conflitos socioambientais: dra. rosirene martins lima ... · organizou o impacto do crescimento...
TRANSCRIPT
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: Políticas Urbanas e Comunidades Tradicionais
Dr. Joaquim Shiraishi Neto Universidade Estadual do Amazonas (UEA)
Dra. Rosirene Martins Lima
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Judith Costa Veira (Terra de Direitos)
Luane Lemos Agostinho
Universidade Estadual do Amazonas (UEA)
Tem sido cada vez mais freqüente nas cidades brasileiras, a existência de conflitos decorrentes da ocupação de áreas de proteção ambiental. O discurso jurídico ambiental tem justificado suas ações, a partir do entendimento de que a força descomunal da cidade que se expande, acabam por engolir a "natureza". O problema ambiental ou mais especificamente, o conflito socioambiental, visto sob esse prisma aparta a sociedade da natureza e contribui para a manutenção do dualismo homem/natureza. No caso das áreas protegidas, os conflitos socioambientais resultariam da disputa envolvendo diferentes agentes pela apropriação e uso de determinados espaços e recursos, protegidos pelo Poder Público, sob o manto do direito. Essa perspectiva privilegia apenas a ótica econômica, deixando de fora a dimensão subjetiva. Os sujeitos e grupos envolvidos no problema ambiental possuem interesses e representações de mundo, mais especificamente de meio ambiente, diferentes e muitas vezes antagônicas. A análise parte do princípio de que os conflitos socioambientais decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e uso do meio ambiente. Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais urbanos, considerando a maneira como a cidade é produzida: suas contradições, diversidade de interesses e diferentes percepções. Nesse sentido, a proposta da mesa é refletir sobre os conflitos socioambientais envolvendo as discussões sobre a noção de direito ao meio ambiente como um bem difuso e o uso da cidade.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
CATADORES E CARRINHEIROS: estratégias de sobrevivência em face das Políticas de Planejamento Urbano
Rosirene Martins Lima1
1 INTRODUÇÃO
Atualmente a agenda urbana tem colocado como prioridade a inserção das
cidades no mercado global As cidades vêm sendo pensadas e projetadas sob a perspectiva
de atender as demandas desse mercado. A cidade entendida como uma máquina de
produzir riquezas leva os gestores urbanos a uma disputa por investimentos e adequação
desta, aos apelos do mercado. (VAINER, 2000). Esse processo tem gerado contradições e
fragmentação do tecido urbano. As políticas urbanas orientadas segundo critérios de
competitividade e de sustentabilidade, ao valorizarem determinados espaços urbanos em
detrimento de outros, obriga parte da população que não pode pagar pelos benefícios a se
deslocar para áreas periféricas, aqui compreendidas como "fora" da centralidade do modelo.
O planejamento recorta a cidade, valorizando e desvalorizando determinados
espaços conforme os interesses em jogo no momento. No caso de Curitiba, o planejamento
organizou o impacto do crescimento populacional e o respectivo uso do solo, uma vez que
detinha a norma e o mercado imobiliário ao seu favor, induzindo o crescimento da ocupação
para áreas periféricas internas e principalmente para além dos seus limites administrativos
(MOURA, 2001). O planejamento urbano, no dizer da autora, foi extremamente eficaz na
aplicação das políticas urbanas, de modo a manter afastada de Curitiba a "pobreza".
Funcionou como uma espécie de barreira, inibindo ou mesmo impedindo as pessoas de
usufruírem dos benefícios conquistados. Hierarquizou os espaços urbanos, funcionando
como indutor de uma ocupação "seletiva" e "segregadora".
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as contradições e conflitos
identificados no processo de ocupação e expansão da cidade de Curitiba a partir das ações
e estratégias utilizadas por uma comunidade de catadores de material reciclável para
construir e se manter no lugar onde vive – uma área de preservação ambiental. A reflexão
aqui proposta toma como ponto de partida um fragmento urbano determinado, que pode ser
“enquadrado” naquilo que Wacquant(2001) denominou de espaços da “marginalidade”. Os
espaços da “marginalidade”, em oposição aos espaços da prosperidade servem para
1 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-
mail:[email protected]
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
explicar as situações vivenciadas pelos moradores do Jardim Icaraí. Para eles, há “duas
cidades”: uma que vêem e outra em que vivem, sendo que esta cidade na qual vivem “não
existe oficialmente”, porque não é reconhecida e nem consta no mapa da cidade de Curitiba
Nesse sentido, a análise proposta se debruça sobre o olhar desses moradores,
que manifestam suas verdades, por meio da maneira como pensam e constroem a cidade a
partir de suas práticas sociais cotidianas. Práticas essas que se encontram inscritas para
além do Jardim Icaraí, espacializadas também nos caminhos percorridos pelas ruas e
avenidas da cidade, quando da coleta do material reciclável. É no cotidiano que se
constroem outras racionalidades e temporalidades, encontradas para além do credo da
ortodoxia econômica, que só vê um sentido, o do lucro (SANTOS, 2000).
2 O JARDIM
O Jardim Icaraí é uma das sete vilas que compõe uma ocupação urbana – Vila
Audi-União, situada sobre a área de preservação do Rio Iguaçu, na cidade de Curitiba. Este
cenário difere daquele apregoado pelo discurso sobre Curitiba como cidade que serve de
modelo para outras cidades do Brasil. Essa área foi utilizada de forma “predatória” por
empresas mineradoras de areia e saibro, que retiravam legal ou ilegalmente grandes
quantidades desses recursos destinados à construção civil de Curitiba. Foi esse tipo de
ação predatória ao meio ambiente que se estendeu de forma sistemática por um período de
vários anos (aproximadamente desde a década de 1950). Esse processo transformou
aquela parte da várzea do rio Iguaçu, em uma área “inóspita” e, contraditoriamente,
imprópria para a própria expansão da cidade.
O capital que gerava o processo de expansão da cidade era o mesmo que
impunha obstáculos ao seu crescimento, pois ao alterar profundamente a área, comprometia
o seu uso e impedia quaisquer outras formas que não fossem as já realizadas. Os
interesses em jogo naquele momento restringiam-se a essa atividade de exploração mineral.
A atividade de exploração da areia, que por si já é predatória, acentua-se nessa área de
grande fragilidade ambiental, gerando impactos no meio ambiente devido à remoção dos
solos, modificando o relevo, a qualidade da água e provocando profundas alterações na
paisagem. As cavas, enquanto “passivos ambientais” resultantes das lavras de exploração
da areia, se, se apresentam como problemas para uns, para outros se constituem em
possibilidades, ou seja, em elemento “facilitador” de um processo que se desencadeia com
a ocupação da área.
O elemento “facilitador” ao qual se fez referência é o fato de ser uma área
desprovida de valor comercial dado às condições de degradação, pois as jazidas de areia
que serviam como atrativo comercial, já havia atingido a exaustão e, por isso mesmo,
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
estavam completamente abandonadas. Quando cessaram as lavras de areia, sobraram as
cavas como “passivos ambientais”, muitas delas transformadas em lagoas, devido às
chuvas e às cheias do rio Iguaçu. Independentemente da origem ou da fonte da alteração da
paisagem que levou à degradação da área, o mais importante para as pessoas que ali
chegaram era organizar as condições “mínimas” a fim de poder construir suas casas. Isso
implicava, num primeiro momento, conseguir identificar os locais mais firmes e seguros do
terreno, longe das lagoas e das possíveis enchentes que pudessem vir a ocorrer.
Na medida em que foram sendo ocupadas as áreas mais altas pelas “novas
famílias” que chegavam ao local, restavam apenas as estreitas faixas de terra que dividiam
as lagoas, e que também foram utilizadas para a construção de novas moradias que se
perfilavam nas suas bordas. A ausência de “terra firme” não impediu que novas famílias
continuassem chegando ao local, o que levou a um novo processo de aterramento, muito
mais complexo e dispendioso para as famílias, pois se tratava do aterramento das lagoas e
das cavas, que necessitavam de uma maior quantidade de entulhos até que tivessem
condição para a construção das casas. As famílias aterraram as cavas e lagoas com restos
de material de construção, que era adquirido dos caçambeiros por um preço considerado
alto pelas famílias, já que não tinham alternativa para construir suas casas a não ser
expandindo o solo através do aterro.
Uma pesquisa amostral realizada pela COHAB em 2006, na Vila Audi/União, da
qual o Jardim Icaraí é parte, também indicou a predominância restos e sobras de madeira
nas construções dos domicílios. Esse material aproveitado é resultante é resultante de
demolições de antigas casas de madeira de outros bairros de Curitiba.
Esse fragmento da cidade “descartável”, já que desprovido dos atributos
compatíveis com a cidade que é projetada, é que vai servir para abrigar os “indesejáveis”: os
entulhos da construção civil e os seres humanos que não podem pagar para viver na cidade
planejada, na cidade legal. O fato de poder equiparar os Homens aos entulhos, na medida
em que são obrigados a estar no mesmo local, dá a dimensão do tipo de cidade que se
constrói. Paradoxalmente a essa lógica, esses Homens constroem uma cidade dentro da
cidade que se materializa sob outra lógica, outra ordem e outra legalidade, para além dos
dispositivos jurídicos, que determinam as formas de uso e de apropriação da cidade de
Curitiba, ou como diz Santos (1999) constroem uma contra-racionalidade.
Do ponto de vista social, econômico e geográfico, essas contra-racionalidades,
se localizam entre os pobres, os excluídos, as “minorias”, entre as atividades marginais e
nas zonas “opacas” (SANTOS, 1999). É por isso que as famílias que ocuparam a área
encontram-se completamente “livres” para produzir aquele espaço de acordo com suas
próprias regras e com as suas necessidades mais vitais, incluindo o aterramento das cavas
e das lagoas para a construção de suas casas. Foi nesse processo de “subversão às
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
regras”, à Lei e a uma determinada ordem, que os ocupantes foram construindo o lugar, cujo
sentido deve ser compreendido no contexto da trajetória vivenciada pelas famílias que se
constituem na sua maioria “carrinheiros” ou “carroceiros”.
2 A INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO NO JARDIM
A Vila Audi União é uma ocupação que e se estende pelos bairros Uberaba,
Cajuru e Capão da Imbuia, situada na divisa de Curitiba com o município de São José dos
Pinhais. O movimento de ocupação teve início em meados de 1990, sendo que a partir de
1998, intensificam-se, totalizando no ano de 2003, 2.887 famílias. A área onde se concentra a
maior parte das moradias segue a linha do trem, por ser a parte do solo mais alta e seca.
Entretanto, toda a extensão da área foi ocupada, incluindo as "lagoas" ou "cavas",
remanescentes dos processos de atividade de mineração.
O poder público, por meio dos técnicos, alega que devido à baixa capacidade de
resistência dos solos e à elevada umidade natural dos materiais, o lugar não suportaria as
edificações. Por isso tem imposto restrições ao uso da área, seja para efeitos de mineração,
seja para moradia. Isso tem justificado a ação do Poder Público no seu monitoramento e
em ações, que levam à proibição de determinadas atividades na área e a "desocupação" de
alguns locais de moradia.
A COHAB-CT, órgão responsável pelo cadastramento das famílias, vem
sistematicamente retirando os ocupantes da área. Conforme informações dos moradores, no
ano de 2003, foram retiradas aproximadamente 300 famílias que moravam numa vila
chamada "União das ilhas". Essas pessoas tiveram suas casas destruídas e foram transferidas
para Contenda, município da Região Metropolitana de Curitiba, ou para o "fim do mundo",
como costumam dizer os moradores.
A intervenção do Poder Público na área da Vila Audi União2 se relaciona ao que
se tem denominado de Urbanização da Vila Audi União. O projeto de Urbanização
contempla obras de proteção contra inundações – construção de um dique de proteção,
regularização das ocupações e relocação de outras, implantação e pavimentação de uma
via estruturante e implantação de infra-estrutura básica. As mudanças projetadas, para o
Jardim Icaraí, apontam para a consolidação de uma parte das famílias no local e outra parte,
será retirada e reassentada em outro local. Assim, de um total de 752 domicílios que
compõe o Jardim, conforme dados da COHAB, 295 serão relocados. De outro lado, as
famílias além de não entenderem que se encontram em área de risco, conforme apontado
nas entrevistas, gostam de morar naquele lugar. Ali construíram ou pretendem dar
continuidade à construção de suas casas, moram "próximos" aos locais de coleta do
2Projeto Bolsão Audi União: Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, COHAB, IPPUC, 2006).
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
"material reciclável", onde construíram uma rede de contatos e pontos de coleta,
fundamental para a garantia da continuidade desta atividade.
Indiferente aos motivos alegados pelos moradores do Jardim, o poder público pôs
em andamento suas propostas, independente da participação dos envolvidos no processo.
Isso tem motivado uma série de protestos, inclusive daquelas famílias que se julgam na
iminência de serem removidas e que não tem certeza de também serem relocadas, para
uma área próxima ou distante do Jardim Icaraí.Desde a década de 1980, com a criação de
Setores Especiais de Habitação de Interesse Social (SEHIS), que previa a implantação de
núcleos habitacionais pela COHAB, há uma forte tendência em concentrar essas "famílias
problemas" em áreas mais distantes e restritas, sobretudo dos locais mais centrais da
cidade.
Tem-se observado a tendência a uma espécie de "guetização" de uma parcela
da população, cujos resultados também podem ser nefastos, como os próprios efeitos da
"estigmatização territorial" que são construídos pela população e poder local. As estratégias
sociais do Poder Público Municipal põem a descoberto os princípios de visão e de di-visão
que moldam a consciência e as práticas dos administradores3, que se modelam de acordo
com o projeto político que se tem. É importante analisar, ainda, os instrumentos utilizados
para refletir a situação do Jardim Icaraí inclusive porque nessa forma de intervenção, o
processo é percebido e interpretado pelos técnicos como "natural", inerente a própria
urbanização da cidade de Curitiba: "O crescimento explosivo das metrópoles brasileiras com
seus cinturões de pobreza..." (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, COHAB, IPPUC,
2007, p.72).
Da mesma forma, verifica-se a necessidade de se refletir acerca dos
instrumentos de análise utilizados, que se encontram situados em um determinado período. Os
instrumentos se encontram submetidos a um esquema de pensamento, fortemente marcado
por uma concepção de mundo, numa concepção de cidade, quando as situações
observadas devem se encaixar no modelo de pensamento formado a priori.
Se se quer efetivamente compreender a situação em que se encontram envoltas
as famílias que ocupam áreas tidas como irregulares pelo Poder Público Municipal, faz-se
necessário ultrapassar os mecanismos genéricos e suas formas que se tornam inteligíveis,
sobretudo quando ligadas a algumas matrizes históricas de pensamento (WACQUANT,
2001, p.7-8). O autor vai mais além, quando afirma a necessidade de se desenvolver
imagens mais complexas e diferenciadas, se quisermos compreender a existência e o destino
dessas famílias (WACQUANT, 2001, p.7-8), que não se encontram mencionadas unicamente à
ausência e a necessidade de moradia. O que está em jogo não é somente "arrumar" um local
para fixar moradia. No contexto em que vivem essas famílias, é praticamente impossível
3 Segundo Pierre Bourdieu, os processo de classificação e organização da realidade estão inscritos em funções práticas e orientados para a produção de efeitos no mundo social (BOURDIEU, 1989, p.107-132)
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
imaginar que a observação das situações localizadas, marcada por uma complexa rede de
relações sociais possa se dirigir somente para um plano de ação.
A própria noção de pobreza utilizada para se referir às famílias que se
encontram diretamente submetidas as situações diagnosticadas, deve ser submetida a
análise, já que se constitui um elemento importante para a compreensão da proposta de
intervenção em curso, onde o Poder Público Municipal se coloca como o único protagonista,
a despeito dos dispositivos legais garantirem a participação das pessoas de forma indistinta. O
§ 3.o, do artigo 4.o, da Lei n.o 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da
Cidade, é enfático no sentido de garantir a participação das "comunidades", "movimentos" e
"entidades da sociedade civil" nas discussões que se referem aos instrumentos da política
urbana.
A noção de pobreza tomada pelo Poder Público indistintamente para explicar a
situação das famílias revela, inicialmente, a incapacidade das famílias de garantir a sua
reprodução física e social. Ao mesmo tempo, embuti uma outra noção, de que as pessoas
que se encontram sujeitas às políticas são incapazes de gerir o seu próprio futuro, portanto,
mais que normal a "usurpação" de suas falas, pois são incapazes de fazê-lo. Aliás, essa
discussão se aproxima das descrições já realizadas, que desenham a noção do "cidadão
tutelado". A propósito, a tutela tem sido um instrumento muito eficaz na garantia de
efetivação de determinadas políticas públicas, sobretudo quando essas políticas se
encontram "sombreadas" dos reais interesses que possam estar em jogo. A postura
autoritária tem conseqüências que se expressam num conflito agudo envolvendo as famílias
de moradores do Jardim Icaraí e o Poder Público Municipal, onde o que está em jogo são as
diferentes representações e interpretações do que seja a cidade e, do meio ambiente
(ACSELRAD, 2004.
Ademais, a produção de diversos dispositivos jurídicos relacionados ao meio
ambiente, que objetivam de forma casuística "resolver" os problemas dessa natureza. Pelo visto, a
preocupação com esses instrumentos legais é muito grande por parte do poder público
fazendo com que todos consigam identificar as noções de legal e ilegal4, que acompanham
esse modelo de cidade.Tomando emprestado uma leitura de Wacquant, percebe-se que o
discurso relativo à degradação da "natureza", tem reavivado aquela idéia malthusiana
segundo a qual a miséria é o resultado da própria incapacidade pessoal dos miseráveis
(WACQUANT, 2001, p.104). É como se as famílias, pelo simples fato de serem pobres, fossem
totalmente incapazes de qualquer atitude digna de ser considerada, pois revela todo o pré-
conceito existente.
4Moura chama atenção que essa dicotomia, assim como tantas outras: "cidade planejada e a cidade não planejada", a "cidade real e a cidade formal" são produtos do processo histórico que se relaciona a produção do espaço urbano (MOURA, 2004, p.152-155).
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Ao longo das décadas, as políticas urbanas em Curitiba foram responsáveis pelo
processo de segregação de uma parte da população, que foi colocada para "fora" da cidade
(OLIVEIRA, 2000; MOURA, 2001; PEREIRA, 2002). O fato de representarem uma "ameaça"
ao modelo de cidade que se projetou, fez com que esses cidadãos se transformassem em
"objetos" de um conjunto de políticas sociais, que objetivam mantê-los prevalentemente
"afastados" da cidade.
A ação do poder público tem como objetivo a urbanização da Vila Audi União, de
acordo com os parâmetros urbanísticos preestabelecidos, ou seja, tem como base uma
concepção de cidade, que entra em confronto com a idéia de cidade dos moradores. A
ausência de participação dos moradores nas decisões sobre as mudanças no lugar que
construíram e no qual vivem, pode revelar como alerta Harvey, o receio das “utopias da forma
espacial de verem pervertidos seus nobres objetivos, se tiverem que firmar compromissos com
os processos sociais que pretendem controlar” (HARVEY, 2004, p.236), Quando as utopias da
forma espacial subjuga os processos sociais, têm a negação do direito à cidade, no sentido
da aproprição e do uso.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora as ocupações urbanas tenham se tornado parte da história da expansão
das cidades brasileiras, o fenômeno das ocupações em si toma a forma da ilegalidade uma
vez que para se viver na cidade é preciso usufruir do poder de compra da terra urbana.
Assim, a cidade é produzida e reproduzida tendo como base a propriedade privada do solo
urbano, por isso as ocupações colocam-se frontalmente contra essa lógica. Esta é a razão
pela qual são consideradas "irregulares", mesmo considerando a "função social da
propriedade", que se encontra disposta na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da
Cidade.
No processo de construção do Jardim Icaraí pôde ser observado algumas
dessas particularidades. Dentre estas, destaca-se o próprio processo de "ocupação" da
área, contrariando e pondo em questão a forte presença do poder público planejador e
disciplinador do uso do solo da cidade de Curitiba. Outro aspecto importante que deve ser
considerado, é que esta ocupação deu-se sobre uma Área de Proteção Ambiental, que se
encontrava degradada.
A cidade não é um ente separado da sociedade que a produz. Ela, a cidade, é
resultado também dos diferentes agentes e projetos em curso. É na sua espacialidade que se
manifestam as suas contradições e conflitos, sendo que os conflitos sócioambientais
representam, antes de tudo, conflitos pelo uso, pelo direito à cidade, mas que muitas vezes
tomam a aparência de ambientais em razão da incorporação do discurso ambiental. Na
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
esteira desses conflitos urbanos, a variável ambiental pode "mascarar" outras tensões, que se
colocam muitas vezes mais contundentes e que são apagadas pela dimensão ambiental.
No Jardim Icaraí, a força do conflito que ganha os contornos de sócioambiental é
em primeiro lugar pelo direito á cidade, expresso pelo direito à moradia. O fato do Jardim
Icaraí se encontrar numa área de proteção ambiental, torna a situação das famílias que lá se
encontram muito mais dramática e aguça as tensões, pois a variável ambiental contém um
forte apelo social e toda uma legislação que serve de amparo às ações do Poder Público
local. Ali é flagrante o confronto, que envolve distintos projetos para a cidade e distintas
orientações para a preservação do meio ambiente. A cidade se constitui em um
emaranhado de projetos cujo conteúdo material e simbólico estão em permanente confronto.
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Henri. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004a. p.13-35. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SHIRAISHI NETO, Joaquim; MARTINS, Cynthia Carvalho. Guerra ecológica nos babaçuais: o processo de devastação dos palmeirais, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia. São Luís: Lithograf, 2005. HARVEY, David. Espaços de esperança. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2004. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991c. LOPES, José Sérgio Leite. A “ambientalização” dos conflitos sociais. In: LOPES, José Sério Leite (Coord.). A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p.17-38. _____. Sobre processos de “ambientalização” dos conflitos e sobre os dilemas da participação. Revista Horizontes Antropológicos, ano 12, n.25, p.31-64, jan./jun. 2006. MOURA, Rosa. Os riscos da cidade modelo. In: ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e riscos nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.203-237. MOURA, Rosa; ULTRAMARI, Clovis (Orgs.). Metrópole: grande Curitiba: teoria e prática. Curitiba: IPARDES, 1994. OLIVEIRA, Denílson. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: UFPR, 2000. PEDRAZZINI, Ives. A violência das cidades. Petrópolis (RJ): Vozes, 2006. PEREIRA, Gislene. Produção da cidade e degradação do ambiente: a realidade da urbanização desigual. Curitiba, 2002. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) - Universidade Federal do Paraná.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
SÁNCHEZ, Fernanda. A (in)sustentabilidade das cidades-vitrine. In: ACSELRAD, Henri (Org.). A duração das cidades: sustentabilidade e riscos nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.155-175. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1999. VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2.ed. São Paulo: Vozes, 2000. p.75-104. WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade. Trad. João Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro: Revan; FASE, 2001.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
A DESORDEM DA CIDADE E A DESORDEM NO DIREITO: Reflexões em torno da noção de cidade para o Direito
Judith Costa VIEIRA5
RESUMO
Este texto faz uma reflexão em torno das representações sociais sobre o espaço da cidade e especificamente sobre a leitura que o Direito faz sobre ela. Trata-se de um confronto teórico entre a noção de cidade como espaço da desordem esboçada nos dispositivos legais e noção de cidade como campo de disputa social. Argumenta ser possível construir uma explicação sobre a cidade a partir da desordem tomando aquela com espaço social de conflitos por diferentes visões e projetos de vida defendidos pelos novos sujeitos coletivos no espaço urbano e questiona o poder estatal absoluto de controle da cidade.
Palavras-chave: Cidade, Direito, Desordem, Grupos étnicos.
ABSTRACT This text is a reflection of social representations around the area of the city and specifically on the reading that the law is on it. It is a confrontation between the theoretical notion of city as a space of disorder outlined in the legal provisions and the concept of city as a field of social dispute. Argues can build an explanation of the city from taking such disorder with social space of conflict between different visions of life and projects supported by the new collective subjects in the urban area and questioned the power of absolute state control of the city Keywords: City, Law, disorder, ethnic groups
1 INTRODUÇÃO
Como criação social a cidade permite que sobre si sejam feitas diferentes
leituras, diferentes atribuições de sentidos. Cada leitura sobre a cidade traz consigo a
perspectiva do sujeito6 que a explica e a define. Assim, como o sujeito não está apartado de
um contexto sócio-cultural de produção de conhecimento, sua leitura sobre o objeto, no caso
cidade, reflete de imediato a posição e os interesses deste sujeito no campo social.
5 Judith Costa Vieira, advogada, mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). Assessora Jurídica Terra de Direitos. E-mail: [email protected]. 6 O “sujeito” por diversas vezes aqui tratado não se trata do sujeito individualizado da perspectiva jurídica, mas representa o sujeito coletivo pertencente a um grupo social que compartilha valores e interesses. Trata-se da criação de um jeito peculiar de entender o mundo e de se relacionar com ele.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Conhecer, definir e classificar são procedimentos que têm por finalidade despir a
realidade de seus mistérios tornando-a compreensível; logo, passível de ser dominada pelo
espírito científico que se ocupa em apreendê-la. Trata-se de “reduzir” a desordem das
coisas do mundo social e “enquadrá-las” em determinados esquemas de pensamento, em
que seja possível a representação mental desta realidade pelo sujeito.
As leituras são representações mentais que se têm dos objetos. Elas indicam
como esses objetos são vistos e explicados pelos sujeitos. Porém, é preciso sublinhar, as
produções simbólicas não contêm objetivos puramente explicativos, possuem também, uma
dimensão prática, pois não se constituem em meros instrumentos de conhecimento e
comunicação. As formações simbólicas possibilitam a construção de um sentido
compartilhado do mundo sobre o qual se fundamenta a reprodução da ordem social
(BOURDIEU, 2005).
A maneira como se representa o mundo social dirige a maneira como se
intervém nele. Por isso, a representação não é uma explicação neutra e objetiva do real,
nela influem as aspirações e os valores do sujeito que a constrói. Cada expressão da
representação como a definição ou classificação, longe de serem parâmetros “neutros”
revelam um ponto de vista seletivo do real.
Nesse sentido, cada representação se apresenta como uma “verdade parcial”,
uma “verdade possível”; sua força para se fazer crer como única verdade dependerá do
capital simbólico que dispõe o sujeito, na medida em que sua verdade está relacionada à
sua autoridade e legitimidade no campo científico (BOURDIEU, 2005). Tal imposição não se
verifica de maneira pacífica, pois existem no mundo social, diversas leituras sobre o mesmo
objeto que podem se colocar de forma complementar ou mesmo contrárias entre si.
Afirmar que existem diversas maneiras de representar o real, implica reconhecer
que existem diversas maneiras de viver e se relacionar socialmente, uma vez que as
representações são criadas em face de condições concretas de existência. Assim, as
leituras tidas “oficiais” ou reconhecidas, construídas em função de uma dada objetividade,
tendem a “camuflar” a própria fragilidade de sua criação, sobretudo quando tentam se
colocar acima das contextualizações e dos interesses que representam.
Segundo BOURDIEU (2005), as disputas no campo social não ocorrem somente
pela apropriação das coisas materiais, elas se desenvolvem também objetivando impor
determinada maneira de representar o mundo social. Assim, cada grupo social tende a
defender uma representação mais condizente com os seus respectivos interesses. Essa
disputa, segundo referido autor, não se perde em um campo de abstrações uma vez que
expressam uma finalidade prática de defesa de determinados projetos de vida, os quais
requerem a defesa de interesses específicos.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Com isso, BOURDIEU traz as discussões das leituras da realidade ao mundo
político, pois evidencia as funções práticas que esses esquemas desempenham em
situações de conflitos sociais; sendo elas próprias os planos onde se desenvolvem tais
conflitos. As disputam se dão, portanto, contra uma ordem de sentido hegemônica que sob a
aparência de representar interesses universais, se impõe como forma única de sentido,
criando, com isto, relações de poder estritamente simbólicas as quais servem para
perpetuar uma relação de dominação mascarada.
Considerando que os sentidos sociais têm o poder de legitimar ações sobre a
realidade é possível afirmar que: aquele que detém a autoridade ou legitimidade de ler e
interpretar a realidade tem o poder de agir sobre ela segundo seu próprio entendimento.
Dessa maneira, as disputas simbólicas ocorrem em face da leitura considerada dominante.
Ela se reveste de um verdadeiro poder simbólico a partir do momento que se estabelece
como “concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências” (BOURDIEU, 2005, p.9).
Neste contexto, a cidade enquanto representação se torna um campo de
disputas pela atribuição de sentido. Cada representação sobre a cidade importa a defesa de
projetos de ação diferentes sobre ela. Na cidade, enquanto espaço físico e social de
convivência, coexistem grupos sociais7 que constroem imagens diferentes sobre ela e são
justamente essas imagens criadas coletivamente que dirigem a apropriação da cidade por
esses grupos.
Impossível então falar em uma única leitura inquestionável sobre a cidade. O
que se imagina da cidade e a maneira de como se age sobre ela implica a consignação de
um ponto de vista particular. Nesse sentido, levantar as diversas leituras sobre a cidade é
um exercício reflexivo que se coloca para além de se pensar a própria cidade. Trata-se de
refletir sobre os esquemas de pensamento previamente elaborados e assim tentar
compreender como se trava a luta política pela imposição e superação dessas leituras.
Assim, o Direito como expressão de um tipo de representação da realidade, cria
a sua própria imagem da cidade. O enunciado de BOURDIEU (2005) segundo o qual as
imagens possuem funções práticas, talvez, não se expresse de maneira tão contundente
7 Vários estudos tem se ocupado em investigar a feição étnica das cidades. Vide: FARIAS JÚNIOR, Emmanuel
de Almeida. Terras indígenas nas cidades: Lei Municipal de desapropriação nº302. Aldeia Beija-flor, Rio Preto da Eva, Amazonas. Manaus: UEA Edições, 2009; SAULE JUNIOR, Nelson. Possibilidades de aplicação do marco legal urbano brasileiro na proteção dos direitos socioambientais das populações indígenas. In. BRAVO, Álvaro Sánchez. Cidades, Medioambientes y Sostenibilidade. ArCiBel Editores: Espanha, 2007; MARQUES, Olavo Ramalho. Entre a Avenida Luís Guaraha e o Quilombo do Areal: estudo etnográfico sobre memória, sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre/RS. In. Prêmio ABA/MDA. Territórios Quilombolas/ Associação Brasileira de Antropologia. Organizador. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2006.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
quanto no âmbito jurídico, onde as categorias jurídicas possuem o propósito prático de
direcionar a atuação do Estado no meio social.
Refletir a forma de como direito pensa a cidade, estabelecendo relação entre
esta forma de “saberes oficiais” e outras provenientes do meio social constitui o objeto do
presente estudo. Para tanto, inicio as reflexões no sentido de tentar demonstrar como a
cidade é percebida pelo direito para, em seguida, fazer uma critica a esta imagem
hegemônica, tomando como elemento problematizador o surgimento dos novos sujeitos
coletivos, portadores de identidade étnica, que reivindicam o reconhecimento de sua
imagem e projeto de cidade.
2 A CIDADE PARA O DIREITO: leitura possível
A representação da cidade em torno dos dispositivos e estatutos jurídicos gozam
de um status de verdade construído sobre a legitimidade e autoridade dos interpretes
consagrados no campo jurídico (BOURDIEU, 2005). É importante ressaltar que esse
processo é autenticado com a própria justificativa comumente acionada de que o direito é
universal e instituidor da “ordem pública”, além de promotor do “interesse social”. Porém, o
que esta explicação escamoteia é o fato de que ao lado da imagem de cidade vislumbrada
pela ordem jurídica existem outras com justificativas igualmente racionais de constituição.
Ademais, o campo de conhecimento jurídico reivindica, a todo instante,
autonomia em face das disputas sociais (BOURDIEU, 2005), colocando-se na situação de
mero expectador ou mediador dessas mesmas contendas. Entretanto, o próprio discurso
jurídico estrutura certa relação de força no campo simbólico quando suas representações
são consideradas como verdade porque provenientes de uma autoridade política.
Nesse sentido, compreender o sentido de cidade atribuído pelo direito e
confrontá-la com outras imagens possíveis traz a tona a estratégia política de conceber as
explicações como evidentes, como naturais, afinal, as leituras tidas como “oficiais” trazem
em si a relação de força sobre a qual se construíram, pois tendem a demonstrar seus
enunciados como elementos objetivos inquestionáveis, quando, em verdade são parciais e
perspectivos.
Ao explicitar essa relação, fica evidente que diante de tantas leituras possíveis
sobre a cidade há infinitas disputas entre elas, disputas estas nem sempre explicitas.
Quando uma dessas leituras se consagra como vitoriosa, além do poder de representar a
totalidade do mundo social, tem o poder de submeter todas às outras aos seus desígnios.
Os consensos sobre as imagens nem sempre se baseiam em concordância de interesses,
mas sim em convencimento e imposição que justificam os projetos de intervenção social.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
No campo jurídico, a cidade é lida e interpretada de uma forma8, o que não
necessariamente significa que é a única maneira possível de interpretá-la. Na verdade, o
conhecimento jurídico tem finalidades práticas voltada para a defesa de um determinado
projeto de cidade, embora se justifique por ser um sistema funcional e objetivo, baseia-se
em certa ordem que para se manter em posição de hegemonia desqualifica outras ordens.
Ninguém melhor do que FOUCAULT (2005) evidenciou como certos corpos de
saberes sujeitam outros em nome do cientificismo. Um exercício como este, de colocar para
o direito as várias imagens da cidade, permite que se observe a produção do conhecimento
jurídico em sua “verdadeira posição”, qual seja, a de construção social transitória e
perspectiva da realidade.
Trata-se, nesta esteira, de resgatar a diversidade de saberes, no sentido de
FOUCAULT (2005), e de repensar as possibilidades da desordem tal como propõe MIAILLE
(2002). Para Foucault, há uma diversidade de saberes que ficaram obscurecidos em face de
determinada ordem de saber com objetivos funcionais e formais. Tais saberes, segundo
esse autor, podem também ser expressos como formas de saber que não se enquadravam
em um padrão de cientificidade previamente estabelecido (FOUCAULT, 2005).
Já a desordem é refletida por MIAILLE como uma possibilidade de imaginar as
coisas e de refletir sobre elas que não encontra correspondência nos modelos habituais da
ciência e do direito. Nesse sentido, a desordem, sempre rejeitada pelos esquemas
tradicionais de pensamento, é objeto de constante campanha de superação, de modo que
não se admite a existência de outras ordens a comandar as disposições das coisas e das
pessoas que não aquelas oficializadas.
Para esse autor, admitir a idéia da desordem e refletir sobre ela implica trazer à
tona esquemas de pensamento completamente diferenciados dos hegemônicos. Portanto,
para Miaille (2002, p.20):
Trata-se, então, de abrir uma nova situação epistemológica na qual a lógica abandona a pretensão ao universal e prefere uma `verdade local’; na qual a dicotomia não se divida mais entre erro e verdade e na qual a verdade nada mais é que um erro retificado [...].
Assim, se o pensamento jurídico centrado no disposto em lei é o hegemônico, a
desordem, enquanto operação metodológica, é o questionamento pronto e acabado do
dispositivo legal como única maneira de definir e intervir na cidade, pois é possível pensar a
cidade pelo que não está escrito, por aquilo não previsto pelo Direito. O não previsto, e
8 No Brasil, há uma intensa discussão a respeito da autonomia do direito urbanístico, pois ele se encontra no interior do direito administrativo. A necessidade destacar o direito urbanístico do direito administrativo explicita esse campo de disputas no interior do próprio direito, que não se encontra referido unicamente a distinção de objetivos, mas as necessidades dos interpretes que buscam se legitimar para o direito de dizer o direito sobre a cidade.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
ainda não admitido, é que há uma diversidade de atores construindo a cidade, cada qual a
seu modo e utilizando seus saberes, sua própria ordem de valores e práticas, dando forma à
cidade real em contraposição da cidade formal imaginada nos dispositivos jurídicos.
A constatação de diferentes sujeitos atuando coletivamente na construção da
cidade colocam o desafio à ciência jurídica de pensar como se dá a construção da cidade
por estes grupos e implica, também, tentar compreender os saberes até então “sujeitados”
desses agentes, pois são estes saberes que dão sentido ao que é materialmente produzido
por eles. Porém, o Direito ainda teima em definir estas práticas sociais como desordens,
aqui, entendidas, como práticas que dão a cidade uma feição diferente do modelo
imaginado pelo Direito.
Por conseguinte, a preocupação dos intérpretes do direito com a excessiva
forma, ora se ocupando na confecção dos dispositivos e estatutos, ora na análise desses
instrumentos, fez com que restringisse as possibilidades de compreender o conteúdo das
cidades expressos além dos dispositivos e estatutos jurídicos. Ou seja, restringe a
possibilidade de compreensão do fenômeno que Ítalo Calvino descreve como “As Cidades
Invisíveis”, que nada mais é que a idéia de que há uma “cidade real”, que cresce e se
esparrama em face da “cidade oficial”. Então vejamos como a cidade é trabalhada pelo
Direito.
3 DELINEAMENTOS LEGAIS DA POLÍTICA URBANA BRASILEIRA: a cidade como
espaço da desordem
A Constituição Federal de 1988 ao instituir um Capítulo dedicado à ordem
urbanística9 trouxe consigo “novas” possibilidades de debates sobre o espaço social,
especialmente sobre a cidade. As disposições constitucionais têm como objetivo a
construção do que é designado como “cidades democráticas e sustentáveis”.
O status elevado da problemática urbana10 ao nível constitucional, após intenso
processo de luta e reivindicações sociais11, foi responsável, também, pela redefinição do
papel do Estado em relação ao que é chamado de questão urbana12. O Estado assumiu a
função de promotor do desenvolvimento urbano, cuja principal meta consiste em eliminar
9 Capitulo II denominado: “Da Política Urbana”, contido no Titulo VII que trata da Ordem Econômica e Financeira
na Constituição Federal de 1988. 10 Segundo REZENDE (1982, p.1) a problemática urbana era fato na “A maioria das cidades passa a se caracterizar pela segregação dos seus espaços, onde habitações formais, localizadas em áreas dotadas de serviços, coexistem com favelas e loteamentos irregulares em áreas carentes de saneamento básico e transporte”. REFERENCIA REZENDE, Vera F. Rediscutindo a Política Urbana, a propósito do Estatuto da Cidade. Acessado no site: http://www.uff.br/lacta/publicações/rediscutindopoliticaurbana.htm. 11 A intensa mobilização social em torno da Assembléia Constituinte para a inclusão de dispositivos que garantissem o direito à moradia, ficou conhecida como Movimento da Reforma Urbana, no qual estavam incluindo uma gama diversa de atores incluindo, movimentos sociais, ONGs, sindicatos. 12 A importância da discussão diante de nossa realidade fez com que fosse criado, em 2002, o Ministério das
Cidades, cuja atribuição seria pensar uma Política Urbana.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
todos os problemas decorrentes da falta de condições satisfatórias de vida nas cidades. Os
problemas sociais vivenciados nas cidades são explicados, em sua maioria, pela ocupação
irregular do solo urbano, pois segundo esse entendimento, a maioria das famílias que vivem
nas cidades, no que tange a moradia, se encontra em situação irregular.
A Política Urbana é abordada no texto constitucional em dois artigos: o 182 e
183. O primeiro dispositivo determina que a política de desenvolvimento urbano deva ser
realizada, principalmente, pelo Poder Público Municipal. Os objetivos expressados nesses
artigos são os de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a
garantia do bem-estar de seus habitantes.
Define-se, desse modo, o papel preponderante dos municípios na execução do
desenvolvimento urbano por meio do instrumento jurídico do Plano Diretor. O Plano Diretor
deve definir as metas de intervenção do Poder Público na área de abrangência municipal,
no sentido de ordená-la, sem perder de vista os qualificativos necessários para que a
propriedade urbana atenda sua função social.
Percebe-se que os dispositivos jurídicos criados para cumprir esses objetivos
constitucionais atendem a essas demandas. Eles representam respostas ao problema de
determinação de como deve ser realizada a intervenção do Poder Público na cidade e de
elucidação do conteúdo da expressão limitadora da função social da propriedade, já que
esse deveria vir definido no Plano Diretor elaborado por cada cidade.
No sentido constitucional, cabe ao município, quando elaborar o ordenamento do
seu território, definir os requisitos necessários para a concretização da função social da
propriedade, de modo que todos contribuam com a criação da cidade. O Plano Diretor como
instrumento por meio do qual se faz o ordenamento do território municipal, deve conter os
dispositivos que estabelecem os limites, as faculdades, as obrigações e as atividades que
devem ser cumpridas pelos particulares para terem assegurado o seu direito de propriedade
(SAULE JR., 2002, p.78). Portanto, considera-se que a propriedade cumpre sua função
social quando cumpre as determinações urbanísticas presente no Plano Diretor (Art. 182,
CF/88).
A partir de então, há repartições de competências entre as três esferas
administrativas: União, Estados e municípios. A este último, que até então não gozava de
autonomia administrativa, pois não se encontrava definido como ente federativo, compete
legislar sobre assuntos de interesses locais, dentre eles às questões urbanas, aos demais
entes – Estados e União- apenas compete o traçado de normas gerais sobre a temática.
O artigo 183 institui a figura jurídica da Usucapião Urbano13. A usucapião tem
por finalidade garantir o direito à terra urbana, mediante a posse continua e dentro de um
13 Determina o caput do artigo 183 (CF/88): “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-à o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
determinado transcurso de um lapso temporal. A usucapião urbana ou usucapião moradia,
como vem sendo denominada este instrumento, deve, segundo SCHAFER (2004), ser
interpretada segundo parâmetros que privilegiem a realização da função social da
propriedade e o direito de moradia.
Os dois dispositivos legais explicitados acima, permite uma leitura do momento
histórico e social vivenciado quando da instituição da Constituição Federal de 1988, pois
refletem as demandas sociais então reivindicadas pela sociedade, sobretudo pelos
movimentos sociais organizados. A principal bandeira de luta naquele momento se referia
ao direito à moradia. Defendia-se a criação de um quadro institucional por meio do qual
fosse possível garantir o acesso de grupos sociais menos favorecidos à terra urbana.
O meio escolhido pelo legislador para alcançar tal objetivo foi restringir o direito
daqueles que já eram proprietários de imóveis urbanos, seja impondo-lhes penalidades pelo
não cumprimento das funções sociais que seriam designadas no Plano Diretor, ou a
penalidade de perda da propriedade pelo não uso efetivo do bem, em favor de outro que
estivesse dele se utilizando para moradia, como é o caso da usucapião.
Visando alcançar o desiderato constitucional seguiu-se a instituição de um
aparato normativo como uma série de mecanismos práticos para a realização daquilo que
alguns autores nomeiam de direito à cidade. O principal desses instrumentos é o Estatuto da
Cidade (Lei nº. 10.257/2001) onde são tracejados os objetivos e os instrumentos da Política
Urbana brasileira.
4. DIREITO À CIDADE: a instituição de uma ordem jurídica
O direito à cidade tem sido pensado como Direito Fundamental e ajuíza dois
objetivos principais: o primeiro, promover qualidade de vida nas cidades por meio da
realização satisfatória das funções sociais, bem como da incorporação das questões
ambientais ao tratamento urbano. O segundo se refere à melhoria e acesso às condições de
moradias legais na cidade.
O Estatuto da Cidade surge com a função de disciplinar os dispositivos
constitucionais. A nova lei define os princípios e as diretrizes da Política Urbana14 além de
regulamentar e criar instrumentos para possibilitar a intervenção pública a qual deverá ser
orientada a partir do pressuposto da gestão democrática da cidade.
Uma vez estabelecidos em lei os objetivos da Política urbana, os estudos
jurídicos que tratam a cidade se ocupam em identificar o melhor modo de operacionalizar os
instrumentos dispostos na lei, na crença de que, uma vez cumpridos o previsto se alcançará
14 Art. 2º, incisos I e ss, da lei 10.257/2001.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
uma “cidade bela e justa” para usar a expressão de ROLNIK ou nas palavras da própria
autora:
O estatuto abre uma nova possibilidade de prática, apresentando uma nova concepção de planejamento urbano, mas depende fundamentalmente do uso que dele fizerem as cidades. Boa parte dos instrumentos- sobretudo os urbanísticos- depende dos Planos Diretores, outros de legislação municipal específica que aplique o dispositivo na cidade. Os cidadãos têm, entretanto, o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir, concretamente, sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas. (ROLNIK, 2001, p. 9)15
Da mesma forma que a autora, os intérpretes do direito também vislumbram o
Estatuto da Cidade como uma lei inovadora capaz, desde que devidamente implementada,
de promover a inclusão social e territorial das cidades brasileiras (SAULE JUNIOR, 2001,
p.11), ou de acabar com a segregação espacial e garantia do direito à moradia urbana
(ALFONSIN, 2000).
Apesar do tão aclamado direito dos cidadãos, à participação política no processo
de escolhas das políticas de intervenção nas cidades, este direito se encontra atrelado à
idéia de possibilidade de exigir o atendimento da função social da cidade. A função social é
identificada como sendo o cumprimento satisfatório de algumas atividades consideradas
essenciais para aqueles que moram na cidade.
Para esse tipo de leitura, as cidades necessitam ser dotadas de um conjunto de
bens e serviços que possam propiciar uma vida digna para todos. Portanto, a cidade
desejável é a que está cumprindo sua função social de garantir o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e
lazer, para as presentes e futuras gerações 16.
O direito a cidade é abordado a partir de seus problemas específicos e as
explicações para tais problemas são concentradas na forma como foi conduzido o processo
de desenvolvimento urbano do Brasil, pois segundo Fernandes (2006), ele foi fruto de um
intensivo processo de urbanização da sociedade brasileira, sem planejamento adequado
que possibilitasse ao espaço da cidade adequar aos novos contingentes migrantes atraídos
pelo processo de industrialização (FERNANDES, 2006).
A conseqüência mais visível foi o aparecimento das habitações criadas à
“margem da lei”, formando o que pode ser chamado de “cidade informal”, que nasce ao lado
da “cidade formal”, mas a supera em tamanho e em problemas sociais, causando impactos
negativos à cidade como um todo, pois a população “informal” reclama também pela
prestação de serviços públicos (ALFONSIN, 2004).
15 O artigo mencionado é intitulado: “Estatuto da cidade - Instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza”, publicado pela autora, foi editado pelo Instituto Polis em 2001 e compõe uma coletânea cujo titulo é “Estatuto da Cidade: novas perspectivas para a reforma urbana”. 16 Estatuto da cidade, art. 2º, inciso I.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Portanto, os problemas urbanos são explicados, ora pela falta de preparo do
Poder Público para se adequar nas novas exigências do fluxo populacional, ora pela falta de
aplicação das diretrizes legais já existentes. A desobediência à ordem urbanística constitui
uma das principais explicações acerca da procura do motivo/causa da problemática
vislumbrada nas cidades.
Diante da constatação de tantos problemas a serem resolvidos, a maior parte
das reflexões buscam tratar a temática urbana a partir de duas situações: tendem a
descrever e explicar os instrumentos jurídicos aplicáveis às situações; ou tendem a focalizar
o que falta ou o que é preciso para viabilizar a sustentabilidade do espaço urbano17.
Persiste nos referidos estudos a construção de uma grande crença no poder
transformativo do direito. Desse modo, é festejada qualquer incorporação considerada
evolutiva no sentido de atendimento das demandas sociais nos textos legais, de forma que
as análises seguintes consistirão em propagar a grande mudança de perspectiva ocorrida e
a descrever os instrumentos legais disponíveis para alcançar os objetivos então
perseguidos.
Não se nega a abertura social e democrática dos novos dispositivos jurídicos de
direito urbanístico. Contudo é preciso dizer que, ao agarrar-se na suposta evolução do texto
legal, referidos estudos relegam as reflexões os conflitos sociais e ambientais ao segundo
plano. Eles entendem que de posse do instrumento legal, restaria reivindicar sua adequada
aplicação, pois somente desta forma é que seria possível resolver os problemas sociais
decorrentes dos intensos processos conflitivos que colocam lado a lado a “cidade legal” da
“cidade ilegal”.
Assim, tomando a cidade a partir de seus problemas sociais e ambientais, os
estudos jurídicos acabam escolhendo um caminho metodológico, que tem como objetivo, a
procura de soluções práticas para os problemas existentes, ficando as causas que
ocasionam referidos problemas, temporariamente, em suspenso, diante da urgência de
intervenção na cidade. Os estudos tomam a prática pela reflexão, o que de certa forma tem
sido um “obstáculo” para a compreensão dos problemas reais e as próprias dificuldades
jurídicas em enfrentá-los.
A leitura existente nos estudos jurídicos sobre a cidade pode ser exemplificada a
partir de quatro noções, que são tomadas indistintamente pelos interpretes: “urbanização”,
“cidade legal”, “cidade ilegal” e “ordem”. Assim, a noção de urbanização é referência inicial
para qualquer tipo de análise. Os estudos jurídicos tratam de demonstrar que: o
crescimento urbano acelerado “sem planificação” foi o grande responsável pela produção da
“cidade ilegal”, sendo que esse processo gerou uma enormidade de problemas, que pode
ser constatado com os baixos índices de qualidade de vida nas cidades. A população da
17 Direito à cidade em termos jurídicos se refere ao direito de usufruir os serviços públicos na cidade.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
“cidade ilegal” não tem acesso aos bens e serviços públicos, muito menos segurança da
posse dos lotes que ocupam.
A urbanização é uma noção que tem servido para refletir o direito e a cidade. No
caso, as explicações seguem o seguinte esquema: se a urbanização é inevitável e tende a
aumentar, conseqüentemente, os problemas sociais e ambientais da cidade tendem
também a aumentar (FERNANDES, 2000), por isso mesmo o direito urbanístico tem um
papel fundamental, na medida em que o direito é o único instrumento disponível capaz de
instituir ordem ao espaço desorganizado, que tragicamente vem se constituindo ao longo
dos tempos. Em termos do presente, o esquema é o mesmo: os problemas sociais e
ambientais decorrentes do processo de urbanização intensiva geraram problemas os quais
devem ser resolvidos pelo Estado e pelo direito.
Portanto, o que se verifica é que a cidade é tida como o espaço da desordem,
esta é a única leitura imaginável quando se aborda a cidade a partir de seus problemas
sociais e ambientais. A desordem é tratada como algo maléfico, responsável por gerar
insegurança e precária condição de vida à população e, nesse sentido, deve ser corrigida ou
mesmo evitada. À desordem urbana é associada à noção de “crise urbana”, sendo esta
última conseqüência da primeira.
A crise urbana serve como elemento explicativo e como meta de superação. A
busca de solução para tal crise se torna o caminho para a maior parte dos estudos sobre a
temática. Acredita-se que a devida aplicação das leis devolverá a cidade o seu estado de
normalidade. A idéia de “crise” apropriada recorrentemente por esses estudos é um
instrumento de análise valioso, já que contém por si a explicação. Além disso, dá a idéia de
estado transitório, por meio da qual se presume a existência de um estado de normalidade,
que poderá ser retomado, caso as medidas sejam tomadas. É por isso que a eficaz
aplicação das leis é tida como único caminho possível para o resgate de condições
adequadas de vida na cidade, perdidas em face da urbanização acelerada.
Coutinho (2007) chama de “idealismo” a postura presente nos estudos jurídicos
centradas na aplicação de mecanismos jurídicos eficientes como garantia de superação da
desordem urbana, esta entendida, como resultado da ausência de garantias dos direito, da
incapacidade de gestão e de controle das distorções do crescimento econômico. Segundo
esse autor, em referidos estudos somente a falta de vontade política impede que as leis
exerçam sua capacidade para resolver os problemas urbanos. Aliás, o “idealismo” existente
nos estudos urbanos ressaltado por Coutinho, é também objeto de reflexão de Miaille. Para
Miaille, o idealismo se constitui num dos “obstáculos espistemológicos” existentes no direito
que impedem a sua própria compreensão.
A solução dos problemas urbanos destaca-se com fundamento da intervenção
estatal e da legitimidade dos estudos urbanos considerados pela relevância que podem
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
apresentar quando trazem propostas que se encontra referidas ao direito à cidade. Este
considerado como direito humano fundamental, pertencentes a todos aqueles que residem
na cidade.
Nesse contexto, o direito à cidade ganha a conotação de direito difuso, uma vez
que pertence a todos os habitantes da cidade. Tal caráter difuso decorre do fato de que é de
interesse de todos o cumprimento da função social das cidades. Para SAULE JÚNIOR
(2007), o caráter difuso da cidade pode ser compreendido a partir do fato de que ela
pertence indistintamente a todos e que por isso mesmo os interesses se convergiriam no
sentido de ver a cidade desempenhando suas funções intrínsecas.
Tal suposição, presente em muitos estudos jurídicos se atém a uma imagem de
cidade harmônica, onde é possível a aliança das diversas forças sociais no seu interior, com
a finalidade de construírem juntos à cidade, entretanto, tal ideal se encontra mais na ficção
da lei do que no real. Os intérpretes do direito tendem a ignorar os processos reais
vivenciados e lutam para impor uma interpretação sobre a cidade.
A maneira como os agentes se relacionam e constroem a cidade implica a
definição de amplos sentidos e funções ao espaço. Isso sugere que os agentes sociais
estão em constante conflito com eles próprios no desejo de impor sua maneira de se
relacionar com os espaços da cidade, de modo que não haveria um interesse superior
compartilhado por todos aqueles que habitam e sim vários interesses por vezes
convergentes, por vezes divergentes sobre como a cidade deve ser, não sendo a realização
das funções sociais suficiente para explicar ou promover uma aliança entre os grupos
sociais. Ademais, a noção de “função social” somente tem sentido se enraizada nos
contextos sociais, onde for aplicada.
Todavia, para o Direito as funções sociais são determinadas a partir de critérios
técnicos incorporados do urbanismo, ciência e arte de ordenar o uso da cidade. Eis, então,
que é delineado o papel do direito em todo o processo de resolução dos problemas sociais e
ambientais ocasionados pelo que se convencionou ser “urbanização acelerada”.
O papel do direito fica, então, circunscrito a instituir mecanismos de ordenação
da cidade e de seus habitantes para a perfeita realização das funções sociais da cidade.
Nesse sentido, o direito à cidade consiste, justamente, no direito de ter as funções da cidade
à disposição da sociedade.
Do “caos urbano” ocasionado pela ocupação irregular, nasce à necessidade de
normas jurídicas para disciplinar o comportamento dos “citadinos” em promover o interesse
público de uma “cidade sustentável”. O direito tem desse modo, justificada sua necessidade
e passa a ser considerado instância de mediação e congregação dos esforços coletivos em
busca de uma cidade que pode ser considerada ideal.
Assim, a ordem passa a ser o imperativo da vez:
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Quanto à ordem urbanística, constitui ela o alvo de todas as estratégias integrantes da política urbana, de modo que todos os esforços públicos e privados devem objetivar a sua formação, onde ainda não estiver implementada; a sua preservação, onde já estiver formada, a sua melhoria, quando maiores puderem ser os elementos de satisfação dos interesses gerais; e sua restauração, quando tiver sido rompida por evento nocivo ao interesse público. (CARVALHO FILHO, 2006, p.12)
Sendo expressão do poder político, o direito não fica alheio a esses assuntos e,
dessa forma, seus intérpretes procuram impor sua visão de cidade. Desse modo, notamos
no espaço social, diferentes modos de interpretar e agir sobre a cidade. Dentre elas existe
uma expressa nos documentos normativos e nas doutrinas que visam explicá-los.
Na doutrina majoritária, a função do direito é de coordenar o mundo social sob
sua jurisdição, é organizar a sociedade e direcioná-la para o caminho do “bom” e do “justo’
segundo o interesse coletivo. Em relação à cidade, sua função é projetar o espaço urbano
“ideal” de convivência humana, onde possa reinar a paz e a concórdia entre os habitantes.
Por este raciocínio, é possível inferir que a ordem jurídica vislumbra a cidade
como espaço de habitação e relação humana, onde o que impera são interesses individuais
de apropriação do solo da cidade e dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. Nesse
cenário, uma devida intervenção do Estado, ordenando a apropriação e o uso do espaço,
seria capaz de estabelecer a aliança necessária entre as diferentes forças sociais existentes
e com isso proporcionar a realização das funções sociais da cidade.
Os conflitos pela apropriação dos bens e serviços dão à exata medida do quadro
existente nas cidades. Segundo Silva, esse processo acarreta a deterioração do ambiente
urbano, provocando desorganização social, com carência de habitação, desemprego,
problemas de higiene e de saneamento básico, modifica a utilização do solo e transforma a
paisagem urbana (SILVA, 2006).
Isto ocorre porque cada um pretende obter para si maiores vantagens, de modo
que se faz necessário à presença estatal. O Estado, além de normatizar o acesso das
pessoas aos bens e serviços disponíveis na cidade, deve coordenar os múltiplos esforços
para promover o seu desenvolvimento, sendo este o interesse maior de todos aqueles que
habitam a cidade.
Portanto, justificada a necessidade de criação jurídica para a resolução do
problema da ocupação e uso do espaço, que se encontra em desarmonia. A função do
direito é intervir no espaço, ditando normas de como “deve ser”, pois os indivíduos na sua
ânsia desmedida por se apropriar dos bens não conseguem incrementar por suas próprias
vontades um agir e pensar coletivo.
O alcance do interesse público, aquele que satisfaria ao desejo de todos só
encontra força para sua concretização somente por meio de uma “mão forte”, contrária a
“mão invisível” de Smith, que se sobreponha a todas as vontades individuais. Tal força é
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
delegada ao Estado, por um ato de pura necessidade e racionalidade. Assim, o Estado
ganha o poder de decifrar o que seria esse interesse público.
Criado para, supostamente, atender a esse interesse, as ações estatais ganham
respaldo e legitimidade. E como forma de implementar as ações e transformações na
sociedade que seriam do desejo de todos, o Estado dispõe do direito enquanto instrumento
de força capaz de fazer acontecer as vontades propostas pela sociedade e interpretadas
Estado.
O direito deve, seguindo este raciocínio, ordenar a ocupação e o uso da cidade
para o alcance do interesse público. O interesse público é o aspecto aglutinador e
legitimador da atuação do Estado nos espaços da cidade, o qual encontra seu fundamento
na própria ordem jurídica. Ela instituiu a ordenação do espaço como meio de garantir o bem-
estar da população, conforme Silva:
Em uma cidade desordenada esses usos desenvolvem-se promiscuamente, com grande prejuízo ao bem-estar da população. Ordenar esses usos é um dos meios de realizar a exigência constitucional de que a Política Urbana vise a garantir o bem-estar dos habitantes da cidade [...]. (SILVA, 2006, p.270)
Meirelles vai mais longe e após justificar a necessidade de intervenção do Poder
Público na cidade, agindo imparcialmente, impondo restrições à organização do espaço,
aponta uma suposta essência do ser humano que é de se apropriar dos bens
individualmente sem se preocupar com o próximo, afinal, segundo o autor: “o egoísmo é da
natureza humana” (MEIRELLES, 2001), fato que ocasiona a indispensável intervenção de
um poder supremo para promover o interesse da coletividade.
Por este viés, fica acentuada a situação de urgência de intervenção urbana para
restabelecer a ordem ao espaço urbano. A ordem urbana tem como parâmetro o disposto
em lei, assim à operação consiste em enquadrar as situações sociais ao modelo do que
previamente definido. Portanto, a cidade do direito é um local de problemas e desordens,
onde é imperioso intervir para transformá-la.
A transformação se opera, então, convertendo a “cidade ilegal”, aquela fora dos
padrões jurídicos, na “cidade legal”, considerada “boa”, “justa” e “sustentável”, segundo os
novos padrões urbanísticos. Para realizar tal conversão, o Poder Público necessita
consolidar seu domínio sobre o território e a primeira operação necessária é definir os
limites do urbano para poder separá-lo da sua negação, o rural.
As operações de separação e classificação do território são operações de poder,
tem por objetivo fixar determinada forma de poder sobre o território. A separação da parte
urbana da parte rural demonstra esta relação no sentido de que os critérios utilizados são
passíveis de discussões, pois não tem a pretensão de atender as demandas das pessoas
que vivem nessas áreas as quais passam a ter suas “práticas sociais” limitadas pelo critério
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
classificatório pretensamente científico, cuja arbitrariedade não está tão claramente
demonstrada18. Observa-se que o objetivo de divisão e delimitação do espaço pelo direito,
assim como os procedimentos realizados por outras ciências, tem por finalidade aumentar o
controle do Poder Público sobre o espaço.
5 CONCLUSÃO
Pensar a cidade para além de sua demarcação formal é um esforço reflexivo
com vistas a perceber como se estabelece relação entre as diferentes formas de organizar o
território na cidade, a formal instituída nos documentos legais e aquelas elaboradas e
vivenciadas pelos diferentes grupos sociais, e, por esse caminho questionar as políticas
públicas pensadas de maneira universalizante para cada parcela da área rural ou urbana do
município.
Por vez, os estudos jurídicos reconhecem a existência de conflitos pela
apropriação e uso do solo urbano, porém acreditam que uma intervenção estatal eficaz
resolveria o problema, uma vez que o interesse público considerado superior às disputas
individuais atenderia aos anseios de todos aqueles que vivem na cidade. Esta maneira de
perceber a cidade inibe qualquer tentativa de vislumbrar os interesses específicos dos
diferentes agentes sociais os quais disputam o direito de representar e ordenar o seu próprio
território.
Como visto a cidade para o direito é pensada sempre como espaço de
intervenção no qual o Estado atua com vista a promover o interesse público descrito no
plano. O instrumento chave para a definição do que seria este desejo oculto de toda a
sociedade local, considerado único modo possível de conferir a tão desejada ordem ao
espaço da cidade.
Assim, tomando para si, a função de ordenar o uso do espaço na cidade, o
Estado institui instrumentos políticos e jurídicos mediante os quais desempenhará esta
função, porém o faz, primeiramente, utilizando-se de um projeto único de cidade criado a
partir da separação da área do município em duas grandes áreas de intervenções e
repartição de competência, a rural e a urbana. Para além do rural e do urbano, a cidade
vivencia uma infinidade de cidades.
Portanto, a fragmentação do espaço em categorias estanques e apartadas é o
primeiro passo para o controle sobre a base física da cidade e das relações que se erigem
sobre ela, o segundo são as ações propriamente ditas as quais têm seu fundamento no
18
Sobre a classificação arbitrária do território da cidade em rural e urbano ver: LIMA, Rosirene Martins Lima. O rural no Urbano: Uma análise do processo de produção do espaço urbano de Imperatriz- AM. Ética, 2007 e VIEIRA, Judith Costa. A cidade real na cidade formal: um estudo sobre a construção da territorialidade do quilombo do Maicá em Santarém-Pará. Manaus: UEA, 2008. (Dissertação defendida ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas).
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
planejamento urbano onde são desenhados os objetivos supostamente universais dos
“citadinos”.
O planejamento urbano pressupõe a construção de um consenso entre os
grupos sociais, consenso este, por vezes, construído pela força impositiva dos dispositivos
legais e tomando por base os limites e as formas territoriais determinadas pela lei,
desencadeando um conflito entre o “modelo legal” e as formas espaciais que os grupos
escolhem para viver, já que os laços de solidariedade e cooperação dos grupos sociais não
encontram seus limites delimitados pela ficção legal.
Por este prisma, a cidade aparece mais como um verdadeiro campo social em
conflito, onde diversas forças disputam o poder de controle sobre o espaço. Assim, se de
um lado tem-se a atuação estatal impondo uma maneira de ordem sobre o espaço da
cidade, através do planejamento, do outro, percebe-se grupos sociais projetando uma
peculiar forma de viver sobre o espaço.
Assim, se o planejamento é o instrumento estatal capaz de transformar espaços
estriados com subjetividades em espaços lisos homogeneizados e controlados, há uma
reação a ele no sentido de recriação dos territórios sociais na cidade, onde os espaços são
preenchidos de sentidos e valor pelos grupos ao mesmo tempo em que estes territórios
recriam e refletem o modo de vida desses mesmos grupos (GUATARRI, 1985, p.116)
Apesar da incorporação de termos como “gestão democrática” da cidade cada
vez mais presente nos instrumentos normativos, os procedimentos que se arrogam como
realizadores da gestão democrática da cidade, como por exemplo, o planejamento urbano,
devem ser observados com cautela, pois a simples adoção dos mesmos não significa que a
totalidade dos interesses nos rumos na cidade, esteja, efetivamente, sendo incorporada do
processo de tomada de decisão
Desse modo, a imposição da idéia de planejar tem como suporte uma
necessidade de por ordem no espaço das cidades. Contudo, o que ocorre, não é falto de
ordem na cidade, pois se explicássemos os muitos fenômenos de ocupação do espaço por
este viés, seríamos obrigados a pressupor a existência de uma única ordem a coordenar o
imaginário social, quando em verdade o que se passa é que cada grupo possui uma ordem
própria, objetivos e interesses que determinam a maneira como tais grupos se apossam da
terra, recurso natural, base física de sobrevivência, e constroem seus respectivos territórios.
A visão que coloca sempre em primeiro lugar o fato de que a ocupação humana
se deu de forma desordenada por falta de ordem institucional impede de procurar entender
os fatores sociais que motivam as referidas ocupações, bem como, a ordem embutida em
cada uma delas, afinal de contas, para se relacionarem entre si os homens criam normas
sociais que dirigem suas condutas, sua ação sobre o mundo material.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
A organização dos grupos sociais por meio de identidades coletivas denota uma
forma de expressar por meio de suas lutas, suas leituras sobre a cidade e a defesa de seu
projeto de ocupação do espaço social. Portanto, a etnicidade construída por tais grupos
possui um caráter reivindicativo, estabelecendo “novas” formas de relacionamento político
na cidade.
Portanto, a cidade é construída e lida por distintos agentes, os quais nem
sempre se colocam de forma harmônica. Se de um lado, a cidade se faz pensar pelos
instrumentos jurídicos; por outro, se faz pela emergência de novas categorias políticas no
espaço urbano, que reivindicam o direito de ordenar e deter o controle sobre seus próprios
territórios, e somente um estudo das situações específicas e concretas e capaz de
desvendar a ordem e o sentido da cidade para cada grupo.
REFERENCIAS
ALFONSIN. Betânia de Moraes. Política de Regularização fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade. In. FERNANDES, Edésio (org). Direito Urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey,2000. ALFONSIN, Betânia de Moraes; FERNANDES, Edésio (Orgs). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. ARANTES, Otilia et. al. A Cidade do Pensamento Único. 3ºed. Petrópolis- RJ: Vozes, 2000. ASCERALD, Henri. O Zoneamento Ecológico-Econômico da Amazônia e o Panoptismo Imperfeito. Revista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, s/d, PP. 53-75. BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, pp. 25-67. BOURDIEU, Pierre. A força do direito: Elementos para uma sociologia do campo jurídico. In. BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. (tradução Fernando Tomaz) 8ºed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. ______. A identidade e a representação: Elementos para uma reflexão crítica da idéia de região. In. BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. (tradução Fernando Tomaz) 8ºed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. ______. Sobre o Poder Simbólico. In. BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. (tradução Fernando Tomaz) 8ºed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As Cidades da Cidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1998.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
BRASIL. LEI Nº. 10.257, de 2001. Institui o Estatuto da Cidade. BRASIL, DECRETO Nº. 6040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de Política Pública em direito. In. BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e vinculação do legislador: Contributos para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2ª Ed. Coimbra Editora, 2001, pp. V- XXXII. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 2ª ed. ver.atual. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006. COSTA, Heloísa Soares de Moura Costa; BRAGA, Tânia Moreira. Entre a conciliação e o conflito: dilemas para o planejamento e a gestão urbana e ambiental. In ASCERALD, Henri (org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relumé Dumará: Fundação Heinrich Boll, 2004. COUTINHO, Ronaldo. A mitologia da cidade sustentável no Capitalismo. In. COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (Orgs). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (Orgs). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. CYMBALISTA, Renato. Política urbana e regulação urbanística no Brasil: conquistas e desafios de um modelo de construção. In. BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008. DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Planos Diretores na Amazônia: participar é um direito. São Paulo: Instituto Pólis, 2006 FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. Terras indígenas nas cidades: Lei Municipal de desapropriação nº302. Aldeia Beija-flor, Rio Preto da Eva, Amazonas. Manaus: UEA Edições, 2009. FERNANDES, Edésio (Org). Direito Urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey,2000. FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos informais: o grande desafio dos municípios, da sociedade e dos juristas brasileiros. In. ROLNIK, Raquel. [et. al.] Regularização Fundiária de assentamentos informais urbanos. Belo Horizonte: PUC Minas Virtual, 2006. FERNANDES, Edésio. Direito e Gestão na Construção da Cidade Democrática no Brasil. In. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As Cidades da Cidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. FERNANDES, Edésio. Legalizando o Ilegal. In. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As Cidades da Cidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: curso no College de France (1975-1976): Tradução Maria Ermantina Galvão.- São Paulo: Martins Fontes, 1999- (Coleção Tópicos), 2005. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 22ª ed.Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. GUATTARI, Félix. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Revista de Estudos Regionais e Urbanos, ano V, p.109-120, 1985. LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico: Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. LIMA, Rosirene Martins Lima. O rural no Urbano: Uma análise do processo de produção do espaço urbano de Imperatriz- AM. Ética, 2007. LIMA, Rosirene Martins Lima. Conflitos Sócio-ambientais urbanos: o lugar como categoria de análise da produção de Curitiba/Jardim Icaraí. Tese apresentada ao Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná, 2006. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 14ª ed. Ver. Atual e ampl. Malheiros Editores: São Paulo, 2006. MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: Planejamento Urbano no Brasil. In. ARANTES, Otilia et. al. (Org.) A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando Consensos. 3ºed. Petrópolis- RJ: Vozes, 2000 MARQUES, Olavo Ramalho. Entre a Avenida Luís Guaraha e o Quilombo do Areal: estudo etnográfico sobre memória, sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre/RS. In. Prêmio ABA/MDA. Territórios Quilombolas/ Associação Brasileira de Antropologia. Organizador. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2006. MEIRELELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12ª ed. atual. Por Célia Maria e Prendes e Márcio Schneider Reis. Malheiros Editores: São Paulo, 2001. MIAILLE, Michel. Introdução Critica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Editora Estampa, 1994. ______. Desordem, Direito e Ciência. In. PLÚRIMA. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Porto Alegre: Síntese, v.6, 2002- (Coleção Acadêmica de Direito, v.24) OLIVEIRA, João Pacheco de Oliveira. Uma etnologia dos “índios misturados”: situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In. OLIVEIRA, João Pacheco de Oliveira. A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Contra Capa Livraria: Rio de Janeiro, 1999. OSÓRIO. Letícia Marques. Estatuto da cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2002. ROLNIK, Raquel. O que é a Cidade?. São Paulo: Brasilense, 2004. (Coleção primeiros passos; 203) SAULE JUNIOR, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: Novos Horizontes para a Reforma Urbana. São Paulo, Polis, 2001, xxp (Cadernos Polis, 4)
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
SAULE JUNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade e o Plano Diretor: Possibilidades de uma nova ordem legal urbana justa e democrática. In. OSORIO. Letícia Marques. Estatuto da cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectiva para as Cidades Brasileiras. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2002. ______. Possibilidades de aplicação do marco legal urbano brasileiro na proteção dos direitos socioambientais das populações indígenas. In. BRAVO, Álvaro Sánchez. Cidades, Medioambientes y Sostenibilidade. ArCiBel Editores: Espanha, 2007. SCHAFER, Gilberto. Usucapião Especial Urbana: da Constituição ao Estatuto da Cidade. In. ALFONSIN, Betânia de Moraes; FERNANDES, Edésio (Orgs). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. SHIRAISHI NETO, Joaquim. “Crise” nos padrões jurídicos tradicionais: O direito em face dos grupos sociais portadores de identidade coletiva. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. ______. Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das quebradeiras de coco babaçu e normas correlatas. Manaus: PNCSA, Fundação Ford, 2006. ______. Reflexão do direito das “Comunidades tradicionais” a partir das declarações e convenções internacionais. In Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. Ano 02. Nº 3. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura / Universidade do Estado do Amazonas, 2006, pp. 177-195. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª ed. ver. Atual. Até a Emenda Constitucional n52, de 8.3.2006. Malheiros Editores: São Paulo, 2006. ______. Direito Urbanístico Brasileiro. 4º ed.rev.atual.Malheiros Editores: São Paulo, 2006. VAINER, Carlos B. Cidades, Cidadelas e a Utopia do Reencontro- uma reflexão sobre tolerância e urbanismo. Caderno do IPPUR/UFRJ. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ano 1, n.1. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1986. VIEIRA, Judith Costa. A cidade real na cidade formal: um estudo sobre a construção da territorialidade do quilombo do Maicá em Santarém-Pará. Manaus: UEA, 2008. (Dissertação defendida ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas).
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
AS LEIS DO BABAÇU LIVRE E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: uma análise do conflito de interesses nas disputas socioambientais das regiões urbanas do Maranhão
Luane Lemos Felicio AGOSTINHO1
RESUMO
A construção do direito sempre se deu por meio das disputas de interesses dos grupos que formam a sociedade. A propositura do Projeto de Lei Estadual nº 154/08, visando excepcionar a proibição de derrubada de palmeiras nas áreas urbanas de regiões metropolitanas do Estado do Maranhão evidencia o conflito existente entre a legalização dos interesses econômicos e a preservação do meio ambiente e do modo de vida das comunidades tradicionais de quebradeiras de coco babaçu nas regiões urbanas do Estado. Palavras-chaves: Desenvolvimento Econômico; Conflito Socioambiental; Comunidades Tradicionais.
ABSTRACT The construction of the law always made by the disputes of interests of groups that form the society. The commencement of the Project of State Law nº 154/08, derogations to the ban on felling of palm trees for babassu in urban areas of metropolitan regions of the State of Maranhão highlights the conflict between the legalization of economic interests and preserve the environment and how of life of traditional communities of babassu coconut quebradeiras in urban regions of the state. Keywords: Economic Development, Conflict Socio environmental; Traditional Communities.
1 INTRODUÇÃO
O discurso ambiental tem invadido o campo jurídico, social, político e econômico
com força suficiente para orientar as ações e tomadas de decisões nas mais diversas áreas
do relacionamento humano. Certamente, é a bandeira ecológica a que ainda consegue
agremiar os mais heterogêneos grupos e interesses, independentemente de sua posição
político-ideológica, na medida em que faz às vezes de um discurso universal contra o qual
ninguém tem nada a proclamar. Porém, sob os interesses universais dos instrumentos
legais no âmbito do Direito Ambiental se “escondem” seus particularismos.
O campo do discurso ambiental, como qualquer outro espaço de relações
sociais, é também um lugar de conflitos de interesses e de lutas pela afirmação das
1 Advogada. Aluna do Mestrado em Direito Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Bolsista da FAPEMA. Trabalho desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa-CNPq: “O Direito e as Quebradeiras de Coco”, coord. Prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
necessidades dos grupos que são diretamente influenciados (e influenciadores) do meio
ambiente.
Um dos principais palcos de conflito, na ótica ambiental, é a disputa pelos
espaços. Nas regiões rurais, ela é travada em função do avanço das monoculturas e da
pecuária, que invadem os territórios formando grandes ilhas de interesses homogêneos e
dominantes.
Já nas regiões urbanas a disputa é travada entre a preservação e a conquista. A
preservação diz respeito não só às florestas, mas também, como no presente caso, de
proteção da vida e da cultura de comunidades inteiras, que se relacionam com o meio
ambiente como fonte primeira de seu sustento e reprodução.
A conquista, por sua vez, baila no ritmo do progresso e do mercado, que ditam a
relevância ou a prevalência de certos interesses sobre outros. O pensamento evolucionista
do mercado é sempre de alargar, abranger, alcançar espaços maiores e um maior número
de oportunidades e ofertas.
Tais conflitos não raro saem da esfera do particular e adentram o mundo jurídico
através da elaboração de leis e normas que buscam legitimar os diferentes interesses. A
busca se torna, portanto, não apenas pelo espaço físico, mas também pelo espaço político
de cada grupo e seu reconhecimento diante da sociedade.
Na realidade maranhense, em especial na região dos cocais, as políticas
governamentais surgem com forte incentivo ao mercado de commodities2. Já na área
metropolitana de São Luis, o interesse estatal atualmente tem se voltado para a
implementação de grandes projetos industriais, além da expansão do mercado imobiliário.
Essas políticas, apesar de serem o ícone da intenção desenvolvimentista do
Governo e do desejo da economia interna, não atendem às perspectivas das comunidades
tradicionais que vivem da cultura extrativista. A bem da verdade, o extrativismo pouco
aparece nas estatísticas e políticas governamentais, apesar da relevância dessa atividade
para a reprodução física e social dessas comunidades.
É nesse contexto que, lutando contra a maré mercantil, surgiram as Leis do
Babaçu Livre, as quais “tradicionalmente têm mantido aberto o uso do recurso natural sob a
modalidade de uso comum” (ALMEIDA, 2005, p.30). Mas para além da garantia e da
manutenção do modo de produção e sustento destes povos tradicionais maranhenses,
através do livre acesso, tais leis têm a intenção de fazer inserir os interesses dessas
comunidades no circuito político-legal, trazendo à evidência seus direitos, a ponto de
poderem alcançar a altura de voz necessária para dialogar com os demais setores da
sociedade em pé de igualdade.
Portanto, a aprovação de uma Lei Estadual capaz de garantir a preservação das
2 A respeito do avanço do mercado de commodities sobre as culturas extrativistas da região dos cocais ver ALMEIDA, 2005.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
matas nativas de palmeiras de coco babaçu tem não só o mote ambiental conservacionista,
mas também a forte mensagem política do reconhecimento e afirmação dos povos
tradicionais que a mantêm em prol de seus direitos.
Recentemente, entretanto, tais conflitos de interesse retornaram ao campo
legislativo, quando a Assembléia Legislativa maranhense propôs alteração para a Lei
Estadual nº 4734/86, buscando inserir em seu texto uma exceção à proibição de derrubada
de palmeiras, especificamente para áreas urbanas. A justificativa do projeto de lei é
expressamente “possibilitar o desenvolvimento econômico dessas áreas”. Tal realidade nos
remete a uma indagação: estará o Estado maranhense aquém ou além do discurso
socioambiental?
Essa conjuntura de conflitos de interesses e afirmações sociais faz parte do
objeto do presente estudo, no qual buscamos analisar a construção do direito como um
instrumento social dinâmico.
2 A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DA LEI ESTADUAL Nº 4734/86
As Leis do Babaçu Livre surgiram da necessidade das populações tradicionais
de quebradeiras de coco babaçu de obstar o avanço da devastação dos babaçuais, além da
reivindicação pelo livre acesso a referidas áreas para manutenção do seu modo de vida
extrativista. Tais pontos jamais poderiam andar desvencilhados um do outro, em virtude da
impossibilidade de se lutar pelo acesso a um recurso natural que inexiste.
O primeiro artigo das leis municipais, portanto, faz referência ao livre acesso às
palmeiras de babaçu concedido às “quebradeiras de coco e suas famílias, que as exploram
em regime de economia familiar e comunitária”. O segundo estabelece a proteção das
palmeiras contra corte ou qualquer ato que as danifique. Os artigos imediatamente
seguintes dispõem sobre as penalidades a serem aplicadas pelo poder público e a
responsabilidade pela fiscalização do cumprimento destas leis.
O estopim para a produção das leis foi o crescente cercamento e privatização
dos campos. A fim de acompanhar a lógica do mercado, as grandes fazendas e latifúndios
do Estado passaram a desbastar as áreas de palmeiras para implantar os campos e pastos
da pecuária leiteira e de corte. Em seguida vieram as monoculturas da soja e arroz.
Atualmente os conflitos são gerados pelas commodities (ALMEIDA, 2005).
Para além do discurso ambiental, a aprovação das Leis do Babaçu Livre rompe o
mundo jurídico como uma conquista política, afirmativa dos modos de “viver, fazer e criar”3
dessas comunidades tradicionais.
Mas as conquistas pontuais dos municípios e regiões também ocorreram no
3 Segundo a definição de cultura estipulada no art. 205 da Constituição Federal brasileira.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
âmbito estadual. A Lei Estadual foi aprovada em 1986 e, apesar de não constar a previsão
legal do livre acesso às comunidade de quebradeiras de coco babaçu, a norma instituiu a
proibição da derrubada das palmeiras4.
Em meados de 2008, porém, a Assembléia Legislativa propôs alteração para o
primeiro artigo da Lei Estadual nº 4734/86. O Projeto de Lei nº 154/2008, de autoria do
Deputado Edivaldo Holanda (PSC), propunha em um único artigo:
Art. 1º. O caput do art. 1º da Lei nº 4734/86 passará a ter a seguinte redação: Fica expressamente proibida a derrubada de palmeiras de babaçu em todo o território do Estado do Maranhão, exceto em áreas urbanas de municípios que componham regiões metropolitanas e em cidades com população acima de 500.000 habitantes.
O projeto de lei excetua as limitações impostas ao corte das palmeiras para as
áreas urbanas do Estado. Evidentemente, a exceção aplica-se às áreas fortemente
ocupadas, onde se desenvolvem os grandes nichos de mercado e indústria.
No parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final da
Assembléia Legislativa o interesse do Projeto de Lei ficou explícito na seguinte frase: “o
intuito do projeto é possibilitar a derrubada de palmeiras de babaçu nas áreas urbanas do
Estado do Maranhão, a fim de possibilitar o desenvolvimento econômico do Estado” (2008,
p.01).
Antes do referido Projeto de Lei e no mesmo ano (2008), o Deputado Estadual
Tatá Milhomem (DEM) havia apresentado outro projeto com mesmo teor, denominado pelos
movimentos sociais de “morra o babaçu”, o qual foi aprovado pela Assembléia, mas recebeu
veto integral do então Governador do Estado.
Em defesa ao seu Projeto de Lei o Deputado afirmou “que é preciso evitar que o
crescimento de uma cidade não aconteça porque se tem de preservar uma palmeira”
(HELUY, 2008).
A exceção à regra demonstra o conflito existente. De um lado a luta pelo
reconhecimento das práticas extrativistas e preservação do recurso base do modo de vida
das comunidades tradicionais, do outro o interesse em diminuir as limitações para o
crescimento e implantação de grandes empreendimentos econômicos, industriais e
imobiliários nos centros urbanos.
De acordo com HANLEY, SHOGREN e WHITE (1997 apud VARELA, 2008,
p.252) “cada ação econômica gera algum efeito sobre o ambiente e cada mudança no
ambiente gera um impacto sobre a economia”5. Essa co-relação entre economia e meio
ambiente tem ditado o caminho pelo qual hão de trilhar as relações humanas. O fato é que
4 Sobre o surgimento das Leis do Babaçu Livre e seu fundamento político e social ver SHIRAISHI NETO, Joaquim. Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das Quebradeiras de Coco Babaçu e normas correlatas. Manaus: PPGSCA-UFAM/Fundação Ford, 2006 5 Tradução da autora.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
nem sempre se vislumbram os verdadeiros impactos ambientais causados pelas chamadas
externalidades de mercado, uma vez que frequentemente se pensa o ambiente dissociado
do humano.
Portanto, mais do que prejuízos econômicos para uma parcela da população que
mantém sua reprodução física deste tipo de atividade, os danos neste caso também são
contabilizados na esfera social e cultural, com o impedimento da reprodução dos modos de
fazer e criar dessas populações tradicionais e o surgimento dos conflitos sociais gerados em
função do desequilíbrio da produção extrativista e do não reconhecimento das suas práticas
tradicionais.
Com efeito, as externalidades do mercado não estão somente consubstanciadas
no desmatamento, no lançamento de poluentes ou na má destinação de resíduos sólidos.
Os impactos sociais de uma economia homogeneizadora, que tendem a competir com
outros estilos de vida diferenciados e marginalizados, são a principal externalidade negativa
das ações econômicas.
Por outro lado, o Projeto de Lei, tal como foi apresentado, revela graves
disfunções com relação ao direito ambiental e urbanístico, apresentando-se como um
retrocesso legislativo e principiológico, como passaremos a analisar mais detidamente.
2.1 Aspectos ambientais e urbanísticos do PL nº 154/08
Ordem urbanística é o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos. A ordem urbanística deve significar a institucionalização do justo na cidade. Não é uma “ordem urbanística” como resultado da opressão ou da ação corruptora de latifundiários ou especuladores imobiliários, porque aí seria a desordem urbanística gerada pela justiça. (MACHADO, 2009, p.392)
A ordem urbanística teoricamente seria a conjuntura normativa que possibilitaria
ordenar o espaço urbano de modo a permitir a construção de um ambiente coletivo capaz
de atender aos interesses mínimos dos diversos grupos sociais que o compõe, como bem
afirma Machado no trecho acima.
Mas os espaços urbanos na atualidade têm sido elaborados de modo antagônico
a esse ideal. Apesar do enorme esforço teórico e jurídico da construção de um “direito à
cidade”, principalmente após o advento da CF e do Estatuto das Cidades (Lei nº 10257/01),
que permitiu grandes avanços no debate urbanístico, este ainda está dissociado do discurso
ambiental e da própria realidade urbana (SHIRAISHI NETO, 2008, p.02).
Em outras palavras, há várias cidades em uma só, na medida em que a cidade é fragmentada e que cada fragmento expressa as diferenças espaciais e os interesses em jogo. A formação e organização do território revelam uma contínua luta de dominação e de insubordinação. Nessa perspectiva, o espaço urbano aparece como
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
um verdadeiro campo de forças diversas e antagônicas, que a todo instante se encontra em conflito. (SHIRAISHI NETO, 2008, p.04-05)
Teoricamente, portanto, acredita-se na possibilidade da ordenação do espaço
urbano a partir da homogeneização de seu aspecto. Porém, a realidade é outra. As cidades
são formadas por guetos e nichos de interesses que, como afirma SHIRAISHI NETO, se
transformam em um incessante “campo de forças diversas e antagônicas”.
Ou seja, cada espaço urbano ou aglomeração humana é um composto de
grupos e de interesses diversos, que nem sempre se coadunam. Portanto, quando se pensa
um espaço urbano, ideal seria que se pensasse da forma mais aberta possível, a fim de se
possibilitar, aos inúmeros grupos que o compõe, a manutenção mínima de seus direitos.
A Lei Estadual nº 4.734/86, em sua redação original, apresenta a proibição de
derrubada das palmeiras. Porém, nos incisos que se seguem ao caput do artigo primeiro,
são elencadas as exceções à referida regra, as quais obedecem a lógica do interesse social
e garantem a manutenção de parte da vegetação para sua reprodução.
Certamente, ao estabelecer exceções o legislador procurou vislumbrar o
interesse de outros grupos, inclusive os econômicos, buscando não inviabilizar a utilização
das propriedades, desde que racionalmente utilizadas.
Por sua vez, o Projeto de Lei nº 154/08 veio de encontro à lógica do
planejamento aberto, estabelecendo exceção à regra da proibição de derrubada de
palmeiras para as áreas urbanas, de modo genérico, homogêneo e sem qualquer motivação
específica.
A expressão “exceto em áreas urbanas de municípios que componham regiões
metropolitanas”, em termos do direito urbanístico, desfaz qualquer pretensão de
planejamento ou adequação à realidade local. Ou seja, não há nada que limite ou impeça a
derrubada, basta que a área seja dentro de um perímetro urbano.
O Projeto fere ainda a competência municipal para legislar sobre assuntos de
interesse local. A exceção é estabelecida às “áreas urbanas de municípios que componham
regiões metropolitanas e em cidades com população acima de 500.000 habitantes”. Mas
essa mesma especificação é feita pelo Código Florestal (art. 2º, parágrafo único) para
determinar a obediência do corte da vegetação às normas estabelecidas em leis municipais
de uso do solo, ou seja, aos interesses locais.
Com efeito, a Constituição Federal estabeleceu a competência municipal para
“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e
controle de uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (artigo 30, inciso VIII). A
permissão da Lei Estadual para a derrubada das palmeiras nas áreas urbanas
metropolitanas retira do Município a faculdade de promover seu “adequado ordenamento”
nos termos e no limite de seus interesses e realidade social.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
Além da afronta à competência municipal e da impossibilidade do planejamento,
em uma análise ambiental propriamente dita, a exceção estabelecida pelo Projeto é
estranha ao normalmente estabelecido pelas normas ambientais que permitem o
desmatamento de uma área protegida apenas quando tal ação tiver uma contrapartida
social, ao exemplo do artigo quarto do Código Florestal (art.4º):
A supressão da vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativamente técnica e locacional ao empreendimento proposto.
Não há nenhuma previsão, portanto, em termos ambientais, de uma exceção
feita da forma do PL nº 154/08, a qual excetua uma regra tipicamente protetiva apenas em
função da área urbana. Pelo contrário, o planejamento do desbaste em áreas urbanas é
ainda mais rigoroso, pois são nessas áreas que ocorrem os maiores riscos à cobertura
vegetal, criados pelos interesses expansionistas próprios das cidades.
Segundo o Ministério Público Estadual6, há ainda um agravante na apresentação
do Projeto de Lei em referência: ele viola o princípio da “proibição do retrocesso”:
Tal violação acontece por que a exceção apresentada é diferente e desproporcional daquelas já existentes na própria lei estadual nº 4734/86. A exceção criada não está fundamentada em objetivos sociais que, pela sua dimensão, justificariam o sacrifício do direito ao ambiente. Pelo projeto, qualquer interesse, ainda que puramente pessoal, ou por espírito de pura destruição, estará albergado nessa norma. Tal situação caracteriza retrocesso no que foi alcançado de direito social para a proteção do babaçu, cuja importância transcende os legítimos interesses do extrativismo.
Pelo dito princípio, o direito como um todo não pode retroceder suas conquistas,
especificamente no tocante aos direitos sociais. O amparo legal proporcionado pelo
ordenamento às mais diversas situações sociais deve ser progressivo, à medida que
estende seu alcance sobre as relações humanas.
A permissão da derrubada de palmeiras em áreas urbanas, portanto, sem
qualquer limitação ou compensação, é um retrocesso à preservação da cobertura vegetal e
à garantia do uso racional da propriedade privada. Para além disso, o impacto cultural e
social sobre as comunidades tradicionais é incalculável.
3 OS IMPACTOS DA ALTERAÇÃO SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS
A despeito das incongruências legislativas e jurídicas do Projeto de Lei nº154/08,
o maior impacto de sua eventual aprovação será em função das comunidades tradicionais
6 Ofício nº 286/2008 de 02/09/08 da 3ª. Promotoria de Justiça Especializada na Proteção ao Meio Ambiente, Urbanismo e
Patrimônio Cultural de São Luis, remetido à Comissão de Meio Ambiente, Minas e Energia da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão, referente ao “Projeto de Lei nº 154/08. Inconstitucionalidade”
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
que se utilizam desses recursos naturais para a sua reprodução física e social.
As quebradeiras de coco babaçu, reconhecidas como comunidade tradicional
para fins manutenção e preservação do seu modo de vida, há muito travam batalhas nos
campos político e legislativo com o intuito de garantir o acesso e uso comum das palmeiras
de coco babaçu e sua preservação contra o corte e o uso irracional.
Como dito ao início deste estudo, a edição de leis e a penetração no
ordenamento jurídico por parte destes grupos possuem não só a intenção de salvaguardar
seus direitos, mas também de permitir a inserção destes grupos no campo dos debates
onde os direitos são construídos e conquistados.
Trata-se do reconhecimento das práticas destes grupos como legítimas e
legitimamente capazes de concorrer com os interesses mercantis e comerciais na luta pelo
espaço físico e político dos aglomerados humanos. Trata-se do pronunciamento oficial
acerca de seus interesses e de sua percepção na arena do poder social.
Assim, antes de tudo e de mais nada, a discussão em torno do Projeto de Lei
Estadual nº 154/08 se projeta na conquista do espaço de poder político que caberá ao grupo
que alcançar firmar seus objetivos por intermédio da alteração ou manutenção da Lei
Estadual.
Mas afora o embate político desenvolvido na ponta do iceberg, os reflexos
sociais escondem-se abaixo da superfície polida do ordenamento jurídico. O impacto social
e econômico a ser sofrido pela eventual aprovação da alteração pretendida excedem o
debate do direito e passam ao modo real, do dia a dia, onde centenas de famílias são
diretamente influenciadas pelas políticas públicas desordenadas.
Em se tratando da permissão do corte nos municípios de regiões metropolitanas
pode-se considerar que inexiste danos às comunidades tradicionais, uma vez que imagina-
se estarem estas comunidades nas zonas rurais e não em áreas urbanas.
Entretanto, na periferia das “grandes” regiões metropolitanas maranhenses ainda
há um número considerável de famílias que se utilizam do extrativismo como fonte de renda
complementar ou até mesmo principal. Em algumas áreas da região de Imperatriz, bairros
inteiros vivem da atividade de coleta e quebra do coco babaçu, motivo pelo qual também foi
aprovada naquele Município uma Lei do Babaçu Livre. Há, porém, uma forte tendência em
homogeneizar a realidade dos diversos grupos sociais que compõe os espaços urbanos.
Por outro lado, a lei não é feita apenas para o momento presente, mas para se
perpetuar no tempo até que interesses supervenientes a revoguem. Em uma análise
bastante singela da progressão do interesse mercantilista de nossa era globalizada,
percebemos que a pretensão do mercado é expandir, conquistar, agregar e consumir. Desta
feita, a tendência para o avanço da derrubada das palmeiras segue a mesma sorte.
Tomemos como exemplo o mercado imobiliário, que está em expansão na
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
região de São Luis. Quanto maior for a necessidade do mercado em expandir suas
fronteiras, lançando novos e mais modernos empreendimentos imobiliários, maior será a
quantidade de áreas devastadas e, proporcionalmente, de impacto social gerado sobre as
comunidades tradicionais que usam o recurso natural para sua sobrevivência.
De igual modo, a tendência do mercado imobiliário, com o inchaço da cidade e a
ocupação das regiões centrais, é expandir sua área de atuação para as periferias onde
ainda haverá espaço para construir e o metro quadrado será mais atrativo para as
construtoras.
Esse fenômeno já encontra guarida na própria política habitacional do Governo
Federal que tem incentivado a aquisição de casa própria pela classe média. Em busca de
maiores lucros e custos mais baixos, as construtoras têm projetado e executado unidades
habitacionais em bairros periféricos da cidade.
Percebe-se, então, que ao permitir a derrubada das palmeiras nas áreas
metropolitanas, o Estado estabelece a preservação da cobertura vegetal em sentido
inversamente proporcional ao crescimento econômico e urbano dos municípios, ou seja,
quanto mais crescem as áreas urbanas, menos se preservará os recursos naturais.
Esta lógica é completamente inversa a toda a intenção das normas ambientais,
que pretendem promover maior proteção aos recursos naturais quanto maior for a
possibilidade de extingui-los. Não só isto, mas também vai de encontro às tendências
modernas dos direitos sociais, que têm avançado em direção à garantia do pluralismo
cultural e da manutenção dos modos de vida dos diversos grupos sociais, em especial os
povos e comunidades tradicionais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações aqui explanadas nos conduzem a uma reflexão sobre a
propositura do Projeto de Lei Estadual nº 154/08 no sentido de nos questionarmos a respeito
da prática política da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão: estará o Estado
maranhense aquém ou além do discurso socioambiental?
A “visão” política que impulsionou a propositura do Projeto em comento
certamente está voltada para o “futuro”, ou mais precisamente, para as possibilidades do
mercado e de um pseudo “desenvolvimento econômico” das regiões urbanas, como
justificou o relatório da Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final.
Mas em termos socioambientais o Projeto apresenta-se como um verdadeiro
retrocesso nas conquistas sociais alcançadas, além de ser um contra-senso jurídico
ambiental e urbanístico.
A evidência é de que o Maranhão está bem aquém dos avanços sociais e que
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
suas políticas públicas continuam sendo instrumento de negociação de interesses
capitalistas e mercantilistas em detrimento do social.
As comunidades tradicionais têm o desafio de prosseguir na manutenção de seu
espaço, físico e político, na construção de um direito discursivo, forjado pelas conquistas
sociais em prol da preservação de seu modo de vida e de reprodução social.
A elaboração das Leis do Babaçu Livre e a apresentação do Projeto de Lei nº
154/08 é apenas uma amostra do processo da construção desses espaços a partir da
normatização dos interesses de cada grupo em nossa sociedade plural.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombos, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PPGSCA-UFAM/Fundação Ford, 2006. ______. Quebradeiras de Coco Babaçu: identidade e mobilização: legislação específica e fontes documentais e arquivísticas (1915-1995). São Luís: MIQCB, 1995. ______.; SHIRAISHI NETO, Joaquim; MARTINS, Cynthia Carvalho. Guerra Ecológica nos Babaçuais: o processo de devastação dos palmeirais, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia. São Luís: Lithograf, 2005. COASE, H. Ronald. The problem of social cost. 1968 (?) DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, vol. 162, No. 3859 (13 de dezembro de 1968), pp. 1243-1248. HELUY, Helena. Helena lidera votos contra projeto “morra o babaçu”. In: http://www.al.ma.gov.br/helenaold/paginas/doc.php?codigo1=2382. Acesso em 02 de julho de 2009. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17 ed. Malheiros: São Paulo, 2009. MARANHÃO. Lei Estadual nº 4734 de 18 de junho de 1986. Proíbe a derrubada de palmeiras de babaçu e dá outras providências. ______. Projeto de Lei nº 154/2008. Modifica a redação do artigo 1º da Lei nº 4.734 de 18 de junho de 1986. Autoria: Deputado Edivaldo Holanda. São Luis, 2008. ______. Assembléia Legislativa: Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final. Parecer nº 245/2008 de 21 de outubro de 2008. São Luis, 2008. SHIRAISHI NETO, Joaquim. A particularização do universal: povos e comunidades tradicionais em face das Declarações e Convenções Internacionais. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim (org). Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: UEA, 2007. p. 25-54.
São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
____. Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das Quebradeiras de Coco Babaçu e normas correlatas. Manaus: PPGSCA-UFAM/Fundação Ford, 2006. PNUD. Relatório do desenvolvimento humano 2004: Liberdade cultural num mundo diversificado. – Lisboa: Mensagem, 2004. ____. LIMA, Rosirene Martins. “Idealismo Jurídico” como obstáculo ao “Direito à Cidade”: a noção de planejamento urbano e o discurso jurídico ambiental. Manaus, 2008. VARELA, Carmen Augusta. Instrumentos de políticas ambientais, casos de aplicação e seus impactos para as empresas e a sociedade. Revista de Ciência Administrativa. Fortaleza, v. 14, n. 2 , p. 251-262, dez. 2008.