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A importância da desordem. Taiane Oliveira da Silva Design Gráfica (UNIFACS) Xico Costa Professor Adjunto (UFBA) Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Cecília Meireles, em Romanceira da Inconfidência Rua Lima e Silva, Liberdade. Foto: Tayane Oliveira, abril de 2008.

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A importância da desordem .

Taiane Oliveira da Silva Design Gráfica (UNIFACS) Xico Costa Professor Adjunto (UFBA)

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta

que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.

Cecília Meireles, em Romanceira da Inconfidência

Rua Lima e Silva, Liberdade. Foto: Tayane Oliveira, abril de 2008.

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No Bairro da Liberdade, em Salvador (BA), há três séculos, passava a principal rota de comunicação da cidade com o interior do estado. Nesta época, denominada de Estrada das Boiadas, por ela passaram as tropas em luta pela Independência da Bahia. É curiosa a insistente presença de duas maravilhosas palavras com este lugar: Independência e Liberdade. De fato, estes termos tão próximos sintetizam e apontam para elementos essenciais de formação da comunidade local; trata-se de um dos bairros mais populosos e coloridos de Salvador, com uma forte identidade cultural proveniente dos costumes da cultura africana que permeia a estética dos seus habitantes, a forma de ocupar o espaço público, a forma de morar, seus blocos carnavalescos afros, os grupos de samba e o uso de cores vibrantes, como o vermelho, amarelo, laranja, particularmente presentes nas placas, letreiros, cartazes e faixas de sinalização. Toda esta aparente informalidade e improviso, somada ao vai e vem das pessoas pelas ruas, outorgam a este bairro uma energia e luminosidade particularmente contagiante.

Este cenário urbano, peculiar e dinâmico, sintetizado na fotografia que acompanha este texto, mostra uma imagem daquilo que alguns poderiam considerar poluição visual e caos e nos remeteria tristemente a constatar que não havíamos cumprido com um dos preceitos de modernidade que inauguraram o século XX:

“(...) está próximo o momento em que as ruas das cidades reluzirão como muros brancos. Como em Sião, a Cidade Santa, a capital do céu. Então teremos chegado ao momento culminante.” (LOOS, 1973).

Efetivamente, é possível que Loos estivesse certo para uns propósitos específicos e circunscritos a seu tempo e seu entorno, mas não podemos estender mais além disso. Senão, este edifício, sobrecarregado de símbolos e inscrições, seria somente uma prova de atraso. Mas seria Loos capaz de determinar se estas inscrições, superpostas à fachada do edifício, são ornamentos ou são efetivos elementos de sua funcionalidade? De fato estamos tentados a acreditar que esta desordem é uma protagonista costumeira e parte integrante de um modo de vida; é um reforço ao sentido de independência e liberdade que faz o bairro destacar no contexto da cidade e mesmo do mundo.

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Passados exatamente 100 anos daquele famoso manifesto onde Adolf Loos esgrimia seu purismo estético prenunciando uma cidade branca e reluzente, esta fotografia feita na Rua Lima e Silva, Bairro da Liberdade, nos oferece uma prova eloqüente da força espontânea sobre os determinismos racionalistas mais exacerbados. Este registro sintetiza de maneira clara a imagem do bairro. A fachada do Shopping Espaço “A” Liberdade, onde é possível identificar o letreiro original instalado no centro e as sucessivas acumulações, poderia ser um perfeito exemplo daquilo que poderíamos chamar de pátina do tempo; anúncios de produtos, anúncios do próprio shopping e a insistente placa original, curiosamente mantida, quando o mais natural seria sua substituição pela mais “moderna” (localizada ao lado direito na parte inferior do letreiro central).

Esse contexto também indica uma batalha entre a arquitetura e a chamada comunicação visual que, entre outras coisas, cuida da sinalização no espaço público. A arquitetura perde protagonismo e assume um papel de suporte físico para os elementos de comunicação mais diretos; já não é suficiente sua tipologia como indicador de sua função mercantil. Em contrapartida, a comunicação visual, com seus letreiros, placas e suas tipografias diversificadas, serifadas, neo-grotescas, grafismos representados por ícones e imagens, capturam o olhar dos passantes, que de certo modo se perdem por este verdadeiro mosaico pitoresco.

Um emaranhado de informações visuais, desequilíbrio, desordem, desarmonia, multiplicidade de linguagens, tudo parece realçar o aspecto de informalidade imediatista e predominante como a própria sociedade consumista contemporânea. A experiência cinética que se soma à visual, quando passamos de automóvel diante do Shopping, acentua esta sensação: não veremos nada do prédio, nada por detrás do portão, somente placas “ruidosas” realçando esta disputa entre arquitetura e “letreiro” por um lugar no olhar do viajante. A comunicação visual é mais que um mero elemento arquitetônico, é um dispositivo de sobrevivência útil a uma arquitetura que envelhece muito depressa e perde visibilidade. A Liberdade se mostra dura com os propósitos da permanência e a improvisação se faz soberana na sua paisagem urbana.

Nesta fotografia, portanto, podemos constatar uma forma de manifesto de independência, mas também de entender a estética; aquela da Liberdade. Indica uma forma de ser do bairro e da

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necessidade de considerar este caos estabelecido como uma forma rica de identidade, muito mais valiosa que aquelas normalizadas e respeitosas com os códigos de posturas municipais, pois é verdadeiramente singular e expressão de seu contexto. Registra muito mais a idéia de esperança que a de delito ou crime, manifestada por Loos. Nos remete a outro austríaco, o pintor Hundertwasser, para quem deveriam ser aperfeiçoados os princípios de valorização da in-habitabilidade material dos bairros pobres por sobre a habitabilidade material dos bairros ricos. Ou seja, ter como ponto de apoio e prioridade aquilo que prolifera espontaneamente. (HUNDERTWASSER, 1973).

Efetivamente, a terceira pele do homem tem que evoluir, mudar, sofrer mutações e aquele que impede este processo é tão criminoso como o que impede a uma criança crescer. (HUNDERTWASSER, 1992)

Bairro da Liberdade, início do século XXI. Lugar que outrora as tropas do exército atravessaram rumo à Independência da Bahia. Independência e Liberdade, substantivos que atualmente predominam na estrutura urbana de um bairro populoso e colorido, com uma forte identidade cultural africana. Um local que traduz com muita propriedade os valores da informalidade e do improviso: a desordem é importante.

Referências

BRANDI, Cesari. Teoria del restauro, Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1963.

HUNDERTWASSER, F. In: CONRADS, Ulrico. Programas y manifiestos de la arquitectura del siglo XX . Barcelona: Editorial Lumen, 1973. Pg. 146.

HUNDERTWASSER, F. Entrevista. In: RAND, Harry. Hundertwasser . Colônia: Taschen, 1992. Pg.199.

LOOS, Adolf. Ornamento y delito . In: CONRADS, Ulrico. Programas y manifiestos de la arquitectura del siglo XX . Barcelona: Editorial Lumen, 1973. Pg. 25.

LOOS, Adolf. Dicho en el Vacío. Valencia: Soller, 1984. Pg.30.

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