congregacionalismo - eclesiologia, doutrina e história

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Congregacionalismo, Eclesiologia, História e Doutrina; Manoel da Silveira Porto Filho

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  • CONGREGACIONALISMO:

    ECLESIOLOGIA, DOUTRINA E HISTRIA.

    Rev. Manoel da Silveira Porto Filho

  • Congregacionalismo: Eclesiologia, Doutrina e Histria

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  • Congregacionalismo: Eclesiologia, Doutrina e Histria

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    NDICE

    1. CADA IGREJA TEM O SEU PRPRIO TIPO............................................................................................05

    2. COMO SURGIRAM OS CONGREGACIONAIS........................................................................................09

    3. POR QUE PARECEMOS TANTO COM OS BATISTAS?...........................................................................14

    4. AS IGREJAS CONGREGACIONAIS CRIADAS PELO DR. KALLEY..............................................................18

    5. COMO O NOVO TESTAMENTO SE REFERE A IGREJA...........................................................................22

    6. DEMOCRACIA CONGREGACIONAL NAS IGREJAS BBLICAS.................................................................26

    7. AUTONOMIA DA IGREJA E SOBERANIA DE CRISTO.............................................................................30

    8. ALGUMAS CONSEQUENCIAS DOUTRINRIA DO CONGREGACIONALISMO........................................34

    9. RELAOES ECLESISTICAS DENOMINACIONAIS..................................................................................38

    10. INTERESSES LOCAIS E INTERESSES DENOMINACIONAIS.....................................................................42

    11. 28 ARTIGOS DA BREVE EXPOSIO DAS DOUTRINAS FUNDAMENTAIS DO

    CRISTIANISMO.....................................................................................................................................46

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    CADA IGREJA TEM O SEU TIPO PRPRIO

    Lio 1

    INTRODUO Por que somos congregacionais? Por acaso ou por convico? Em que somos

    diferentes e em que somos semelhantes, como igrejas, a outras denominaes? Quais so os princpios que nos levam a ser congregacionais? Essas so perguntas importantes, que geralmente o nosso povo tem feito, e que reclamam uma exposio clara e divulgada do que realmente somos para faz-lo amar cada vez mais os princpios doutrinrios de nosso grupo de igrejas, tendo conscincia e o conhecimento daquilo em que cr. Nossa orao que estas lies contribuam para isso.

    QUATRO TIPOS BSICOS DE IGREJAS

    Nos diferentes ramos do protestantismo histrico h quatro tipos bsicos de organizao e governo que dizem respeito no s s igrejas e comunidades locais mas tambm s relaes entre essas igrejas uma com as outras e com a denominao que pertencem. No uma simples questo de estrutura e organizao: problema de doutrina. Diferentes doutrinas conduzem organizaes diferentes. Essas doutrinas dizem respeito doutrina da natureza da Igreja, de suas relaes dispensacionalistas com Israel e com o Reino de Deus, da natureza do ministrio e do sacerdcio, dos sacramentos e das ordenanas, das concepes variadas sobre a misso da Igreja na terra, incluindo problemas escatolgicos e de ecumenismo. Como se v, as estruturas denominacionais esto fundamentadas em problemas de doutrinas bblicas muito importantes.

    Os quatro tipos a que nos referimos so: o tipo monrquico-sacerdotal, o tipo episcopal, o tipo a que poderamos chamar conexional, e o tipo congregacional. Nos dois primeiros, considera-se que h uma s Igreja, como organizao, e no mais que uma; no terceiro, considera-se que pode haver vrias igrejas da mesma natureza. Por exemplo, s h uma igreja Anglicana ou da Inglaterra; mas existe uma Igreja Presbiteriana do Brasil, uma Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, outra na Inglaterra etc., como entidades independentes, embora participando do mesmo sistema eclesistico. No entanto, uma Igreja Presbiteriana nacional ou denominacional se compe de igrejas presbiterianas locais, que tem assim umas com as outras e com a sua denominao uma relao orgnica e jurdica. A Igreja catlica no formada de igrejas catlicas, nem a Igreja Anglicana formada de igrejas anglicanas, como acontece com a Igreja Presbiteriana. Por isso, por causa da relao de membros e das conexes entre igreja local e igreja denominacional, chamamos o terceiro tipo eclesistico de conexional.

    O quarto tipo denominado congregacional no s pela democracia direta como sistema de cada congregao local governar, como tambm porque as Denominaes em que igrejas desse tipo se renem no formam uma igreja, mas so

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    organizaes inter eclesisticas de representao e servio para cuidar de interesses e programaes comuns de suas filiadas. Como organizao, o nome de Igreja pertence a comunidades locais, que so autnomas e soberanas em sua prpria direo; embora inter-responsveis pela manuteno dos servios comuns em que democraticamente cooperam atravs da denominao. Assim so os batistas, os congregacionais brasileiros [nazarenos e outros].

    Veremos na lio de hoje apenas os trs primeiros tipos. Na lio seguinte examinaremos o quarto.

    TIPO MONARQUICO-SACERDOTAL

    Representado pela Igreja Romana, estruturada como sistema monrquico, cujo

    representante de poder o Papa. A sede de autoridade reside na hierarquia, isto , na organizao do clero, ordem sacerdotal cuja autoridade repousa na sucesso apostlica. Como estrutura de deciso e autoridade. A igreja se constituiu na hierarquia, da qual o Papa o supremo e infalvel mandatrio, como sucessor de Pedro e vigrio de Cristo. A Igreja tem em sua plenitude o poder das chaves e representa o Reino de Deus na terra. Os que fazem parte da Igreja, fazem-nos atravs da aceitao da autoridade hierrquica e da observao dos sacramentos, o primeiro dos quais o batismo.

    TIPO EPISCOPAL

    Aqui o centro de autoridade o Bispo e a base dessa autoridade , como entre

    os catlicos, a sucesso apostlica. A sucesso dos bispos constitui o canal de graa pelo qual, atravs da imposio das mos de outros bispos, em sua ordenao, essa autoridade transmitida desde os apstolos. J no sculo III Cipriano dizia: A Igreja est no bispo. Certos Bispos que atingem maior honra ou autoridade so chamados arcebispos, o arcediago um auxiliar do bispo e cuida dos interesses das comunidades locais de uma diocese. Os oficiais subordinados ao bispo so chamados presbteros e diconos e exercem o pastorado nas igrejas locais. Essa forma de governo encontrada na Igreja Anglicana ou da Inglaterra e nas Igrejas Episcopais da Amrica, do Canad, da Austrlia [e do Brasil].

    TIPOS CONEXIONAIS

    Nos dois primeiros as comunidades locais no so entidades autnomas em

    sentido nenhum: a Denominao que se chama igreja. No tipo conexional, como acima dissemos, h uma Igreja Denominacional formada de comunidades locais, tambm chamadas igrejas, que subscrevem um credo comum. A entidade maior uma entidade corporativa e as demais so os seus membros com maior ou menor liberdade de direo e governo local conforme o grupo a que pertenam. Vrios grupos protestantes so aqui encontrados, como os presbiterianos, metodistas, luteranos, congregacionais do Conclio Internacional Congregacionalista.

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    a) Presbiterianos

    A Igreja Presbiteriana, escreve Dr. Alfredo Borges Teixeira em sua Dogmtica Evanglica, difere da Episcopal por no ter bispo; embora considere bispo e presbtero palavras sinnimas. Difere tambm das igrejas congregacionais (o Dr. Borges no usa a expresso Igreja Congregacional, pois sendo mestre de teologia, sabia que essa denominao absurda em sentido), por entender que a autoridade eclesistica pertence aos presbteros e ao conselho da igreja e no a Assembleia da igreja, que s a tem em principio, mas no em funo. verdade, diz ele, que, como corpo de Cristo, a autoridade do Chefe Supremo reside potencialmente na assembleia local; mas quando a igreja escolhe os seus representantes , estes recebem sua autoridade diretamente de Cristo e no so meros delegados da igreja que, naquela escolha, agiu apenas como instrumento de seu Senhor. A autoridade, pois, que os presbteros tem, diz o Dr. Borges, quando so eleitos e ordenados para o seu ofcio a autoridade potencial da igreja posta em exerccio esto eles subordinados ao seu Senhor e no igreja. O exerccio do presbiterato o governo e ensino da igreja. Da, presbteros docentes e presbteros regentes. A conexo das igrejas se faz pelo presbitrio; a dos presbitrios pelo snodo, e dos snodos pela Assembleia Geral. b) Metodistas

    O centro da autoridade est na Conferencia Geral, sob a presidncia dos bispos

    superintendentes da igreja. Cada bispo tem a seu cuidado uma Regio eclesistica, em cuja administrao auxiliado pelo gabinete episcopal, onde tem assento os superintendentes distritais. Os bispos no so vitalcios e, reunidos formam o Colgio dos Bispos. O ministrio constitudo de diconos, ou ministros em prova, e presbteros, ministros em pleno gozo de seus direitos. A itinerncia caracterstica do ministrio. A dos bispos matria do colgio dos bispos; a dos ministros e pastores compete aos bispos a que esto subordinados. As igrejas no tm personalidade jurdica e todos os bens adquiridos e administrados em nome da Igreja Metodista. Os participantes de uma igreja local, embora nela arrolados, so membros da Igreja denominacional. c) Luteranos

    A conexo das igrejas feita atravs do Estado. Na Alemanha e em outros

    pases europeus, a igreja local oficial. O corpo governativo chamado Consistrio, composto de clrigos e leigos nomeados e pagos pela autoridade civil. O consistrio tem a palavra final em matria de doutrina e prtica e julga os casos mais importantes de disciplina. Designa os superintendentes, que tomam a seu cargo a administrao de distritos em nome dele.

    Uma grande parte de luteranos no Brasil est ligada igreja Luterana Alem e pertencem igreja Evanglica de Confisso Luterana do Brasil. Outra parte, menor, est ligada a Amrica do Norte atravs do Snodo de Missouri (Igreja Evanglica Luterana do Brasil). Nesta ultima a diferena em relao primeira est no somente em sua separao do Estado, mas tambm no sistema democrtico, congregacional, em que suas

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    igrejas locais e a Denominao se administram, embora haja uma vinculao orgnica entre elas, de tal modo que a denominao pode ser chamada Igreja tambm.

    Na prxima lio examinaremos mais detidamente o sistema congregacional.

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    COMO SURGIRAM OS CONGREGACIONAIS?

    Lio 2 INTRODUO

    Na lio anterior consideramos, ao lado do tipo de igreja representado pela

    Igreja Catlica, dois outros tipos encontrados entre os protestantes (Igrejas Episcopal, Presbiteriana, Metodista e Luterana). Estes ltimos insistem num senso corporativo de igreja, de modo que as comunidades locais, em relaes orgnicas e jurdicas constituem a igreja denominacional, Igreja Episcopal, Presbiteriana ou Metodista, conforma o caso. A doutrina congregacional de igreja parte, porm de ponto de vista diferente. Na teologia congregacional, desde as primeiras definies de Robert Browne em 1560-1580 at a Declarao de Savia em 1658, o conceito de igreja, como estrutura de organizao, como comunidade organizada de crentes, tem suas bases nas comunidades locais, tal como se encontra na histria do Novo Testamento. Cada comunidade , como organizao privada, independente e autnoma em relao s demais. As denominaes congregacionalistas no formam uma igreja: so associaes eclesisticas em que igrejas locais e particulares, vinculadas pela mesma f e pelas mesmas responsabilidades crists, uma com as outras cooperam no desenvolvimento da obra comum. Da no haver Igreja Congregacional, mas Unies de Igrejas Congregacionais.

    Esse conceito de igrejas locais como Igrejas sem que este nome tenha responsabilidade de ser usado para as organizaes denominacionais bsico na doutrina congregacionalista que, apesar de todas as modificaes que se tem introduzido no congregacionalismo moderno, nenhuma denominao congregacional usa o nome de Igreja. Nem nunca, desde o princpio tal designao foi usada. Por exemplo: o rgo mundial hoje representativo do pensamento congregacional Conclio Congregacional Internacional, que se compe [na poca 1968] da Unio Congregacional da Austrlia, da Unio Congregacional da Guiana, Unio Congregacional da Inglaterra e Gales, da Unio Congregacional da Irlanda, Unio Congregacional da Jamaica, Unio Congregacional da Nova Zelndia, Unio Congregacional da frica do Sul, Unio das Igrejas Independentes de Gales, das Igrejas Crists Congregacionais dos Estados Unidos (hoje Igreja Unida em Cristo, depois de sua unio com a Igreja Reformada). Quer os congregacionais americanos, quer os congregacionais canadenses (tambm no Conclio e hoje formando a Igreja Unida do Canad, por sua unio Igreja Metodista e Presbiteriana daquele pas) jamais, antes dessas unies, formaram uma Igreja Congregacional da Amrica ou Canad; foram sempre chamadas Unio de Igrejas Congregacionais ou simplesmente Igrejas Congregacionais. A nica exceo consiste na Igreja Congregacional da Argentina e a Igreja Congregacional do Brasil, de origem alem e cujos nomes corporativos se prendem a situao particular da igrejas na Alemanha e na Rssia no principio deste sculo [XX].

    A historicidade e fora fundamental desse principio de independncia administrativa local est, at hoje, garantindo pelos Estatutos do Conclio Internacional e pelos das diversas denominaes que o compem e nos quais se considera que cada Unio, que no pode legislar para as igreja locais nem agir em nenhum sentido como corte

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    de apelao, o instrumento pelo qual as igrejas congregacionais expressam sua vida em comum e representam suas convices em assuntos de importncia nacional ou internacional. Desse modo, cada Unio, como associao voluntria de igrejas, de fato uma grande famlia de igrejas em que a individualidade e autoridade de cada uma honrada e respeitada por todas e em que cada uma aceita livremente as responsabilidades cooperativas de membros da comunidade.

    Cremos ser do interesse de nosso povo conhecer por que somos congregacionais. Alis, isso um quase mandamento bblico, se no fora de si mesmo uma necessidade (1Pe 3.15). H razes bblicas e doutrinrias e h razes histricas de sermos o que somos, o que nos leva no s a ter em alto apreo o sistema congregacional como tambm a buscarmos vive-lo e express-lo em todo o seu vigor.

    Julgamos, portanto, importante darmos aqui um breve histrico de como surgiu e se desenvolveu, desde tempos da Reforma, o pensamento de igrejas congregacionais. Antes, porm necessrio ter em mira um fato importante: a maneira toda especial de como surgiu o congregacionalismo brasileiro. Mas isso ser assunto para outra lio. Vejamos, ento, a histria congregacional, de modo geral, para examinarmos, na prxima lio, as caractersticas de nosso congregacionalismo nacional.

    AS ORIGENS DO CONGREGACIOALISMO PURITANOS E SEPARATISTAS

    O termo congregacional aplicado a uma organizao eclesistica ou igreja foi

    pela primeira vez usado na Amrica do Norte, dali passando-se para a Inglaterra, onde surgiram as doutrinas em que os sistema est baseado. Neste pas, desde a criao da Igreja Anglicana em 1534 por Henrique VIII foi to ferrenho opositor de Lutero que o Papa lhe concedeu o ttulo de defensor da f. Motivos pessoais e de ordem poltica, como sabido, levaram o rei a nacionalizar a igreja em seu pas. Ela continuou a mesma, apenas, ao invs de estar sujeita ao papa, estava sujeita ao rei. Era uma Igreja catlica Inglesa, ao invs de ser uma Igreja Catlica Romana.

    Nos tempos de Eduardo VI, filho e sucessor de Henrique, comeou a reforma da Igreja Anglicana, aproximando-se do movimento protestante. Durante o reinado de Maria, irm de Eduardo; houve uma forte reao a favor do catolicismo. Nos tempos de Isabel, tambm filha de Henrique, a orientao reformada retomou o seu curso. A Igreja continuava, porm, na mesma estrutura, subordinada ao estado e sob regime episcopal. Desde o reinado de Eduardo, um grande nmero de crentes, da por diante conhecidos como puritano, sustentava o princpio do sacerdcio universal dos crentes assim como protestava contra as vestes clericais e a liturgia herdada da igreja Romana. Com o decorrer dos tempos, ao lado de muitos puritanos que se acomodavam dentro do sistema episcopal, outros foram surgindo, conhecidos como independentes, que sustentavam os princpios democrticos das congregaes autnomas do Novo Testamento e a doutrina de que a igreja no era constituda do clero e da hierarquia, mas do povo. Essas ideias tinham sido difundidas na Inglaterra por Wickliff e seus pregadores desde o sculo anterior e as tradues populares das Escrituras facilitavam o povo participar dos debates doutrinrios e entender as razes evanglicas dos puritanos. O Ato de Conformidade promulgado por Isabel produziu a revolta inevitvel. Os nos conformistas se levantaram contra ele.

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    Isabel Muitos puritanos, como dissemos, tinham apenas o problema da liturgia,

    aceitando o regime episcopal; outros se inclinavam a um regime presbiteriano da igreja e outro grande nmero para o sistema congregacional. Eram os puritanos separatistas. Em 1560-1580, Robert Browne expunha em livro, os princpios e razes da Independncia Congregacional. Em 1592 a primeira igreja congregacional, ainda no usando esse nome, era organizada em Londres, mas seus dois pastores foram perseguidos e executados no ano seguinte. O movimento, porm continuou. Duas fortes congregaes se estabeleceram em Scrooby Mansion em Gainsborough em 1606. no ano seguinte, porm, em virtude das perseguies, grande numero de membros se refugiaram na Holanda. Os de Scrooby se estabeleceram em Leyden e os de Gainsborough vieram para Amsterd. Nesta cidade relaes estabelecidas com os menonitas e os anabatistas dali, fizeram os refugiados evolurem na doutrina do batismo apenas para adultos e, mais tarde, apenas por imerso. Com John Smyth comea ento o moderno movimento batista entre os evanglicos. Os refugiados de Leyden mantiveram-se em seus princpios originais. Batizavam crianas tanto como adultos, e no faziam discriminao entre os dois batismos embora pregassem a salvao pela f e sustentassem o mesmo regime congregacional como seus companheiros em Amsterd continuaram sustentando.

    OS PAIS PEREGRINOS. REFGIO NA AMRICA DO NORTE.

    A igreja de Scrooby-Leyden foi assim a igreja me do congregacionalismo. As condies econmicas na Holanda eram ms no entanto. O regresso para a Inglaterra era impossvel, e o Novo Mundo surgiu como uma terra da promisso. Fretaram-se dois navios, o Mayflower e o Speedwel. Este no pode prosseguir viagem e assim o Mayflower conduziu os 102 Pais Peregrinos do porto de Plymoth, Massachussetts, em 1620. Essa foi a origem da primeira igreja congregacional nos Estados Unidos. Pouco depois, novo grupo de puritanos chegava Boston. Esses novos emigrantes eram, porm de tendncias presbiterianas e anglicanas e no congregacionais. Houve srios atritos e o resultado foi um compromisso chamado Sistema da Nova Inglaterra ou Sistema Congregacional, entre congregacionais e anglicanos, onde, pela primeira vez, o nome congregacional foi dado a uma estrutura eclesistica. A nova igreja multiplicou-se em outras, cada qual com autonomia prpria, mas unidas no trabalho comum por uma

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    organizao central de coordenao e consulta. Outro significativo caracterstico, contrrio ao princpio anglicano da sucesso apostlica, foi o direito reconhecido de cada congregao escolher e ordenar os seus ministros.

    Os pais peregrinos Razes de origem histrica levaram a igreja de Salm posio de igreja oficial,

    estatal, num estranho mas compreensivo paradoxo de os Independentes ou Separatistas, que na Inglaterra clamavam contra a igreja Estatal, virem na Amrica introduzir relaes semelhantes com o governo. Dessa posio da igreja surgiu uma srie de intolerncias e legalismos , que obrigaram Roger Willians a procurar refgio em Rhode Island, ali estabelecendo o primeiro grande agrupamento batista na Amrica, em companhia dos Quakers. A posio da igreja estatal s terminou em 1833, quando 14 igrejas e depois mais 82 se separaram para formar a Igreja Unitariana que no aceita a doutrina da Trindade. Nesse mesmo ano, foi formada na Inglaterra, a Unio Congregacional da Inglaterra e de Gales.

    DESENVOLVIMENTO ECLESISTICO

    Essa longa associao com o poder civil, assim como uma unio cooperativa

    com os presbiterianos (1800-1850) vieram dar aos congregacionais americanos um carter diferente, nas relaes entre igrejas, daqueles sustentado pelos congregacionais da Inglaterra. na Amrica, apesar da independncia e autonomia local ser mantida doutrinaria e teoricamente, desenvolveu-se na prtica, o sentido de uma Unio Orgnica entre as igrejas, com centralizao cada vez maior de poder governativo da entidade denominacional na poltica do grupo, enquanto na Inglaterra as igrejas mantinham a concepo original das relaes congregacionais. Isso permitiu que, entre os americanos, se introduzissem prticas de poltica eclesistica no compatveis com as doutrinas congregacionais, tais como ligaes ecumnicas estremadas em unio orgnicas com outros grupos. Em 1871 os congregacionais americanos se uniram a Igreja Crist para formarem o Conclio das Igrejas Crists Congregacionais; recentemente essa organizao fundiu-se com a Igreja Evanglica Reformada para constituir a Igreja Unida de Cristo; em

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    1925 os congregacionais canadenses se uniram aos presbiterianos, metodistas s igrejas do Canad Ocidental para formarem a Igreja Unida do Canad.

    No h dvida que o primeiro passo possibilitou essas unies, em si mesmas doutrinria e eclesiasticamente impossvel pela divergncia fundamental de sistemas de cada grupo, foi a abandono prtico da natureza da Denominao como federao de igrejas independentes no sentido de ela se considerar a si mesma como uma igreja ou entidade de autoridade eclesistica, concepo to afastada dos princpios congregacionais que hoje, nos EUA e Canad, no h mais igrejas congregacionais seno aquelas que, no aceitando tais unies, permanecem como igrejas isoladas ou em pequenas associaes fiis aos princpios de sua origem.

    Vejamos agora, na prxima lio, como surgiu o congregacionalismo brasileiro

    e quais os princpios que o caracterizam.

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    SEMELHANAS ENTRE CONGREGACIONAIS E BATISTAS*

    Lio 3

    INTRODUO IDIAS BSICAS DO CONGREGACIONALISMO ORIGINAL

    A palavra congregacionalista no se aplicava, a princpio, a um sistema de

    organizao de igrejas. Definia uma posio doutrinria em relao ao conceito de igreja como povo e no como hierarquia. Representava a consequncia mais lgica e inevitvel da grande doutrina do sacerdcio universal dos crentes, da liberdade e da responsabilidade individual da f, que foi o pilar-mestre do pensamento da Reforma Protestante. Isso teria que levar, tambm inevitavelmente, doutrina da separao entre a igreja e o Estado. Este conjunto de ideias centrais caracteriza na verdade, o sentido da doutrina congregacional da Igreja: (1) democracia espiritual do povo de Deus; (2) congregaes ou comunidades locais independentes, no mesmo nvel de responsabilidades crists perante Deus e, por isso mesmo, no isoladas umas das outras mas unidas no mesmo sentido de vocao e testemunho; (3) separao do Estado, distinguindo as esferas da Religio e Poder civil. Da o nome inicial que o movimento congregacionalista recebeu na Inglaterra de independentes ou separatistas. Um fato devemos ns, evanglicos, confessar com toda lealdade e humildade: nem todas as consequncias naturais dos grandes princpios defendidos pela Reforma foram apreendidos ou expressados pelas igrejas ou grupos que dali por diante receberam o nome de evanglicos ou protestantes. A grande semente foi lanada. S uma gradual experincia na verdade pode ir descobrindo os horizontes que essa verdade alcana. Assim tambm os frutos produzidos pela semente no apareceram de pronto. Muitas circunstncias histricas e sociais, muito peso de tradio ou de convenincia do tempo influram, aqui e ali, para que nas doutrinas e prticas particulares dos grupos reformados permanecessem aspectos contraditrios das grandes verdades sustentadas. Uma delas foi a unio ainda continuada com o poder civil; outra o eclesiasticismo, onde o poder e autoridade da organizao, representa quer por seus dogmas quer pelo seu ministrio oficial; se sobrepunha ideia fundamental da igreja como povo; outra como a conservao do sentido sacramental das ordenanas, no to absoluto como no catolicismo, mas o bastante para substituir o sacerdotalismo catlico pela distino entre clrigos e leigos e pelo direito formal de ser considerado da Igreja aquele em que o sacramento fosse corretamente aplicado.

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    A REFORMA DE LUTERO E OUTROS MOVIMENTOS PROTESTANTES

    H outro fato que devemos ter em lembrana em lembrana: o movimento de

    Lutero no representou, sozinho, todas as aspiraes de protesto e de reforma na igreja existente. A causa evanglica no comeou to somente com o grande alemo. Antes dele e ao lado dele e mesmo depois dele, o movimento esteve no corao e lealdade de muitos outros.

    Houve uma Reforma na Alemanha, assim tambm como na Sua, nos Pases Baixos, na Frana e na Inglaterra. Antes de Lutero, houve, entre muitos outros, sustentado princpios que iriam mais tarde surgirem entre os reformadores do sculo XVI, o grande movimento de Wickliff, pregando que a igreja era o povo e no hierarquia; que o po e o vinho, embora consagrados, continuam po e vinho; que a salvao pela f e no pela observao dos sacramentos; que o povo tem o direito de procurar razes de sua f no exame direto das escrituras. Antes de Lutero, houve o movimento dos reformadores na Bomia. Muito antes dele, vieram os valdenses e os petrobrucianos, que se opuseram ao batismo infantil e s cerimnias e ritos pagos que se haviam introduzido na igreja oficial. Mais ou menos de seu tempo so tambm os anabatistas, cujas ideias a respeito da natureza da igreja, do batismo, das relaes entre igreja e Estado e da natureza do ministrio influram grandemente na formao posterior dos grupos que mais tarde se caracterizaram como congregacionais.

    ORIGEM COMUM DOS CONGREGACIONAIS E BATISTAS.

    interessante a histria dos batistas e congregacionais. No havia distino desses nomes. Formava na Inglaterra o grupo mais influente dos independentes ou separatistas, nos tempos posteriores a Henrique VIII. Constituram fortes as congregaes de Srooby Mansion e Gainsborough, mas dali tiveram que buscar refgio na Holanda, fugindo s perseguies da Igreja Oficial.

  • Congregacionalismo: Eclesiologia, Doutrina e Histria

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    O grupo de Scrooby foi para Leyden, onde continuou a manter os mesmos princpios originais (dele vieram, mais tarde, os congregacionalistas). O grupo de Gainsborough dirigiu-se para Amsterd, onde seu chefe, John Smyth, organizou em 1609 a Igreja batista daquela cidade, batizando-se a si mesmo e opondo-se ao pedo batismo, ou batismo de crianas. A segunda igreja batista foi organizada em Londres, 1611, por Tomas Helves e outros companheiros de Smyth que voltaram ptria. Assim se firmou o tipo de igrejas batistas com esse nome, enquanto o nome igreja congregacional s viria a ser generalizado mais tarde na Amrica, com os peregrinos do Mayflower.

    Isso vem a explicar a afinidade doutrinria que existe entre ns, congregacionais do Brasil, e as igrejas batistas, levando-se em conta que o Dr. Kalley, voltando s fontes puras da eclesiologia congregacional, evitou, na formao das igrejas em terras, todas as modificaes que se introduziram no congregacionalismo posterior que se desenvolveu na Amrica do Norte e mesmo na Inglaterra.

    EVOLUO DOUTRINRIA ENTRE BATISTAS E CONGREGACIONAIS

    O desenvolvimento da doutrina congregacional nas igrejas (considerando batistas e congregacionais como mantenedores dessa doutrina1) foi historicamente gradual, resultado de um contnuo estudo da palavra de Deus luz da experincia. Os princpios fundamentais do sacerdcio universal dos crentes e da separao do Estado firmaram os marcos iniciais do movimento. Nos primeiros tempos nem todas as resultantes dessas doutrinas ficaram perfeitamente esclarecidas. Pouco a pouco, porm, o exame mais detido do significado da Igreja e do Cristianismo atravs de mais atentos estudos das Escrituras foram mostrando novos aspectos a que a doutrina conduzia.

    a) Batismo a princpio os grupos independentes praticavam o pedo batismo (batismo de crianas); como a asperso, embora nenhuma restrio houvesse para com a imerso. Apenas a primeira forma era a ordem tradicional. A igreja batista de Amsterd (1609) assim como a de Londres (1611) usava o batismo por asperso, assim como os demais separatistas. S mais tarde, em 1640-1641, o problema da imerso como nica forma bblica de batismo veio caracterizar a diferena entre os batistas e seus companheiros (mais tarde congregacionais), enquanto estes continuavam a considerar vlidas as duas formas. Nos tempos modernos, h igrejas congregacionais que batizam por imerso e outras que batizam por asperso.

    Quanto ao batismo de crianas, os congregacionais ainda continuam praticando-o na Amrica do Norte e em alguns pases da Europa e outras regies. Desde que se organizaram como tais, como Igreja batista de Amsterd, os batistas tomaram uma posio francamente oposta ao pedo batismo. O batismo sinal de proclamao de f e, portanto, s aplicvel em adultos ou pessoas capazes de f individual. Os congregacionais chegaram a ter problemas tambm nesse sentido. Mas na Amrica do Norte, em 1622, o pacto do Meio-caminho celebrado por obrigaes polticas entre eles e os presbiterianos e anglicanos dizia que os batizados na infncia deviam ser considerados como membros da igreja a que os pais pertenciam ainda que no fossem admitidos

    1 Ao se referir a doutrina o autor parece referir-se a eclesiologia apenas.

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    comunho sem evidncia de regenerao. At hoje os congregacionais americanos batizam crianas.

    b) Calvinismo e Arminianismo. Era preponderante a doutrina arminiana no princpio. Essa era a doutrina das primeiras igrejas batistas fundadas em Amsterd e Londres. Logo, porm em 1640, os batistas se dividiram em batistas gerais, arminianos (expiao de Cristo para toda a raa humana) e batistas particulares, calvinistas (expiao de Cristo apenas para os eleitos). Os congregacionais s mais tarde, depois do Grande Avivamento, aceitaram o calvinismo moderado2 (que os batistas tambm aceitam) no sentido de que Cristo fez expiao por todos embora os efeitos reais dessa expiao por todos embora os efeitos reais dessa expiao s aproveitem aos que tenham f. Hoje, tanto calvinistas como arminianos asseveram a eleio soberana e a graa livre de Deus como a base da salvao do pecador; ambos admitem que a vontade do homem, livre quanto ao constrangimento externo, aceita a graa oferecida por Deus; o calvinista coloca maior nfase a primeira ideia, e o arminiano sobre a segunda.

    c) O ministrio tanto a posio original dos batistas como dos congregacionais foi a de que o ministrio pertence a congregao local, que escolhe e ordena os seus ministros.

    d) Relao com outras igrejas irms. No s a doutrina do sacerdcio universal e o estudo da natureza das igrejas do Novo Testamento, assim como as diferenas entre a antiga Dispensao e a nova, entre Israel e a Igreja, firmaram, desde o incio, a doutrina de que nenhum uso vlido da palavra igreja pode ser defendido para qualquer entidade que medeie entre a igreja local e a Igreja Universal. Em termos de organizao de consulta e coordenao entre igrejas locais, tais como as denominaes no tm, por sua natureza, carter eclesistico de igrejas maiores e gerais, mas de Unies e Associaes de igrejas. No h nesse sentido, nem pode haver nenhuma Igreja Congregacional assim como tambm nenhuma Igreja Batista, a no ser no sentido figurado para designar a cauda batista ou a causa congregacional.

    e) Centralizao de governo apesar de sua doutrina, tanto batistas como congregacionais tiveram duas amargas experincias. Uma a dos batistas gerais quando em 1671 organizaram uma assembleia Geral, como carter legislativo para as igrejas locais. Para evitar danos dessa iniciativa os batistas particulares publicaram uma Declarao de F, conhecida hoje sob o nome de Confisso de Filadlfia, que, ao lado da Confisso de New Hampshire, define a posio geral dos batistas.

    Quanto aos congregacionais foi celebrado um plano de unio com os presbiterianos em 1801. Os lideres congregacionais da Nova Inglaterra pensaram que o sistema presbiteriano mais centralizado, produziria maior e mais rpido efeito no fortalecimento do trabalho comum, principalmente no levantamento de fundos para misses e educao e na soluo de problemas inter eclesisticos, do que o regime de livre cooperao das igrejas locais. O resultado foi que dentro de cinquenta anos duas mil igrejas congregacionais criadas nesse sistema deixaram de ser congregacionais para se tornarem presbiterianas, enquanto 96 outras se fizeram unitarianas.3 *ttulo original: por que nos parecemos tantos com os batistas?

    2 O autor no deixa claro que o calvinismo esteve presente na gnese do congregacionalismo.

    3 O autor refere-se aqui a um acontecimento ocorrido nos EUA.

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    AS IGREJAS CONGREGACIONAIS CRIADAS PELO DR. KALLEY

    Lio 4

    INTRODUO

    H muita coisa semelhante e tambm muita coisa diferente entre o

    congregacionalismo brasileiro, que representa a continuidade histrica da obra do Dr. Roberto Kalley no Brasil, e o congregacionalismo americano e europeu representado pela Unio Congregacional Internacional. Um no o outro. Quando aqui chegou o Dr. Kalley, em 1855 e fundou trs anos mais tarde a primeira igreja (fluminense) e 18 anos depois a segunda (pernambucana), as igrejas congregacionais americanas e inglesas j tinham uma longa histria. Comeando com os princpios bsicos do congregacionalismo em comum com as igrejas batistas (no havia, como vimos, distino ainda de congregacionais e batistas, mas apenas o grupo de independentes ou separatistas ingleses), houve um desenvolvimento histrico em dois grupos caracterizando em sua eclesiologia semelhante, mas em alguns pontos diferente. Estabelecidos nos Estados Unidos e ali usando pela primeira vez o nome congregacional para a igreja que estabeleceram, os congregacionais se viram envolvidos em diversas circunstancias histricas e doutrinrias que afastaram o congregacionalismo americano em linhas originais da posio traada pelas primeiras congregaes inglesas. J nos referimos a essas circunstncias e a esses resultados, como a unio com o poder civil durante perto de um sculo e meio, a centralizao de poder na Unio de igrejas a tal ponto prtico que ela passou a ser uma igreja corporativa tal como a Presbiteriana e Metodista e, portanto, aberta s doutrinas ecumenistas de unio orgnica com elas, o batismo infantil por efeito do pacto do meio-caminho etc.

    O Dr. Kalley permaneceu nas doutrinas originais e nas consequncias lgicas a que essas doutrinas conduziam. As igrejas que fundou, fundou-as libertadas de todas as contradies doutrinrias e prticas que se introduziram no congregacionalismo histrico.

    COMO O NOME NOS VEIO

    Tal como aconteceu s comunidades congregacionais na Inglaterra, que,

    embora adotando o sistema eclesistico, no usaram o nome desde o princpio para se designarem (s mais tarde, em 1620, foi ele usado na Amrica do Norte), assim tambm aconteceu no Brasil. Nossas igrejas tinham o nome de Igrejas Evanglicas de tal ou qual lugar (Fluminense, Pernambucana, de Passa Trs, de Niteri, etc.). Nossa primeira conveno chamou-se Conveno de Igrejas Evanglicas Indenominacionais, nome um pouco esquisito, na verdade. J na segunda, em 1916, o nome congregacional foi empregado: Aliana das Igrejas Evanglicas Congregacionais Brasileiras e Portuguesas. No foi sem lutas que o nome foi aprovado, muitos lderes tinham objeo a ele, no s porque nada havia de relaes entre ns e os congregacionais americanos e ingleses, como tambm pelo liberalismo que se desenvolveu nessas igrejas e pela prtica do

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    batismo infantil que elas adotavam, prevaleceu, contudo, o argumento de que congregacional era o regime eclesistico seguido por nossas igrejas.

    O DR. KALLLEY E O DENOMINACIONALISMO

    Robert R. Kalley era um homem de esprito pronunciadamente evanglico,

    mas empenhado em permanecer alheio a estreitos denominacionalismos e a formulas rgidas de credo. A sua atitude para com os outros era caridosa e era generosa no exerccio de sua profisso, como mdico e cirurgio, disposio de quem necessitasse dele, sem distino de raa, nacionalidade ou credo. Respeitava todas as coisas crists e, relembrando os tempos de seu agnosticismo, sabia ser amigo com vrios graus de crena ou descrena. Todavia deplorava o anti clericalismo e algumas doutrinas a que os irmos de Plymoth (darbistas) do particular nfase escreve o Prof. Michel Testa em seu livro O Apstolo da madeira. Esta uma justa apreciao do carter do doutor, cuja experincia pessoal do evangelho lhe deu uma viso profunda da realidade espiritual da Igreja e da obra de Deus.

    Robert Reid kalley No era anti denominacionalista, seno avesso a toda amarga e personalista

    controvrsia. Sabia como escocs, das lutas terrveis das faces em sua terra e na Inglaterra. Mesmo na Madeira, vira como era pequena a propaganda e penetrao da Igreja Escocesa ali estabelecida no sentido de evangelizar o povo. Seus trabalhos na Ilha, feitos sem conexo com a igreja, em carter particular, com dedicada colaborao dos neo convertidos, baseados no testemunho pessoal, tinham influncia missionria mais profunda e estavam ganhando nativos. Talvez isso e o fato de ter sido ordenado pela Sociedade Missionria de Londres e no por uma igreja estabelecida, tornaram-no descomprometido com qualquer denominao.

    Outro aspecto do carter cristo do doutor era o seu profundo apego a Bblia. Sua converso e seus primeiros anos de crente estiveram profundamente ligados ao livro. Quando se encontrara em grandes dvidas espirituais e escrevera sobre isso irm adotiva, Miss Mary Kay, esta lhe respondera em carta: Se tua alma se submetesse autoridade das Escrituras, cessariam todas as dvidas... Cessariam tambm as tuas vs especulaes, acerca de assuntos que sempre ficaro inescrutveis aos mortais, por mais sbios que sejam. Logo depois veio o testemunho da velha anci enferma e pobre, mas

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    crist sincera e leal, que, visitada por ele, ao receber de suas mos o po que seria sua refeio, fechou os olhos e deu graas a Deus pela comida. Encontrando-se com um jovem, tambm com problemas semelhantes de indeciso e dvida, resolveram comear a ler juntos a Bblia.

    Um ancio se reuniu a eles; outros jovens tambm vieram e assim um grupo de 17 pessoas formou uma classe de leituras e estudos bblicos, desejosas de encontrar a Luz do Mundo. Da por diante, em suas visitas mdicas, levava sempre algumas palavras das Escrituras para os doentes. Nos domingos, aps os cultos, formou uma classe bblica na igreja. No ano seguinte de sua converso, manteve uma classe bblica para adultos em sua residncia e nas quintas-feiras dirigia reunies para os pobres em uma das dependncias da igreja. Interessou-se particularmente pelo Velho Testamento e as profecias em sua relao com Cristo e a Igreja. Assim a Bblia, no exame direto da palavra de Deus, tornou-se o fundamento da teologia de Kalley. No que desprezasse os mestres e os telogos; mas, para ele, a clara mensagem da Palavra, em sua simplicidade e objetividade, era mais autoritria que os argumentos intelectualizados da teologia. Mais tarde, j na Madeira, quando lhe perguntaram o que pregava ao povo, respondeu: o essencial das minhas pregaes aos ricos e pobres no : O que acha disto ou daquilo? nem: O que dizem os homens? nem tampouco: O que ensina a igreja, mas o que diz o Livro do Senhor Deus?

    Desse modo a herana teolgica de Kalley se tornou na Madeira e no Brasil, um apelo palavra, numa submisso humilde ao seu esprito e sua mensagem. Seu objetivo no era fundar uma igreja ou criar um grupo denominacional de igrejas com uma teologia que pudesse concorrer com outros grupos. Estava mais interessado em pregar a pureza do Evangelho e da vida crist do que a vaidade de fazer de seu trabalho um trabalho diferente dos outros.

    Poucos, ainda entre os congregacionais, herdeiros de seu esforo, compreendem a largueza e profundidade do esprito de Kalley, e pretendem viver denominacional e estruturalmente o que ele nos ensinou a viver e testemunhar despreocupados de sermos iguais ou diferentes de outros grupos. Os 28 artigos da Breve Exposio das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo, em que ele compendiou as bases doutrinrias de seus trabalhos e da igreja que criou, so a mais bblica das confisses de f que qualquer grupo cristo haja produzido. Tem tudo o que essencial, sem descer a discriminaes teolgicas particulares que tem sido motivo de amarguras e quebra de comunho entre muitos. , em qualquer confisso de f, o mais alto apelo s coisas que na verdade so fundamentais e fora das quais, para aument-las ou diminu-las, todo o resto, por mais respeitvel que seja, fruto de personalismos e intolerncias espirituais. E ainda existem apesar disso, os que, inadvertidamente, sem compreender o valor que eles tem, desejam ver os 28 artigos aumentados com pargrafos e artigos num sistema de lei compulsrio e bitolada que eles nunca desejaram ser.

    O DR. KALLEY E A IGREJA QUE CRIOU.

    Essa cultura bblica de Kalley levou-o a dar tambm um sentido bblico de

    organizao s igrejas. interessante o que tem acontecido na histria. A Bblia sempre conduz s manifestaes simples e mais heroicas da vida e da f, aos tipos mais simples da

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    vida corporativa dos cristos. Um notvel exemplo disso foi o de Oncken e seus amigos, em 1834, em Hamburgo. Ao entrarem numa nova vida em Cristo, estavam sem guias eclesisticos. Puseram-se a estudar com afinco o Novo Testamento. Resultou da uma igreja congregacional, batista, e dessa simples congregao uma grande parte dos batistas alemes. Na Rssia, apareceram missionrios luteranos que pregaram, espalharam Bblias e retiraram-se. Sem outro guia, alm do Esprito e da Palavra, os crentes puseram-se a estudar o Livro e esse foi o comeo da obra batista na Rssia., onde, entre 1910 e 1920, o nmero de membros aumentou de 200.000 para 2.000.000. O que se diz aqui de batistas se poderia dizer de congregacionais. Tanto uns como os outros so herdeiros de um movimento de volta a Bblia ou de lealdade maior palavra de Deus que s instituies formais de igrejas e teologias.

    Batistas e congregacionais creem no valor permanente da democracia eclesistica encontrada nas igrejas do Novo Testamento. Creem que qualquer que seja a estrutura administrativa de uma igreja crist, os princpios espirituais dessa democracia ho de nortear as linhas dessa estrutura para que ela permanea crist. Certamente a democracia um sistema difcil, mas o cristianismo tambm no alguma coisa fcil. Muito mais fcil impor, de funcionar em resultados imediatos uma administrao de fora, que opera como engrenagens frias de uma mquina, do que o sistema democrtico onde as conscincias agem por convico e educao. Longo e estreito o caminho da democracia poltica; mais ainda o da democracia espiritual representada e alimentada pelo cristianismo neo testamentrio.

    Nem sempre sabemos avaliar o bem que possumos. um pecado que, aqui e ali, e em muitos casos sempre reponta. Conviria, porm, ler o que de ns escreve o autor de Fermento Religioso nas Massas do Brasil ; as reflexes sobre o congregacionalismo nosso e dos batistas em O Protestantismo Brasileiro, de mile G. Leonard, e ter em memria as palavras que escreveu o Dr. W. C.. Taylor sobre a obra de Kalley: Gradualmente a obra que ele fundou tomou as atitudes inevitveis de uma denominao congregacionalista. Mas a melhor denominao congregacionalista do mundo, pois a mais espiritual e no pratica o batismo infantil... Sem concordar com umas poucas doutrinas e prticas dessa grei, tenho imensa e grata admirao pela sua histria, testemunho e herosmo. So testemunhos que fazem bem e nos levam a meditar, agradecidos na rocha de que fomos talhados.

    Manoel Viana, fundador da Igreja Evanglica Pernambucana.

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    COMO O NOVO TESTAMENTO SE REFERE IGREJA

    lio 5

    INTRODUO

    Na Bblia, a palavra Igreja usada com duas referencias bsicas: como

    comunidade local, assembleias organizadas para cristos num determinado local, ou como comunidade geral representada por essas comunidades particulares. Ou designa uma igreja local, como a Igreja Evanglica Fluminense ou Igreja de Antioquia, ou designa, em seu todo, a Igreja de Cristo. Vulgarizaram-se, entre escritores cristos, as expresses: Igreja Universal, ou Igreja Visvel, Igreja Militante e Igreja Triunfante. No so termos bblicos e as vezes mais confundem do que esclarecem a ideia de Igreja no Novo Testamento.

    A IGREJA, EM SENTIDO GERAL

    Nesse sentido, a palavra igreja pode, no Novo Testamento, ter dois sentidos.

    Pode significar a famlia de Deus, constituda de quantos, independentemente de qualquer profisso religiosa e acima dela, tenham sido ou sero beneficiados pelo concerto da graa em Cristo. Abrange todos os crentes, quer nas igrejas, quer fora delas. a palavra em toda a sua plenitude. A comunidade invisvel, mas real aos olhos de Deus, de todos os salvos. A Igreja que Cristo, seu cabea e Senhor, ir representar ao Pai como gloriosa, sem ruga e sem defeito (Ef 5. 25-27). Pode tambm designar o conjunto de igrejas locais numa regio, como quando se diz que a igreja em toda Judia, Galilia e Samaria tinha paz (At 9.31) ou quando Paulo Confessa ter sido perseguidor da igreja (Fp 3.6). Certamente aqui a referncia s comunidades crists da Judia, Galilia e Samaria e quelas que Paulo assolava, como havia feito de Jerusalm.

    Uma coisa fundamental guardar, nesse uso da palavra: ela no indica uma comunidade estruturada, organizada, como se a igreja por toda a Judia, Galilia e Samaria ou a igreja que Paulo perseguiu, de Jerusalm a Damasco, fosse uma organizao formal de igrejas locais.

    IGREJA, COMUNIDADE LOCAL

    Sempre que no NT se fala em termos de corpo organizado de cristos, a referncia bblica a igreja local, comunidade ou assembleia crist que, numa cidade, forma um grupo especfico de crentes que se renem para a adorao, testemunho e servio de Cristo. Numa cidade ou numa provncia pode haver vrias igrejas, tal como acontecia em Corinto e na Galcia ou na provncia da sia. No h tal coisa, no NT, como uma igreja urbana ou provincial ou nacional em termos de estrutura ou organizao. Cada igreja local uma verdadeira igreja, autnoma e independente administrativamente de

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    suas co irms, embora a elas ligada intimamente pela fraternidade de f e pela participao da mesma vocao em Cristo.

    Cada uma delas um micro cosmo, uma especializada localizao do corpo universal da igreja. Todas elas no so unidades que, somadas, formam a Unidade Maior, mas pontos de conscincia e de atividade em que a igreja se manifesta em sua plenitude de significado, natureza e misso.

    TEXTOS BBLICOS EM QUE APARECE A PALAVRA IGREJA

    A palavra usada 114 vezes no NT, cinco vezes faz referncia Igreja Crist;

    quinze vezes, refere-se a ela em sentido geral; duas a referncia igreja na glria; noventa e duas vezes, usada ora no singular, ora no plural, a indicao de igrejas locais. Eis os textos:

    a) Sem referncia Igreja Crist: At 7.38; 19.32, 39, 41; Hb 2.12. b) Referncia s comunidades locais: Mt 18.17; At 5.11; 8.1,3; 9.31;11.22,26;

    12.1,5; 13.1; 14.23; 15.3,4,22,41; 16.5; 18.22; 20.17, 28; Rm 16.1, 4, 5, 16, 23; I Co 1.2; 4.17; 6.4; 7. 17; 10.32; 11.16, 18, 32; 14.4,5,12,23,28,33,34,35; 16.1,9; II Co 1.1; 4.1; 8.18, 19, 23,24; 11.8, 28; 12.13; Gl 1.2,22; Cl 4.15,16; Fp 4.15; 1 Ts 1.1; 2.4; II Ts 1.1, 4; I Tm 3.5, 15; 5. 16; Fm 2; Tg 5.14; III Jo 6,9,10; Ap 1.11,20; 2.1,7, 11,12,17,18, 23,29; 3.1, 6, 7, 13, 14, 22; 22.16.

    c) Referncia Igreja Gloriosa: Ef. 5.27; Hb 12.23. d) Referncia Igreja Geral: Mt 16.18; I Co 12.23; 15.9; Gl 1.13; Ef 1.22, 3.10,

    21; 5.23, 24, 25, 29, 32; Cl 1.18, 24. Em todos esses textos a palavra usada ekklesia que indicava as assembleias

    populares da cidades gregas, os qualificados habitantes reunidos sob convocao especial para democraticamente, tratarem de interesses da cidade. O carter democrtico dessas assembleias e sua independncia de relao com outras cidades eram um dos aspectos mais destacados da democracia grega. Seu oposto era a tirania ou a oligarquia, em que um homem ou uma classe de homens assumia o governo. Por isso mesmo, os entendimentos e ligaes entre as cidades eram celebrados e mantidos em forma de federao ou confederao (ligas anfictinicas), como acontecia em ocasies de guerra.

    Quando houver que escolher um nome para grupos cristos, no perodo apostlico, e, antes dele, um nome que correspondesse ao carter da congregao nacional de Israel para fins religiosos e polticos, tanto os tradutores da Septuaginta (o AT para a lngua grega), como Jesus e os crentes primitivos usaram a palavra grega, pois ela continha, de modo muito estreito, as ideias bsicas da natureza da igreja crist e da congregao israelita.

    O sentido bblico da palavra igreja diz o Dicionrio Teolgico do Novo Testamento que a igreja no resulta da adio de comunidades particulares, mas que cada comunidade, por menor que seja, representa a comunidade total, a igreja.

    A ASSEMBLIA DE ISRAEL

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    Na Septuaginta a palavra Ekklesia traduzida em portugus para congregao ou assembleia, usada cerca de cem vezes, representando sempre uma reunio ou agregao de indivduos ou uma congregao do povo. Aplicada a Israel, significava ou as reunies solenes de todo o povo como portadores da aliana e promessas de Deus ou as reunies especiais dos homens, as assembleias para resolver problemas de guerra ou questes judiciais. H, portanto, um sentido largo e um sentido restrito da palavra. Israel era a congregao, a assembleia (igreja) de Jeov, quer estivesse formalmente reunido (ento aquela reunio era chamada congregao), quer em sua prpria natureza de povo escolhido, ainda que no estivesse em reunies.

    a mesma linha de aplicao de sentido que faz na igreja crist, ora usando a palavra em sentido particular, para indicar as assembleias locais, formal ou potencialmente reunidas, ora para indicar a comunidade geral, como povo de Deus.

    Uma coisa, porm para notar em Israel como se nota tambm na Igreja: a palavra no indicava aplicada a todos, uma assembleia maior composta de assembleias menores, como se houvesse uma Assembleia Nacional e assembleias regionais ou locais. Quando um grupo de israelitas se reunia no templo para adorar, essa assembleia, embora restrita aquela gente que ali se reunia, era aos olhos de Deus e na concepo do povo, todo Israel adorando a Deus. No havia Assembleia e assembleias. Nada mais horroroso ao corao israelita que pensar em tal distino. Qualquer agrupamento particular teria que ter a mesma natureza que todo o povo reunido, pois o contrrio seria a infidelidade a Jeov e ao concerto. O caso acontecido com os filhos de Ruben, Gad e Manasses, em Josu 22. 10-34 lembra esse fato.

    A faixa estreita do territrio da Palestina no diminuta, no maior que o nosso estado de Alagoas ou Esprito Santo. A maior extenso do norte ao sul era de 50m lguas, e 17, de leste a oeste. A cidade de Jerusalm no estava longe do centro da populao. A grande maioria dos que se reuniam na assembleia nacional, s tinha que peregrinar de dez a vinte lguas. A geografia facilitava as romarias, assim como os costumes de hospitalidade, as motivaes do culto e as prescries da legislao judaica. Israel era uma verdadeira assembleia, reunida diversas vezes por ano, e sempre potencialmente uma assembleia do mesmo modo como posso falar da Igreja Fluminense ou da Igreja de Niteri (no sentido dos que formam uma assembleia) ou da Assembleia Legislativa do Estado do Rio ou Guanabara ainda em dias que no esteja havendo reunies formais dessas assembleias.

    Quando, pois, se fala em congregao ou assembleia de Israel (ou de Igreja, como na expresso a igreja no deserto a ideia local, de todo o povo, em sua terra, reunido ou com capacidade de se reunir para deliberar ou para adorar dentro do mesmo concerto religioso. Quando se reunia o povo, no eram vrias assembleias que se reuniam. Israel, nesse sentido (deixando de lado as diferenas dispensacionalistas entre ele e a igreja crist) era como uma igreja local entre ns e no uma assembleia de igrejas . no h, portanto, nenhuma semelhana entre a comunidade israelita e as nossas denominaes congregacionais ou batistas, nem em carter nem em organizao.

    Israel era um povo civil e religiosamente, circunscrito a um local, a Palestina, com um centro de adorao a reunio formal, Jerusalm, tanto que no podia construir templo nem altares fora de seu territrio. A Igreja no um povo no mesmo sentido de Israel: no tem significado nem distines tnicas e raciais; no se circunscreve a um local

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    na terra; no , em sua expresso universal e bblica, uma organizao de qualquer espcie. uma fraternidade de crentes em Cristo, ligados pela mesma experincia da Graa e pelas mesmas responsabilidades de testemunho do evangelho. uma famlia de muitas famlias. Pense-se no velho pai com filhos e filhas todos casados. Desapareceu a famlia do pai? No, antes foi aumentando. E cada famlia nova que se constitui uma famlia em todo rigor e consequncias da palavra, com toda a liberdade, independncia, autonomia e soberania para decidir de seus negcios e de sua vida. Mas todas, mesmo assim, so ainda a famlia daquele de quem levam o nome; so entre si independentes, mas no so isoladas. No h lei nenhuma que as obrigue a essa comunidade familiar. Ela existe, ela se mantm, ela d frutos, ela se manifesta alm e acima de qualquer lei. Uma lei pode unir um homem e uma mulher e os descendentes deles e formar um agrupamento jurdico de pessoas a que se d o nome de famlia. Mas nenhuma lei pode formar um lar, ainda que forme famlias segundo a lei.

    A famlia de Deus no um agrupamento legal ou eclesistico. E quando qualquer comunidade julgar que pode definir e limitar seu carter cristo e de famlia de Deus por meio de leis e no de comunho, por efeito de legislaes sociais e de fraternidade provinda de acordos e convenincias, mas no do novo nascimento no Esprito, ento certamente nenhuma comunidade assim formada e dirigida igreja no esprito da Bblia, mas simples associao humana para atividades religiosas. Mas no isso apenas que desejamos ser. Nem o Evangelho que pregamos para conseguir apenas isso. E o povo que confia em ns, tantos que nos fez seus ministros, tem todo o direito de exigir que seja educado e alimentado com o verdadeiro esprito da mensagem de Deus. Essa foi a determinao de Kalley; essa a glria a simplicidade fiel e humilde do congregacionalismo bblico de nossas igrejas e de nosso povo.

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    DEMOCRACIA CONGREGACIONAL NAS IGREJAS BIBLICAS

    Lio 6

    INTRODUO

    A histria do NT, como encontrada em Atos e nas epstolas, demonstra, sociedade, que as igrejas apostlicas eram do tipo congregacional, comunidades crists autnomas, com soberania interna nos negcios de suas decises e conscincia, no subordinadas a qualquer comunidade ou estrutura eclesistica superior, apenas condicionada, em sua qualidade de igrejas, lealdade do Evangelho e de Cristo. Igrejas assim se consideravam irms e cooperadoras das outras igrejas, membros igualmente responsveis da grande famlia de Deus. To evidente a autonomia e independncia de cada comunidade local em fazer de sua assembleia, guiada pelo Esprito e por sua compreenso correta das escrituras, o poder mximo e final de suas deliberaes que todos os estudiosos do cristianismo primitivo, justificando como possam sistemas diferentes que se estabeleceram depois na histria, so unnimes em reconhecer a democracia congregacional como o regime eclesistico no somente instaurado, mas defendido pelos apstolos e seus companheiros.

    DOIS TELOGOS LUTERANOS FALAM DA IGREJA LOCAL

    Ouamos primeiro, o prof. John T. Mueller, em sua Dogmtica Crist, onde apresenta, contra as teorias do liberalismo e racionalismo alemo, os fundamentos tradicionais do cristianismo histrico. Ouamo-lo falar sobre a doutrina da igreja:

    Nem pessoas individuais (papas, prncipes, presidentes) nem assembleias (conclios, snodos, conferencias pastorais, consistrios) foram por Deus ordenados com o fim de decidir questes ou de gesto eclesistica. No contrrio s escrituras que, em certas atividades da Igreja, os fieis cristos se faam representar por pessoas devidamente por elas eleitas. Desta forma os ancies (a direita, presbteros) podero representar as congregaes locais e os delegados especiais podero representar grupos inteiros de igrejas locais em snodos e conferencias. Contudo, tal igreja representativa s dispe de tanta autoridade quanta lhe tem sido delegada mediante declarao expressa das igrejas locais. Em si, no tem poder legislativo, mas unicamente consultivo; vale dizer, o que uma igreja representativa delibera que deve estar de acordo com a vontade das igrejas nela representadas e deve sempre por elas ser qualificado. No h, portanto, igreja representativa no sentido de que o clero, conclio, snodos ou congressos teriam autoridade para decretar leis para as igrejas. Uma vez mais, todavia, se nos permita repetir que as igrejas locais no tm autoridade nem de por de parte a Palavra de Deus nem de ofender o amor cristo. Os snodos e conclios no so uma espcie de super

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    igreja, mas de igreja local que suprema, por uma ordenao de Cristo (obra citada, p. 240-241).

    O Dr. Francis Pieper, em sua Christian Dogmatics, tem as mesmas afirmaes do Dr. Mueller e mais os seguintes pargrafos: Com relao s congregaes locais, eles (conclios, conferncias, snodos) no possuem carter de governo eclesistico exercendo poder legislativo ou coercitivo, tendo apenas o sentido de ser organismo de recomendao para congregaes que gozam de governo prprio. Mais adiante, sobre Ministrio e Ordenao: A autoridade para ordenar ao ministrio reside no poder delegado pela congregao, conforme os Artigos de Smalcald: a igreja tem o direito de eleger e ordenar ministros.

    Um autor congregacionalista ou batista subscreveria essas declaraes. AUTONOMIA E INDEPENDENCIA, DEMOCRACIA E SOBERANIA NAS IGREJAS APOSTLICAS.

    Jesus manda, em Mt 18.17, que, em casos de ofensas particulares, depois de

    esgotados os recursos de uma aproximao pessoal, com testemunhas, se oua a igreja. A referencia a comunidade local, no apenas aos seus oficiais, a quem compete a palavra final;

    Paulo, no caso de pecado grave em Corinto, atribuiu a excluso, assim tambm como a restaurao posterior do culpado, igreja inteira, como congregao (I Co 5.1-5; II Co 2.4,5). Mandou a igreja que, quando congregados tirassem do meio o malvado e, depois dessa repreenso feita por muitos a excluso deveria ser remetida pelos mesmos em caso de humilhao e arrependimento. Isso vem no como ordem de Paulo, seno como opinio de autoridade persuasiva: ainda que ausente em pessoa, mas presente em esprito, j sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infmia, em nome do Senhor Jesus, reunidos vs e o meu esprito seja entregue a Satans etc.. congregao pertence palavra final no assunto. Assim tambm fala aos romanos e tessalonicenses (Rm 16.17; II Ts 3.6). Jesus, nas sete cartas da sia, considera claramente que cada igreja, como um todo, responsvel por sua doutrina e disciplina.

    A igreja local elegia democraticamente seus oficiais. Toda ela foi convocada para a eleio de um apstolo (At 1.15-26). Toda ela decidiu na eleio dos sete diconos. S depois que toda a multido fez a eleio que os apstolos, orando lhe impuseram as mos (At 6.1-6). Do mesmo modo se processou a eleio de bispos e ancios nas igrejas paulinas. Paulo e Barnab, regressando a Antioquia na sua primeira viagem, apontaram ancios em cada igreja. Cada igreja tratada per si. No h colgio de ancios, mas cada igreja tem os seus, escolhidos por ela. A verso revista e atualizada da Bblia traduz: promovendo-lhes em cada igreja a eleio de presbteros, o que uma interpretao correta do texto bblico. Paulo e Barnab no impuseram, mas apontaram, certamente recomendaram quais os irmos aptos para o cargo; mas que escolheu e elegeu foi cada igreja. A ideia de uma ordem clerical, como a de um corpo de ministros separados da congregao e independente dela, completamente estranha ao NT.

    Por muito tempo se conservou esse direito da assembleia, como atestam os escritos dos Pais apostlicos e primitivos autores cristos. Cipriano, quando fala da eleio de Cornlio para bispo de Roma (ano 251) escreve: foi escolhido por juzo de Deus e de seu Cristo por meio de sufrgios de todo o povo que esteve presente. Muitos dos bispos

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    antigos, como sabido, foram escolhidos espontaneamente pelo povo, como Atansio, Ambrsio e Crisstomo.

    O ministrio das igrejas pertence s igrejas e no a qualquer outra organizao fora delas.

    No h nenhum caso, no NT, em que alguma assembleia representativa, conclio, conveno ou qualquer outra organizao exterior s igrejas locais, tenha exercido ou procurado exercer autoridade sobre qualquer delas.

    A igreja de Corinto estava em dificuldade, mas seus problemas no foram remetidos a qualquer apreciao conjunta das igrejas da Macednia ou da sia. Eram questes locais, mesmo de doutrina, que as cartas de Paulo ajudaram a resolver despertando o sentimento do dever e do esprito cristo da comunidade. Na questo dos glatas, que estavam pervertendo os princpios do evangelho, no foi convocado nenhum conclio das demais igrejas; Paulo procede de maneira pastoral, da mesma forma que havia feito com os corntios. No caso do chamado conclio de Jerusalm, narrado em Atos 15, no houve um conclio no rigor do termo. O que houve foi que alguns de Jerusalm apareceram em Antioquia ensinando doutrina diferente da que Paulo ensinava. A igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnab e mais alguns irmos para esclarecer se a igreja de Jerusalm autorizava o ensino que os membros estavam divulgando. Era natural que fizessem isso, pois Jerusalm era a igreja mais antiga e ali estavam considerados pilares da igreja. Estaria Paulo em contradio com os apstolos e com os crentes mais antigos? Foi uma igreja que se reuniu a pedido de outra, para se declarar em assuntos que estavam perturbando as relaes entre as duas iriam perturbar tambm as igrejas do mundo gentio, onde Paulo e barnab, missionrios de Antioquia, trabalhavam. As igrejas da Judia, Samaria e Galilia (que ficavam perto) no foram convocadas, o que seria de acontecer, se houvesse a ideia de um conclio. E embora os apstolos e ancios tivessem primeiro examinado a questo, como em qualquer boa igreja congregacional, a deciso final foi submetida e tomada por toda congregao reunida (At 15.22).

    No h tal coisa, no NT, como uma igreja provincial, ou geral, formada de outras igrejas locais. A igreja de Jerusalm nenhum controle exerceu ou procurou exercer sobre a de Antioquia; a de Antioquia nenhuma autoridade teve ou procurou ter sobre as muitas igrejas que Paulo e Barnab, seus missionrios, fundaram na sia e Grcia. No h uma Igreja da Galcia, mas igrejas; na Macednia, a mesma coisa; assim tambm na Sria e na Cilcia (At 15.41; Gl 1.1; Ap 1.4; 1 Co 8.1).

    Tem toda razo a Igreja Evanglica Fluminense quando em recente artigo de seu boletim dominical permite escrever: como igreja local no nos compreendemos em outra igreja (local, regional, nacional, continental, mundial, etc) seno na nica igreja de Cristo. Esta a doutrina exposta nos 28 artigos, aceita pelos congregacionais e ensinada pelas Escrituras.

    Nenhuma outra poca houve em que, pensando-se em termos humanos e comuns de prudncia administrativa, se impusesse um regime de bispado ou elevao de igrejas maiores como tutoras das mais novas, como no tempo de Paulo e dos apstolos. J pelo valor dos obreiros, j pela pouca experincia dos novos convertidos, j pela autoridade natural que isso acontecesse. Mas no aconteceu. Quer as igrejas quer os apstolos mantiveram e dignificaram o regime congregacional no meio do povo de Deus. Certo que os riscos da democracia eram enormes, e foram vivamente ilustrados pelos

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    cismas e divises em Corinto, pela defeco dos Glatas, pelos surtos de mandonismo pastoral, de desordens no culto, de paixo partidria, pelo aparecimento de supersties, pelo surgimento de lideranas carnais, pela especulaes teolgicas que no tinham fim, pela sacralizao das formas crists de pensamento e de vida.

    No desapareceram ainda hoje esses perigos, que so, na verdade, os que assaltaram ainda hoje qualquer igreja e qualquer denominao. Mas se os apstolos tiveram a coragem para manter naquele tempo os princpios democrticos e congregacionais coerentes com a natureza do evangelho e da igreja, por que no haveremos de ter nessa coragem e essa mesma lealdade hoje?

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    AUTONOMIA DA IGREJA E SOBERANIA DE CRISTO

    Lio 7

    INTRODUO

    Temos dito que uma igreja congregacional autnoma e soberana em suas decises. Que significa isso? Autonomia a faculdade que uma organizao ou um pas tem de se administrar por suas prprias leis, de ele mesmo fazer as leis que o regem; independncia administrativa, a faculdade de governo prprio. Soberania a situao de quem, para dirigir-se e governar-se, no est sujeito a qualquer poder coercitivo fora de si mesmo. Quando se diz que uma igreja congregacional autnoma e soberana isso mesmo que se diz ela.

    Sua assembleia de membros, isto , o povo da igreja reunido em assembleia, o poder supremo de sua direo. Nenhuma outra igreja, nenhuma conveno de igrejas, nenhuma autoridade denominacional pode exercer sobre ela qualquer parcela de comando ou poder legislativo. Parece, primeira vista, que isso significa desagregao, irresponsabilidade e individualismo destrutivo de qualquer obra conjunta. Nada mais falso.

    A democracia, em seus aspectos mais amplos e fundamentais, representa o sistema de relaes e de unio que mais honra a dignidade humana. Pois o sistema congregacional vai alm da democracia poltica, que, afinal, necessita de leis para se sustentar. Ele representa a democracia espiritual, no exercida no estreito e intolerante crculo da lei, mas na liberdade do esprito. Por isso congregacionalismo s pode ser vivido por quem chegue a conhecer e sentir o evangelho na plenitude de seu significado de Graa e Liberdade com deus.

    Algumas observaes importantes se impe para compreender a profundidade espiritual do regime congregacionalista.

    AUTONOMIA E SOBERANIA DA IGREJA LOCAL

    Quando discutimos autonomia e soberania da igreja local, claro est que isso

    se refere s relaes de igrejas e igrejas. No assim nas relaes da Igreja e de Cristo, cabea e Senhor de cada qual. Liberdade em Cristo no sinnimo de liberdade contra Cristo. Uma igreja, agindo na qualidade de igreja, isto , guiada pelo Esprito Santo, no pode (no porque isso lhe seja atribudo, mas simplesmente porque no acha jeito) assumir atitudes contrrias a Cristo. Uma igreja assim pode errar em determinadas circunstancias de fraqueza e de engano. Pode ser vtima de equvocos, porque formada de homens de barro, embora crentes. No h dvida que pode. Por isso, Lutero fa lou na igreja pecadora. Mas uma coisa certa, ou ento o Evangelho uma promessa v: que as portas do inferno no prevalecem contra o corpo de Cristo.

    No estamos falando de igreja que apenas depende da capacidade humana de seus membros para se dirigir; no estamos considerando igreja que substitui a direo do

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    Esprito Santo pela poltica eclesistica; no estamos tratando de igrejas em que se consulte mais a vontade da maioria do que a vontade de Deus. Estamos considerando que a igreja teme entristecer o Esprito, resistir a Ele ou extingui-lO. H promessas de Deus para uma igreja assim.

    Nessa igreja, independncia no irresponsabilidade, autonomia no egosmo, soberania no se conduzir entre igrejas irms no solido. RAZES DESSA AUTONOMIA E SOBERANIA

    A natureza da igreja crist escreve o Dr. E.Y. Mullins, em seu excelente livro,

    Os axiomas da Religio definida pelas relaes do crente com Cristo e com os irmos. Cristo o Senhor. O crente em Cristo pertence a uma monarquia absoluta, a mais absoluta que tem existido. O monarca, porm, est no cu e manifesta-se aos seus sditos mediante sua palavra revelada e mediante o seu Esprito. O sdito comunica-se diretamente com o monarca. Este mantm com seus sditos um trato individual. No delega a Sua autoridade a ningum. O dom da autonomia o que, melhor do que tudo exprime o domnio de Cristo sobre o crente. Cristo d a cada homem toda a liberdade de ao, mas nem por um momento deixa de ter bem segura a sua conscincia e a sua vida. E nada h que penetre tanto na alma do homem para anim-lo com sentimento de liberdade e poder.

    O que atrs deixamos dito continua o Dr. Mullins um paradoxo. De um lado temos a soberania de Cristo e de outro a autonomia da alma. Contra essa alma no h lei, como Paulo declara. Ele encarna a lei de Cristo. Mas o paradoxo constitudo pelo indivduo e por Cristo encerra outro: o constitudo pela sociedade espiritual (a igreja) e por Cristo. Em virtude de o indivduo tratar diretamente com o seu Senhor e de ser responsvel perante ele, a sociedade espiritual tem de forosamente ser uma democracia. Isso quer dizer que a igreja uma comunidade de indivduos autnomos sob o mediato domnio de Cristo e ligados uns aos outros pelos laos do interesse comum, tendo uma f tambm comum e estando todos empenhados em cumprir umas determinadas tarefas que o Senhor lhes indicou. A igreja, por conseguinte, a expresso da concepo paradoxal da unio de uma monarquia absoluta com uma democracia pura. Qualquer outra constituio que no seja a democracia um agravo soberania de Cristo. A SOBERANIA DA IGREJA, RESULTADO DA SOBERANIA DE CRISTO

    A soberania de Cristo sobre uma igreja, no trato direto com ela (porque a

    soberania de Cristo sempre direta) leva essa igreja a gozar de soberania de se conduzir entre as demais igrejas. A soberania da igreja local diferente da soberania de Cristo nisto: a dEle uma soberania de poder para dirigir os que so Seus, sem que alguma coisa fora dele e dos Seus, possa limitar esse poder; a da igreja uma soberania de obediente conscincia ao que nenhum constrangimento exterior de qualquer grupo ou circunstancia limite essa liberdade de obedincia (At 4.19,5.29).

    Desse modo, quando se diz que uma igreja congregacional autnoma, no se diz que ela livre de fazer o que quer, por si mesma. Quando se diz que ela soberana, no se est doutrinando que ela no tenha que atender a ningum. Essa autonomia e

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    soberania da igreja so vividas e expressas na liberdade de sua obedincia a Cristo. E contra isso no h lei.

    Assim, a democracia congregacional na administrao das igrejas locais e as relaes de companheirismo e fraternidade cooperativa entre elas (no importando isso na criao de qualquer organismo legislativo maneira de uma super igreja em que elas se vissem incorporadas) decorre no de uma fortuita e temporria opo dos apstolos e crentes primitivos, mas vem como consequncia e aplicao de princpios que fazem parte da essncia da mensagem evanglica.

    OBJEES CONTRA O CONGREGACIONALISMO

    Objeta-se que a igreja de Jerusalm (e as de outras grandes cidades) pelo nmero de cristos que possua deveria compreender vrias comunidades, sob a direo geral da de Jerusalm, que assim seria a cabea de uma diocese ou um presbitrio. Os apstolos, de Jerusalm, governavam as diversas igrejas. A isso se pode responder:

    1) tal ideia uma mera suposio, sem nenhuma base histrica, destruda pela autoridade que, em cada igreja, o NT reconhece nos crentes locais;

    2) certamente a autoridade espiritual e doutrinria dos apstolos, como tendo conhecido a Cristo, era matria de suma importncia. Antioquia reconheceu isso, e tambm a importncia da igreja de Jerusalm, nos fatos narrados no cap. 15 de Atos. No entanto, basta lembrar a independncia de Paulo e a humanidade com que os apstolos souberam reconhecer os pontos de vista dele, para se ver que no havia administrao apostlica, impondo-se igreja;

    3) o chamado conclio de Jerusalm foi uma consulta de uma igreja a outra igreja, para que se esclarecessem divergncias surgidas entre doutrinas que Paulo pregava e doutrinas que certo grupo de crentes dizia que a igreja de Jerusalm e os demais apstolos sustentavam. O chamado decreto no foi uma ordem para que as igrejas gentias cressem nisto ou naquilo, pois nisso Paulo j estava doutrinando, mas a confirmao da unidade doutrinria entre Paulo e Jerusalm, com a condenao de todos os perturbadores, e a exortao aos gentios para que, em coisas secundrias, no escandalizassem a conscincia dos judeus. Paulo falou de modo diferente, mais tarde, aos Corntios (1 Co 8; 10.22-23).

    Objeta-se que a independncia destri a unidade visvel de Cristo sobre a terra, com uma multido de comunidades isoladas. Mas essa objeo se funda sobre uma falsa ideia de unidade eclesistica. Uma forte e centralizada organizao eclesistica, com suas leis e gradaes de cortes e oficiais, pode ter unidade externa. Mas isso no significa unidade interna, nem unidade espiritual de modo algum. A lio da Histria diz exatamente o contrrio. Se a centralizao e uniformidade fossem sinais de uma igreja verdadeira, a Igreja Romana seria prova disso. Que sistema congregacionais d resultados, esto a s igrejas batistas como prova. Nenhuma Conveno Batista se arroga o ttulo de Igreja, antes se defende sempre contra qualquer pretenso nesse sentido; as igrejas so to independentes que no h representantes delas nas convenes; h mensageiros, o que amplamente apoiado nas convenes. No h denominao, no Brasil e no mundo, que seja mais ciosa de independncia da igreja local do que a dos batistas, todos sabem disso. Mas tambm se pode dizer que no h nenhuma maior conscincia

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    denominacional. Eles so fortes e unidos pelo congregacionalismo que praticam, pela democracia eclesistica em que so estruturados.

    Uma terceira objeo que a doutrina e a disciplina no podem confiar-se, sem perigo, ao povo comum; que as igrejas, em que todos so realmente convertidos e onde pode haver muita paixo, muita poltica, muita ignorncia, no esto altura de julgar corretamente os fatos e de exercerem com acerto a democracia. Ora, essa acusao de incompetncia est, no fundo, refutada pela Histria. E tambm pela prpria teologia. As primeiras igrejas, sob os apstolos, eram democrticas e foi maravilhoso como prosperaram sob a direo do Esprito. A unidade crist foi maravilha daqueles tempos. Quando a democracia se extinguiu, a desagregao principiou, assim como todos os subsequentes desvios de doutrina. Essa objeo tambm prova de que no se est pensando em igreja como algo que o Esprito dirige e alimenta nos recursos da graa de Deus. E tambm vamos dizer quase um insulto, pelo menos uma descaridade, humildade consagrada e sacrificial de milhares e milhares de irms que foram as assembleias de nossas igrejas locais. No fundo, todas as dificuldades nas denominaes no nasce do povo humilde, mas precisamente dos que, nelas sendo lderes ou tendo influencia, haveriam de ser colocados nos organismos gerais, para onde trariam toda a sua capacidade de divergncia e de conflito.

    A democracia congregacional mais frutifica, como qualquer regime democrtico, quanto mais o povo comum est consciente de seu prprio valor, do que representa cada pessoa, quer em seus direitos e privilgios individuais quer em suas responsabilidades tambm pessoais, no grupo de que faz parte. Tem-se dito e repetido que um povo precisa ser educado para a democracia. Isso continua sendo verdade na democracia eclesistica. Os ministros e educadores das igrejas no podem fugir s suas responsabilidades.

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    ALGUMAS CONSEQUENCIAS DOUTRINRIAS DO CONGREGACIONALISMO

    lio 8

    INTRODUO

    Algumas pessoas combatem o congregacionalismo porque nele, dizem, as

    igrejas so independentes e essa palavra, a seus olhos, significa no estar sujeito a nada. Bem, esse um significado que no cabe na palavra independncia dentro da doutrina congregacional. Porque nossa palavra caracterstica, doutrinariamente congregacional e no independente, naquele sentido restrito que lhe desejam descobrir.

    Quem quer ser independente naquele sentido no pode ser congregacional nem, na verdade, pode pertencer a nenhuma igreja. No batizaramos nem aceitaramos em nenhuma delas uma pessoa que logo avisasse: quero pertencer igreja, mas quero ser independente.

    A palavra independente, historicamente, como vimos em lio anterior, se aplicou aos grupos no conformistas da Inglaterra que no aceitavam a tirania da Igreja Oficial determinando doutrinas, hbitos e liturgia contra as quais a conscincia crist esclarecida pelas Escrituras, se levantava em muitos crentes. Independncia significava separao do Estado, liberdade de adorar e servir conforme Sua Palavra e no era de conformidade com leis decretadas pelo clero e pelo governo civil, ento unidos na direo da igreja. Nem todos os puritanos ingleses eram separatistas, isto , independentes. Permaneceram na igreja anglicana e ali, tornando-se cada vez mais influentes, conseguiram dar-lhe muitas caractersticas romanas.

    De entre os separatistas, muitos evoluram para a formao de igrejas presbiterianas; uma grande parte para as igrejas que depois se caracterizaram como congregacionais (batistas e congregacionais propriamente ditos). Independentes, portanto, no significa, na rea de igrejas, igrejas isoladas umas das outras, cada qual vivendo a seu modo e dirigindo-se por seu bel-prazer. H muitas denominaes que usam essa palavra em seu nome oficial e pertencem a um sistema eclesistico no congregacional, como a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.

    Entre os congregacionais e os batistas (que evoluram lado a lado dentro de concepo congregacional de igreja) o problema, mais fundamental estudado, no se ateve a simples afastamento da Igreja Oficial. Mas desceu mais fundo. Procedendo mais logicamente que qualquer outro grupo despertado pelas ideias que haviam produzido a grande Reforma Protestante, aqueles crentes voltaram-se para as bases doutrinrias em que as igrejas do Novo Testamento estavam organizadas e para o modo como, embora autnomas e inter dependentes, puderam manter a unidade crist dos tempos apostlicos e sub apostlicos, num vigor espiritual nunca igualado em qualquer outro tempo posterior. A doutrina bsica da Reforma, que era o sacerdcio universal dos crentes, com a consequente concepo de igreja como povo, no poderia deixar de conduzir ao pensamento da igreja em termos democrticos, com comunidades locais

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    autnomas, isto , no constrangidas, em seu prprio governo, por qualquer outra comunidade exterior, civil ou eclesistica e com sede de autoridade na assembleia de seus membros.

    Independncia, em igrejas de regime congregacional, significa autonomia e no isolamento, liberdade de governo e de conscincia e no irresponsabilidade comunitria, democracia em seu mais alto grau e no individualismo egosta.

    Vrias consequncias prticas e doutrinrias, e aquelas sempre ligadas a estas, caracterizam o congregacionalismo entre os demais tipos eclesisticos. Vejamos alguns na lio de hoje.

    AUTONOMIA

    J estudamos, em lio passada, essa concepo de igreja. J vimos, com o Dr.

    Mullins, os motivos pelos quais os princpios das igrejas neo testamentrias est preso doutrina fundamental da soberania de Cristo e da autonomia ou liberdade da alma em sua resposta da f ao evangelho. Porque a f e as relaes de irresponsabilidades com Deus so matria de responsabilidade individual de cada crente, e porque uma igreja uma comunidade de crentes, segue-se que a natureza dessa igreja no pode ser seno democrtica e congregacional. A presena de Cristo em cada igreja, a direo do Esprito em cada uma delas, manifestando-se e operando atravs de assembleias de crentes, faz com que cada igreja seja igreja, no mesmo nvel de outra igreja igualmente obediente ao seu Senhor. Isso exclui qualquer necessidade de autoridade exterior. Cada igreja igreja, sob a soberania de seu Senhor.

    O que caracteriza, ento, cada comunidade como igreja no sua independncia, a sua separao e seu isolamento de outras comunidades, mas o fato de que est dirigida por Cristo e obediente a Cristo. Nessa obedincia a Cristo, como Cristo no est dividido, h ento um lao inevitvel que faz das igrejas uma Igreja. A unio de cada uma a Cristo faz de que todas estejam unidas entre si, no por efeito de uma subordinao formal de uns aos outros, mas por causa daquela unio em Cristo. Por isso, uma igreja congregacional ou batista no pode ser considerada como participando de outra igreja to somente a Igreja de Cristo.

    IGREJAS E IGREJA

    Na doutrina congregacional, o conceito de igreja, como comunidade

    organizada est, pois, restrito igreja local. Cada uma delas compe o corpo de Cristo, a Igreja, reproduzindo cada qual todos os caractersticos desse corpo. No h tal coisa, no congregacionalismo, como uma igreja denominacional englobando, nessa capacidade de Igreja outra igreja. H uma causa denominacional em que todas as igrejas da mesma f se associam na obra comum em que todas se colocam lado a lado. Mas isso no representa outra igreja: organismo criado pelas igrejas para coordenao, estudos e promoo de tarefas e interesses em que todos esto acompanhadas. No tem carter eclesistico no sentido de exercer funes e prerrogativas de igreja. Est subordinado s igrejas que o constituem como instrumento de sua vida comum, mas nenhum poder lhe atribudo sobre qualquer comunidade associada no carter de para ela legislar. Uma denominao

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    assim uma Unio, uma Associao, uma Confederao, Federao, Conclio ou Conveno de Igrejas, nunca uma Igreja em si mesma. No batiza, no recebe, no disciplina, no exclui membros; no dirige assembleias de igrejas locais nem administra os seus bens; no ordena ministros por seu prprio poder para as igrejas, mas a pedido delas, visto o ministrio necessitar de credenciais para todas; no exerce nenhuma autoridade legislativa sobre qualquer de suas filiadas. No uma igreja.

    O sistema presbiteriano, o metodista, o luterano, o episcopal so diferentes. Aceitam o principio da igreja corporativa, da qual as comunidades eclesisticas locais so parte orgnica. Por isso o ministrio pertence denominao e no s igrejas locais. Os membros da igreja local so recebidos como membros da Igreja denominacional, como na Igreja Metodista, onde o ministro, em cada igreja local, diz ao novo membro: folgamos de receber-vos como membro da Igreja Metodista do Brasil. Isso no possvel numa igreja congregacional, onde, como igreja e fora da igreja local, s h uma outra, a igreja de Cristo.

    Outras consequncias, como veremos, aparecem da ideia dessa Igreja corporativa (como presbiterianas, metodistas, etc), que no podem existir no sistema congregacional.

    BATISMO DE CRIANAS

    Os fundamentos teolgicos buscados para o batismo de crianas repousam,

    principalmente na afirmao de que o batismo, na dispensao crist, substitui a circunciso da dispensao antiga. Os congregacionais no aceitam essa interpretao, pois no s a circunciso era um sinal de pacto com os descendentes carnais de Abrao, como tambm o era assim em relao aos homens dessa descendncia. No era uma sinal de f pessoal, como o batismo claramente foi mandado ser e em relao a todos os que creem, quer homens, quer mulheres. Nosso problema na verdade, no tanto a idade dos que so batizados, mas o de que o batismo uma ordenana neo testamentria para os que podem ter e manifestar essa capacidade de f pessoal. Uma criana, no sentido em que se considera uma criana incapaz de discernimento pessoal, no est, portanto em condies de ser batizada.

    As igrejas de teologia congregacionalista sem eu regime (que distinguem dispensacionalmente o Antigo Pacto e o Novo, isto , Israel da igreja, e no encontram razes bblicas para a ideia de uma igreja Corporativa, denominacional) no praticam batismo infantil, o que acontece nos outros sistemas, como o presbiteriano, metodista, episcopal, catlico etc. a doutrina da igreja corporativa sempre conduz ao batismo infantil. Seu uso no geral entre os congregacionalistas ingleses e americanos. Como vimos em lio anterior, embora mantivessem a doutrina congregacionalista no regime da igreja local, chegaram por circunstncias especiais de sua histria, a conceder certa unidade orgnica denominao, mesmo resistindo sempre a qualquer tentativa de lhe dar nome de Igreja, que seria de todo incompatvel com o sistema.

    Houve, e preciso diz-lo, duas alas ou duas ramificaes distintas no desenvolvimento dos separatistas ingleses de que provieram os batistas e congregacionais modernos. Uma ala manteve-se dentro de ideia separatista, embora com o regime congregacional para as igrejas locais, conservando porm tradies e costumes da Igreja

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    Oficial como corporao (da a manuteno do batismo de crianas, a centralizao de poder na organizao geral, a facilidade de se unir com igrejas corporativos etc). Da vieram os congregacionais americanos que no somente os mais decididos defensores e promotores do ecumenismo da unio orgnica, como tambm um dos ramos eclesisticos mais abertos ao liberalismo doutrinrio. A segunda ala prosseguiu na direo mais lgica na linha doutrinria e foi alm do separatismo eclesistico. Pesquisou as fontes teolgicas do Novo Testamento, interpretou com a Bblia as grandes ideias que nortearam a Reforma Protestante (somente a graa, somente a f, somente a Escritura) e da surgiram os batistas (intransigentes em relao a uma nica forma de batismo, a imerso) e os congregacionais do tipo de igrejas que Robert kalley estabeleceu no Brasil, todos rejeitando o batismo infantil e sustentando a doutrina da autonomia e independncia administrativa das comunidades locais ou igrejas, diretamente unidas, nessa capacidade, igreja de Cristo, e no a qualquer outra corporao, a quem o ttulo de igreja no deve e nem pode ser atribudo.

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    RELAES ECLESISTICAS E DENOMINACIONAIS

    LIO 9

    INTRODUO

    Em lio anterior dissemos que no congregacionalismo, independncia no isolamento. Talvez o termo que melhor, do ponto de vista congregacional, classifique as relaes entre as igrejas fosse inter independencia, ou inde