conflitos ambientais e a construção de territórios urbanos em são joão del-rei - mg _ carneiro

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XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 1 de junho de 2007, Recife (PE) Grupo de Trabalho 23: Sociedade e Ambiente Conflitos ambientais e a construção de territórios urbanos em São João del-Rei - MG Autor: Eder Jurandir Carneiro Universidade Federal de São João del-Rei e-mail: [email protected]

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Conflitos Ambientais e a Construção de Territórios Urbanos Em São João Del-Rei - MG _ Carneiro, Eder.

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  • XIII Congresso Brasileiro de Sociologia

    29 de maio a 1 de junho de 2007, Recife (PE)

    Grupo de Trabalho 23: Sociedade e Ambiente

    Conflitos ambientais e a construo de territrios urbanos em So Joo del-Rei - MG

    Autor: Eder Jurandir Carneiro

    Universidade Federal de So Joo del-Rei

    e-mail: [email protected]

  • I- Introduo

    O presente trabalho apresenta algumas concluses parciais de uma extensa

    pesquisa sobre processos de construo de territrios urbanos de classes populares

    em So Joo del-Rei, que vimos realizando nos ltimos trs anos1. Nesse perodo,

    aplicamos surveys domiciliares em 673 domiclios de populaes de baixa renda,

    atingindo cerca de 90% das residncias de oito bairros (so eles: Cidade Nova, So

    Dimas, vila Nossa Senhora de Ftima, Conjunto Habitacional IAPI/JK, vila Brasil, Novo

    Bonfim, guas Gerais e Gameleiras). Os dados dos surveys constituem um banco de

    dados extenso e nico, fornecendo, entre outras, informaes sobre as trajetrias de

    ocupao residencial, origem da populao, situao scio-econmica (renda, cor,

    ocupao profissional, escolaridade), condies ambientais e de saneamento bsico,

    redes de parentelas e associativismo.

    A pesquisa realizou, tambm, levantamentos em fontes documentais e

    arquivos de cartrios e rgos pblicos, alm de observaes de campo e entrevistas

    semi-estruturadas com moradores e representantes de associaes de moradores,

    perfazendo um total de cerca de 30 horas de gravao.

    As informaes assim obtidas deram origem a um conjunto de relatrios e

    trabalhos de carter monogrfico a respeito de cada processo particular de formao

    de territrios urbanos de classes populares. O presente trabalho representa, pois, a

    primeira tentativa de realizar uma anlise de conjunto dos casos. Enfatizam-se, ento,

    as semelhanas e mecanismos que, para alm das idiossincrasias de cada caso,

    evidenciem a ocorrncia de certos padres de construo dos territrios urbanos de

    populaes de baixa renda da cidade, nos quais desempenham papel decisivo as

    aes coletivas e conflitos protagonizados por essas populaes. Por fim, procura-se

    capturar as relaes entre o desenvolvimento desses padres e dinmicas scio-

    econmicas de escala mais ampla que tiveram lugar em Minas Gerais.

    1 A pesquisa tem contado com o trabalho de vrios bolsistas de Iniciao Cientfica (do CNPq e da FAPEMIG) e de extenso (bolsas e apoio da Pr-Reitoria de Extenso da Universidade Federal de So Joo del-Rei. Aproveitamos para agradecer de pblico a inestimvel contribuio dos seguintes bolsistas: Jhony River Raimundo Resende, Priscilla do Carmo Azevdo, Ana Cristina G. Miranda, Pelipe Diego Nazar, Matheus Alves de Barros, Luiz Raimundo T. da Silva, Luiz Felipe M. Candido, Dnis P. Tavares e Lucas Henrique Pinto.

    1

  • II- O objeto terico: conflitos ambientais e construo de territrios urbanos

    A construo do problema de pesquisa partiu de uma crtica conceitual do

    paradigma dominante no campo dos estudos e prticas referentes chamada

    questo ambiental, qual seja, a ideologia do desenvolvimento sustentvel.

    Certamente, no aqui o lugar adequado a uma exposio sistemtica dessa crtica2.

    Bastaria assinalar que essa ideologia supe a chamada questo ambiental

    fundamentalmente como referida ao problema da preservao dos delicados

    equilbrios entre, de um lado, a atividade humana e, de outro, os limites externos a

    essa atividade impostos pela dinmica intrnseca do meio ambiente, entendido como

    o conjunto de ecossistemas que compem a biosfera.

    Desse ponto de vista, o meio ambiente visto como o ente objetivo e uno,

    condio de continuidade da vida no planeta. O diagnstico apresentado pela

    ideologia do desenvolvimento sustentvel , ento, o de que preciso que a

    humanidade faa algo para que se possa compatibilizar o desenvolvimento com a

    preservao do ambiente global, ameaada por uma crise ambiental objetiva que

    pode conduzir a um colapso dos fundamentos da vida na Terra. Consequentemente,

    supe-se que os diversos grupos sociais iro paulatinamente reconhecendo a

    gravidade da situao e aderindo a um programa salvacionista de aes e polticas

    cientificamente fundamentadas. Se sorte, que, medida em que difundisse a

    conscincia ambiental, isto , a percepo do colapso eminente, o programa do

    desenvolvimento sustentvel tornar-se-ia consensual (ACSELRAD, 2004).

    A crtica da ideologia do desenvolvimento sustentvel parte do princpio de que

    no existe algo como o meio ambiente, entendido como realidade una e objetiva.

    Pelo contrrio, entende-se que essa concepo de meio ambiente apenas uma das

    construes simblicas mediante as quais diferentes grupos e classes sociais

    significam as condies naturais. Mais ainda, considera-se que a validao social de

    uma determinao concepo de meio ambiente no resulta de um suposto

    reconhecimento cognitivo de uma realidade una, unvoca e externa (reconhecimento

    que, na ideologia do desenvolvimento sustentvel, atende pelo nome de conscincia

    ambiental), mas sim de lutas simblicas travadas pelos diferentes atores e projetos de

    significao e apropriao das condies naturais.

    Alm disso, em sociedades de classe, as relaes de produo e formas de

    propriedade vigentes implicam a distribuio desigual dos capitais (materiais e

    simblicos), o que, por sua vez, acarreta a distribuio desigual das possibilidades de

    2 Para a crtica sistemtica do paradigma do desenvolvimento sustentvel como ideologia, veja-se CARNEIRO (2005).

    2

  • xito nas lutas pela significao e apropriao das condies naturais. A isso

    denomina-se desigualdade ecolgica ou injustia ambiental3.

    Na sociedade capitalista, em particular, as formas de propriedade determinam

    a primazia da apropriao das condies naturais como fluxo de matrias e energias

    tomadas como condio para a produo de mercadorias com vistas acumulao de

    riqueza abstrata. Dito de outra forma, o imperativo da acumulao faz com que a

    espacializao da economia capitalista (HARVEY, 2005) implique necessariamente a

    captura das condies naturais como condies de produo de mercadorias,

    subsumindo todos os demais significados e propsitos de apropriao dessas

    condies naturais. Numa palavra: a sustentabilidade da economia-mundo capitalista

    s pode se dar s custas da destruio das condies de sustentabilidade de outras

    formas de vida social. Essa poderosa lgica, leva, por mediaes complexas, ao

    estabelecimento de conflitos ambientais, isto , lutas sociais pela apropriao das

    condies naturais. Portanto, dessa perspectiva, o meio ambiente to-somente um

    elemento evocado por grupos sociais especficos para emprestar carter universal a

    seus interesses e concepes particulares em relao apropriao das condies

    naturais.

    Contudo, preciso ter em conta que o objeto dos conflitos ambientais no se

    refere apenas s condies naturais, isto , ao conjunto de elementos e processos

    produzidos pela physis. Com efeito, as situaes descritas como situaes de conflito

    ambiental no colocam frente a frente atores com distintos propsitos de apropriao

    de condies naturais quaisquer. De maneira geral, trata-se de condies naturais

    especficas que esto fundidas com ambientes particulares, construdos pelo trabalho

    humano que, assim, lhes confere uma particularidade. Esses conjuntos determinados

    de condies naturais transformadas e incrustadas pelo trabalho humano objetivado

    so, sempre, apoderados por determinadas coletividades humanas. So, nessa

    medida, territrios. Dessa tica, os processos de construo e apropriao territorial so condio

    intrnseca vida social (MORAES, 2002: 51). Os territrios so a objetivao espacial

    das prticas e conflitos sociais. No falamos, pois, de condies naturais ou meio

    ambiente in abstracto, e sim de territrios4 como singularizaes espaciais de

    distintas sociabilidades humanas. Nessa medida, o conceito de territrio nos permite

    incorporar a dimenso do conflito pela apropriao do mundo material e, ao mesmo

    3 Para uma apresentao histrica e conceitual da noo de justia ambiental, ver Acselrad et al. (2004). 4 Ainda sobre o conceito de territrio, vejam-se Giarraca e Wahren (2005) e Santos (1999).

    3

  • tempo, evitar as concepes naturalistas e consensualistas presentes na noo de

    meio ambiente em que se assenta a ideologia do desenvolvimento sustentvel.

    Dessa forma, cada configurao territorial o resultado, localizado no tempo,

    de prticas e lutas sociais pregressas e, simultaneamente, condio para construes

    e apropriaes territoriais futuras. Portanto, os territrios no so construes

    congeladas, posto que a prpria historicidade das prticas sociais a eles se transfere,

    isto , as configuraes espaciais designadas territrios so um processo histrico.

    A noo de territrio, tal como acima exposta, possui o mrito adicional de

    evitar a bipartio, que acompanha a noo de meio ambiente, em uma natureza

    rara, intocada ou pouco transformada pela ao antrpica (que deveria ser

    preservada), e uma natureza ordinria, tal como aquela com que se fundem as

    cidades (ACSELRAD, 2001: 80)5.

    Alm disso, pensa-se o conceito de territrio como uma construo realizada

    pelo investigador que, com isso, delimita no exatamente um recorte emprico ou uma

    determinada regio geogrfica, mas um espao que , simultaneamente, resultado,

    objeto e condio de lutas por sua apropriao material e simblica. Torna-se assim

    possvel, para efeito de anlise, tomar como objeto territrios de diferentes escalas,

    evitando-se tomar como dadas, por exemplo, as pr-construes que restringem o uso

    do conceito para nomear estritamente os espaos geogrficos que delimitam o mbito

    de validade espacial de uma autoridade poltica (o territrio brasileiro, o territrio

    mineiro, o territrio sanjoanense etc.). Numa palavra, pensa-se o conceito de territrio,

    para alm de sua acepo jurdico-poltica, o que, entre outras coisas, requer que se

    leve em considerao os conflitos entre atores que, em diversas escalas, pretendem

    construir os territrios em acordo com suas concepes e interesses, considerando-

    se, claro, que esses conflitos so mediados pela autoridade poltica. E por meio

    dessa mediao que essa autoridade se (des)legitima, ao (des)legitimar atores,

    conflitos e suas cristalizaes nos territrios.

    Nessa acepo, julgamos legtimo tomar determinados espaos urbanos como

    territrios e examinar os processos por meio dos quais atores disputam sua

    construo material e simblica, ou seja, o provimento do territrio com um conjunto

    de caractersticas - cristalizaes do trabalho humano ou momentos de valorizao

    do espao (MORAES e COSTA, 1984) que lhe confiram um carter socialmente

    reconhecido como urbano - tais como redes de esgoto, de distribuio de gua e de

    5 Contudo, a influncia dessa bipartio faz-se ainda sentir mesmo nos estudos centrados no conceitos de territrio e em sua formao conflituosa, j que a maioria desses estudos toma como objeto emprico as disputas sobre territrios rurais ou representativos de biomas ecologicamente importantes (Mata Atlntica, Cerrados, Floresta Amaznica etc.).

    4

  • energia eltrica, pavimentao de ruas, coleta pblica de lixo, equipamentos de lazer

    etc.

    Parte-se, ento, da hiptese geral de que a construo de territrios urbanos

    habitados por classes populares resulta da interao entre, de um lado, a

    espacializao urbana das desigualdades geradas pela economia de mercado,

    conservadas e aprofundadas por omisses e aes seletivas do Estado, e, de outro,

    as lutas e prticas coletivas organizadas pela populao que, articulando-se a outros

    atores (Igreja, partidos, ONGs, universidade etc.), busca promover formas de

    apropriao do territrio e provimento de servios de infra-estrutura urbana de

    acordo com seus interesses6. O processo de construo de territrios urbanos de

    classes populares tende a ser errtico, dependente da mobilizao da populao e do

    apoio de outros atores, revelando-se um contnuo de conflitos, insucessos e

    conquistas, muitas vezes parciais e sujeitas a retrocessos.

    III- Construo de territrios urbanos de classes populares

    III-1- O contexto da suburbanizao: ascenso e colapso da industrializao sanjoanense

    Cabea da Comarca do Rio das Mortes, So Joo del-Rei se tornou, ao longo

    do sculo XIX, um prspero centro comercial atacadista e financeiro, que se apropria

    de grande parte do excedente produzido na regio, mediante a intermediao do

    comrcio de gneros de abastecimento dentro de Minas e entre Minas e outras

    provncias, principalmente a do Rio de Janeiro. De sorte que formou-se na cidade

    uma poderosa, embora numericamente pequena7, elite comercial-financeira, cujos

    negcios se entrelaavam fortemente com as atividades ligadas agroexportao e,

    mais para o final do Oitocentos, industrializao na Zona da Mata e no Rio de

    Janeiro.

    6 Por contraste, nas reas urbanas habitadas por classes mdias, ou por setores da burguesia, a ocupao do territrio tende a obedecer padres previamente definidos e o provimento de servios bsicos de infra-estrutura urbana realizado, sob a forma de efetivao de direitos pelo Estado, mais prontamente e de forma integral. 7 Compunham essa elite algumas poucas famlias. Alm disso, como demonstra Graa Filho, as relaes de amizade e parentesco, assim como as escolhas matrimoniais eram estratgias comuns de que se valia essa elite para evitar a disperso dos capitais acumulados (GRAA FILHO, 2002: 67-68, principalmente).

    5

  • Entrementes, nas ltimas dcadas do sculo XIX, com o declnio da atividade

    das fazendas produtoras de gneros agropecurios de abastecimento, a elite

    mercantil-financeira investe parte de seu capital em iniciativas que visavam melhoria

    das condies de transporte e instalao de indstrias dos setores txtil e

    alimentcio8. A exemplo do que ocorria na Zona da Mata, So Joo del-Rei viveu um

    significativo processo de industrializao que prolongou-se at a passagem da dcada

    de 1950 de 1960, e se assentava em setores tradicionais, ligados s atividades de

    fiao, produo de txteis, mveis, bebidas, calados, artefatos de couro, laticnios,

    sabo etc. (GAIO SOBRINHO, 1997).

    O perodo recessivo da economia brasileira do incio dos anos 1960 marca o

    princpio de uma crise generalizada da industrializao sanjoanense, embora j se

    verificasse no estado, h algumas dcadas, um declnio relativo das indstrias

    tradicionais9, acompanhado por um desenvolvimento contnuo dos empreendimentos

    ligados ao setor sdero-metalrgico10. Esse movimento traduz a emergncia de uma

    nova burguesia mineira, organizada em entidades como a Federao das Indstrias

    do Estado de Minas Gerais (FIEMG) e, principalmente, a Associao Comercial de

    Minas Gerais (ACMG). Tratava-se de uma elite polivalente, j que constituda por

    pessoas que exerciam, no raro simultaneamente, atividades empresariais, de direo

    poltico-partidria e tcnico-burocrticas (DULCI, 1999).

    Com a retomada do crescimento da economia brasileira, aps 1967, essa nova

    elite pde, enfim, concluir seu projeto de construir, no centro do Estado, mediante a

    atrao de capitais forneos, um consistente parque industrial centrado nas grandes

    indstrias de bens intermedirios, com nfase na minerao e na siderurgia, valendo-

    se das enormes reservas minerais da regio11.

    8 So exemplos a criao da Companhia Estrada de Ferro Oeste de Minas, em 1881 (ligando So Joo del-Rei ferrovia D. Pedro II, que levava ao Rio de Janeiro), a fundao, em 1891, da Companhia Industrial Sanjoanense (ainda hoje em atividade), no setor txtil, e a formao, tambm em 1891, da Cia. Agrcola Industrial Oeste de Minas. Ainda no final do sculo, outras indstrias leves apareceriam, como a Destilaria Castelo, de Zuquim, Silva e Cia. (1890), as fbricas de cervejas Miller (1891) e a Adritica, da Marchetti e Cia (1892) (GRAA FILHO, 2002: 47). 9 Segundo Diniz, um diagnstico realizado pelo BDMG, em 1965, concluiu pela decadncia do setor txtil mineiro (carro-chefe da industrializao sanjoanense), apresentando-se estagnado h dois ou trs anos; [com] baixa produtividade e equipamento obsoleto; queda da produo, matria-prima de baixa qualidade; descuido do reequipamento e da manuteno. (DINIZ, 1981: 143) 10 Em certa medida, o declnio da industrializao sanjoanense reflete uma tendncia mais geral da economia brasileira no perodo. Assim, entre 1949 e 1980, a participao proporcional dos chamados setores tradicionais no valor agregado da indstria nacional caiu de 65,5% para apenas 37%, enquanto a contribuio dos novos setores (concentrados na produo de bens intermedirios) subiu de 34,5% para 63% (NOVY, 2002: 120), caracterizando uma completa inverso. 11 Para uma sntese dos processos de gnese, desenvolvimento e colapso da nova industrializao mineira, veja-se Carneiro (2003, cap. 3).

    6

  • A recesso econmica dos primeiros anos da dcada de 1960 e, na seqncia,

    o deslocamento efetivo do eixo da industrializao em Minas para a regio central do

    estado e para os setores no tradicionais aceleraram a desindustrializao

    sanjoanense tornando a mesorregio do Campo das Vertentes uma rea de declnio

    econmico. consequentemente, a partir da dcada de 1970, So Joo del-Rei, na

    qualidade de cidade-plo de uma mesorregio economicamente deprimida, passa a

    atrair, como se ver, contingentes de emigrantes da zona rural e da rea urbana de

    pequenos municpios prximos, ensejando a constituio e contnua ampliao de

    novas periferias. Essas novas periferias, localizadas em regies mais afastadas do

    chamado Centro Histrico, caracterizam-se sobretudo pela presena de situaes de

    risco/contaminao e pela ausncia/precariedade de servios bsicos de infra-

    estrutura urbana.

    Se os fundos para investimento em polticas pblicas da cidade de So Joo

    del-Rei j se mostravam escassos devido decadncia econmica do municpio -, o

    quadro se agrava ainda mais a partir dos anos 1980, quando o colapso dos intentos de

    modernizao recuperadora mergulha o pas num processo de desindustrializao

    endividada (ALTVATER, 1995), abrindo-se um perodo em que a adoo de polticas

    neoliberais exige, entre outras coisas, a produo de supervites fiscais e a reduo

    dos gastos pblicos. Nesse novo contexto, diminui o volume dos repasses de

    recursos da Unio ao municpios, ao passo que aumentam e se diversificam suas

    responsabilidades em reas vitais, como a sade, o saneamento e a educao.

    Em conseqncia, acelera-se o processo de povoamento das novas periferias

    sanjoanenses, o que faz com que as condies de infra-estrutura urbana dessas reas

    tenda a se tornar cada vez mais precria. Como se ver, essa tendncia s

    contrarrestada pelas prticas e aes coletivas encetadas pela populao envolvida,

    que compem uma trajetria contnua de conflitos pela construo de uma

    habitabilidade urbana nesses territrios.

    III.2- Bases da formao inicial dos novos territrios urbanos de classes populares

    III.2.1- A dinmica demogrfica

    7

  • O povoamento das reas que, a partir do incio dos anos 1970, se constituiro

    nas novas periferias sanjoanenses se realiza por dois caminhos. Primeiro, pela

    chegada de imigrantes oriundos da zona rural do municpio ou de municpios

    prximos. Os dados dos surveys mostram, por exemplo, que cerca de 30% das

    famlias que deram incio ao povoamento do bairro So Dimas vieram diretamente

    zona rural de So Joo del-Rei ou das zonas rural ou urbana de municpios prximos.

    J nos bairros Gameleiras e guas Gerais esse percentual situa-se em torno de 20%.

    Entretanto, o processo que mais fortemente contribuiu para o incio do

    povoamento das novas periferias foi, sem dvida, a valorizao dos terrenos e dos

    aluguis mais prximos ao Centro, que provocou a expulso das famlias de baixa

    renda que ocupavam essas reas. Cerca de 30% dessas famlias eram oriundas da

    zona rural de So Joo del-Rei ou das zonas rural ou urbana de municpios

    prximos12.

    Esse processo torna-se mais intenso a partir dos anos 1980. Com efeito, cerca

    de 50% das famlias que chegaram ao bairro So Dimas nos ltimos 20 anos so

    originrias de outros bairros da cidade. E cerca de 40% dos chefes dessas famlias

    declaram que se mudaram para o local porque no podiam mais sustentar os custos

    de moradia em outros bairros. Outros 27% disseram que, alm do encarecimento geral

    dos aluguis, foram pressionados pela ampliao da famlia, que exigia sua

    transferncia para imveis maiores, cujos aluguis so obviamente mais caros. Da

    mesma forma, 74% das famlias que chegaram vila Nossa Senhora de Ftima a

    partir de meados dos anos 1980 so originrias de outros bairros da cidade. E 41%

    dos chefes dessas famlias disseram que o local em busca de terrenos ou aluguis

    mais baratos.

    De uma maneira geral, os dados evidenciam, para o perodo posterior a

    meados da dcada de 1980, uma forte acelerao do ritmo de crescimento da

    ocupao residencial dos territrios urbanos estudados No bairro guas Gerais, foram

    construdas 32 casas entre 1960 e 1985, perfazendo uma mdia de 0,8 casa por ano;

    a partir de 1986 foram edificadas 54 residncias, numa mdia de 2,7 casas por ano.

    Portanto, o ritmo de ocupao residencial quase quadruplicou nos ltimos vinte anos.

    Nmeros semelhantes foram encontrados para o bairro So Dimas, onde o ritmo de

    ocupao residencial mais que triplicou aps 1986, perodo em que foram construdas

    nada menos que 101 casas (ou cerca de 67% das residncias do bairro). Na vila

    Nossa Senhora de Ftima a situao parecida: nos ltimos 20 anos, o ritmo de

    12 Evidentemente, de uma maneira geral, o percentual de homens que emigram para a zona urbana de So Joo del-Rei, e l formam suas famlias, maior que o percentual de mulheres que cumprem a mesma trajetria.

    8

  • ocupao residencial multiplicou-se por 2,5 e foram edificadas 114 novas casas (ou

    62% do total de casas da vila). H casos de reas de formao de novssimas

    periferias, como os da vila Brasil/Novo Bonfim e Cidade Nova, em que praticamente

    todas as casas (31 e 17, respectivamente) foram edificadas nos ltimos 15 anos.

    Aliado imigrao oriunda da zona rural do entorno ou de municpios prximos

    e da valorizao dos terrenos e dos aluguis mais prximos ao Centro, atua como

    fator de fomento ocupao residencial dos territrios urbanos estudados a procura

    pelos ganhos materiais e simblicos auferidos pelo fato de morar prximo a parentes.

    Com efeito, para as populaes de baixa renda, a territorializao de redes de

    parentela lhes asseguram (ao menos parcialmente), na esteira da denegao do

    Estado, o provimento de servios, condies de seguridade e recursos para sua

    reproduo material e simblica. Residir prximo a parentes incrementa o quantum de

    capital social que uma famlia pode mobilizar, para fazer frente situao de carncia

    de capitais econmico, cultural e poltico. Parentes e amigos que habitam o mesmo

    bairro tornam-se ns de uma rede de solidariedade, seguridade e apoio mtuo que

    supre, em parte, vrias funes que as classes mdias e superiores podem obter no

    mercado ou pela ao do Estado (como, por exemplo, o cuidado com as crianas dos

    pais que trabalham; o cuidado com doentes e ancios; a obteno de emprstimos em

    dinheiro, em situaes financeiras difceis; o acesso a mo-de-obra para reformas ou

    construes de casas; a participao em atividades coletivas, geralmente de carter

    religioso, que fomentam o sentido de pertencimento comunitrio; a troca de servios,

    alimentos etc.). Assim, o percentual de chefes de famlia que declararam que j

    possuam parentes no bairro para o qual se mudaram situa-se sempre acima de 50%,

    variando de 51,4% na vila Nossa Senhora de Ftima, a 67,6% nas guas Gerais.

    III.2.1- O acesso terra urbana

    Em So Joo del-Rei, o acesso das camadas de baixa renda terra para

    edificao de moradias nas periferias viabilizado por dois mecanismos principais. O

    primeiro deles o sistema de aforamento de terras pblicas. Nele, um chefe de famlia

    solicita prefeitura municipal o aforamento de um lote, geralmente situado na faixa da

    zona rural que faz limite com o permetro urbano. Ao solicitante dado um certo prazo

    (normalmente de dois anos) para que construa uma residncia no lote. Se ao cabo

    desse prazo a casa no estiver construda, a prefeitura pode retomar o lote para si.

    Por esse sistema, o solicitante obtm a posse do terreno para moradia, embora no

    9

  • disponha de sua propriedade. Em tese, no pode negoci-lo com terceiros. Em

    conseqncia, esse sistema, com o tempo, d origem a aglomerados residenciais sem

    qualquer equipamento ou servio de infra-estrutura urbana. Em muitas situaes,

    como no incio do processo de ocupao dos bairros Gameleiras, guas Gerais e So

    Dimas, no h sequer ruas nesses territrios, mas apenas trilhas abertas pelos

    prprios moradores, o que confere ao local uma aparncia de pequeno povoamento

    rural.

    O outro mecanismo que faculta s camadas populares o acesso terra

    construo de habitaes a formao de loteamentos ditos irregulares.

    Geralmente, trata-se de terrenos pertencentes a fazendas prximas ao permetro

    urbano. Esses terrenos so parcelados em lotes (cuja rea varia de 200 m2 a 360 m2)

    agrupados em quadras. As quadras so separadas por ruas abertas por mquinas de

    terraplanagem. E esse o nica caracterstica inicial desses territrios que alude a

    uma habitabilidade urbana. O empreendedor do loteamento no o constri como

    territrio urbano: falta-lhe redes de coleta de esgoto, de guas pluviais e de

    distribuio de gua potvel e energia eltrica; no h pavimentao de ruas,

    circulao de nibus ou iluminao pblica. O loteamento sequer registrado como tal

    junto ao poder pblico. Conseqentemente, o preo dos lotes bem mais barato,

    tornando-se acessvel s populaes de baixa renda13.

    Em conjunto, os sistemas de aforamento de terras e formao de loteamentos

    irregulares constituem mecanismos funcionais de produo e reproduo das

    desigualdades ambientais urbanas. Essa funcionalidade reside no fato de que esses

    mecanismos viabilizam a alocao de expressivos contingentes de populaes de

    baixa renda em reas sujeitas a inundaes (como nos casos da vila Nossa Senhora

    de Ftima e Conjunto Habitacional IAPI/JK), voorocas (bairro So Dimas),

    deslizamento de encostas (Gameleiras) e/ou destitudas de servios de saneamento

    bsico. Oferecendo-se como alternativas, tais mecanismos permitem a absoro de

    imigrantes atrados pela cidade-plo de uma mesorregio economicamente deprimida,

    assim como das famlias de classes populares que so expulsas das zonas urbanas

    mais centrais pela operao do mercado imobilirio.

    Evidentemente, se no houvesse a disseminao dos sistemas de aforamento

    de terras e formao de loteamentos irregulares aumentariam as possibilidades de

    ocorrncia de aes, freqentes em grandes cidades, como as ocupaes de margens

    de cursos dgua e lotes vagos localizados em reas mais centrais. E cresceriam,

    13 Nos bairros vila Brasil e Novo Bonfim, formados a partir de loteamentos irregulares e ainda no incio do processo de ocupao residencial, um lote de 360 m2 podia ser comprado, em

    10

  • tambm, as presses pela implementao, pelo poder pblico, de polticas

    habitacionais para as camadas de baixa renda. Por essa razo, a prefeitura municipal

    se abstm de fiscalizar e embargar os loteamentos irregulares, que se constituem

    luz do dia, assim como se prontifica a conceder aforamentos de terras pblicas, o que

    ainda rende dividendos polticos a prefeito e vereadores que eventualmente surgem

    como mediadores do aforamento. Ademais, frente a reivindicaes de provimento de

    servios de infra-estrutura urbana nos territrios de habitao formados por

    aforamentos ou loteamentos irregulares, o poder pblico alega tratar-se de

    aglomerados residenciais localizados na zona rural (como no caso dos bairros vila

    Brasil e Novo Bonfim) ou, ainda, atribui aos empreendedores dos loteamentos a

    responsabilidade pela implantao dos servios de infra-estrutura urbana (como no

    caso do bairro Cidade Nova, cujos moradores ingressaram com ao judicial contra os

    empreendedores que, entretanto, no podem mais ser localizados...).

    Por fim, a formao de loteamentos irregulares destinados s classes

    populares representa um importante filo do mercado imobilirio, no s porque os

    custos para os empreendedores so muito baixos, mas tambm em virtude da forte

    inelasticidade da demanda local por loteamentos urbanizados (onde alto o valor da

    terra), dados os processos econmicos anteriormente aludidos.

    Dessa forma, v-se na cidade um processo contnuo, acelerado nas duas

    ltimas dcadas, de homogeneizao scio-econmica e ambiental dos territrios

    urbanos, desaparecendo progressivamente as regies em que coabitavam lado a lado

    famlias de estratos sociais distintos. A segregao espacial faz-se cada vez mais

    ntida, formando-se, de um lado, nas zonas mais centrais (ou nos novos subrbios de

    classe mdia, localizados no sop da serra de So Jos), territrios que abrigam

    exclusivamente camadas das elites econmicas locais. Nesses territrios, o poder

    pblico se apressa no provimento de servios de infra-estrutura urbana e saneamento

    bsico. De outro lado, constituem-se territrios urbanos perifricos de classes

    populares como os acima descritos, para onde, como se viu, afluem as populaes de

    baixa renda que so desalojadas das reas urbanas mais centrais. Esses territrios

    constituem hoje uma verdadeira So Joo del-Rei oculta, invisvel aos olhos dos

    turistas que circulam pelas reas centrais e das classes mdias que as habitam.

    2006, por cerca de R$ 3.500,00. No bairro Cidade Nova, em situao semelhante, um lote com a mesma rea ainda mais barato.

    11

  • III.3- Auto-construo e conflitos ambientais na construo de territrios urbanos de classes populares A operao dos mecanismos (re)produtores da desigualdade socioambiental

    urbana acima indicados resulta na constituio de aglomerados residenciais de

    classes populares destitudos das caractersticas pelas quais se reconhece, na

    sociedade contempornea, o carter urbano de um territrio. Para dotar com essas

    caractersticas os territrios que habitam, as populaes de baixa renda vem-se na

    contingncia de ter que empreender determinadas estratgias e prticas coletivas de

    dois tipos, que geralmente se mesclam, em diferentes graus conforme o caso

    especfico, no processo de construo desses territrios urbanos.

    O primeiro tipo diz respeito s prticas de auto-construo por mutires, que

    so utilizadas tanto para a edificao e reforma de moradias quanto para a construo

    de equipamentos e servios urbanos. O percentual de residncias que foram

    edificadas por processos de auto-construo de cerca de 51% nas guas Gerais,

    61% na vila Brasil/Novo Bonfim, 63% no So Dimas e chega a 81% no bairro Cidade

    Nova.

    Em muitos casos, os mutires de auto-construo tambm so utilizados para

    implantar equipamentos e servios de infra-estrutura urbana. No bairro guas Gerais,

    por exemplo, a populao local construiu um engenhoso, embora precrio, sistema de

    tubos e mangueiras que capta a gua potvel em minas e a distribui para as

    residncias. No mesmo bairro, os moradores construram, com utilizao de

    ferramentas manuais, uma rua ngreme e realizaram o seu calamento com pedras

    retiradas do entorno. J no bairro So Dimas, a populao abriu vrias ruas, nos anos

    1970 e, em meados da dcada de 1980, instalou parte da rede de esgoto (com

    materiais obtidos junto prefeitura municipal) e construiu 28 novas casas, no mbito

    de um programa do governo estadual. Os moradores decidiram coletivamente o local e

    os critrios para a distribuio das casas, aps a realizao de um cadastro das

    famlias. O terreno, adjacente ao primeiro ncleo de povoamento do bairro, foi doado

    por uma ordem religiosa.

    Outra estratgia coletiva de construo de territrios urbanos empreendida

    pelas camadas de baixa renda envolve organizao de associaes e movimentos

    para reivindicar, juntos a rgos pblicos, a implantao de equipamentos e servios

    de infra-estrutura urbana. Evidentemente, essa estratgia demanda o recurso a

    capitais econmicos e simblicos que so escassos entre essas populaes, tais

    como disponibilidade e autonomia de gesto do tempo, conhecimentos tcno-

    cientficos e jurdicos, informaes, uso da norma escrita e da linguagem formal, poder

    12

  • poltico, poder econmico, relaes pessoais com ocupantes de cargos de direo no

    aparelho de Estado etc.

    Para fazer frente a essas carncias, os moradores dos territrios urbanos de

    baixa renda acionam e combinam duas estratgias. Primeira, a mobilizao do capital

    social gerado pelas redes de parentela, anteriormente aludidas, e pelas fortes

    relaes de amizade e solidariedade que se formam ao longo de prticas coletivas,

    como os mutires de auto-construo acima mencionados. Com efeito, as entrevistas

    e observaes de campo realizadas deixam claro que, nos casos estudados, as aes

    de organizao e mobilizao com vistas reivindicao da urbanizao dos territrios

    so to mais fortes e exitosas quando mais estreitas forem as redes de parentela e

    solidariedade.

    Numa segunda estratgia, as lideranas dos territrios estudados buscam

    aproximar-se de atores portadores dos capitais que faltam s populaes que

    representam, tais como sindicalistas, procos, ONGs, Universidade, polticos etc.

    Evidentemente, essa aproximao pode tambm produzir, nas comunidades,

    clivagens e conflitos que podem surtir efeito reverso, conduzindo desmobilizao,

    fragilizao das relaes de solidariedade etc.

    Seja como for, frente operao dos mecanismos (re)produtores da

    desigualdade ambiental urbana acima examinados as populaes de baixa renda tm

    que fazer protagonistas de lutas ambientais, fenmeno inerente ao processo de

    construo das condies de urbanidade dos territrios que habitam. Esse processo

    tende a ser errtico, prolongando-se por vrias geraes e revelando-se uma

    sucesso de insucessos e algumas conquistas, muitas vezes parciais e sujeitas a

    retrocessos.

    Assim, mesmo territrios cujo incio da ocupao remonta a meados do sculo

    passado ainda exibem severas carncias de equipamentos de infra-estrutura urbana.

    De maneira geral, a intensidade dessas carncias varia na razo inversa da

    capacidade de mobilizao e ao do movimento reivindicativo local e da renda per

    capita dos moradores. Para fins de comparao, tomemos os casos dos bairros guas

    Gerais e So Dimas.

    Nos dois casos, encontramos registros e evidncias de que a ocupao

    residencial teve incio nas primeiras dcadas do sculo passado. O percentual das

    famlias cuja renda per capita menor que um quarto do salrio mnimo, ou seja, que

    esto abaixo da linha de misria, na definio do Instituto de Pesquisa Econmica

    Aplicada do Ministrio do Planejamento, de cerca de 15% no bairro So Dimas. Nas

    guas Gerais, esse percentual trs vezes maior, perfazendo 46% da populao.

    13

  • No bairro So Dimas, constituiu-se, desde o final dos anos 1970, um

    movimento associativo e reivindicativo relativamente forte e autnomo em relao a

    polticos populistas. Aproximando-se de sindicalistas e procos, esse movimento deu

    origem, no incio dos anos 1980, ao primeiro ncleo do Partido dos Trabalhadores em

    So Joo del-Rei. De outra parte, a presena desse movimento, aliada proximidade

    fsica com a Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ), fez do bairro So

    Dimas um autntico laboratrio de projetos de extenso universitria, fato que tem

    colaborado decisivamente para a urbanizao do territrio (por exemplo, a gua

    potvel consumida pelos moradores dos bairros So Dimas e Cidade Nova provm de

    um poo artesiano construdo pela UFSJ com recursos de uma ONG alem.

    J nas guas Gerais, a intensidade das carncias e sua instrumentalizao

    para fins poltico-partidrios fragilizam sobremaneira o movimento reivindicativo local.

    As redes de solidariedade tem sido esgaradas por constantes disputas pelo acesso e

    controle da distribuio da gua potvel, pelas possibilidades de obteno de cargos e

    favores do poder pblico, pelas ambies de carreira poltica etc.

    Em conseqncia, as condies socioambientais vigentes nos dois territrios

    so bem diferentes. Embora haja significativas carncias nos dois casos, a situao

    bem pior nas guas Gerais. Tomemos, guisa de exemplificao, as condies de

    saneamento bsico. No bairro So Dimas, 88,5% dos domiclios so servidos pela

    rede pblica de coleta de esgoto, 97% esto ligados rede de distribuio de gua

    potvel e 98% esto servidos pela coleta pblica de lixo.

    Nas guas Gerais, inexiste rede pblica de distribuio de gua potvel. A

    precria rede construda pelos moradores no dispe de tratamento da gua. A

    barragem de captao, tambm construda pelos moradores, est exposta ao ar livre e

    nela so freqentemente encontrados animais mortos. Alm disso, as mangueiras que

    fazem a distribuio da gua esto, em grande parte, flor da terra, apresentando

    rachaduras por onde podem penetrar agentes patognicos. Apenas 64% dos

    domiclios so servidos pela coleta pblica de lixo e cerca de trs quartos das famlias

    despejam o esgoto sanitrio diretamente no crrego que corta o bairro, a poucos

    metros das casas. Como do mesmo crrego que os moradores captam, montante,

    a gua que utilizam, a vazo do corpo dgua tem diminudo medida em que

    aumenta o nmero de habitantes. Em conseqncia, o crrego transforma-se numa

    verdadeira vala negra que contamina o solo e o lenol fretico, provocando, segundo

    a representante local do Programa de Sade Familiar (PSF), forte aumento da

    incidncia de verminoses e diarrias nas crianas do lugar.

    A despeito da precariedade das condies socioambientais, as redes de

    parentela e de solidariedade forjadas, ao longo de dcadas, pelas prticas coletivas de

    14

  • auto-construo, auxlio mtuo e lutas pela construo dos territrios urbanos

    produzem um tipo de relao com o territrio bastante distinto daquele encontrado nas

    reas urbanas habitadas por camadas das classes mdias e da burguesia. Com efeito,

    para as classes populares, o bairro no apenas o local onde se localiza a casa em

    que se habita, as ruas pelas quais se transita ou as casas de comrcio em que se

    compra. Aqui, o territrio representado como um lugar identitrio (VARGAS, 2006),

    j que os elementos que o constituem evocam sentimentos e significados de

    pertencimento coletivo. Ainda nesse sentido julgamos sociologicamente apropriado

    designar os bairros estudados como territrios urbanos de classes populares.

    Compreende-se, assim, por exemplo, porque, a despeito da vala negra, 51%

    dos chefes de famlias das guas Gerais no desejam mudar-se do local, pela razo

    de que ali cresceram junto com seus familiares e amigos. Pelo mesmo motivo, no

    desejam se mudar cerca de 60% dos habitantes das reas mais severamente

    inundadas pelas enchentes que periodicamente acometem a vila Nossa Senhora de

    Ftima.

    IV- Consideraes finais

    Os homens constrem seus territrios, mas no o fazem em condies de sua

    escolha. Os prprios homens se constrem medida em que constrem seus

    territrios. A dinmica de construo dos territrios urbanos de classes populares

    examinados orienta-se pelos desenvolvimentos mais abrangentes da acumulao de

    capital em Minas Gerais e, mais especificamente, pela operao do mercado fundirio

    e imobilirio sanjoanense, processo reiterado pelas aes e omisses seletivas do

    poder pblico. Contrariando tais mecanismos, os habitantes dos bairros estudados tm

    que empreender prticas e aes coletivas que marcam a longa e lenta trajetria de

    construo das condies de urbanizao dos territrios e, ao mesmo, tempo,

    ensejam a formao de laos de solidariedade e de uma territorialidade peculiar,

    caracterizada pela representao do territrio com um lugar identitrio. A

    desnaturalizao da atual conformao dos territrios pesquisados requer a

    reconstruo analtica dos processos e conflitos ambientais por meio dos quais esses

    territrios ganharam suas caractersticas presentes.

    Contudo, a avaliao do alcance dos conflitos ambientais urbanos

    protagonizados pelas populaes de baixa renda deve considerar suas ambigidades.

    De um lado, eles expressam a negatividade permanentemente reposta pelas

    15

  • desigualdades estruturais que condicionam a apropriao dos espaos. De outro lado,

    as prticas e lutas parciais estuadas mostram-se insuficientes para romper as

    dinmicas mais abrangentes que presidem a (re) produo do mosaico de territrios

    que cristaliza a segregao espacial urbana. Comumente, os moradores dos

    diferentes territrios urbanos de classes populares disputam entre si alguns escassos

    recursos pblicos, sem colocar em causa a prpria distribuio das verbas pblicas

    entre os diversos estratos sociais.

    V- Referncias bibliogrficas

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    trajetrias de despossesso e resistncia: a experincia de Juiz de Fora/MG, Anais

    do XXX Encontro Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em

    Cincias Sociais, Caxambu, 24 a 28 de outubro.

    17

    XIII Congresso Brasileiro de SociologiaI- IntroduoIII- Construo de territrios urbanos de classes popularesIII-1- O contexto da suburbanizao: ascenso e colapso da industrializaosanjoanenseIII.2- Bases da formao inicial dos novos territrios urbanos de classespopularesIII.2.1- A dinmica demogrficaIII.2.1- O acesso terra urbanaIII.3- Auto-construo e conflitos ambientais na construo de territriosurbanos de classes popularesIV- Consideraes finaisV- Referncias bibliogrficas