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1 INTRODUÇÃO A República Democrática do Congo (RDC) é um dos países africanos incluídos dentro de um contexto de desordem social motivada pela suplantação dos regimes de imperialismo tardio, anteriores à Primeira Guerra Mundial, por governos autori- tários apoiados pelas potências que bipartiam o mundo durante a Guerra Fria. O país, dentro de seu processo de formação histórica, foi marcado, como também aconteceu com muitos de seus vizinhos, pela grande contradição de não pos- suir perspectiva de construção de uma ordem nacional pensada de dentro para fora. Na ausência de um projeto nacional de Estado, isto é, em razão da população ali presente não constituir uma na- ção em si, mas povos aglomerados sem um sentimento de comunida- de, hoje ainda verificamos desdo- bramentos conflituosos derivados das relações estabelecidas entre grupos com distintos interesses. A existência de valiosos recur- sos naturais no território foi, no passado, o principal motivo da colonização e segue, hoje, sendo um fator de interesse de diversas instituições, inclusive estrangei- ras. Tal interesse é crucial para a não dispersão do ambiente con- flituoso, uma vez que com a ins- tabilidade governamental, torna- se mais simples o gerenciamento paralelo de tais recursos, em que instituições de diversas naturezas podem agir com maior liberdade. HISTÓRICO E PERSPECTIVA DOS ACONTECIMENTOS Dentro do contexto do imperia- lismo europeu sobre a África no período que precedeu a Primeira Guerra Mundial, o território que hoje corresponde à República De- mocrática do Congo foi colônia belga de exploração desde 1878. Fato importante deste período foi a assinatura do Tratado de Ber- lim, de 1885, o qual dividiu as fronteiras africanas, positivando a exploração do território pelas po- tências europeias. De forma geral, a RDC não foi o país que mais sofreu com as rea- locações dos povos em frontei- ras artificiais naquele momen- to. Contudo, a consolidação do amalgama social se tornaria mui- to complicada após a intensifica- ção dos fluxos de refugiados que buscavam território com melhor perspectiva econômica, dada a di- ficuldade de permanência em seus respectivos territórios nacionais, por questões de segurança. Um exemplo claro disso foi o grande fluxo de ruandeses que migraram para a RDC após a ocorrência do genocídio naquele país em 1994. 3 A RDC se tornou independente em 1960, no contexto da Guer- ra Fria, quando tomou partido pela influência estadunidense. Da mesma forma como ocorreu CONGO: DESORDEM, INTERESSES E CONFLITO 1 Renato Henrique Valenzola 2

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V. 2, n. 4 - Agosto de 2015

INTRODUÇÃO

A República Democrática do Congo (RDC) é um dos países africanos incluídos dentro de um contexto de desordem social motivada pela suplantação dos regimes de imperialismo tardio, anteriores à Primeira Guerra Mundial, por governos autori-tários apoiados pelas potências que bipartiam o mundo durante a Guerra Fria.

O país, dentro de seu processo de formação histórica, foi marcado, como também aconteceu com muitos de seus vizinhos, pela grande contradição de não pos-suir perspectiva de construção de uma ordem nacional pensada de dentro para fora. Na ausência de um projeto nacional de Estado, isto é, em razão da população ali presente não constituir uma na-ção em si, mas povos aglomerados sem um sentimento de comunida-de, hoje ainda verificamos desdo-bramentos conflituosos derivados

das relações estabelecidas entre grupos com distintos interesses.

A existência de valiosos recur-sos naturais no território foi, no passado, o principal motivo da colonização e segue, hoje, sendo um fator de interesse de diversas instituições, inclusive estrangei-ras. Tal interesse é crucial para a não dispersão do ambiente con-flituoso, uma vez que com a ins-tabilidade governamental, torna-se mais simples o gerenciamento paralelo de tais recursos, em que instituições de diversas naturezas podem agir com maior liberdade.

HISTÓRICO E PERSPECTIVADOS ACONTECIMENTOS

Dentro do contexto do imperia-lismo europeu sobre a África no período que precedeu a Primeira Guerra Mundial, o território que hoje corresponde à República De-mocrática do Congo foi colônia belga de exploração desde 1878. Fato importante deste período foi

a assinatura do Tratado de Ber-lim, de 1885, o qual dividiu as fronteiras africanas, positivando a exploração do território pelas po-tências europeias.

De forma geral, a RDC não foi o país que mais sofreu com as rea-locações dos povos em frontei-ras artificiais naquele momen-to. Contudo, a consolidação do amalgama social se tornaria mui-to complicada após a intensifica-ção dos fluxos de refugiados que buscavam território com melhor perspectiva econômica, dada a di-ficuldade de permanência em seus respectivos territórios nacionais, por questões de segurança. Um exemplo claro disso foi o grande fluxo de ruandeses que migraram para a RDC após a ocorrência do genocídio naquele país em 1994.3

A RDC se tornou independente em 1960, no contexto da Guer-ra Fria, quando tomou partido pela influência estadunidense. Da mesma forma como ocorreu

CONGO: DESORDEM,INTERESSES E CONFLITO1

Renato Henrique Valenzola2

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na América Latina e em outros países africanos, os Estados Uni-dos financiaram a manutenção de um governo autocrático na RDC alinhado com suas perspec-tivas hegemônicas. Resultou des-ta conjuntura o longo período do governo de Joseph-Desiré Mobu-tu, que durou de 1965 até 1997.

O governo de Mobutu foi marca-do pela utilização da máquina pú-blica em benefício de uma elite, da mesma forma que ocorreu em outros países do norte do conti-nente até a Primavera Árabe, sem questionamento externo porque esses governos não eram preo-cupações aos interesses estaduni-denses. Fato importante no que toca à RDC é que sua riqueza na-tural motivou o interesse dos vi-zinhos e de organizações não es-tatais que passaram a existir num contexto de contestação ao mono-pólio estatal dos bens do país.4

O fim do governo de Mobutu ocorreu num momento em que tais organizações instituídas na forma de milícias passam a con-testar o poder central do pre-sidente com o financiamento e apoio material de países vizinhos como Ruanda e Uganda. Mais que isso, a questão da convivên-cia entre os refugiados no país passou a refletir os conflitos que os motivavam em suas nações originais, formando um cenário insustentável.

Entre 1996 e 2003 aconteceram a Primeira e a Segunda Guerra do Congo. Nelas ficou evidente a im-portância que a organização dos interesses diversos em milícias desempenharia para o futuro do país. Durante esse período Jose-ph-Desiré Kabila, líder da princi-pal milícia opositora à Mobutu se

tornou presidente e tentou livrar o país dos interesses dos vizinhos que haviam apoiado sua chegada ao poder.

Com isso, Ruanda, Uganda e Bu-rundi passaram a apoiar outras milícias envolvidas no conflito, enquanto Zimbábue, Angola, Namíbia e Chade tomaram par-tido no conflito apoiando Kabi-la. Por esse envolvimento, a Se-gunda Guerra do Congo também foi chamada de Guerra Mundial Africana.

A guerra aberta e declarada teve fim com a assinatura do Global and All Inclusive Agreement (AGI), em 2003, após anos de combate armado e a multipli-cação do número, da força e da representatividade das milícias dentro da RCD. O acordo deter-minou que o filho do ex-presi-dente Kabila, assassinado duran-

te o conflito, Laurent Kabila, se tornaria presidente provisório até 2006, governando com quatro vi-ce-presidentes, os quais eram re-presentantes de diversos interes-ses: um da oposição política, um da sociedade civil, um da milícia Movimento pela Libertação do Congo (MLC), apoiada por Ugan-da, e um da milícia União Con-golesa pela Democracia (RCD), apoiada por Ruanda.

A maneira com que a RDC saiu de um contexto de exploração colo-nial e progrediu historicamente no sentido da disputa por interes-ses sem que houvesse uma inicia-tiva estatal do ponto de vista da construção de uma organização política concreta e que privile-giasse a nação de forma geral, e não grupos determinados, resul-tou em um Estado fraco, incapaz de lidar com as diferentes deman-das sociais e políticas.

Ofensiva da AFDL na Primeira Guerra do Congo

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Basicamente, na falta de um in-termediador reconhecidamente legítimo, as partes se sentiriam capazes de buscar seus interesses por seus próprios meios. O pro-blema maior é que os meios pe-los quais as milícias atuam fazem com que os civis acabem sendo os maiores afetados pelo conflito.

Nos anos que sucederam o gover-no provisório de Laurent Kabila, acordado pelo AGI, não conse-guiu dar passos significativos no estabelecimento da ordem neces-sária ao Estado congolês de forma a implementar os direitos básicos no cotidiano de seus cidadãos.

A ONU passou a intervir na RDC com a Resolução 1279 do Conse-lho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), de 30 de novembro de 1999.5 Essa reso-lução criou a Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC) com a intenção de monitorar manu-tenção da paz na região em meio à Segunda Guerra do Congo. Pos-teriormente, diversas resoluções foram aprovadas pelo Conselho de Segurança no sentido de am-pliar o mandato e o contingente da Missão.

Em 2010, a MONUC foi substi-tuída pela Missão de Estabilização da Organização das Nações Uni-das no Congo (MONUSCO), por força da Resolução 1925, de 28 de maio, do Conselho de Segurança, com o fim de intensificar a prote-ção aos civis, dada a continuidade de ações beligerantes pelas milí-cias mesmo com anos passados do final da guerra civil declarada, e progredir no sentido da recons-trução da ordem política no país.6

A atuação da MONUSCO é de grande importância para a histó-

ria recente do conflito. Esta Mis-são é a maior entre as estabeleci-das pela ONU atualmente, além de receber permissão para reali-zar operações ofensivas contra al-guma parte envolvida no conflito, abrindo discussões sobre o princí-pio da imparcialidade que marca as missões da ONU.

A alegação do Conselho de Segu-rança para permitir tal mudança de postura foi o fato de o conflito ter como característica própria o

recorrente uso de violência con-tra civis e a incapacidade de o Estado congolês de utilizar suas forças armadas para proteger seus cidadãos. Tal incapacidade se desdobra, também, de uma parti-cularidade do conflito, a qual se refere ao fato de antigos milicia-nos comporem as forças armadas estatais, as quais, mal treinadas, passam a utilizar das mesmas tá-ticas dos milicianos e também cometem atos de violência contra os civis.

Forças da MONUSCO na última linha de defesa próximo de Goma

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Monitoramento de atividades do vulcão no Mount Nyamulagira - Norte Kivu

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Neste sentido, o histórico recen-te do conflito centra-se na luta do governo de Kabila contra as milícias que configuram um po-der paralelo dentro do território congolês. Depois de sua eleição definitiva, em 2006, o presidente tem como adversários duas prin-cipais milícias que se sobressaem entre outras de menor expressão: o Congresso Nacional pela Defesa do Povo (CNDP), uma dissidência de maioria tutsi da RCD, e as For-ças Armadas pela Libertação de Ruanda (FDLR), de maioria hutu.7

Os primeiros movimentos de Ka-bila no combate foram no sentido de incorporar membros do CNDP às forças armadas da RDC, pen-sando que ao mesmo tempo em que eles serviriam de contingente na luta contra as FDLR, diminuir-se-ia o poder do próprio CNDP. Isso partindo do pressuposto que

ambas eram milícias de motiva-ções díspares e que a somatória de forças com uma delas poderia gerar benefício mútuo.

Como resultado, as FDLR passa-ram a intensificar o uso da vio-lência contra civis como forma de punir o governo por ter escolhido ficar contra elas. Por outro lado, os membros do CNDP que se incor-poraram às forças armadas congo-lesas continuaram a agir segundo suas táticas de milícia, isto é, não cessando a violência contra civis quando em combate, resultando em um prejuízo ainda maior para a população congolesa.

Um bilhete deixado pelas FDLR depois de um ataque a civis que deixou diversos mortos dizia: “População Congolesa e FARDC8, desde que vocês decidiram que é bom nos expulsar de nosso lugar,

nós também vamos atacá-los... Nós vamos acertá-los forte”.9

Dos combatentes que restaram no CNDP e que não foram incor-porados nas forças armadas, sur-giu um novo movimento contra o próprio governo de Kabila em 2012. A insurgência chamada de M23 se rebelou devido ao não cumprimento de todas as propos-tas realizadas pelo governo em 23 de março de 2009 que iam no sen-tido de empoderar e incorporar em plenitude o CNDP ao aparato estatal congolês.10

O movimento cresceu rapida-mente, incorporando outras milí-cias menores que se sentiam igno-radas pelo governo, e logo passou a representar uma ameaça em po-tencial. O Conselho de Segurança aprovou a Resolução 2098, em 28 de março de 2013, criando dentro

Patrulha conjunta da MONUSCO e FARDC no Lago Tanganyika no leste da RDC

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da MONUSCO uma brigada mul-tinacional, com o objetivo central de desmobilizar o M23. Com isso, a missão passou de uma condição de neutralidade à tomada de par-tido e ataque armado a uma das partes envolvidas no conflito. No dia 8 de novembro daquele ano, o M23 abriu mão da luta armada, afirmando passar a existir somen-te como oposição política.11

Ainda assim, o ambiente confli-tuoso na RDC continua ativo. A desmobilização do M23 confi-gurou uma vitória parcial, mas a quantidade de milícias ativas no território e o poder paralelo que elas representam não se configu-ram somente uma ameaça políti-ca, mas uma ameaça cotidiana aos civis que seguem sendo alvo da violência das mesmas.

De 2014 até a presente data, são três as instituições que se apre-sentam como maiores causas dos problemas de Kabila na centrali-zação da regulação das atividades sociais na RDC. A primeira delas são as FDLR, que durante os anos, a pesar de serem alvo seguido das ações estatais e da ONU na busca de sua desmobilização, apresen-tou uma capacidade assustadora de regeneração e continuidade operativa. As outras duas são pro-venientes de Uganda: as Forças Democráticas Aliadas (ADF) e o Exército de Resistência do Se-nhor (LRA).12

Analogamente ao conflito exis-tente entre tutsis e hutus que motivou o enfrentamento en-tre o CNDP e as FDLR na RDC, a oposição entre muçulmanos e católicos dentro de Uganda, tam-bém encontra reflexos na órbita do conflito armado entre as ins-tituições citadas acima, sendo as

ADF composta por muçulmanos e o LRA formado por católicos. Ataques a escolas e hospitais, prá-ticas de tortura e violência sexual e conversão religiosa forçada são corriqueiras no conflito.13

Nos últimos anos um grupo de experts vem monitorando, den-tro da MONUSCO, a dinâmica do conflito e sugerindo medidas a serem implementadas pelo Con-selho de Segurança, num meca-nismo semelhante ao que diversas Organizações Não Governamen-tais (ONGs) de Direitos Humanos praticam, mas com um grau maior de legitimidade e resultado, dado sua conexão direta com o Conse-lho de Segurança.

As resoluções 2198, de 2015, con-sideraram os informes deste gru-po para determinar em que medi-da continuará com suas ações de proteção à paz e ataque a milicia-nos no território congolês.14

Desta forma, aponta-se que o em-bargo de armas determinado em 2008 pelo Conselho permanecerá vigente até 1 de julho de 2016 a ser monitorado pela MONUSCO. Até esta data também vigorarão os trabalhos a serem realizados pelo grupo de experts, visando monitorar o desenvolvimento do conflito.15

Foi estabelecida a data provisó-ria de 31 de março de 2016 para o término das ações da MONUS-CO. Uma resolução futura indi-cará a data de encerramento, mas desde este momento, se iniciou a redução do efetivo em dois mil homens, para um total de 19815 militares combatentes, 760 ob-servadores militares, 391 policiais e 1050 em unidades de polícia formada.16

Eleições também foram marca-das e as resoluções apontam que o pessoal da MONUSCO terá a função de auxiliar na realização da mesma. Com as eleições mar-cadas para novembro de 2016, há a indicação de que a MONUS-CO se fará presente para além da data estipulada para seu mandato atual, uma vez que a organização de eleições configura um passo importante na manutenção da paz através das vias democráticas sempre ressaltadas pela ONU.17

Dados importantes que figuram nestas resoluções são relativos à manutenção da brigada criada para se opor às milícias na RDC, mesmo com a desmobilização armada do M23. Determinam que a MONUSCO deve “neutra-lizar grupos armados através da brigada de intervenção”18, isto é, ampliando seu escopo de atuação para todas as milícias que amea-çam a paz no país, com foco es-pecial para as três milícias apon-tadas anteriormente, diretamente citadas na resolução.

Outros dados de relevância reti-rados da maioria das resoluções do Conselho de Segurança da ONU aprovadas nos últimos anos, possibilitam que se levante alguns pontos centrais de preocupação no desenrolar do conflito.

O primeiro seria a preocupação com o envio dos prisioneiros e dos voluntários que se encontram na área de conflito, mas que são naturais de outros países. Na RDC muitos dos integrantes das milí-cias são naturais ou tem alguma ligação com os países vizinhos principalmente da fronteira les-te da RDC, com foco em Ruanda e Uganda. Há uma preocupação muito grande com o envio desse

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pessoal a seus países natais para o apaziguamento do ambiente belicoso, principalmente, de-pois do episódio de 2013, com a desmobilização do M23.

Outra preocupação latente é com a impunidade que vigo-ra na RDC, uma vez que parte dos criminosos que cometem atos de violência contra civis não são julgados por falhas do sistema jurídico, porque não há aparato coercitivo estatal capaz de prendê-los ou porque muitas vezes, são milicianos incorpora-dos ao exército.

Terceiro, o perigo que represen-ta a ligação íntima das milícias com o governo congolês. Ao serem incorporadas às forças armadas e, portanto, poderem legalmente utilizarem da força para combater em prol do Esta-do, usurpam desta situação para cometerem atos ilícitos sob a di-nâmica de impunidade já citada.Relativo a este ciclo, sempre é lembrada a situação das mulhe-

res e das crianças envolvidas no conflito. De um lado, mulheres são estupradas e violentamente mortas e de outro, crianças que não tem a força necessária para sustentar uma arma de fogo são brutalmente incorporadas ao conflito pelo recrutamento das milícias. A ONG Human Rights Watch apresentou o relato de uma família atacada pelas forças armadas congolesas:

Eu estava em minha casa quan-do os soldados vieram. Tinham armas e eu não sabia o que fazer. Eles chamaram meu marido e lhe pediram $ 500. Disseram que o matariam se ele não lhes desse isso. Nós só tínhamos $ 200, então demos. Eles disseram que não era su-ficiente, então um deles disse que eu era bonita e ele não po-deria sair dali sem me estuprar. Quando meu marido implorou para ele, o soldado atirou em meu marido e a mesma bala acertou meu filho mais velho. Ambos morreram. Então ele me estuprou.19

Por fim, outro ponto lembrado

é o valor dos recursos naturais na RDC e em que medida eles devem ser propriamente admi-nistrados pelo governo. Com a situação encontrada hoje com as milícias controlando parte deles, estas manterão a capaci-dade de continuar existindo, da mesma forma que o interesse de novos sujeitos nesses recursos, acaba renovando a lógica do conflito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, são dois os princi-pais motivos para o conflito ar-mado na RDC iniciado em 1996 ainda não ter encontrado um fim. Por um lado temos o Estado que não exerce suas funções corre-tamente e que historicamente serviu como meio para o benefi-ciamento de algum grupo espe-cífico. Primeiramente os belgas, depois a oligarquia que apoiava Mobutu e, em seguida, as milí-cias que, percebendo a fragili-dade desta estrutura, passaram a coexistir com a instituição esta-tal, primeiro tentando suplanta-la, posteriormente percebendo que isso não era necessário para que pudessem estabelecer domí-nio sob uma determinada área.O governo congolês atualmen-te é limitado, incapaz de tomar medidas eficazes que melhorem a situação no país. Não parece que o Estado não queira a paz, mas há a sensação que suas insti-tuições são incapazes alcança-la.Se para se tornar independente foi necessária a ajuda estaduni-dense e para retirar a ditadura que se implantou foi necessária a ajuda dos vizinhos, atualmen-te, para diminuir o poder das milícias, a força da MONUSCO vem sendo utilizada. A questão

Crianças soldados

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1 Texto preparado a partir de Iniciação Científica financiada pela FAPESP.

2 Renato Henrique Valenzola Discente do Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da UNESP – Campus de Marília e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitos Internacionais (GEPCI).

3 HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “You Will Be Punished”: Attacks on Civilians in Eastern Congo. New York: HRW, 2009.

4 RIFT VALLEY INSTITUTE. From CNDP to M23: The evolution of an armed movement in eastern Congo. Londres: 2012.

5 ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução do Conselho de Segurança 1279. Nova Iorque: 1999.

6 ONU. Resolução do Conselho de Segurança 1925. Nova Iorque: 2010.

7 HRW. Op. cit.

8 FARDC é a abreviação para Forças Armadas das República Democrática do Congo.

Série Conflitos Internacionais é editada pelo Observatório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Campus de Marília – SP

Editor: Prof. Dr. Sérgio L. C. AguilarLayout: Paula Schwambach MoizesISSN: 2359-5809Comentários para: [email protected]ível em: www.marilia.unesp.br/#oci

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9 HRW, op. cit., p. 54, tradução nossa.

10 RIFT VALLEY INSTITUTE. Op. cit.

11 RFI. Movimento M23 anuncia fim da rebelião na República Democrática do Congo. França, 05 nov. 2013. Disponível em: <http://www.portugues.rfi.fr/mundo/20131105movimento-m23-anuncia-fim-da-rebeliao-na-republica-democratica-do-congo>. Acesso em: 18 jan. 2015.

12 ONU. Informe final ao Conselho de Segurança 2015/19. Nova Iorque: 2015

13 Ibidem.

14 ONU. Resolução do Conselho de Segurança 2211. Nova Iorque: 2015.

15 ONU. Resolução do Conselho de Segurança 2198. Nova Iorque: 2015.

16 ONU. Resolução do Conselho de Segurança 2211. Nova Iorque: 2015.

17 Ibidem.

18 Ibidem, p. 6, tradução nossa.

19 HRW. Op. cit., p. 67, tradução nossa.

que fica é se o Estado terá a capa-cidade de se auto-sustentar quan-do a MONUSCO se retirar.

Enquanto houver interesses alheios nos recursos naturais do país haverá ações que incitam a desordem para que grupos espe-

cíficos se beneficiem de tais re-cursos. Haveria uma saída para isso? Talvez o empoderamento do Estado, de modo que consiga administrar os recursos em prol da sociedade. Mas para que isso ocorra é necessário que se mude a lógica de apropriação dos mesmos

para fins particulares, pensando no seu gerenciamento a partir do interesse da nação. E para isso tem-se que construir a nação, ou seja, a violência armada pode até cessar, mas suas causas são mais profundas e levarão mais tempo para serem sanadas.