas que se referem à interpretação do Direito.

380 STRECK, Lenio Luiz. O direito como um conceito interpretativo., 2010. p. 502 381 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, 2013. p. 150 382 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99 383 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 100

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Examinando a hermenêutica sobre o viés da “applicatio”, Streck

salienta quatro aspectos importantes: fontes, norma, interpretação e decisão, os

quais revestem o novo constitucionalismo, provocando alterações no Direito, bem

como propiciando superar o paradigma positivista.384

Isso tudo remete, neste momento final das considerações, ao problema

proposto sobre a existência da resposta adequada em Direito no cotidiano

jurisdicional. Para tanto, avaliou-se a posição de Streck, que revelou, no decorrer

do estudo, importantes questões que envolvem jurisdição constitucional,

hermenêutica, ativismo judicial, sentido do Direito, dentre outras polêmicas que

refletem em um novo modo de pensar o Direito. Assim, para tratar sobre o sentido

da interpretação, abordou-se Heidegger e Gadamer, identificando-se a crítica em

relação à ciência como conhecimento metódico, exato e universalmente válido, a

qual é consubstanciada por Streck, que, em diversas passagens, afirma que “[...]

o conjunto de obra de Heidegger constitui-se em base fundante de um novo olhar

sobre a hermenêutica jurídica embora – registre-se – o filósofo não tenha

dedicado, em suas obras, espaço para o direito”. Frisando que a importância de

Heidegger “[...] é facilmente perceptível pela viragem ontológica (ontologishe

Wendung) no campo da hermenêutica jurídica, proporcionada por seu discípulo

Hans-Georg Gadamer [...]”.385

Desse modo, identificou-se que a resposta adequada numa perspectiva

democrática envolve o papel da jurisdição constitucional, não incluindo neste

ínterim respostas conteudísticas e procedimentais, pois seria contrapor-se a

verdade e ao consenso, já que somente por meio da linguagem chega-se à

interpretação. Heidegger demonstrou que, em Filosofia, é errado “pensar nas

palavras como fonte de ‘essências de significado’”, o autor era um crítico da

“existência de uma filosofia da linguagem”, em razão desta desconsiderar “o lugar

mais originário” onde a questão da linguagem nasce.386

384 STRECK, Superando os diversos tipos de positivismo: porque hermenêutica é Applicatio?, 2014. p. 279 385 STRECK, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas, 2014. p. 99 386 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261

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Heidegger demonstra “[...] como o enunciado é um modo derivado da

interpretação (que por sua vez foi possibilitada por uma (pré) compreensão

existencial) [...]”. Denota-se que “[...] não é nas palavras que devemos buscar os

significados do mundo (ou do direito, para ser mais específico), mas é para

significar (o Direito) que necessitamos de palavras”. Por tanto, as palavras têm

esse fim, dotar as coisa de significado.387 A compreensão se efetiva no momento

em “[...] que a articulação do significado dado às coisas (ou ao Direito) esteja

provido de sentido”.388 Gadamer também é enfático quanto à hermenêutica

jurídica não partilhar dos “argumentos logicamente concludentes”.389

A hermenêutica se afasta do decisionismo e do subjetivismo.

Principalmente se observada sob a perspectiva de Gadamer, o qual “[...] rejeita

peremptoriamente qualquer acusação de relativismo à hermenêutica jurídica. Isso

porque, paradoxalmente, falar de relativismo é admitir verdades absolutas,

problemática, aliás, jamais demonstrada”. A hermenêutica se encontra distante do

relativismo, por negar a finitude e a temporalidade. 390

Streck é considerado marco teórico ao examinar a temática, com base

nas formas de interpretação e aplicação da constituição, propicia (re)pensar o

Direito e defende a possibilidade e premência de respostas corretas nessa

ciência.391 Adota, para tanto, a linha que segue a hermenêutica filosófica,

demonstrando que por meio dela ocorre “uma fenomenologia do conhecimento”.

A partir dessas colocações, pode-se então enumerar as seguintes conclusões:

a) a hermenêutica filosófica de Heidegger e não é metodológica não

significa que se possa dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, já

que é preciso atentar para não adotar um relativismo filosófico;

b) a partir da hermenêutica, como base na intersubjetividade, verifica-

se que são necessárias perguntas para que sejam reveladas as

387 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261 388 STRECK, Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 260-261 389 STRECK, Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do

esquema sujeito-objeto, 2007. p. 36 390 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista, 2008. p. 135 391 STRECK, Lenio Luiz. Decisão jurídica em tempos pós-positivistas, 2010. p. 265

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respostas, ou seja “[...] não há conceitos sem coisas. Por isso,

Gadamer vai dizer que interpretar é aplicar (applicatio)”; 392

c) o ingresso da hermenêutica para além do sujeito-objeto aproxima-se

da “tese da resposta correta [...] resposta adequada à Constituição.

Trata-se de uma imbricação das teses de Gadamer e Dworkin”,

considerados “antirrelativistas”, embora Gadamer não fale em

resposta correta, há várias indicações acerca da interpretação

correta”; 393

d) a resposta correta aparecerá quando ocorrer uma reconstrução da

história institucional, o que está vinculado a princípios, de acordo

com Streck: preservação da autonomia do Direito; estabelecimento

de condições para pôr em prática um controle da interpretação;

fundamentação das decisões vista como um dever fundamental dos

juízes e condições de analisar se a resposta está efetivamente

adequada constitucionalmente; ainda é preciso uma nova teoria que

contemple fontes, norma, interpretação e, consequentemente, uma

nova teoria da decisão.

Coaduna-se, assim, com a posição de Streck e confirma-se a hipótese

sobre a possibilidade de a resposta em Direito ser aquela que está adequada à

Constituição, para tanto, é imprescindível o paradigma hermenêutico filosófico,

quando a proposta for efetivar, uma nova teoria da interpretação e aplicação da

Constituição.

Construir novos caminhos seria, contudo, uma das possiblidades de

atribuir o “sentido do Direito” e buscar alcançar a possível resposta adequada em

Direito.

392 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO. Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 13-14 393 FERRAZ; MARCHESANI; ARAÚJO. Entrevista Professor Lenio Luiz Streck, 2011. p. 14

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