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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: Políticas Urbanas e Comunidades Tradicionais Dr. Joaquim Shiraishi Neto Universidade Estadual do Amazonas (UEA) Dra. Rosirene Martins Lima Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) Judith Costa Veira (Terra de Direitos) Luane Lemos Agostinho Universidade Estadual do Amazonas (UEA) Tem sido cada vez mais freqüente nas cidades brasileiras, a existência de conflitos decorrentes da ocupação de áreas de proteção ambiental. O discurso jurídico ambiental tem justificado suas ações, a partir do entendimento de que a força descomunal da cidade que se expande, acabam por engolir a "natureza". O problema ambiental ou mais especificamente, o conflito socioambiental, visto sob esse prisma aparta a sociedade da natureza e contribui para a manutenção do dualismo homem/natureza. No caso das áreas protegidas, os conflitos socioambientais resultariam da disputa envolvendo diferentes agentes pela apropriação e uso de determinados espaços e recursos, protegidos pelo Poder Público, sob o manto do direito. Essa perspectiva privilegia apenas a ótica econômica, deixando de fora a dimensão subjetiva. Os sujeitos e grupos envolvidos no problema ambiental possuem interesses e representações de mundo, mais especificamente de meio ambiente, diferentes e muitas vezes antagônicas. A análise parte do princípio de que os conflitos socioambientais decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e uso do meio ambiente. Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais urbanos, considerando a maneira como a cidade é produzida: suas contradições, diversidade de interesses e diferentes percepções. Nesse sentido, a proposta da mesa é refletir sobre os conflitos socioambientais envolvendo as discussões sobre a noção de direito ao meio ambiente como um bem difuso e o uso da cidade.

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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: Políticas Urbanas e Comunidades Tradicionais

Dr. Joaquim Shiraishi Neto Universidade Estadual do Amazonas (UEA)

Dra. Rosirene Martins Lima

Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)

Judith Costa Veira (Terra de Direitos)

Luane Lemos Agostinho

Universidade Estadual do Amazonas (UEA)

Tem sido cada vez mais freqüente nas cidades brasileiras, a existência de conflitos decorrentes da ocupação de áreas de proteção ambiental. O discurso jurídico ambiental tem justificado suas ações, a partir do entendimento de que a força descomunal da cidade que se expande, acabam por engolir a "natureza". O problema ambiental ou mais especificamente, o conflito socioambiental, visto sob esse prisma aparta a sociedade da natureza e contribui para a manutenção do dualismo homem/natureza. No caso das áreas protegidas, os conflitos socioambientais resultariam da disputa envolvendo diferentes agentes pela apropriação e uso de determinados espaços e recursos, protegidos pelo Poder Público, sob o manto do direito. Essa perspectiva privilegia apenas a ótica econômica, deixando de fora a dimensão subjetiva. Os sujeitos e grupos envolvidos no problema ambiental possuem interesses e representações de mundo, mais especificamente de meio ambiente, diferentes e muitas vezes antagônicas. A análise parte do princípio de que os conflitos socioambientais decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e uso do meio ambiente. Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais urbanos, considerando a maneira como a cidade é produzida: suas contradições, diversidade de interesses e diferentes percepções. Nesse sentido, a proposta da mesa é refletir sobre os conflitos socioambientais envolvendo as discussões sobre a noção de direito ao meio ambiente como um bem difuso e o uso da cidade.

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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

CATADORES E CARRINHEIROS: estratégias de sobrevivência em face das Políticas de Planejamento Urbano

Rosirene Martins Lima1

1 INTRODUÇÃO

Atualmente a agenda urbana tem colocado como prioridade a inserção das

cidades no mercado global As cidades vêm sendo pensadas e projetadas sob a perspectiva

de atender as demandas desse mercado. A cidade entendida como uma máquina de

produzir riquezas leva os gestores urbanos a uma disputa por investimentos e adequação

desta, aos apelos do mercado. (VAINER, 2000). Esse processo tem gerado contradições e

fragmentação do tecido urbano. As políticas urbanas orientadas segundo critérios de

competitividade e de sustentabilidade, ao valorizarem determinados espaços urbanos em

detrimento de outros, obriga parte da população que não pode pagar pelos benefícios a se

deslocar para áreas periféricas, aqui compreendidas como "fora" da centralidade do modelo.

O planejamento recorta a cidade, valorizando e desvalorizando determinados

espaços conforme os interesses em jogo no momento. No caso de Curitiba, o planejamento

organizou o impacto do crescimento populacional e o respectivo uso do solo, uma vez que

detinha a norma e o mercado imobiliário ao seu favor, induzindo o crescimento da ocupação

para áreas periféricas internas e principalmente para além dos seus limites administrativos

(MOURA, 2001). O planejamento urbano, no dizer da autora, foi extremamente eficaz na

aplicação das políticas urbanas, de modo a manter afastada de Curitiba a "pobreza".

Funcionou como uma espécie de barreira, inibindo ou mesmo impedindo as pessoas de

usufruírem dos benefícios conquistados. Hierarquizou os espaços urbanos, funcionando

como indutor de uma ocupação "seletiva" e "segregadora".

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as contradições e conflitos

identificados no processo de ocupação e expansão da cidade de Curitiba a partir das ações

e estratégias utilizadas por uma comunidade de catadores de material reciclável para

construir e se manter no lugar onde vive – uma área de preservação ambiental. A reflexão

aqui proposta toma como ponto de partida um fragmento urbano determinado, que pode ser

“enquadrado” naquilo que Wacquant(2001) denominou de espaços da “marginalidade”. Os

espaços da “marginalidade”, em oposição aos espaços da prosperidade servem para

1 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-

mail:[email protected]

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explicar as situações vivenciadas pelos moradores do Jardim Icaraí. Para eles, há “duas

cidades”: uma que vêem e outra em que vivem, sendo que esta cidade na qual vivem “não

existe oficialmente”, porque não é reconhecida e nem consta no mapa da cidade de Curitiba

Nesse sentido, a análise proposta se debruça sobre o olhar desses moradores,

que manifestam suas verdades, por meio da maneira como pensam e constroem a cidade a

partir de suas práticas sociais cotidianas. Práticas essas que se encontram inscritas para

além do Jardim Icaraí, espacializadas também nos caminhos percorridos pelas ruas e

avenidas da cidade, quando da coleta do material reciclável. É no cotidiano que se

constroem outras racionalidades e temporalidades, encontradas para além do credo da

ortodoxia econômica, que só vê um sentido, o do lucro (SANTOS, 2000).

2 O JARDIM

O Jardim Icaraí é uma das sete vilas que compõe uma ocupação urbana – Vila

Audi-União, situada sobre a área de preservação do Rio Iguaçu, na cidade de Curitiba. Este

cenário difere daquele apregoado pelo discurso sobre Curitiba como cidade que serve de

modelo para outras cidades do Brasil. Essa área foi utilizada de forma “predatória” por

empresas mineradoras de areia e saibro, que retiravam legal ou ilegalmente grandes

quantidades desses recursos destinados à construção civil de Curitiba. Foi esse tipo de

ação predatória ao meio ambiente que se estendeu de forma sistemática por um período de

vários anos (aproximadamente desde a década de 1950). Esse processo transformou

aquela parte da várzea do rio Iguaçu, em uma área “inóspita” e, contraditoriamente,

imprópria para a própria expansão da cidade.

O capital que gerava o processo de expansão da cidade era o mesmo que

impunha obstáculos ao seu crescimento, pois ao alterar profundamente a área, comprometia

o seu uso e impedia quaisquer outras formas que não fossem as já realizadas. Os

interesses em jogo naquele momento restringiam-se a essa atividade de exploração mineral.

A atividade de exploração da areia, que por si já é predatória, acentua-se nessa área de

grande fragilidade ambiental, gerando impactos no meio ambiente devido à remoção dos

solos, modificando o relevo, a qualidade da água e provocando profundas alterações na

paisagem. As cavas, enquanto “passivos ambientais” resultantes das lavras de exploração

da areia, se, se apresentam como problemas para uns, para outros se constituem em

possibilidades, ou seja, em elemento “facilitador” de um processo que se desencadeia com

a ocupação da área.

O elemento “facilitador” ao qual se fez referência é o fato de ser uma área

desprovida de valor comercial dado às condições de degradação, pois as jazidas de areia

que serviam como atrativo comercial, já havia atingido a exaustão e, por isso mesmo,

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estavam completamente abandonadas. Quando cessaram as lavras de areia, sobraram as

cavas como “passivos ambientais”, muitas delas transformadas em lagoas, devido às

chuvas e às cheias do rio Iguaçu. Independentemente da origem ou da fonte da alteração da

paisagem que levou à degradação da área, o mais importante para as pessoas que ali

chegaram era organizar as condições “mínimas” a fim de poder construir suas casas. Isso

implicava, num primeiro momento, conseguir identificar os locais mais firmes e seguros do

terreno, longe das lagoas e das possíveis enchentes que pudessem vir a ocorrer.

Na medida em que foram sendo ocupadas as áreas mais altas pelas “novas

famílias” que chegavam ao local, restavam apenas as estreitas faixas de terra que dividiam

as lagoas, e que também foram utilizadas para a construção de novas moradias que se

perfilavam nas suas bordas. A ausência de “terra firme” não impediu que novas famílias

continuassem chegando ao local, o que levou a um novo processo de aterramento, muito

mais complexo e dispendioso para as famílias, pois se tratava do aterramento das lagoas e

das cavas, que necessitavam de uma maior quantidade de entulhos até que tivessem

condição para a construção das casas. As famílias aterraram as cavas e lagoas com restos

de material de construção, que era adquirido dos caçambeiros por um preço considerado

alto pelas famílias, já que não tinham alternativa para construir suas casas a não ser

expandindo o solo através do aterro.

Uma pesquisa amostral realizada pela COHAB em 2006, na Vila Audi/União, da

qual o Jardim Icaraí é parte, também indicou a predominância restos e sobras de madeira

nas construções dos domicílios. Esse material aproveitado é resultante é resultante de

demolições de antigas casas de madeira de outros bairros de Curitiba.

Esse fragmento da cidade “descartável”, já que desprovido dos atributos

compatíveis com a cidade que é projetada, é que vai servir para abrigar os “indesejáveis”: os

entulhos da construção civil e os seres humanos que não podem pagar para viver na cidade

planejada, na cidade legal. O fato de poder equiparar os Homens aos entulhos, na medida

em que são obrigados a estar no mesmo local, dá a dimensão do tipo de cidade que se

constrói. Paradoxalmente a essa lógica, esses Homens constroem uma cidade dentro da

cidade que se materializa sob outra lógica, outra ordem e outra legalidade, para além dos

dispositivos jurídicos, que determinam as formas de uso e de apropriação da cidade de

Curitiba, ou como diz Santos (1999) constroem uma contra-racionalidade.

Do ponto de vista social, econômico e geográfico, essas contra-racionalidades,

se localizam entre os pobres, os excluídos, as “minorias”, entre as atividades marginais e

nas zonas “opacas” (SANTOS, 1999). É por isso que as famílias que ocuparam a área

encontram-se completamente “livres” para produzir aquele espaço de acordo com suas

próprias regras e com as suas necessidades mais vitais, incluindo o aterramento das cavas

e das lagoas para a construção de suas casas. Foi nesse processo de “subversão às

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regras”, à Lei e a uma determinada ordem, que os ocupantes foram construindo o lugar, cujo

sentido deve ser compreendido no contexto da trajetória vivenciada pelas famílias que se

constituem na sua maioria “carrinheiros” ou “carroceiros”.

2 A INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO NO JARDIM

A Vila Audi União é uma ocupação que e se estende pelos bairros Uberaba,

Cajuru e Capão da Imbuia, situada na divisa de Curitiba com o município de São José dos

Pinhais. O movimento de ocupação teve início em meados de 1990, sendo que a partir de

1998, intensificam-se, totalizando no ano de 2003, 2.887 famílias. A área onde se concentra a

maior parte das moradias segue a linha do trem, por ser a parte do solo mais alta e seca.

Entretanto, toda a extensão da área foi ocupada, incluindo as "lagoas" ou "cavas",

remanescentes dos processos de atividade de mineração.

O poder público, por meio dos técnicos, alega que devido à baixa capacidade de

resistência dos solos e à elevada umidade natural dos materiais, o lugar não suportaria as

edificações. Por isso tem imposto restrições ao uso da área, seja para efeitos de mineração,

seja para moradia. Isso tem justificado a ação do Poder Público no seu monitoramento e

em ações, que levam à proibição de determinadas atividades na área e a "desocupação" de

alguns locais de moradia.

A COHAB-CT, órgão responsável pelo cadastramento das famílias, vem

sistematicamente retirando os ocupantes da área. Conforme informações dos moradores, no

ano de 2003, foram retiradas aproximadamente 300 famílias que moravam numa vila

chamada "União das ilhas". Essas pessoas tiveram suas casas destruídas e foram transferidas

para Contenda, município da Região Metropolitana de Curitiba, ou para o "fim do mundo",

como costumam dizer os moradores.

A intervenção do Poder Público na área da Vila Audi União2 se relaciona ao que

se tem denominado de Urbanização da Vila Audi União. O projeto de Urbanização

contempla obras de proteção contra inundações – construção de um dique de proteção,

regularização das ocupações e relocação de outras, implantação e pavimentação de uma

via estruturante e implantação de infra-estrutura básica. As mudanças projetadas, para o

Jardim Icaraí, apontam para a consolidação de uma parte das famílias no local e outra parte,

será retirada e reassentada em outro local. Assim, de um total de 752 domicílios que

compõe o Jardim, conforme dados da COHAB, 295 serão relocados. De outro lado, as

famílias além de não entenderem que se encontram em área de risco, conforme apontado

nas entrevistas, gostam de morar naquele lugar. Ali construíram ou pretendem dar

continuidade à construção de suas casas, moram "próximos" aos locais de coleta do

2Projeto Bolsão Audi União: Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, COHAB, IPPUC, 2006).

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"material reciclável", onde construíram uma rede de contatos e pontos de coleta,

fundamental para a garantia da continuidade desta atividade.

Indiferente aos motivos alegados pelos moradores do Jardim, o poder público pôs

em andamento suas propostas, independente da participação dos envolvidos no processo.

Isso tem motivado uma série de protestos, inclusive daquelas famílias que se julgam na

iminência de serem removidas e que não tem certeza de também serem relocadas, para

uma área próxima ou distante do Jardim Icaraí.Desde a década de 1980, com a criação de

Setores Especiais de Habitação de Interesse Social (SEHIS), que previa a implantação de

núcleos habitacionais pela COHAB, há uma forte tendência em concentrar essas "famílias

problemas" em áreas mais distantes e restritas, sobretudo dos locais mais centrais da

cidade.

Tem-se observado a tendência a uma espécie de "guetização" de uma parcela

da população, cujos resultados também podem ser nefastos, como os próprios efeitos da

"estigmatização territorial" que são construídos pela população e poder local. As estratégias

sociais do Poder Público Municipal põem a descoberto os princípios de visão e de di-visão

que moldam a consciência e as práticas dos administradores3, que se modelam de acordo

com o projeto político que se tem. É importante analisar, ainda, os instrumentos utilizados

para refletir a situação do Jardim Icaraí inclusive porque nessa forma de intervenção, o

processo é percebido e interpretado pelos técnicos como "natural", inerente a própria

urbanização da cidade de Curitiba: "O crescimento explosivo das metrópoles brasileiras com

seus cinturões de pobreza..." (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, COHAB, IPPUC,

2007, p.72).

Da mesma forma, verifica-se a necessidade de se refletir acerca dos

instrumentos de análise utilizados, que se encontram situados em um determinado período. Os

instrumentos se encontram submetidos a um esquema de pensamento, fortemente marcado

por uma concepção de mundo, numa concepção de cidade, quando as situações

observadas devem se encaixar no modelo de pensamento formado a priori.

Se se quer efetivamente compreender a situação em que se encontram envoltas

as famílias que ocupam áreas tidas como irregulares pelo Poder Público Municipal, faz-se

necessário ultrapassar os mecanismos genéricos e suas formas que se tornam inteligíveis,

sobretudo quando ligadas a algumas matrizes históricas de pensamento (WACQUANT,

2001, p.7-8). O autor vai mais além, quando afirma a necessidade de se desenvolver

imagens mais complexas e diferenciadas, se quisermos compreender a existência e o destino

dessas famílias (WACQUANT, 2001, p.7-8), que não se encontram mencionadas unicamente à

ausência e a necessidade de moradia. O que está em jogo não é somente "arrumar" um local

para fixar moradia. No contexto em que vivem essas famílias, é praticamente impossível

3 Segundo Pierre Bourdieu, os processo de classificação e organização da realidade estão inscritos em funções práticas e orientados para a produção de efeitos no mundo social (BOURDIEU, 1989, p.107-132)

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imaginar que a observação das situações localizadas, marcada por uma complexa rede de

relações sociais possa se dirigir somente para um plano de ação.

A própria noção de pobreza utilizada para se referir às famílias que se

encontram diretamente submetidas as situações diagnosticadas, deve ser submetida a

análise, já que se constitui um elemento importante para a compreensão da proposta de

intervenção em curso, onde o Poder Público Municipal se coloca como o único protagonista,

a despeito dos dispositivos legais garantirem a participação das pessoas de forma indistinta. O

§ 3.o, do artigo 4.o, da Lei n.o 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da

Cidade, é enfático no sentido de garantir a participação das "comunidades", "movimentos" e

"entidades da sociedade civil" nas discussões que se referem aos instrumentos da política

urbana.

A noção de pobreza tomada pelo Poder Público indistintamente para explicar a

situação das famílias revela, inicialmente, a incapacidade das famílias de garantir a sua

reprodução física e social. Ao mesmo tempo, embuti uma outra noção, de que as pessoas

que se encontram sujeitas às políticas são incapazes de gerir o seu próprio futuro, portanto,

mais que normal a "usurpação" de suas falas, pois são incapazes de fazê-lo. Aliás, essa

discussão se aproxima das descrições já realizadas, que desenham a noção do "cidadão

tutelado". A propósito, a tutela tem sido um instrumento muito eficaz na garantia de

efetivação de determinadas políticas públicas, sobretudo quando essas políticas se

encontram "sombreadas" dos reais interesses que possam estar em jogo. A postura

autoritária tem conseqüências que se expressam num conflito agudo envolvendo as famílias

de moradores do Jardim Icaraí e o Poder Público Municipal, onde o que está em jogo são as

diferentes representações e interpretações do que seja a cidade e, do meio ambiente

(ACSELRAD, 2004.

Ademais, a produção de diversos dispositivos jurídicos relacionados ao meio

ambiente, que objetivam de forma casuística "resolver" os problemas dessa natureza. Pelo visto, a

preocupação com esses instrumentos legais é muito grande por parte do poder público

fazendo com que todos consigam identificar as noções de legal e ilegal4, que acompanham

esse modelo de cidade.Tomando emprestado uma leitura de Wacquant, percebe-se que o

discurso relativo à degradação da "natureza", tem reavivado aquela idéia malthusiana

segundo a qual a miséria é o resultado da própria incapacidade pessoal dos miseráveis

(WACQUANT, 2001, p.104). É como se as famílias, pelo simples fato de serem pobres, fossem

totalmente incapazes de qualquer atitude digna de ser considerada, pois revela todo o pré-

conceito existente.

4Moura chama atenção que essa dicotomia, assim como tantas outras: "cidade planejada e a cidade não planejada", a "cidade real e a cidade formal" são produtos do processo histórico que se relaciona a produção do espaço urbano (MOURA, 2004, p.152-155).

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Ao longo das décadas, as políticas urbanas em Curitiba foram responsáveis pelo

processo de segregação de uma parte da população, que foi colocada para "fora" da cidade

(OLIVEIRA, 2000; MOURA, 2001; PEREIRA, 2002). O fato de representarem uma "ameaça"

ao modelo de cidade que se projetou, fez com que esses cidadãos se transformassem em

"objetos" de um conjunto de políticas sociais, que objetivam mantê-los prevalentemente

"afastados" da cidade.

A ação do poder público tem como objetivo a urbanização da Vila Audi União, de

acordo com os parâmetros urbanísticos preestabelecidos, ou seja, tem como base uma

concepção de cidade, que entra em confronto com a idéia de cidade dos moradores. A

ausência de participação dos moradores nas decisões sobre as mudanças no lugar que

construíram e no qual vivem, pode revelar como alerta Harvey, o receio das “utopias da forma

espacial de verem pervertidos seus nobres objetivos, se tiverem que firmar compromissos com

os processos sociais que pretendem controlar” (HARVEY, 2004, p.236), Quando as utopias da

forma espacial subjuga os processos sociais, têm a negação do direito à cidade, no sentido

da aproprição e do uso.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora as ocupações urbanas tenham se tornado parte da história da expansão

das cidades brasileiras, o fenômeno das ocupações em si toma a forma da ilegalidade uma

vez que para se viver na cidade é preciso usufruir do poder de compra da terra urbana.

Assim, a cidade é produzida e reproduzida tendo como base a propriedade privada do solo

urbano, por isso as ocupações colocam-se frontalmente contra essa lógica. Esta é a razão

pela qual são consideradas "irregulares", mesmo considerando a "função social da

propriedade", que se encontra disposta na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da

Cidade.

No processo de construção do Jardim Icaraí pôde ser observado algumas

dessas particularidades. Dentre estas, destaca-se o próprio processo de "ocupação" da

área, contrariando e pondo em questão a forte presença do poder público planejador e

disciplinador do uso do solo da cidade de Curitiba. Outro aspecto importante que deve ser

considerado, é que esta ocupação deu-se sobre uma Área de Proteção Ambiental, que se

encontrava degradada.

A cidade não é um ente separado da sociedade que a produz. Ela, a cidade, é

resultado também dos diferentes agentes e projetos em curso. É na sua espacialidade que se

manifestam as suas contradições e conflitos, sendo que os conflitos sócioambientais

representam, antes de tudo, conflitos pelo uso, pelo direito à cidade, mas que muitas vezes

tomam a aparência de ambientais em razão da incorporação do discurso ambiental. Na

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esteira desses conflitos urbanos, a variável ambiental pode "mascarar" outras tensões, que se

colocam muitas vezes mais contundentes e que são apagadas pela dimensão ambiental.

No Jardim Icaraí, a força do conflito que ganha os contornos de sócioambiental é

em primeiro lugar pelo direito á cidade, expresso pelo direito à moradia. O fato do Jardim

Icaraí se encontrar numa área de proteção ambiental, torna a situação das famílias que lá se

encontram muito mais dramática e aguça as tensões, pois a variável ambiental contém um

forte apelo social e toda uma legislação que serve de amparo às ações do Poder Público

local. Ali é flagrante o confronto, que envolve distintos projetos para a cidade e distintas

orientações para a preservação do meio ambiente. A cidade se constitui em um

emaranhado de projetos cujo conteúdo material e simbólico estão em permanente confronto.

REFERÊNCIAS

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A DESORDEM DA CIDADE E A DESORDEM NO DIREITO: Reflexões em torno da noção de cidade para o Direito

Judith Costa VIEIRA5

RESUMO

Este texto faz uma reflexão em torno das representações sociais sobre o espaço da cidade e especificamente sobre a leitura que o Direito faz sobre ela. Trata-se de um confronto teórico entre a noção de cidade como espaço da desordem esboçada nos dispositivos legais e noção de cidade como campo de disputa social. Argumenta ser possível construir uma explicação sobre a cidade a partir da desordem tomando aquela com espaço social de conflitos por diferentes visões e projetos de vida defendidos pelos novos sujeitos coletivos no espaço urbano e questiona o poder estatal absoluto de controle da cidade.

Palavras-chave: Cidade, Direito, Desordem, Grupos étnicos.

ABSTRACT This text is a reflection of social representations around the area of the city and specifically on the reading that the law is on it. It is a confrontation between the theoretical notion of city as a space of disorder outlined in the legal provisions and the concept of city as a field of social dispute. Argues can build an explanation of the city from taking such disorder with social space of conflict between different visions of life and projects supported by the new collective subjects in the urban area and questioned the power of absolute state control of the city Keywords: City, Law, disorder, ethnic groups

1 INTRODUÇÃO

Como criação social a cidade permite que sobre si sejam feitas diferentes

leituras, diferentes atribuições de sentidos. Cada leitura sobre a cidade traz consigo a

perspectiva do sujeito6 que a explica e a define. Assim, como o sujeito não está apartado de

um contexto sócio-cultural de produção de conhecimento, sua leitura sobre o objeto, no caso

cidade, reflete de imediato a posição e os interesses deste sujeito no campo social.

5 Judith Costa Vieira, advogada, mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). Assessora Jurídica Terra de Direitos. E-mail: [email protected]. 6 O “sujeito” por diversas vezes aqui tratado não se trata do sujeito individualizado da perspectiva jurídica, mas representa o sujeito coletivo pertencente a um grupo social que compartilha valores e interesses. Trata-se da criação de um jeito peculiar de entender o mundo e de se relacionar com ele.

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Conhecer, definir e classificar são procedimentos que têm por finalidade despir a

realidade de seus mistérios tornando-a compreensível; logo, passível de ser dominada pelo

espírito científico que se ocupa em apreendê-la. Trata-se de “reduzir” a desordem das

coisas do mundo social e “enquadrá-las” em determinados esquemas de pensamento, em

que seja possível a representação mental desta realidade pelo sujeito.

As leituras são representações mentais que se têm dos objetos. Elas indicam

como esses objetos são vistos e explicados pelos sujeitos. Porém, é preciso sublinhar, as

produções simbólicas não contêm objetivos puramente explicativos, possuem também, uma

dimensão prática, pois não se constituem em meros instrumentos de conhecimento e

comunicação. As formações simbólicas possibilitam a construção de um sentido

compartilhado do mundo sobre o qual se fundamenta a reprodução da ordem social

(BOURDIEU, 2005).

A maneira como se representa o mundo social dirige a maneira como se

intervém nele. Por isso, a representação não é uma explicação neutra e objetiva do real,

nela influem as aspirações e os valores do sujeito que a constrói. Cada expressão da

representação como a definição ou classificação, longe de serem parâmetros “neutros”

revelam um ponto de vista seletivo do real.

Nesse sentido, cada representação se apresenta como uma “verdade parcial”,

uma “verdade possível”; sua força para se fazer crer como única verdade dependerá do

capital simbólico que dispõe o sujeito, na medida em que sua verdade está relacionada à

sua autoridade e legitimidade no campo científico (BOURDIEU, 2005). Tal imposição não se

verifica de maneira pacífica, pois existem no mundo social, diversas leituras sobre o mesmo

objeto que podem se colocar de forma complementar ou mesmo contrárias entre si.

Afirmar que existem diversas maneiras de representar o real, implica reconhecer

que existem diversas maneiras de viver e se relacionar socialmente, uma vez que as

representações são criadas em face de condições concretas de existência. Assim, as

leituras tidas “oficiais” ou reconhecidas, construídas em função de uma dada objetividade,

tendem a “camuflar” a própria fragilidade de sua criação, sobretudo quando tentam se

colocar acima das contextualizações e dos interesses que representam.

Segundo BOURDIEU (2005), as disputas no campo social não ocorrem somente

pela apropriação das coisas materiais, elas se desenvolvem também objetivando impor

determinada maneira de representar o mundo social. Assim, cada grupo social tende a

defender uma representação mais condizente com os seus respectivos interesses. Essa

disputa, segundo referido autor, não se perde em um campo de abstrações uma vez que

expressam uma finalidade prática de defesa de determinados projetos de vida, os quais

requerem a defesa de interesses específicos.

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Com isso, BOURDIEU traz as discussões das leituras da realidade ao mundo

político, pois evidencia as funções práticas que esses esquemas desempenham em

situações de conflitos sociais; sendo elas próprias os planos onde se desenvolvem tais

conflitos. As disputam se dão, portanto, contra uma ordem de sentido hegemônica que sob a

aparência de representar interesses universais, se impõe como forma única de sentido,

criando, com isto, relações de poder estritamente simbólicas as quais servem para

perpetuar uma relação de dominação mascarada.

Considerando que os sentidos sociais têm o poder de legitimar ações sobre a

realidade é possível afirmar que: aquele que detém a autoridade ou legitimidade de ler e

interpretar a realidade tem o poder de agir sobre ela segundo seu próprio entendimento.

Dessa maneira, as disputas simbólicas ocorrem em face da leitura considerada dominante.

Ela se reveste de um verdadeiro poder simbólico a partir do momento que se estabelece

como “concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna

possível a concordância entre as inteligências” (BOURDIEU, 2005, p.9).

Neste contexto, a cidade enquanto representação se torna um campo de

disputas pela atribuição de sentido. Cada representação sobre a cidade importa a defesa de

projetos de ação diferentes sobre ela. Na cidade, enquanto espaço físico e social de

convivência, coexistem grupos sociais7 que constroem imagens diferentes sobre ela e são

justamente essas imagens criadas coletivamente que dirigem a apropriação da cidade por

esses grupos.

Impossível então falar em uma única leitura inquestionável sobre a cidade. O

que se imagina da cidade e a maneira de como se age sobre ela implica a consignação de

um ponto de vista particular. Nesse sentido, levantar as diversas leituras sobre a cidade é

um exercício reflexivo que se coloca para além de se pensar a própria cidade. Trata-se de

refletir sobre os esquemas de pensamento previamente elaborados e assim tentar

compreender como se trava a luta política pela imposição e superação dessas leituras.

Assim, o Direito como expressão de um tipo de representação da realidade, cria

a sua própria imagem da cidade. O enunciado de BOURDIEU (2005) segundo o qual as

imagens possuem funções práticas, talvez, não se expresse de maneira tão contundente

7 Vários estudos tem se ocupado em investigar a feição étnica das cidades. Vide: FARIAS JÚNIOR, Emmanuel

de Almeida. Terras indígenas nas cidades: Lei Municipal de desapropriação nº302. Aldeia Beija-flor, Rio Preto da Eva, Amazonas. Manaus: UEA Edições, 2009; SAULE JUNIOR, Nelson. Possibilidades de aplicação do marco legal urbano brasileiro na proteção dos direitos socioambientais das populações indígenas. In. BRAVO, Álvaro Sánchez. Cidades, Medioambientes y Sostenibilidade. ArCiBel Editores: Espanha, 2007; MARQUES, Olavo Ramalho. Entre a Avenida Luís Guaraha e o Quilombo do Areal: estudo etnográfico sobre memória, sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre/RS. In. Prêmio ABA/MDA. Territórios Quilombolas/ Associação Brasileira de Antropologia. Organizador. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2006.

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quanto no âmbito jurídico, onde as categorias jurídicas possuem o propósito prático de

direcionar a atuação do Estado no meio social.

Refletir a forma de como direito pensa a cidade, estabelecendo relação entre

esta forma de “saberes oficiais” e outras provenientes do meio social constitui o objeto do

presente estudo. Para tanto, inicio as reflexões no sentido de tentar demonstrar como a

cidade é percebida pelo direito para, em seguida, fazer uma critica a esta imagem

hegemônica, tomando como elemento problematizador o surgimento dos novos sujeitos

coletivos, portadores de identidade étnica, que reivindicam o reconhecimento de sua

imagem e projeto de cidade.

2 A CIDADE PARA O DIREITO: leitura possível

A representação da cidade em torno dos dispositivos e estatutos jurídicos gozam

de um status de verdade construído sobre a legitimidade e autoridade dos interpretes

consagrados no campo jurídico (BOURDIEU, 2005). É importante ressaltar que esse

processo é autenticado com a própria justificativa comumente acionada de que o direito é

universal e instituidor da “ordem pública”, além de promotor do “interesse social”. Porém, o

que esta explicação escamoteia é o fato de que ao lado da imagem de cidade vislumbrada

pela ordem jurídica existem outras com justificativas igualmente racionais de constituição.

Ademais, o campo de conhecimento jurídico reivindica, a todo instante,

autonomia em face das disputas sociais (BOURDIEU, 2005), colocando-se na situação de

mero expectador ou mediador dessas mesmas contendas. Entretanto, o próprio discurso

jurídico estrutura certa relação de força no campo simbólico quando suas representações

são consideradas como verdade porque provenientes de uma autoridade política.

Nesse sentido, compreender o sentido de cidade atribuído pelo direito e

confrontá-la com outras imagens possíveis traz a tona a estratégia política de conceber as

explicações como evidentes, como naturais, afinal, as leituras tidas como “oficiais” trazem

em si a relação de força sobre a qual se construíram, pois tendem a demonstrar seus

enunciados como elementos objetivos inquestionáveis, quando, em verdade são parciais e

perspectivos.

Ao explicitar essa relação, fica evidente que diante de tantas leituras possíveis

sobre a cidade há infinitas disputas entre elas, disputas estas nem sempre explicitas.

Quando uma dessas leituras se consagra como vitoriosa, além do poder de representar a

totalidade do mundo social, tem o poder de submeter todas às outras aos seus desígnios.

Os consensos sobre as imagens nem sempre se baseiam em concordância de interesses,

mas sim em convencimento e imposição que justificam os projetos de intervenção social.

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No campo jurídico, a cidade é lida e interpretada de uma forma8, o que não

necessariamente significa que é a única maneira possível de interpretá-la. Na verdade, o

conhecimento jurídico tem finalidades práticas voltada para a defesa de um determinado

projeto de cidade, embora se justifique por ser um sistema funcional e objetivo, baseia-se

em certa ordem que para se manter em posição de hegemonia desqualifica outras ordens.

Ninguém melhor do que FOUCAULT (2005) evidenciou como certos corpos de

saberes sujeitam outros em nome do cientificismo. Um exercício como este, de colocar para

o direito as várias imagens da cidade, permite que se observe a produção do conhecimento

jurídico em sua “verdadeira posição”, qual seja, a de construção social transitória e

perspectiva da realidade.

Trata-se, nesta esteira, de resgatar a diversidade de saberes, no sentido de

FOUCAULT (2005), e de repensar as possibilidades da desordem tal como propõe MIAILLE

(2002). Para Foucault, há uma diversidade de saberes que ficaram obscurecidos em face de

determinada ordem de saber com objetivos funcionais e formais. Tais saberes, segundo

esse autor, podem também ser expressos como formas de saber que não se enquadravam

em um padrão de cientificidade previamente estabelecido (FOUCAULT, 2005).

Já a desordem é refletida por MIAILLE como uma possibilidade de imaginar as

coisas e de refletir sobre elas que não encontra correspondência nos modelos habituais da

ciência e do direito. Nesse sentido, a desordem, sempre rejeitada pelos esquemas

tradicionais de pensamento, é objeto de constante campanha de superação, de modo que

não se admite a existência de outras ordens a comandar as disposições das coisas e das

pessoas que não aquelas oficializadas.

Para esse autor, admitir a idéia da desordem e refletir sobre ela implica trazer à

tona esquemas de pensamento completamente diferenciados dos hegemônicos. Portanto,

para Miaille (2002, p.20):

Trata-se, então, de abrir uma nova situação epistemológica na qual a lógica abandona a pretensão ao universal e prefere uma `verdade local’; na qual a dicotomia não se divida mais entre erro e verdade e na qual a verdade nada mais é que um erro retificado [...].

Assim, se o pensamento jurídico centrado no disposto em lei é o hegemônico, a

desordem, enquanto operação metodológica, é o questionamento pronto e acabado do

dispositivo legal como única maneira de definir e intervir na cidade, pois é possível pensar a

cidade pelo que não está escrito, por aquilo não previsto pelo Direito. O não previsto, e

8 No Brasil, há uma intensa discussão a respeito da autonomia do direito urbanístico, pois ele se encontra no interior do direito administrativo. A necessidade destacar o direito urbanístico do direito administrativo explicita esse campo de disputas no interior do próprio direito, que não se encontra referido unicamente a distinção de objetivos, mas as necessidades dos interpretes que buscam se legitimar para o direito de dizer o direito sobre a cidade.

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ainda não admitido, é que há uma diversidade de atores construindo a cidade, cada qual a

seu modo e utilizando seus saberes, sua própria ordem de valores e práticas, dando forma à

cidade real em contraposição da cidade formal imaginada nos dispositivos jurídicos.

A constatação de diferentes sujeitos atuando coletivamente na construção da

cidade colocam o desafio à ciência jurídica de pensar como se dá a construção da cidade

por estes grupos e implica, também, tentar compreender os saberes até então “sujeitados”

desses agentes, pois são estes saberes que dão sentido ao que é materialmente produzido

por eles. Porém, o Direito ainda teima em definir estas práticas sociais como desordens,

aqui, entendidas, como práticas que dão a cidade uma feição diferente do modelo

imaginado pelo Direito.

Por conseguinte, a preocupação dos intérpretes do direito com a excessiva

forma, ora se ocupando na confecção dos dispositivos e estatutos, ora na análise desses

instrumentos, fez com que restringisse as possibilidades de compreender o conteúdo das

cidades expressos além dos dispositivos e estatutos jurídicos. Ou seja, restringe a

possibilidade de compreensão do fenômeno que Ítalo Calvino descreve como “As Cidades

Invisíveis”, que nada mais é que a idéia de que há uma “cidade real”, que cresce e se

esparrama em face da “cidade oficial”. Então vejamos como a cidade é trabalhada pelo

Direito.

3 DELINEAMENTOS LEGAIS DA POLÍTICA URBANA BRASILEIRA: a cidade como

espaço da desordem

A Constituição Federal de 1988 ao instituir um Capítulo dedicado à ordem

urbanística9 trouxe consigo “novas” possibilidades de debates sobre o espaço social,

especialmente sobre a cidade. As disposições constitucionais têm como objetivo a

construção do que é designado como “cidades democráticas e sustentáveis”.

O status elevado da problemática urbana10 ao nível constitucional, após intenso

processo de luta e reivindicações sociais11, foi responsável, também, pela redefinição do

papel do Estado em relação ao que é chamado de questão urbana12. O Estado assumiu a

função de promotor do desenvolvimento urbano, cuja principal meta consiste em eliminar

9 Capitulo II denominado: “Da Política Urbana”, contido no Titulo VII que trata da Ordem Econômica e Financeira

na Constituição Federal de 1988. 10 Segundo REZENDE (1982, p.1) a problemática urbana era fato na “A maioria das cidades passa a se caracterizar pela segregação dos seus espaços, onde habitações formais, localizadas em áreas dotadas de serviços, coexistem com favelas e loteamentos irregulares em áreas carentes de saneamento básico e transporte”. REFERENCIA REZENDE, Vera F. Rediscutindo a Política Urbana, a propósito do Estatuto da Cidade. Acessado no site: http://www.uff.br/lacta/publicações/rediscutindopoliticaurbana.htm. 11 A intensa mobilização social em torno da Assembléia Constituinte para a inclusão de dispositivos que garantissem o direito à moradia, ficou conhecida como Movimento da Reforma Urbana, no qual estavam incluindo uma gama diversa de atores incluindo, movimentos sociais, ONGs, sindicatos. 12 A importância da discussão diante de nossa realidade fez com que fosse criado, em 2002, o Ministério das

Cidades, cuja atribuição seria pensar uma Política Urbana.

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todos os problemas decorrentes da falta de condições satisfatórias de vida nas cidades. Os

problemas sociais vivenciados nas cidades são explicados, em sua maioria, pela ocupação

irregular do solo urbano, pois segundo esse entendimento, a maioria das famílias que vivem

nas cidades, no que tange a moradia, se encontra em situação irregular.

A Política Urbana é abordada no texto constitucional em dois artigos: o 182 e

183. O primeiro dispositivo determina que a política de desenvolvimento urbano deva ser

realizada, principalmente, pelo Poder Público Municipal. Os objetivos expressados nesses

artigos são os de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a

garantia do bem-estar de seus habitantes.

Define-se, desse modo, o papel preponderante dos municípios na execução do

desenvolvimento urbano por meio do instrumento jurídico do Plano Diretor. O Plano Diretor

deve definir as metas de intervenção do Poder Público na área de abrangência municipal,

no sentido de ordená-la, sem perder de vista os qualificativos necessários para que a

propriedade urbana atenda sua função social.

Percebe-se que os dispositivos jurídicos criados para cumprir esses objetivos

constitucionais atendem a essas demandas. Eles representam respostas ao problema de

determinação de como deve ser realizada a intervenção do Poder Público na cidade e de

elucidação do conteúdo da expressão limitadora da função social da propriedade, já que

esse deveria vir definido no Plano Diretor elaborado por cada cidade.

No sentido constitucional, cabe ao município, quando elaborar o ordenamento do

seu território, definir os requisitos necessários para a concretização da função social da

propriedade, de modo que todos contribuam com a criação da cidade. O Plano Diretor como

instrumento por meio do qual se faz o ordenamento do território municipal, deve conter os

dispositivos que estabelecem os limites, as faculdades, as obrigações e as atividades que

devem ser cumpridas pelos particulares para terem assegurado o seu direito de propriedade

(SAULE JR., 2002, p.78). Portanto, considera-se que a propriedade cumpre sua função

social quando cumpre as determinações urbanísticas presente no Plano Diretor (Art. 182,

CF/88).

A partir de então, há repartições de competências entre as três esferas

administrativas: União, Estados e municípios. A este último, que até então não gozava de

autonomia administrativa, pois não se encontrava definido como ente federativo, compete

legislar sobre assuntos de interesses locais, dentre eles às questões urbanas, aos demais

entes – Estados e União- apenas compete o traçado de normas gerais sobre a temática.

O artigo 183 institui a figura jurídica da Usucapião Urbano13. A usucapião tem

por finalidade garantir o direito à terra urbana, mediante a posse continua e dentro de um

13 Determina o caput do artigo 183 (CF/88): “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-à o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

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determinado transcurso de um lapso temporal. A usucapião urbana ou usucapião moradia,

como vem sendo denominada este instrumento, deve, segundo SCHAFER (2004), ser

interpretada segundo parâmetros que privilegiem a realização da função social da

propriedade e o direito de moradia.

Os dois dispositivos legais explicitados acima, permite uma leitura do momento

histórico e social vivenciado quando da instituição da Constituição Federal de 1988, pois

refletem as demandas sociais então reivindicadas pela sociedade, sobretudo pelos

movimentos sociais organizados. A principal bandeira de luta naquele momento se referia

ao direito à moradia. Defendia-se a criação de um quadro institucional por meio do qual

fosse possível garantir o acesso de grupos sociais menos favorecidos à terra urbana.

O meio escolhido pelo legislador para alcançar tal objetivo foi restringir o direito

daqueles que já eram proprietários de imóveis urbanos, seja impondo-lhes penalidades pelo

não cumprimento das funções sociais que seriam designadas no Plano Diretor, ou a

penalidade de perda da propriedade pelo não uso efetivo do bem, em favor de outro que

estivesse dele se utilizando para moradia, como é o caso da usucapião.

Visando alcançar o desiderato constitucional seguiu-se a instituição de um

aparato normativo como uma série de mecanismos práticos para a realização daquilo que

alguns autores nomeiam de direito à cidade. O principal desses instrumentos é o Estatuto da

Cidade (Lei nº. 10.257/2001) onde são tracejados os objetivos e os instrumentos da Política

Urbana brasileira.

4. DIREITO À CIDADE: a instituição de uma ordem jurídica

O direito à cidade tem sido pensado como Direito Fundamental e ajuíza dois

objetivos principais: o primeiro, promover qualidade de vida nas cidades por meio da

realização satisfatória das funções sociais, bem como da incorporação das questões

ambientais ao tratamento urbano. O segundo se refere à melhoria e acesso às condições de

moradias legais na cidade.

O Estatuto da Cidade surge com a função de disciplinar os dispositivos

constitucionais. A nova lei define os princípios e as diretrizes da Política Urbana14 além de

regulamentar e criar instrumentos para possibilitar a intervenção pública a qual deverá ser

orientada a partir do pressuposto da gestão democrática da cidade.

Uma vez estabelecidos em lei os objetivos da Política urbana, os estudos

jurídicos que tratam a cidade se ocupam em identificar o melhor modo de operacionalizar os

instrumentos dispostos na lei, na crença de que, uma vez cumpridos o previsto se alcançará

14 Art. 2º, incisos I e ss, da lei 10.257/2001.

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uma “cidade bela e justa” para usar a expressão de ROLNIK ou nas palavras da própria

autora:

O estatuto abre uma nova possibilidade de prática, apresentando uma nova concepção de planejamento urbano, mas depende fundamentalmente do uso que dele fizerem as cidades. Boa parte dos instrumentos- sobretudo os urbanísticos- depende dos Planos Diretores, outros de legislação municipal específica que aplique o dispositivo na cidade. Os cidadãos têm, entretanto, o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir, concretamente, sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas. (ROLNIK, 2001, p. 9)15

Da mesma forma que a autora, os intérpretes do direito também vislumbram o

Estatuto da Cidade como uma lei inovadora capaz, desde que devidamente implementada,

de promover a inclusão social e territorial das cidades brasileiras (SAULE JUNIOR, 2001,

p.11), ou de acabar com a segregação espacial e garantia do direito à moradia urbana

(ALFONSIN, 2000).

Apesar do tão aclamado direito dos cidadãos, à participação política no processo

de escolhas das políticas de intervenção nas cidades, este direito se encontra atrelado à

idéia de possibilidade de exigir o atendimento da função social da cidade. A função social é

identificada como sendo o cumprimento satisfatório de algumas atividades consideradas

essenciais para aqueles que moram na cidade.

Para esse tipo de leitura, as cidades necessitam ser dotadas de um conjunto de

bens e serviços que possam propiciar uma vida digna para todos. Portanto, a cidade

desejável é a que está cumprindo sua função social de garantir o direito à terra urbana, à

moradia, ao saneamento ambiental, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e

lazer, para as presentes e futuras gerações 16.

O direito a cidade é abordado a partir de seus problemas específicos e as

explicações para tais problemas são concentradas na forma como foi conduzido o processo

de desenvolvimento urbano do Brasil, pois segundo Fernandes (2006), ele foi fruto de um

intensivo processo de urbanização da sociedade brasileira, sem planejamento adequado

que possibilitasse ao espaço da cidade adequar aos novos contingentes migrantes atraídos

pelo processo de industrialização (FERNANDES, 2006).

A conseqüência mais visível foi o aparecimento das habitações criadas à

“margem da lei”, formando o que pode ser chamado de “cidade informal”, que nasce ao lado

da “cidade formal”, mas a supera em tamanho e em problemas sociais, causando impactos

negativos à cidade como um todo, pois a população “informal” reclama também pela

prestação de serviços públicos (ALFONSIN, 2004).

15 O artigo mencionado é intitulado: “Estatuto da cidade - Instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza”, publicado pela autora, foi editado pelo Instituto Polis em 2001 e compõe uma coletânea cujo titulo é “Estatuto da Cidade: novas perspectivas para a reforma urbana”. 16 Estatuto da cidade, art. 2º, inciso I.

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Portanto, os problemas urbanos são explicados, ora pela falta de preparo do

Poder Público para se adequar nas novas exigências do fluxo populacional, ora pela falta de

aplicação das diretrizes legais já existentes. A desobediência à ordem urbanística constitui

uma das principais explicações acerca da procura do motivo/causa da problemática

vislumbrada nas cidades.

Diante da constatação de tantos problemas a serem resolvidos, a maior parte

das reflexões buscam tratar a temática urbana a partir de duas situações: tendem a

descrever e explicar os instrumentos jurídicos aplicáveis às situações; ou tendem a focalizar

o que falta ou o que é preciso para viabilizar a sustentabilidade do espaço urbano17.

Persiste nos referidos estudos a construção de uma grande crença no poder

transformativo do direito. Desse modo, é festejada qualquer incorporação considerada

evolutiva no sentido de atendimento das demandas sociais nos textos legais, de forma que

as análises seguintes consistirão em propagar a grande mudança de perspectiva ocorrida e

a descrever os instrumentos legais disponíveis para alcançar os objetivos então

perseguidos.

Não se nega a abertura social e democrática dos novos dispositivos jurídicos de

direito urbanístico. Contudo é preciso dizer que, ao agarrar-se na suposta evolução do texto

legal, referidos estudos relegam as reflexões os conflitos sociais e ambientais ao segundo

plano. Eles entendem que de posse do instrumento legal, restaria reivindicar sua adequada

aplicação, pois somente desta forma é que seria possível resolver os problemas sociais

decorrentes dos intensos processos conflitivos que colocam lado a lado a “cidade legal” da

“cidade ilegal”.

Assim, tomando a cidade a partir de seus problemas sociais e ambientais, os

estudos jurídicos acabam escolhendo um caminho metodológico, que tem como objetivo, a

procura de soluções práticas para os problemas existentes, ficando as causas que

ocasionam referidos problemas, temporariamente, em suspenso, diante da urgência de

intervenção na cidade. Os estudos tomam a prática pela reflexão, o que de certa forma tem

sido um “obstáculo” para a compreensão dos problemas reais e as próprias dificuldades

jurídicas em enfrentá-los.

A leitura existente nos estudos jurídicos sobre a cidade pode ser exemplificada a

partir de quatro noções, que são tomadas indistintamente pelos interpretes: “urbanização”,

“cidade legal”, “cidade ilegal” e “ordem”. Assim, a noção de urbanização é referência inicial

para qualquer tipo de análise. Os estudos jurídicos tratam de demonstrar que: o

crescimento urbano acelerado “sem planificação” foi o grande responsável pela produção da

“cidade ilegal”, sendo que esse processo gerou uma enormidade de problemas, que pode

ser constatado com os baixos índices de qualidade de vida nas cidades. A população da

17 Direito à cidade em termos jurídicos se refere ao direito de usufruir os serviços públicos na cidade.

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“cidade ilegal” não tem acesso aos bens e serviços públicos, muito menos segurança da

posse dos lotes que ocupam.

A urbanização é uma noção que tem servido para refletir o direito e a cidade. No

caso, as explicações seguem o seguinte esquema: se a urbanização é inevitável e tende a

aumentar, conseqüentemente, os problemas sociais e ambientais da cidade tendem

também a aumentar (FERNANDES, 2000), por isso mesmo o direito urbanístico tem um

papel fundamental, na medida em que o direito é o único instrumento disponível capaz de

instituir ordem ao espaço desorganizado, que tragicamente vem se constituindo ao longo

dos tempos. Em termos do presente, o esquema é o mesmo: os problemas sociais e

ambientais decorrentes do processo de urbanização intensiva geraram problemas os quais

devem ser resolvidos pelo Estado e pelo direito.

Portanto, o que se verifica é que a cidade é tida como o espaço da desordem,

esta é a única leitura imaginável quando se aborda a cidade a partir de seus problemas

sociais e ambientais. A desordem é tratada como algo maléfico, responsável por gerar

insegurança e precária condição de vida à população e, nesse sentido, deve ser corrigida ou

mesmo evitada. À desordem urbana é associada à noção de “crise urbana”, sendo esta

última conseqüência da primeira.

A crise urbana serve como elemento explicativo e como meta de superação. A

busca de solução para tal crise se torna o caminho para a maior parte dos estudos sobre a

temática. Acredita-se que a devida aplicação das leis devolverá a cidade o seu estado de

normalidade. A idéia de “crise” apropriada recorrentemente por esses estudos é um

instrumento de análise valioso, já que contém por si a explicação. Além disso, dá a idéia de

estado transitório, por meio da qual se presume a existência de um estado de normalidade,

que poderá ser retomado, caso as medidas sejam tomadas. É por isso que a eficaz

aplicação das leis é tida como único caminho possível para o resgate de condições

adequadas de vida na cidade, perdidas em face da urbanização acelerada.

Coutinho (2007) chama de “idealismo” a postura presente nos estudos jurídicos

centradas na aplicação de mecanismos jurídicos eficientes como garantia de superação da

desordem urbana, esta entendida, como resultado da ausência de garantias dos direito, da

incapacidade de gestão e de controle das distorções do crescimento econômico. Segundo

esse autor, em referidos estudos somente a falta de vontade política impede que as leis

exerçam sua capacidade para resolver os problemas urbanos. Aliás, o “idealismo” existente

nos estudos urbanos ressaltado por Coutinho, é também objeto de reflexão de Miaille. Para

Miaille, o idealismo se constitui num dos “obstáculos espistemológicos” existentes no direito

que impedem a sua própria compreensão.

A solução dos problemas urbanos destaca-se com fundamento da intervenção

estatal e da legitimidade dos estudos urbanos considerados pela relevância que podem

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apresentar quando trazem propostas que se encontra referidas ao direito à cidade. Este

considerado como direito humano fundamental, pertencentes a todos aqueles que residem

na cidade.

Nesse contexto, o direito à cidade ganha a conotação de direito difuso, uma vez

que pertence a todos os habitantes da cidade. Tal caráter difuso decorre do fato de que é de

interesse de todos o cumprimento da função social das cidades. Para SAULE JÚNIOR

(2007), o caráter difuso da cidade pode ser compreendido a partir do fato de que ela

pertence indistintamente a todos e que por isso mesmo os interesses se convergiriam no

sentido de ver a cidade desempenhando suas funções intrínsecas.

Tal suposição, presente em muitos estudos jurídicos se atém a uma imagem de

cidade harmônica, onde é possível a aliança das diversas forças sociais no seu interior, com

a finalidade de construírem juntos à cidade, entretanto, tal ideal se encontra mais na ficção

da lei do que no real. Os intérpretes do direito tendem a ignorar os processos reais

vivenciados e lutam para impor uma interpretação sobre a cidade.

A maneira como os agentes se relacionam e constroem a cidade implica a

definição de amplos sentidos e funções ao espaço. Isso sugere que os agentes sociais

estão em constante conflito com eles próprios no desejo de impor sua maneira de se

relacionar com os espaços da cidade, de modo que não haveria um interesse superior

compartilhado por todos aqueles que habitam e sim vários interesses por vezes

convergentes, por vezes divergentes sobre como a cidade deve ser, não sendo a realização

das funções sociais suficiente para explicar ou promover uma aliança entre os grupos

sociais. Ademais, a noção de “função social” somente tem sentido se enraizada nos

contextos sociais, onde for aplicada.

Todavia, para o Direito as funções sociais são determinadas a partir de critérios

técnicos incorporados do urbanismo, ciência e arte de ordenar o uso da cidade. Eis, então,

que é delineado o papel do direito em todo o processo de resolução dos problemas sociais e

ambientais ocasionados pelo que se convencionou ser “urbanização acelerada”.

O papel do direito fica, então, circunscrito a instituir mecanismos de ordenação

da cidade e de seus habitantes para a perfeita realização das funções sociais da cidade.

Nesse sentido, o direito à cidade consiste, justamente, no direito de ter as funções da cidade

à disposição da sociedade.

Do “caos urbano” ocasionado pela ocupação irregular, nasce à necessidade de

normas jurídicas para disciplinar o comportamento dos “citadinos” em promover o interesse

público de uma “cidade sustentável”. O direito tem desse modo, justificada sua necessidade

e passa a ser considerado instância de mediação e congregação dos esforços coletivos em

busca de uma cidade que pode ser considerada ideal.

Assim, a ordem passa a ser o imperativo da vez:

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Quanto à ordem urbanística, constitui ela o alvo de todas as estratégias integrantes da política urbana, de modo que todos os esforços públicos e privados devem objetivar a sua formação, onde ainda não estiver implementada; a sua preservação, onde já estiver formada, a sua melhoria, quando maiores puderem ser os elementos de satisfação dos interesses gerais; e sua restauração, quando tiver sido rompida por evento nocivo ao interesse público. (CARVALHO FILHO, 2006, p.12)

Sendo expressão do poder político, o direito não fica alheio a esses assuntos e,

dessa forma, seus intérpretes procuram impor sua visão de cidade. Desse modo, notamos

no espaço social, diferentes modos de interpretar e agir sobre a cidade. Dentre elas existe

uma expressa nos documentos normativos e nas doutrinas que visam explicá-los.

Na doutrina majoritária, a função do direito é de coordenar o mundo social sob

sua jurisdição, é organizar a sociedade e direcioná-la para o caminho do “bom” e do “justo’

segundo o interesse coletivo. Em relação à cidade, sua função é projetar o espaço urbano

“ideal” de convivência humana, onde possa reinar a paz e a concórdia entre os habitantes.

Por este raciocínio, é possível inferir que a ordem jurídica vislumbra a cidade

como espaço de habitação e relação humana, onde o que impera são interesses individuais

de apropriação do solo da cidade e dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. Nesse

cenário, uma devida intervenção do Estado, ordenando a apropriação e o uso do espaço,

seria capaz de estabelecer a aliança necessária entre as diferentes forças sociais existentes

e com isso proporcionar a realização das funções sociais da cidade.

Os conflitos pela apropriação dos bens e serviços dão à exata medida do quadro

existente nas cidades. Segundo Silva, esse processo acarreta a deterioração do ambiente

urbano, provocando desorganização social, com carência de habitação, desemprego,

problemas de higiene e de saneamento básico, modifica a utilização do solo e transforma a

paisagem urbana (SILVA, 2006).

Isto ocorre porque cada um pretende obter para si maiores vantagens, de modo

que se faz necessário à presença estatal. O Estado, além de normatizar o acesso das

pessoas aos bens e serviços disponíveis na cidade, deve coordenar os múltiplos esforços

para promover o seu desenvolvimento, sendo este o interesse maior de todos aqueles que

habitam a cidade.

Portanto, justificada a necessidade de criação jurídica para a resolução do

problema da ocupação e uso do espaço, que se encontra em desarmonia. A função do

direito é intervir no espaço, ditando normas de como “deve ser”, pois os indivíduos na sua

ânsia desmedida por se apropriar dos bens não conseguem incrementar por suas próprias

vontades um agir e pensar coletivo.

O alcance do interesse público, aquele que satisfaria ao desejo de todos só

encontra força para sua concretização somente por meio de uma “mão forte”, contrária a

“mão invisível” de Smith, que se sobreponha a todas as vontades individuais. Tal força é

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delegada ao Estado, por um ato de pura necessidade e racionalidade. Assim, o Estado

ganha o poder de decifrar o que seria esse interesse público.

Criado para, supostamente, atender a esse interesse, as ações estatais ganham

respaldo e legitimidade. E como forma de implementar as ações e transformações na

sociedade que seriam do desejo de todos, o Estado dispõe do direito enquanto instrumento

de força capaz de fazer acontecer as vontades propostas pela sociedade e interpretadas

Estado.

O direito deve, seguindo este raciocínio, ordenar a ocupação e o uso da cidade

para o alcance do interesse público. O interesse público é o aspecto aglutinador e

legitimador da atuação do Estado nos espaços da cidade, o qual encontra seu fundamento

na própria ordem jurídica. Ela instituiu a ordenação do espaço como meio de garantir o bem-

estar da população, conforme Silva:

Em uma cidade desordenada esses usos desenvolvem-se promiscuamente, com grande prejuízo ao bem-estar da população. Ordenar esses usos é um dos meios de realizar a exigência constitucional de que a Política Urbana vise a garantir o bem-estar dos habitantes da cidade [...]. (SILVA, 2006, p.270)

Meirelles vai mais longe e após justificar a necessidade de intervenção do Poder

Público na cidade, agindo imparcialmente, impondo restrições à organização do espaço,

aponta uma suposta essência do ser humano que é de se apropriar dos bens

individualmente sem se preocupar com o próximo, afinal, segundo o autor: “o egoísmo é da

natureza humana” (MEIRELLES, 2001), fato que ocasiona a indispensável intervenção de

um poder supremo para promover o interesse da coletividade.

Por este viés, fica acentuada a situação de urgência de intervenção urbana para

restabelecer a ordem ao espaço urbano. A ordem urbana tem como parâmetro o disposto

em lei, assim à operação consiste em enquadrar as situações sociais ao modelo do que

previamente definido. Portanto, a cidade do direito é um local de problemas e desordens,

onde é imperioso intervir para transformá-la.

A transformação se opera, então, convertendo a “cidade ilegal”, aquela fora dos

padrões jurídicos, na “cidade legal”, considerada “boa”, “justa” e “sustentável”, segundo os

novos padrões urbanísticos. Para realizar tal conversão, o Poder Público necessita

consolidar seu domínio sobre o território e a primeira operação necessária é definir os

limites do urbano para poder separá-lo da sua negação, o rural.

As operações de separação e classificação do território são operações de poder,

tem por objetivo fixar determinada forma de poder sobre o território. A separação da parte

urbana da parte rural demonstra esta relação no sentido de que os critérios utilizados são

passíveis de discussões, pois não tem a pretensão de atender as demandas das pessoas

que vivem nessas áreas as quais passam a ter suas “práticas sociais” limitadas pelo critério

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classificatório pretensamente científico, cuja arbitrariedade não está tão claramente

demonstrada18. Observa-se que o objetivo de divisão e delimitação do espaço pelo direito,

assim como os procedimentos realizados por outras ciências, tem por finalidade aumentar o

controle do Poder Público sobre o espaço.

5 CONCLUSÃO

Pensar a cidade para além de sua demarcação formal é um esforço reflexivo

com vistas a perceber como se estabelece relação entre as diferentes formas de organizar o

território na cidade, a formal instituída nos documentos legais e aquelas elaboradas e

vivenciadas pelos diferentes grupos sociais, e, por esse caminho questionar as políticas

públicas pensadas de maneira universalizante para cada parcela da área rural ou urbana do

município.

Por vez, os estudos jurídicos reconhecem a existência de conflitos pela

apropriação e uso do solo urbano, porém acreditam que uma intervenção estatal eficaz

resolveria o problema, uma vez que o interesse público considerado superior às disputas

individuais atenderia aos anseios de todos aqueles que vivem na cidade. Esta maneira de

perceber a cidade inibe qualquer tentativa de vislumbrar os interesses específicos dos

diferentes agentes sociais os quais disputam o direito de representar e ordenar o seu próprio

território.

Como visto a cidade para o direito é pensada sempre como espaço de

intervenção no qual o Estado atua com vista a promover o interesse público descrito no

plano. O instrumento chave para a definição do que seria este desejo oculto de toda a

sociedade local, considerado único modo possível de conferir a tão desejada ordem ao

espaço da cidade.

Assim, tomando para si, a função de ordenar o uso do espaço na cidade, o

Estado institui instrumentos políticos e jurídicos mediante os quais desempenhará esta

função, porém o faz, primeiramente, utilizando-se de um projeto único de cidade criado a

partir da separação da área do município em duas grandes áreas de intervenções e

repartição de competência, a rural e a urbana. Para além do rural e do urbano, a cidade

vivencia uma infinidade de cidades.

Portanto, a fragmentação do espaço em categorias estanques e apartadas é o

primeiro passo para o controle sobre a base física da cidade e das relações que se erigem

sobre ela, o segundo são as ações propriamente ditas as quais têm seu fundamento no

18

Sobre a classificação arbitrária do território da cidade em rural e urbano ver: LIMA, Rosirene Martins Lima. O rural no Urbano: Uma análise do processo de produção do espaço urbano de Imperatriz- AM. Ética, 2007 e VIEIRA, Judith Costa. A cidade real na cidade formal: um estudo sobre a construção da territorialidade do quilombo do Maicá em Santarém-Pará. Manaus: UEA, 2008. (Dissertação defendida ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas).

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planejamento urbano onde são desenhados os objetivos supostamente universais dos

“citadinos”.

O planejamento urbano pressupõe a construção de um consenso entre os

grupos sociais, consenso este, por vezes, construído pela força impositiva dos dispositivos

legais e tomando por base os limites e as formas territoriais determinadas pela lei,

desencadeando um conflito entre o “modelo legal” e as formas espaciais que os grupos

escolhem para viver, já que os laços de solidariedade e cooperação dos grupos sociais não

encontram seus limites delimitados pela ficção legal.

Por este prisma, a cidade aparece mais como um verdadeiro campo social em

conflito, onde diversas forças disputam o poder de controle sobre o espaço. Assim, se de

um lado tem-se a atuação estatal impondo uma maneira de ordem sobre o espaço da

cidade, através do planejamento, do outro, percebe-se grupos sociais projetando uma

peculiar forma de viver sobre o espaço.

Assim, se o planejamento é o instrumento estatal capaz de transformar espaços

estriados com subjetividades em espaços lisos homogeneizados e controlados, há uma

reação a ele no sentido de recriação dos territórios sociais na cidade, onde os espaços são

preenchidos de sentidos e valor pelos grupos ao mesmo tempo em que estes territórios

recriam e refletem o modo de vida desses mesmos grupos (GUATARRI, 1985, p.116)

Apesar da incorporação de termos como “gestão democrática” da cidade cada

vez mais presente nos instrumentos normativos, os procedimentos que se arrogam como

realizadores da gestão democrática da cidade, como por exemplo, o planejamento urbano,

devem ser observados com cautela, pois a simples adoção dos mesmos não significa que a

totalidade dos interesses nos rumos na cidade, esteja, efetivamente, sendo incorporada do

processo de tomada de decisão

Desse modo, a imposição da idéia de planejar tem como suporte uma

necessidade de por ordem no espaço das cidades. Contudo, o que ocorre, não é falto de

ordem na cidade, pois se explicássemos os muitos fenômenos de ocupação do espaço por

este viés, seríamos obrigados a pressupor a existência de uma única ordem a coordenar o

imaginário social, quando em verdade o que se passa é que cada grupo possui uma ordem

própria, objetivos e interesses que determinam a maneira como tais grupos se apossam da

terra, recurso natural, base física de sobrevivência, e constroem seus respectivos territórios.

A visão que coloca sempre em primeiro lugar o fato de que a ocupação humana

se deu de forma desordenada por falta de ordem institucional impede de procurar entender

os fatores sociais que motivam as referidas ocupações, bem como, a ordem embutida em

cada uma delas, afinal de contas, para se relacionarem entre si os homens criam normas

sociais que dirigem suas condutas, sua ação sobre o mundo material.

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A organização dos grupos sociais por meio de identidades coletivas denota uma

forma de expressar por meio de suas lutas, suas leituras sobre a cidade e a defesa de seu

projeto de ocupação do espaço social. Portanto, a etnicidade construída por tais grupos

possui um caráter reivindicativo, estabelecendo “novas” formas de relacionamento político

na cidade.

Portanto, a cidade é construída e lida por distintos agentes, os quais nem

sempre se colocam de forma harmônica. Se de um lado, a cidade se faz pensar pelos

instrumentos jurídicos; por outro, se faz pela emergência de novas categorias políticas no

espaço urbano, que reivindicam o direito de ordenar e deter o controle sobre seus próprios

territórios, e somente um estudo das situações específicas e concretas e capaz de

desvendar a ordem e o sentido da cidade para cada grupo.

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AS LEIS DO BABAÇU LIVRE E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: uma análise do conflito de interesses nas disputas socioambientais das regiões urbanas do Maranhão

Luane Lemos Felicio AGOSTINHO1

RESUMO

A construção do direito sempre se deu por meio das disputas de interesses dos grupos que formam a sociedade. A propositura do Projeto de Lei Estadual nº 154/08, visando excepcionar a proibição de derrubada de palmeiras nas áreas urbanas de regiões metropolitanas do Estado do Maranhão evidencia o conflito existente entre a legalização dos interesses econômicos e a preservação do meio ambiente e do modo de vida das comunidades tradicionais de quebradeiras de coco babaçu nas regiões urbanas do Estado. Palavras-chaves: Desenvolvimento Econômico; Conflito Socioambiental; Comunidades Tradicionais.

ABSTRACT The construction of the law always made by the disputes of interests of groups that form the society. The commencement of the Project of State Law nº 154/08, derogations to the ban on felling of palm trees for babassu in urban areas of metropolitan regions of the State of Maranhão highlights the conflict between the legalization of economic interests and preserve the environment and how of life of traditional communities of babassu coconut quebradeiras in urban regions of the state. Keywords: Economic Development, Conflict Socio environmental; Traditional Communities.

1 INTRODUÇÃO

O discurso ambiental tem invadido o campo jurídico, social, político e econômico

com força suficiente para orientar as ações e tomadas de decisões nas mais diversas áreas

do relacionamento humano. Certamente, é a bandeira ecológica a que ainda consegue

agremiar os mais heterogêneos grupos e interesses, independentemente de sua posição

político-ideológica, na medida em que faz às vezes de um discurso universal contra o qual

ninguém tem nada a proclamar. Porém, sob os interesses universais dos instrumentos

legais no âmbito do Direito Ambiental se “escondem” seus particularismos.

O campo do discurso ambiental, como qualquer outro espaço de relações

sociais, é também um lugar de conflitos de interesses e de lutas pela afirmação das

1 Advogada. Aluna do Mestrado em Direito Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Bolsista da FAPEMA. Trabalho desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa-CNPq: “O Direito e as Quebradeiras de Coco”, coord. Prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto.

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necessidades dos grupos que são diretamente influenciados (e influenciadores) do meio

ambiente.

Um dos principais palcos de conflito, na ótica ambiental, é a disputa pelos

espaços. Nas regiões rurais, ela é travada em função do avanço das monoculturas e da

pecuária, que invadem os territórios formando grandes ilhas de interesses homogêneos e

dominantes.

Já nas regiões urbanas a disputa é travada entre a preservação e a conquista. A

preservação diz respeito não só às florestas, mas também, como no presente caso, de

proteção da vida e da cultura de comunidades inteiras, que se relacionam com o meio

ambiente como fonte primeira de seu sustento e reprodução.

A conquista, por sua vez, baila no ritmo do progresso e do mercado, que ditam a

relevância ou a prevalência de certos interesses sobre outros. O pensamento evolucionista

do mercado é sempre de alargar, abranger, alcançar espaços maiores e um maior número

de oportunidades e ofertas.

Tais conflitos não raro saem da esfera do particular e adentram o mundo jurídico

através da elaboração de leis e normas que buscam legitimar os diferentes interesses. A

busca se torna, portanto, não apenas pelo espaço físico, mas também pelo espaço político

de cada grupo e seu reconhecimento diante da sociedade.

Na realidade maranhense, em especial na região dos cocais, as políticas

governamentais surgem com forte incentivo ao mercado de commodities2. Já na área

metropolitana de São Luis, o interesse estatal atualmente tem se voltado para a

implementação de grandes projetos industriais, além da expansão do mercado imobiliário.

Essas políticas, apesar de serem o ícone da intenção desenvolvimentista do

Governo e do desejo da economia interna, não atendem às perspectivas das comunidades

tradicionais que vivem da cultura extrativista. A bem da verdade, o extrativismo pouco

aparece nas estatísticas e políticas governamentais, apesar da relevância dessa atividade

para a reprodução física e social dessas comunidades.

É nesse contexto que, lutando contra a maré mercantil, surgiram as Leis do

Babaçu Livre, as quais “tradicionalmente têm mantido aberto o uso do recurso natural sob a

modalidade de uso comum” (ALMEIDA, 2005, p.30). Mas para além da garantia e da

manutenção do modo de produção e sustento destes povos tradicionais maranhenses,

através do livre acesso, tais leis têm a intenção de fazer inserir os interesses dessas

comunidades no circuito político-legal, trazendo à evidência seus direitos, a ponto de

poderem alcançar a altura de voz necessária para dialogar com os demais setores da

sociedade em pé de igualdade.

Portanto, a aprovação de uma Lei Estadual capaz de garantir a preservação das

2 A respeito do avanço do mercado de commodities sobre as culturas extrativistas da região dos cocais ver ALMEIDA, 2005.

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matas nativas de palmeiras de coco babaçu tem não só o mote ambiental conservacionista,

mas também a forte mensagem política do reconhecimento e afirmação dos povos

tradicionais que a mantêm em prol de seus direitos.

Recentemente, entretanto, tais conflitos de interesse retornaram ao campo

legislativo, quando a Assembléia Legislativa maranhense propôs alteração para a Lei

Estadual nº 4734/86, buscando inserir em seu texto uma exceção à proibição de derrubada

de palmeiras, especificamente para áreas urbanas. A justificativa do projeto de lei é

expressamente “possibilitar o desenvolvimento econômico dessas áreas”. Tal realidade nos

remete a uma indagação: estará o Estado maranhense aquém ou além do discurso

socioambiental?

Essa conjuntura de conflitos de interesses e afirmações sociais faz parte do

objeto do presente estudo, no qual buscamos analisar a construção do direito como um

instrumento social dinâmico.

2 A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DA LEI ESTADUAL Nº 4734/86

As Leis do Babaçu Livre surgiram da necessidade das populações tradicionais

de quebradeiras de coco babaçu de obstar o avanço da devastação dos babaçuais, além da

reivindicação pelo livre acesso a referidas áreas para manutenção do seu modo de vida

extrativista. Tais pontos jamais poderiam andar desvencilhados um do outro, em virtude da

impossibilidade de se lutar pelo acesso a um recurso natural que inexiste.

O primeiro artigo das leis municipais, portanto, faz referência ao livre acesso às

palmeiras de babaçu concedido às “quebradeiras de coco e suas famílias, que as exploram

em regime de economia familiar e comunitária”. O segundo estabelece a proteção das

palmeiras contra corte ou qualquer ato que as danifique. Os artigos imediatamente

seguintes dispõem sobre as penalidades a serem aplicadas pelo poder público e a

responsabilidade pela fiscalização do cumprimento destas leis.

O estopim para a produção das leis foi o crescente cercamento e privatização

dos campos. A fim de acompanhar a lógica do mercado, as grandes fazendas e latifúndios

do Estado passaram a desbastar as áreas de palmeiras para implantar os campos e pastos

da pecuária leiteira e de corte. Em seguida vieram as monoculturas da soja e arroz.

Atualmente os conflitos são gerados pelas commodities (ALMEIDA, 2005).

Para além do discurso ambiental, a aprovação das Leis do Babaçu Livre rompe o

mundo jurídico como uma conquista política, afirmativa dos modos de “viver, fazer e criar”3

dessas comunidades tradicionais.

Mas as conquistas pontuais dos municípios e regiões também ocorreram no

3 Segundo a definição de cultura estipulada no art. 205 da Constituição Federal brasileira.

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âmbito estadual. A Lei Estadual foi aprovada em 1986 e, apesar de não constar a previsão

legal do livre acesso às comunidade de quebradeiras de coco babaçu, a norma instituiu a

proibição da derrubada das palmeiras4.

Em meados de 2008, porém, a Assembléia Legislativa propôs alteração para o

primeiro artigo da Lei Estadual nº 4734/86. O Projeto de Lei nº 154/2008, de autoria do

Deputado Edivaldo Holanda (PSC), propunha em um único artigo:

Art. 1º. O caput do art. 1º da Lei nº 4734/86 passará a ter a seguinte redação: Fica expressamente proibida a derrubada de palmeiras de babaçu em todo o território do Estado do Maranhão, exceto em áreas urbanas de municípios que componham regiões metropolitanas e em cidades com população acima de 500.000 habitantes.

O projeto de lei excetua as limitações impostas ao corte das palmeiras para as

áreas urbanas do Estado. Evidentemente, a exceção aplica-se às áreas fortemente

ocupadas, onde se desenvolvem os grandes nichos de mercado e indústria.

No parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final da

Assembléia Legislativa o interesse do Projeto de Lei ficou explícito na seguinte frase: “o

intuito do projeto é possibilitar a derrubada de palmeiras de babaçu nas áreas urbanas do

Estado do Maranhão, a fim de possibilitar o desenvolvimento econômico do Estado” (2008,

p.01).

Antes do referido Projeto de Lei e no mesmo ano (2008), o Deputado Estadual

Tatá Milhomem (DEM) havia apresentado outro projeto com mesmo teor, denominado pelos

movimentos sociais de “morra o babaçu”, o qual foi aprovado pela Assembléia, mas recebeu

veto integral do então Governador do Estado.

Em defesa ao seu Projeto de Lei o Deputado afirmou “que é preciso evitar que o

crescimento de uma cidade não aconteça porque se tem de preservar uma palmeira”

(HELUY, 2008).

A exceção à regra demonstra o conflito existente. De um lado a luta pelo

reconhecimento das práticas extrativistas e preservação do recurso base do modo de vida

das comunidades tradicionais, do outro o interesse em diminuir as limitações para o

crescimento e implantação de grandes empreendimentos econômicos, industriais e

imobiliários nos centros urbanos.

De acordo com HANLEY, SHOGREN e WHITE (1997 apud VARELA, 2008,

p.252) “cada ação econômica gera algum efeito sobre o ambiente e cada mudança no

ambiente gera um impacto sobre a economia”5. Essa co-relação entre economia e meio

ambiente tem ditado o caminho pelo qual hão de trilhar as relações humanas. O fato é que

4 Sobre o surgimento das Leis do Babaçu Livre e seu fundamento político e social ver SHIRAISHI NETO, Joaquim. Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das Quebradeiras de Coco Babaçu e normas correlatas. Manaus: PPGSCA-UFAM/Fundação Ford, 2006 5 Tradução da autora.

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nem sempre se vislumbram os verdadeiros impactos ambientais causados pelas chamadas

externalidades de mercado, uma vez que frequentemente se pensa o ambiente dissociado

do humano.

Portanto, mais do que prejuízos econômicos para uma parcela da população que

mantém sua reprodução física deste tipo de atividade, os danos neste caso também são

contabilizados na esfera social e cultural, com o impedimento da reprodução dos modos de

fazer e criar dessas populações tradicionais e o surgimento dos conflitos sociais gerados em

função do desequilíbrio da produção extrativista e do não reconhecimento das suas práticas

tradicionais.

Com efeito, as externalidades do mercado não estão somente consubstanciadas

no desmatamento, no lançamento de poluentes ou na má destinação de resíduos sólidos.

Os impactos sociais de uma economia homogeneizadora, que tendem a competir com

outros estilos de vida diferenciados e marginalizados, são a principal externalidade negativa

das ações econômicas.

Por outro lado, o Projeto de Lei, tal como foi apresentado, revela graves

disfunções com relação ao direito ambiental e urbanístico, apresentando-se como um

retrocesso legislativo e principiológico, como passaremos a analisar mais detidamente.

2.1 Aspectos ambientais e urbanísticos do PL nº 154/08

Ordem urbanística é o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos. A ordem urbanística deve significar a institucionalização do justo na cidade. Não é uma “ordem urbanística” como resultado da opressão ou da ação corruptora de latifundiários ou especuladores imobiliários, porque aí seria a desordem urbanística gerada pela justiça. (MACHADO, 2009, p.392)

A ordem urbanística teoricamente seria a conjuntura normativa que possibilitaria

ordenar o espaço urbano de modo a permitir a construção de um ambiente coletivo capaz

de atender aos interesses mínimos dos diversos grupos sociais que o compõe, como bem

afirma Machado no trecho acima.

Mas os espaços urbanos na atualidade têm sido elaborados de modo antagônico

a esse ideal. Apesar do enorme esforço teórico e jurídico da construção de um “direito à

cidade”, principalmente após o advento da CF e do Estatuto das Cidades (Lei nº 10257/01),

que permitiu grandes avanços no debate urbanístico, este ainda está dissociado do discurso

ambiental e da própria realidade urbana (SHIRAISHI NETO, 2008, p.02).

Em outras palavras, há várias cidades em uma só, na medida em que a cidade é fragmentada e que cada fragmento expressa as diferenças espaciais e os interesses em jogo. A formação e organização do território revelam uma contínua luta de dominação e de insubordinação. Nessa perspectiva, o espaço urbano aparece como

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um verdadeiro campo de forças diversas e antagônicas, que a todo instante se encontra em conflito. (SHIRAISHI NETO, 2008, p.04-05)

Teoricamente, portanto, acredita-se na possibilidade da ordenação do espaço

urbano a partir da homogeneização de seu aspecto. Porém, a realidade é outra. As cidades

são formadas por guetos e nichos de interesses que, como afirma SHIRAISHI NETO, se

transformam em um incessante “campo de forças diversas e antagônicas”.

Ou seja, cada espaço urbano ou aglomeração humana é um composto de

grupos e de interesses diversos, que nem sempre se coadunam. Portanto, quando se pensa

um espaço urbano, ideal seria que se pensasse da forma mais aberta possível, a fim de se

possibilitar, aos inúmeros grupos que o compõe, a manutenção mínima de seus direitos.

A Lei Estadual nº 4.734/86, em sua redação original, apresenta a proibição de

derrubada das palmeiras. Porém, nos incisos que se seguem ao caput do artigo primeiro,

são elencadas as exceções à referida regra, as quais obedecem a lógica do interesse social

e garantem a manutenção de parte da vegetação para sua reprodução.

Certamente, ao estabelecer exceções o legislador procurou vislumbrar o

interesse de outros grupos, inclusive os econômicos, buscando não inviabilizar a utilização

das propriedades, desde que racionalmente utilizadas.

Por sua vez, o Projeto de Lei nº 154/08 veio de encontro à lógica do

planejamento aberto, estabelecendo exceção à regra da proibição de derrubada de

palmeiras para as áreas urbanas, de modo genérico, homogêneo e sem qualquer motivação

específica.

A expressão “exceto em áreas urbanas de municípios que componham regiões

metropolitanas”, em termos do direito urbanístico, desfaz qualquer pretensão de

planejamento ou adequação à realidade local. Ou seja, não há nada que limite ou impeça a

derrubada, basta que a área seja dentro de um perímetro urbano.

O Projeto fere ainda a competência municipal para legislar sobre assuntos de

interesse local. A exceção é estabelecida às “áreas urbanas de municípios que componham

regiões metropolitanas e em cidades com população acima de 500.000 habitantes”. Mas

essa mesma especificação é feita pelo Código Florestal (art. 2º, parágrafo único) para

determinar a obediência do corte da vegetação às normas estabelecidas em leis municipais

de uso do solo, ou seja, aos interesses locais.

Com efeito, a Constituição Federal estabeleceu a competência municipal para

“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e

controle de uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (artigo 30, inciso VIII). A

permissão da Lei Estadual para a derrubada das palmeiras nas áreas urbanas

metropolitanas retira do Município a faculdade de promover seu “adequado ordenamento”

nos termos e no limite de seus interesses e realidade social.

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Além da afronta à competência municipal e da impossibilidade do planejamento,

em uma análise ambiental propriamente dita, a exceção estabelecida pelo Projeto é

estranha ao normalmente estabelecido pelas normas ambientais que permitem o

desmatamento de uma área protegida apenas quando tal ação tiver uma contrapartida

social, ao exemplo do artigo quarto do Código Florestal (art.4º):

A supressão da vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativamente técnica e locacional ao empreendimento proposto.

Não há nenhuma previsão, portanto, em termos ambientais, de uma exceção

feita da forma do PL nº 154/08, a qual excetua uma regra tipicamente protetiva apenas em

função da área urbana. Pelo contrário, o planejamento do desbaste em áreas urbanas é

ainda mais rigoroso, pois são nessas áreas que ocorrem os maiores riscos à cobertura

vegetal, criados pelos interesses expansionistas próprios das cidades.

Segundo o Ministério Público Estadual6, há ainda um agravante na apresentação

do Projeto de Lei em referência: ele viola o princípio da “proibição do retrocesso”:

Tal violação acontece por que a exceção apresentada é diferente e desproporcional daquelas já existentes na própria lei estadual nº 4734/86. A exceção criada não está fundamentada em objetivos sociais que, pela sua dimensão, justificariam o sacrifício do direito ao ambiente. Pelo projeto, qualquer interesse, ainda que puramente pessoal, ou por espírito de pura destruição, estará albergado nessa norma. Tal situação caracteriza retrocesso no que foi alcançado de direito social para a proteção do babaçu, cuja importância transcende os legítimos interesses do extrativismo.

Pelo dito princípio, o direito como um todo não pode retroceder suas conquistas,

especificamente no tocante aos direitos sociais. O amparo legal proporcionado pelo

ordenamento às mais diversas situações sociais deve ser progressivo, à medida que

estende seu alcance sobre as relações humanas.

A permissão da derrubada de palmeiras em áreas urbanas, portanto, sem

qualquer limitação ou compensação, é um retrocesso à preservação da cobertura vegetal e

à garantia do uso racional da propriedade privada. Para além disso, o impacto cultural e

social sobre as comunidades tradicionais é incalculável.

3 OS IMPACTOS DA ALTERAÇÃO SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS

A despeito das incongruências legislativas e jurídicas do Projeto de Lei nº154/08,

o maior impacto de sua eventual aprovação será em função das comunidades tradicionais

6 Ofício nº 286/2008 de 02/09/08 da 3ª. Promotoria de Justiça Especializada na Proteção ao Meio Ambiente, Urbanismo e

Patrimônio Cultural de São Luis, remetido à Comissão de Meio Ambiente, Minas e Energia da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão, referente ao “Projeto de Lei nº 154/08. Inconstitucionalidade”

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que se utilizam desses recursos naturais para a sua reprodução física e social.

As quebradeiras de coco babaçu, reconhecidas como comunidade tradicional

para fins manutenção e preservação do seu modo de vida, há muito travam batalhas nos

campos político e legislativo com o intuito de garantir o acesso e uso comum das palmeiras

de coco babaçu e sua preservação contra o corte e o uso irracional.

Como dito ao início deste estudo, a edição de leis e a penetração no

ordenamento jurídico por parte destes grupos possuem não só a intenção de salvaguardar

seus direitos, mas também de permitir a inserção destes grupos no campo dos debates

onde os direitos são construídos e conquistados.

Trata-se do reconhecimento das práticas destes grupos como legítimas e

legitimamente capazes de concorrer com os interesses mercantis e comerciais na luta pelo

espaço físico e político dos aglomerados humanos. Trata-se do pronunciamento oficial

acerca de seus interesses e de sua percepção na arena do poder social.

Assim, antes de tudo e de mais nada, a discussão em torno do Projeto de Lei

Estadual nº 154/08 se projeta na conquista do espaço de poder político que caberá ao grupo

que alcançar firmar seus objetivos por intermédio da alteração ou manutenção da Lei

Estadual.

Mas afora o embate político desenvolvido na ponta do iceberg, os reflexos

sociais escondem-se abaixo da superfície polida do ordenamento jurídico. O impacto social

e econômico a ser sofrido pela eventual aprovação da alteração pretendida excedem o

debate do direito e passam ao modo real, do dia a dia, onde centenas de famílias são

diretamente influenciadas pelas políticas públicas desordenadas.

Em se tratando da permissão do corte nos municípios de regiões metropolitanas

pode-se considerar que inexiste danos às comunidades tradicionais, uma vez que imagina-

se estarem estas comunidades nas zonas rurais e não em áreas urbanas.

Entretanto, na periferia das “grandes” regiões metropolitanas maranhenses ainda

há um número considerável de famílias que se utilizam do extrativismo como fonte de renda

complementar ou até mesmo principal. Em algumas áreas da região de Imperatriz, bairros

inteiros vivem da atividade de coleta e quebra do coco babaçu, motivo pelo qual também foi

aprovada naquele Município uma Lei do Babaçu Livre. Há, porém, uma forte tendência em

homogeneizar a realidade dos diversos grupos sociais que compõe os espaços urbanos.

Por outro lado, a lei não é feita apenas para o momento presente, mas para se

perpetuar no tempo até que interesses supervenientes a revoguem. Em uma análise

bastante singela da progressão do interesse mercantilista de nossa era globalizada,

percebemos que a pretensão do mercado é expandir, conquistar, agregar e consumir. Desta

feita, a tendência para o avanço da derrubada das palmeiras segue a mesma sorte.

Tomemos como exemplo o mercado imobiliário, que está em expansão na

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região de São Luis. Quanto maior for a necessidade do mercado em expandir suas

fronteiras, lançando novos e mais modernos empreendimentos imobiliários, maior será a

quantidade de áreas devastadas e, proporcionalmente, de impacto social gerado sobre as

comunidades tradicionais que usam o recurso natural para sua sobrevivência.

De igual modo, a tendência do mercado imobiliário, com o inchaço da cidade e a

ocupação das regiões centrais, é expandir sua área de atuação para as periferias onde

ainda haverá espaço para construir e o metro quadrado será mais atrativo para as

construtoras.

Esse fenômeno já encontra guarida na própria política habitacional do Governo

Federal que tem incentivado a aquisição de casa própria pela classe média. Em busca de

maiores lucros e custos mais baixos, as construtoras têm projetado e executado unidades

habitacionais em bairros periféricos da cidade.

Percebe-se, então, que ao permitir a derrubada das palmeiras nas áreas

metropolitanas, o Estado estabelece a preservação da cobertura vegetal em sentido

inversamente proporcional ao crescimento econômico e urbano dos municípios, ou seja,

quanto mais crescem as áreas urbanas, menos se preservará os recursos naturais.

Esta lógica é completamente inversa a toda a intenção das normas ambientais,

que pretendem promover maior proteção aos recursos naturais quanto maior for a

possibilidade de extingui-los. Não só isto, mas também vai de encontro às tendências

modernas dos direitos sociais, que têm avançado em direção à garantia do pluralismo

cultural e da manutenção dos modos de vida dos diversos grupos sociais, em especial os

povos e comunidades tradicionais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações aqui explanadas nos conduzem a uma reflexão sobre a

propositura do Projeto de Lei Estadual nº 154/08 no sentido de nos questionarmos a respeito

da prática política da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão: estará o Estado

maranhense aquém ou além do discurso socioambiental?

A “visão” política que impulsionou a propositura do Projeto em comento

certamente está voltada para o “futuro”, ou mais precisamente, para as possibilidades do

mercado e de um pseudo “desenvolvimento econômico” das regiões urbanas, como

justificou o relatório da Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final.

Mas em termos socioambientais o Projeto apresenta-se como um verdadeiro

retrocesso nas conquistas sociais alcançadas, além de ser um contra-senso jurídico

ambiental e urbanístico.

A evidência é de que o Maranhão está bem aquém dos avanços sociais e que

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suas políticas públicas continuam sendo instrumento de negociação de interesses

capitalistas e mercantilistas em detrimento do social.

As comunidades tradicionais têm o desafio de prosseguir na manutenção de seu

espaço, físico e político, na construção de um direito discursivo, forjado pelas conquistas

sociais em prol da preservação de seu modo de vida e de reprodução social.

A elaboração das Leis do Babaçu Livre e a apresentação do Projeto de Lei nº

154/08 é apenas uma amostra do processo da construção desses espaços a partir da

normatização dos interesses de cada grupo em nossa sociedade plural.

REFERÊNCIAS

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