conjuntura africana - ufrgs.br · conjuntura africana abr./2015 conjuntura africana – abr./2015...

7
CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 A Guerra pela Líbia na era pós-Kadaffi: os confrontos internos de um país fragmentado Willian Moraes Roberto 1 , 18 de abril de 2015. Mais de três anos já se passaram desde que a Líbia foi abalada pela queda de Muammar Kadaffi. Entretanto, os eventos que se desenrolaram a partir do fim da intervenção militar da OTAN em 2011 e a tomada do poder pelos rebeldes não levaram à estabilidade ou ao desenvolvimento socioeconômico do país. Pelo contrário, não só o novo governo teve grande dificuldade de instaurar o monopólio da força em todo o território, como em 2014 os níveis de instabilidade e violência elevaram-se a patamares sem precedência desde a queda de Kadaffi. Atualmente, o país encontra-se divido entre dois governos; um sediado em Trípoli e outro em Tobruk, que clamam legitimidade para si e confrontam um ao outro militarmente, problema que se soma ao crescimento da presença do Estado Islâmico em território líbio. A presente análise busca apontar as raízes da atual divisão da Líbia e explorar o desenrolar da conjuntura desde 2014, buscando identificar também possíveis impactos para a região do norte da África. De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no cenário energético internacional: o país possui a nona maior reserva de petróleo do mundo e a maior da África. A economia do país estrutura-se ao redor do setor energético, principalmente do petróleo, que é o que gera cerca de 95% das arrecadações com exportações, 80% do PIB e cerca de 99% do orçamento do governo (EUA, 2014). Cerca de 80% das reservas líbias de petróleo estão localizadas no Golfo de Sidra, entre a Tripolitânia e a Cirenaica, e seu petróleo é um dos mais lucrativos do mundo: não só pela localização próxima à um grande mercado consumidor a Europa e do fácil escoamento via Mediterrâneo, mas também pela sua alta qualidade, sendo um petróleo leve e com baixos teores de enxofre (CAMPBELL, 2013). Graças ao petróleo, a Líbia possuiu uma ativa política externa na sua região desde os anos 1970, sob o regime de Muammar Kadaffi, o que deu um grande peso geopolítico ao país (CHAZAN et al, 1992). Por anos, a Líbia interviu nos assuntos internos de países vizinhos, geralmente fomentando rebeliões e insurgentes contra governos contrários aos interesses de Kadaffi e apoiando, inclusive com força militar, aqueles governos cujos interesses eram compartilhados com os do governo líbio (VANDEWALLE, 2006). Tal postura mudou a partir dos anos 1990, quando foram os países africanos que apoiaram a Líbia contra o regime de sanções imposto pela ONU e pelo Ocidente ao país por seu suposto envolvimento com terrorismo internacional (SOLOMON; SWART, 2005). A partir dali, e com mais intensidade nos anos 2000, a Líbia delimitou a África como esfera principal de inserção regional, utilizando suas capacidades em prol de estabilidade e maior integração continental. Nesse sentido, será uma das grandes 1 Estudante do oitavo semestre do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) e do Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAFRICA).

Upload: buicong

Post on 18-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

CONJUNTURA AFRICANA

ABR./2015

Conjuntura Africana – Abr./2015

A Guerra pela Líbia na era pós-Kadaffi: os confrontos internos de um país

fragmentado

Willian Moraes Roberto 1, 18 de abril de 2015.

Mais de três anos já se passaram desde que a Líbia foi abalada pela queda de

Muammar Kadaffi. Entretanto, os eventos que se desenrolaram a partir do fim da

intervenção militar da OTAN em 2011 e a tomada do poder pelos rebeldes não levaram

à estabilidade ou ao desenvolvimento socioeconômico do país. Pelo contrário, não só o

novo governo teve grande dificuldade de instaurar o monopólio da força em todo o

território, como em 2014 os níveis de instabilidade e violência elevaram-se a patamares

sem precedência desde a queda de Kadaffi. Atualmente, o país encontra-se divido entre

dois governos; um sediado em Trípoli e outro em Tobruk, que clamam legitimidade

para si e confrontam um ao outro militarmente, problema que se soma ao crescimento

da presença do Estado Islâmico em território líbio. A presente análise busca apontar as

raízes da atual divisão da Líbia e explorar o desenrolar da conjuntura desde 2014,

buscando identificar também possíveis impactos para a região do norte da África.

De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no cenário

energético internacional: o país possui a nona maior reserva de petróleo do mundo e a

maior da África. A economia do país estrutura-se ao redor do setor energético,

principalmente do petróleo, que é o que gera cerca de 95% das arrecadações com

exportações, 80% do PIB e cerca de 99% do orçamento do governo (EUA, 2014). Cerca

de 80% das reservas líbias de petróleo estão localizadas no Golfo de Sidra, entre a

Tripolitânia e a Cirenaica, e seu petróleo é um dos mais lucrativos do mundo: não só

pela localização próxima à um grande mercado consumidor – a Europa – e do fácil

escoamento via Mediterrâneo, mas também pela sua alta qualidade, sendo um petróleo

leve e com baixos teores de enxofre (CAMPBELL, 2013).

Graças ao petróleo, a Líbia possuiu uma ativa política externa na sua região

desde os anos 1970, sob o regime de Muammar Kadaffi, o que deu um grande peso

geopolítico ao país (CHAZAN et al, 1992). Por anos, a Líbia interviu nos assuntos

internos de países vizinhos, geralmente fomentando rebeliões e insurgentes contra

governos contrários aos interesses de Kadaffi e apoiando, inclusive com força militar,

aqueles governos cujos interesses eram compartilhados com os do governo líbio

(VANDEWALLE, 2006). Tal postura mudou a partir dos anos 1990, quando foram os

países africanos que apoiaram a Líbia contra o regime de sanções imposto pela ONU e

pelo Ocidente ao país por seu suposto envolvimento com terrorismo internacional

(SOLOMON; SWART, 2005).

A partir dali, e com mais intensidade nos anos 2000, a Líbia delimitou a África

como esfera principal de inserção regional, utilizando suas capacidades em prol de

estabilidade e maior integração continental. Nesse sentido, será uma das grandes

1 Estudante do oitavo semestre do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações

Internacionais (NERINT) e do Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAFRICA).

Page 2: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

Conjuntura Africana – Abr./2015

responsáveis pela formação da União Africana. Apesar de ideias como um exército e

uma política externa unificados não terem sido aceitas, Kadaffi foi um dos grandes

contribuintes financeiros à organização (FAGBAYIBO, 2011). Foi também a Líbia de

Kadaffi uma das idealizadoras de um Banco de Investimento Africano, um Banco

Central Africano e um Fundo Monetário Africano para tornar o continente mais

independente frente às instituições financeiras internacionais, bem como a responsável

pelo quase total financiamento do primeiro satélite de comunicação africano

(POUGALA, 2011). Todo esse ativismo regional, entretanto, desmorona após a

intervenção de 2011 e a queda de Kadaffi. Desde então, o novo governo que se

estabelece tem como prioridade a normalização e estabilização da situação interna do

país, algo não alcançado até agora. Por isso, uma das principais consequências para a

África é a perda de um importante agente promotor da integração continental africana.

No que tange à atual crise

política que divide o país, é preciso

destacar o distanciamento histórico

entre as três regiões geográficas da

Líbia: Tripolitânia, Cirenaica e

Fezzan. Desde a época do Império

Otomano, quando cada uma destas

se constituía como uma província

com poucas interações econômicas

entre si, até a monarquia de Idris al-

Sanusi, instaurada após a

colonização italiana, a Líbia teve

grandes dificuldades de

institucionalizar um Estado por todo

seu território. A própria monarquia

Sanusi, instaurada na Cirenaica, era

reticente de governar sobre todo o

reino após a independência do país

em 1951, o que era reforçado por

um forte federalismo que dificultava a unificação nacional (VANDEWALLE, 2006).

O fim da monarquia e a subida ao poder de Kadaffi em 1969 não acabou com o

problema. As ideias do novo líder líbio, ligadas às teorias de democracia direta e

governo popular, que culminaram na formação da Jamahairiya líbia em 1977 – Estado

das Massas, em árabe – na verdade aprofundaram a falta de institucionalidade do país.

Criou-se, à época, Comitês Populares responsáveis pela administração em nível local e

que poderiam ser constituídos por quaisquer cidadãos. Este Poder Popular, por sua vez,

era constrangido pelos Comitês Revolucionários, subordinados ao Comitê Central para

Coordenação da Revolução, dirigido pelo secretário pessoal de Kadaffi. O Poder

Revolucionário, assim, era coordenado por pessoas próximas ao líder líbio, e era

responsável pelas principais áreas de administração do Estado: polícia, Forças Armadas,

política externa, orçamento público e setor petrolífero. Desta forma, não foram criadas

instituições independentes capazes de gerir o Estado após a queda de Kadaffi. O nível

Fonte: http://www.africa-confidential.com/article/id/5862/A_tale_of_two_cities

Page 3: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

CONJUNTURA AFRICANA

ABR./2015

Conjuntura Africana – Abr./2015

local, gerido na teoria pelo Poder Popular, não garantia um relacionamento e

engajamento entre as diversas cidades do país (VANDEWALLE, 2006). Com isso,

continuou predominante no país a ligação do povo com o nível local, o que se somava a

um Estado fracamente institucionalizado, dependente de laços profundos com a elite

governante para funcionar e que se sustentava basicamente com as rendas advindas do

petróleo.

Com a vitória dos rebeldes sobre Kadaffi, que é assassinado em outubro de

2011, e o fim das operações da OTAN – que mataram entre 90.000 e 120.000 líbios a

despeito de justificarem seus atos sob o princípio da Responsabilidade de Proteger

(BANDEIRA, 2013) –, a Líbia passou a ser governada pelo Conselho Nacional de

Transição (CNT). Este agora tinha de enfrentar os desafios de reunificar o país e criar

um Estado capaz de gerir todo o território. Isso mostrou-se extremamente difícil dado os

diversos interesses entre as facções que constituíam o CNT, a falta de instituições pré-

existentes e a proliferação de milícias. As diversas milícias existentes foram formadas

durante o confronto contra as forças de Kadaffi e eram geralmente nucleadas ao redor

de cidades, legado da forte tradição de poder local. Muitas delas se recusavam a

entregar as armas para o novo governo, o que impedia a implementação do monopólio

da força pelo Estado sobre o território a fim de estabilizar o país (BANDEIRA, 2013).

Além destas forças que minavam a autoridade central, o governo transitório teve de

enfrentar outra força centrífuga e descentralizadora: as tentativas de facções de

Benghazi de tornarem a Cirenaica autônoma em relação à Tripolitânia e Fezzan. Ainda

em 2012, chefes de milícias inauguraram o Congresso do Povo da Cirenaica, perto de

Benghazi, movimento que foi rejeitado por Trípoli (BANDEIRA, 2013).

Em julho de 2012, o CNT passou o poder para o Congresso Nacional Geral

(CNG), eleito pelo voto popular e governado por um Primeiro-Ministro. Importante

destacar que o CNG foi composto por diversos partidos de cunho islâmico que

conseguiram um grande número de assentos. Esta formatação institucional deveria durar

até a promulgação de uma nova Constituição, a estar pronta em 2014, quando seria

referendada pela população. O CNG, entretanto, continuou enfrentando os mesmos

problemas de seu antecessor, tendo grande dificuldade de gerir a existência das diversas

milícias. Prova da incapacidade do governo de impor sua própria autoridade foi a

decisão de formar a Força Escudo Líbia, um grupo armado composto por diversas

milícias que gradualmente comporia as forças nacionais do país sob a tutela da

autoridade central em Trípoli (BBC, 2014). Não conseguindo derrota-las, o CNG

passou a tentar cooptá-las, o que também mostrou-se infrutífero dada a diversidade de

milícias. Em setembro de 2012, inclusive, o embaixador dos EUA na Líbia, Cristopher

Stevens, que recrutava jihadistas líbios para lutar na Síria contra o regime de al-Assad,

foi morto em um atentado em Benghazi, orquestrado pela milícia Ansar al-Sharia que

seria ligada à Al-Qaeda (KLEIN, 2012).

A situação arrastou-se dessa forma até 2014, quando se deteriorou bruscamente,

levando à atual crise que divide o país. No dia 16 de maio de 2014, o General Khalifa

Haftar, Chefe de Estado Maior das Forças Armadas líbias até 1987 e depois opositor do

Page 4: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

Conjuntura Africana – Abr./2015

regime de Kadaffi, deu início a chamada Operação Dignidade. A operação consistia no

ataque às milícias islâmicas localizadas em Benghazi, incluindo a Ansar al-Sharia, a fim

de derrota-las e tomar a cidade. Tal movimento seria parte de um plano maior de Haftar

para tomar o país, exigir a dissolução do CNG – que ainda não produzira uma

Constituição e que possuía fortes partidos islâmicos – e expurgar o que considerava a

ameaça jihadista presente na Líbia (KARASIK, 2014). Neste sentido, afirmando que o

CNG abrira as fronteiras do país a grupos terroristas e apoiava milícias islâmicas

jihadistas, no dia 18 de maio, forças leais à Haftar cercam o parlamento em Trípoli e

exigem a dissolução do governo. As forças ligadas ao general consistiam de milícias

provenientes da cidade de Zintan, de oficiais das Forças Armadas que desertaram e de

membros das Forças Especiais, todas apoiadas pelo bloco político secular liberal do

parlamento, a Aliança das Forças Nacionais, e pela nova embaixadora dos EUA na

Líbia (KARASIK, 2014).

Com Haftar exigindo a dissolução do CNG, o Primeiro-Ministro Abdullah al-

Thani, no posto desde março de 2014, acusa-o de estar realizando um golpe. Os grupos

islâmicos em Benghazi também acusaram Haftar de golpe além de perseguição aos

muçulmanos. As acusações obtiveram apoio das milícias em Misrata, ligadas à

Irmandade Muçulmana na Líbia, as quais também constituíam um dos maiores números

da Força Escudo Líbia, com cerca de 40.000 homens (AFRICA CONFIDENTIAL,

2014a). Entretanto, o apoio ao general crescia, inclusive com manifestações populares

ocorrendo em Trípoli em seu favor, e o parlamento de fato estava impossibilidade de

continuar a operar. Enquanto isso, as forças leais à Haftar continuavam a realizar

ataques em Benghazi (AFRICA CONFIDENTIAL, 2014a).

Em junho, após diversas negociações, também apoiadas pela ONU, chegou-se a

um acordo em que al-Thani permaneceria como Primeiro-Ministro, mas novas eleições

ocorreriam a fim de formar um novo parlamento. Estas ocorrem no dia 25 do mesmo

mês e o CNG é oficialmente dissolvido, sendo substituído pelo novo Congresso de

Deputados (CD). O novo CD testemunhou uma perda de espaço dos partidos islâmicos

e o crescimento do bloco liberal e secular, apesar das eleições terem contado com

apenas 18% dos eleitores líbios (ALJAZEERA, 2014). Dessa forma, o general que

iniciou a Operação Dignidade contra as forças islâmicas consegue as novas eleições,

mas ao custo de uma polarização drástica na sociedade, em confronto aberto com as

milícias islâmicas. O novo parlamento buscou se instaurar em Benghazi, mas devido à

instabilidade ligada aos conflitos, teve de mudar-se para a cidade de Tobruk, também na

Cirenaica, de onde passou a operar, realizando suas reuniões dentro de um navio a fim

de evitar ataques terroristas.

Em oposição à eleição e aos movimentos do general Haftar, as milícias islâmicas

de Misrata lançam, no dia 13 de julho, uma contraofensiva em Trípoli, agora não mais

sede do governo, chamada de Operação Amanhecer. As forças estavam sendo lideradas

por Salah Badi, antigo deputado e ex-Ministro da Inteligência do antigo CNG, e

buscavam tomar o aeroporto da cidade (AFRICA CONFIDENTIAL, 2014a). As

batalhas em Trípoli e Benghazi adentraram por agosto, opondo em ambas as cidades as

forças ligadas a Operação Dignidade e Operação Amanhecer. O governo de Tobruk

pediu a dissolução de todas as milícias e um cessar-fogo, mas sem surtir qualquer efeito

Page 5: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

CONJUNTURA AFRICANA

ABR./2015

Conjuntura Africana – Abr./2015

prático. Também em agosto, aviões do Egito e dos Emirados Árabes Unidos (EAU)

bombardearam posições das forças islâmicas em Trípoli, demonstrando seu apoio ao

general Haftar e ao parlamento de Tobruk, contrários às forças islâmicas do país

(KIRKPATRICK; SCHMITT, 2014).

Mesmo assim, no dia 23 do mesmo mês, o aeroporto da capital foi tomado e

gradualmente a Operação Amanhecer obteve o controle de Trípoli. Ex-deputados que

formavam o CNG o recompuseram e formaram um parlamento alternativo ao de

Tobruk, chefiado por Omar al-Hasi, que se declarou como representante legítimo do

país, passando inclusive a indicar um novo gabinete de ministros (BOSALUM;

LAESSING, 2014). Desta forma, cristalizou-se a divisão da Líbia em dois campos, um

apoiando o governo em Tobruk e as forças da Operação Dignidade do general Haftar; e

um apoiando o governo em Trípoli e a Operação Amanhecer.

A maioria dos países aceita o parlamento em Tobruk como o legítimo governo

da Líbia, ainda que o parlamento liderado por Omar al-Hasi que esteja em controle de

Trípoli. A batalha em Benghazi continua entre os dois campos e o confronto espalhou-

se também para o Golfo de Sidra, onde forças de Misrata, alinhadas à Operação

Amanhecer, buscam obter controle das instalações petrolíferas e das principais reservas

de petróleo do país (AFRICA CONFIDENTIAL, 2014b). Grupos armados opostos

também se confrontam em Fezzan, mais especificamente ao redor dos campos

petrolíferos de al-Sharara, ao sul de Trípoli, pelo controle do oleoduto que leva petróleo

do local até o Mediterrâneo (AFRICA CONFIDENTIAL, 2014b). Por sua vez, o Banco

Central Líbio e a Corporação Petrolífera Nacional, ambos localizados em Trípoli,

declaram-se independentes e funcionam autonomamente, fornecendo, na medida do

possível, seus serviços a ambos os governos. Tobruk, entretanto, busca construir na

Cirenaica instituições similares a fim de ganhar autonomia plena em relação à Trípoli

(JANE’S, 2015).

Se não bastasse a divisão do país entre dois polos opostos, desde outubro de

2014, forças radicais islâmicas na cidade de Derna, na Cirenaica, próxima a Tobruk,

declararam-se parte do califado do Estado Islâmico liderado por Abu Bakr al-Baghdadi,

sendo a primeira cidade fora da área da Síria e do Iraque a jurar lealdade ao grupo

terrorista. O grupo líbio rejeita tanto o parlamento de Tobruk quanto o parlamento de

Trípoli, tendo realizado diversos ataques nas duas cidades e também às instalações

petrolíferas no Golfo de Sidra. Em fevereiro de 2015, a facção do Estado Islâmico da

Líbia decapitou 21 cristãos cooptas do Egito, o que resultou no bombardeamento de

suas posições em Derna pela força aérea egípcia. O presidente egípcio, general Fatah al-

Sisi, que enfrenta resistência de grupos islâmicos internamente e uma batalha contra

grupos jihadistas na Península do Sinai, intensificou seu apoio ao governo de Tobruk,

claramente colocando a instabilidade e a presença dos jihadistas na Líbia como uma das

principais ameaças a serem combatidas pelo Cairo (AFRICA CONFIDENTIAL, 2015).

Desta forma, depois de quase quatro anos do desmantelamento do regime de

Kadaffi, a Líbia encontra-se profundamente dividida entre dois governos, passando por

uma intensa guerra civil e pela ameaça do Estado Islâmico também ali se desenvolver.

Page 6: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

Conjuntura Africana – Abr./2015

Apesar do reconhecimento internacional oficial pertencer ao parlamento em Tobruk,

quase nenhum país busca envolver-se diretamente em um dos lados do conflito,

incluindo os Estados do Ocidente, os quais clamam pelo respeito ao atual embargo de

venda de armas a qualquer um dos lados do conflito. O Egito, e em menor escala os

EAU, entretanto, já estão envolvidos no conflito ao lado de Tobruk e contra os grupos

islâmicos em geral, não levando em consideração o embargo de armas (AFRICA

CONFIDENTIAL, 2015).

O governo de al-Sisi no Cairo responde com projeção de força à ameaça da

instabilidade líbia espalhar-se pela região, decidido a não permitir o crescimento de

grupos islâmicos na Líbia dado sua própria oposição islâmica interna e seu confronto no

Sinai com jihadistas. A questão, entretanto, é até que ponto o Cairo pode intervir sem se

envolver profundamente ao ponto de causar danos a si mesmo, podendo transformar o

conflito em uma nova crise regional. O presidente egípcio também vem procurando a

Argélia para garantir uma parceria na contenção da crise líbia. A postura do Boko

Haram, grupo terrorista na Nigéria, de apoio ao Estado Islâmico também preocupa os

países da região, principalmente por temerem uma aproximação entre as forças radicais

na Nigéria e na Líbia (WAGNER, 2015).

Internamente, o acirramento do conflito tende a continuar prejudicando a

economia do país, cujos rumos permanecem incertos. A Constituição que deveria estar

pronta em 2014 parece não ter chances reais de ser aprovada ou mesmo terminada nas

atuais circunstâncias. Além disso, a possibilidade de novas instituições serem criadas

pelo governo de Tobruk na Cirenaica para garantir maior autonomia em relação à

Trípoli pode levar a uma divisão administrativa de fato no país, que, entretanto,

permanece unido territorialmente devido à vontade de ambos os lados controlarem a

nona maior reserva de petróleo do mundo e a maior da África. Assim, a Líbia encontra-

se hoje em um elevado grau de fragmentação política e militar, sem um governo capaz

de ser aceito de forma legítima pela maioria da população. Tudo isso gestou uma

situação que pode transformar-se em uma crise regional, atestando as falhas de uma

transição que foi errática desde seu início e incapaz de impor o monopólio da força ou

se institucionalizar de forma plena em todo o país.

Referências:

AFRICA CONFIDENTIAL. A tale of two cities. Africa Confidential, vol. 55, n. 24, 5 de

dezembro de 2014b. Disponível em: <http://www.africa-

confidential.com/article/id/5862/A_tale_of_two_cities>. Último acesso em: 2 de abril

de 2015.

__________. Islamists strike back. Africa Confidential, vol. 55, n. 15, 23 de julho de 2014a.

Disponível em: <http://www.africa-

confidential.com/article/id/5709/Islamists_strike_back>. Último acesso em: 2 de abril

de 2015.

__________. More war, more talks. Africa Confidential, vol. 56, n. 5, 6 de março de 2015.

Disponível em: <http://www.africa-

confidential.com/article/id/6028/More_war%2c_more_talks>. Último acesso em: 2 de

abril de 2015.

ALJAZEERA. Libyans mourn rights activist amid turmoil. Al-Jazeera News, 26 de junho de

2014. Disponível em: <http://www.aljazeera.com/news/middleeast/2014/06/libyans-

Page 7: CONJUNTURA AFRICANA - ufrgs.br · CONJUNTURA AFRICANA ABR./2015 Conjuntura Africana – Abr./2015 ... De início, é importante ressaltar a importância geopolítica da Líbia no

CONJUNTURA AFRICANA

ABR./2015

Conjuntura Africana – Abr./2015

mourn-rights-activist-amid-turmoil-2014626161436740827.html>. Último acesso em:

31 de março de 2015.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica

dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

BBC. Guide to key Libyan militias. BBC News, 20 de maio de 2014. Disponível em:

<http://www.bbc.com/news/world-middle-east-19744533>. Último acesso em: 1 de

abril de 2015.

BOSALUM, Feras; LAESSING, Ulf. Rival second Libyan assembly chooses own PM as

chaos spreads. Reuters, 26 de agosto de 2014. Disponível em:

<http://uk.reuters.com/article/2014/08/25/uk-libya-security-

idUKKBN0GP0NX20140825>. Último acesso em: 1 de abril de 2015.

CAMPBELL, Horace. Global NATO and the Catastrophic Failure in Libya. Oxford:

Pambazuka Press, 2014.

CHAZAN, Naomi et al. Politics and Society in Contemporary Africa. Boulder, Colorado:

Lynne Rienner Publishers, 1992.

EUA (Estados Unidos da América). Libya: Country Profile. CIA (Central Intelligence Agency),

20 de junho de 2014. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-

world-factbook/geos/ly.html>. Último acesso em: 31 de março de 2015.

FAGBAYIBO, Babatunde. The Libyan revolution: thoughts on a Post-Gaddafi era of African

integration. Consultancy Africa Intelligence, 2011. Disponível em:

<http://www.consultancyafrica.com/index.php?option=com_content&view=article&id

=846:the-libyan-revolution-thoughts-on-a-post-gaddafi-era-of-african-

integration&catid=57:africa-watch-discussion-papers&Itemid=263>. Último acesso

em: 31 de março de 2015.

JANE’S. Intensification of Libya’s civil war likely in 2015, increasing existing risks to oil

and transportation assets. Jane’s 360 Country Risks, 8 de janeiro de 2015.

Disponível em: <http://www.janes.com/article/47783/intensification-of-libya-s-civil-

war-likely-in-2015-increasing-existing-risks-to-oil-and-transportation-assets>. Último

acesso em: 2 de abril de 2015.

KARASIK, Theodore. General Haftar’s plans and Libya’s future. Al Arabiya News, 2 de

junho de 2014. Disponível em:

<http://english.alarabiya.net/en/views/news/africa/2014/06/02/General-Haftar-s-plans-

and-Libya-s-future.html>. Último acesso em: 1 de abril de 2015.

KIRKPATRICK, David D.; SCHMITT, Eric. Arab Nations Strike in Libya, Surprising U.S.

The New York Times, 25 de agosto de 2014. Disponível em:

<http://www.nytimes.com/2014/08/26/world/africa/egypt-and-united-arab-emirates-

said-to-have-secretly-carried-out-libya-airstrikes.html>. Último acesso em: 1 de abril

de 2015.

KLEIN, Aaron. Sources: U.S. slain ambassador recruited jihadists. (WND) WorldNetDaily,

24 de setembro de 2012. Disponível em: <http://www.wnd.com/2012/09/sources-

slain-u-s-ambassador-recruited-jihadists/>. Último acesso em: 2 de abril de 2015.

POUGALA, Jean-Paul. The Lies behind the West’s War on Libya: are those who want to

export democracy themselves democrats? Global Research, 2011. Disponível em:

<http://www.globalresearch.ca/the-lies-behind-the-west-s-war-on-libya/25212>.

Último acesso em: 31 de março de 2015.

SOLOMON, Hussein; SWART, Gerrie. Libia’s Foreign Policy in Flux. African Affairs, v. 104,

nº 416, julho de 2005.

VANDEWALLE, Dirk. A History of Modern Libya. Cambridge: Cambridge University Press,

2006.

WAGNER, Meg. ISIS accepts pledge of alliance from Nigeria’s Boko Haram. New York

Daily News, 13 de março de 2015. Disponível em:

<http://www.nydailynews.com/news/world/isis-accepts-boko-haram-pledge-

allegiance-article-1.2147943>. Último acesso em: 2 de abril de 2015.