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Confinamento

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Confinamento

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Vittorio D’Afflitto agradece A: Garde Mastafanni, pelo universo poético que espero não ter abandonado, Bookess, pela alternativa exemplar no mercado editorial, João Campos Nunes, pela atenção e intenção de sua valiosa apresentação de um Garde outro, Rogério de Souza Germani, pelo comentário atencioso à edição Esperando... Amigos, forte é quem os tem, principalmente os próximos (da minha rua, da minha casa e do meu coração) Cósmica união, ou breve acaso, ou patética pasmaceira (a la Tristam Shandy), por me deixar finalizar este projeto.

In memoriam Elisa Ramús

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Vittorio D’Afflitto

Confinamento

(POESIAS DE GARDE MASTAFANNI)

Apresentação: João Campos Nunes

Algo mais e Notas: Vittorio D’Afflitto

Primeira Edição 2012

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Revisão: Garde Mastafanni e Vittorio D’Afflitto Ilustração da Capa: A espera de Estela por Vittorio D’Afflitto

Uma das Obras do Assim Intitulado Grupo de Autores NonatoNoir

Garde Mastafanni

Elisa Ramús Vittorio D’Afflitto

Correspondência? Escreva para:

[email protected]

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Sumário

um prefácio: por J... C... N.....................................07

Confinamento:

O sono....................................................17 Sesta.........................................................18 Quatro em falso:

A palavra....................................................19 A palavra morreu........................................19 A falso Betinho...........................................19 Dia de falsa criança....................................19

Ao Deus.....................................................20 Noite..........................................................22 As florestas contidas num livro..................23 Sazão na seca............................................25 Certa vez....................................................26 Deslumbrado.............................................27 Tangerina Cabeleira...................................28 Cabelos Dourados......................................29 No depois..................................................31 Amor.........................................................33 Na casa rasa..............................................34 Conto:

Regina.........................................................35 Rana...........................................................35 Regina........................................................36

Anúncio de: Sofrimento................................37 Celebration..................................................38 A gênese da besta.........................................39 Confissão in natura......................................40 Cola-peixe:

Cola-peixe....................................................41 Rei...............................................................41

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Querida D..................................................42 Poema cadafalso.........................................42 A fala..........................................................43 Lamento.....................................................44 Azul...........................................................45 Enigma......................................................46 Branco......................................................49 O encontro.................................................50 Pavlov para crianças...................................51 Em casa....................................................52

Cão............................................................53 Silvestre:

1................................................................54 2................................................................54 3...............................................................54 4...............................................................55

Margeando a solidão..................................56 As estações da alma...................................57 A construção da solidão.............................58 Rabbit Revisited.......................................60 O jovem.....................................................61 O desenho....................................................62 Adágio:

Ada..............................................................66 Gabriela......................................................66

Corpo de rato...............................................67 À Ítalo, o Calvino.........................................69 As horas do verdugo...................................70 Volúpia da Eternidade.................................71

um apêndice: Por uma poesia de Garde Mastafanni............75 Despedida:

Um quarto para o confinamento.............................81

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uma Apresentação

por

J… C… N…

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Uma vez, falaram que não sei quem tinha o Dom da poesia. Hoje sei que isso é besteira. Poesia não é questão de Dom. Poesia é loucura.

Atualmente, ser poeta e querer publicar poesia exige insensatez. Dessas que só mesmo os poetas podem ter. Que mãe, ora, você conhece, que falaria: “Ah, filho, quem dera você se tornasse um grande poeta” Imagina só? “Filho, depois que você terminar medicina, escreva quantas poesias quiser.” Isso sim.

Porque ser poeta exige loucura. Tem que escrever sem nem perceber que está escrevendo. Tem que, quando não pensar em nada, pensar poesia. Tem que, sem nem saber bem por que, lutar poesia, chorar poesia, sorrir poesia, vencer poesia. Porque ser poeta exige loucura.

Quando conheci o Garde Mastafanni, logo vi que, louco, ele era, e nem poderia não ser, poeta. Criamos um fanzine*1 na universidade, fotocopiávamos algumas poesias nossas e divulgávamos. Nada que tenha dado muito certo, durado muito tempo, ou seja, pura loucura de poeta.

Quando li suas poesias tive o melhor sentimento que um escritor pode sentir por outro: Inveja. Porque ser poeta exige loucura. Aquela sensação gostosa de “porra, porque não pensei nisso antes” me invadiu.

Quando ele me propôs prefaciar esse, e me

mandou o original, tive outro desses ataques. E

1 O fanzine chamava-se Folheto Desempregado.

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lendo sua poesia, sendo entortado por ela, entortando-a, pensei: “Se isso não é poesia, então não sei mais o que pode sê-la.” Porque poesia tem que parecer loucura, mas ser sempre sã. Como no caso de “As horas do verdugo”, onde Mastafanni tece um ótimo retrato do absurdo e da resignação começando, louco, com “Eu não tenho um plano B” e terminando seu livro, corajosamente, com “No qual declarou-se-me o meu carrasco.”.

E desde então, ando com a poesia dela estalando na orelha. Me pego pensando como no ritmo dela, e, só porque ser poeta exige loucura, sorrio sem nem ter por que.

J. C. N.

Setembro, 2010

São Paulo, SP.

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Confinamento

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Estes poemas foram escritos nos anos de 2008, 2009 e 2010

* * *

Aos meus amigos E para os demais se notarem

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“Miserere d’un’alma già vicina Alla partenza che non ha ritorno

Miserere di lei, bontà divina,

Preda non sia dell’infernal soggiorno!” *¹

Il Trovatore

Ah, se fosses meu irmão,

Amamentado ao seio de minha mãe! Então, encontrando-te fora, poderia beijar-te

Sem que ninguém me censurasse. Eu te levaria, far-te-ia entrar

Na casa de minha mãe; Dar-te-ia a beber vinho perfumado,

Licor de minhas romãs. Sua mão esquerda está sob a minha cabeça,

E sua direita abraça-me.

Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, Não desperteis nem perturbeis o amor,

Antes que ele o queira.

Cântico dos Cânticos – VIII

¹Trad: Tende piedade de uma alma já vizinha

Desta partida que não há retorno Tende piedade dela, bondade divina, Presa não seja da morada infernal!

Il Trovatore – ópera de Giuseppe Verdi

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O sono Tenho o gosto simpático

em minha garganta do ferro sangüíneo, é a respiração da vida regando a morte no campo:

"à noite, minha querida, flores brotarão da tua boca, as sementes acordadas entre os homens de boa vontade."

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Sesta Dos lábios da noite

colhi lânguidos despertares pulmonares, e das faces lunares todos os trajetos refiz:

Á, objeto de minha conquista, se soubessem dos clarões azulados grifados pelos meus olhos, saberiam que estou grávido de felicidade por todo dia encontrar o que recompensa nas grinaldas deste casamento estrangeiro entre o amor e a indiferença em que se acha você em não me achar.

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Quatro em falso

A palavra: Lá perto de casa

havia bois de barros e surgiam as palavras das cercanias bordadas por dentro e fora das saias nos dias de noites listradas da minha falsa avó.

A palavra morreu: A palavra morreu,

o falso Betinho caiu na cerca elétrica, minha boca piscava quando o vi deitado pela última vez, toda ela o queria pra conversar.

A falso Betinho: Todo o falso Betinho

O queria pra conversar, mesmo quando tinha dia que o desejo era que a boca, só a boca dele, sumisse: Hoje, de hoje sempre, queria que por todo sempre ele reaparecesse.

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Dia de falsa criança: Tinha dia que lá em casa

só se enchia de criança falsa e sempre tinha dia que criança falsa se machucava. Mas mesmo assim lá em casa, só lembro que sempre teve pé-de-alguma-coisa e árvores pra falsa criança cair e machucar-se.

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Ao Deus Há uma casa

que eu haveria de construir lá no alto, bem lá no topo do céu. Seria a morada de meu Deus quando decidisse querer me visitar.

Há uma casa

que eu haverei de construir amanhã bem cedinho. Será a morada de meu Deus caso decida, se algum dia decidir, querer vir me visitar, pois se fosse ficando tarde, até tarde da noite, não teria praonde voltar.

Então com todo esforço que pudesse, que eu pudesse suportar, faria questão de servir-Lhe café quando o que eu mais queria era chá, não briguei por isso, realmente não faço a mínima questão.

Há uma casa que hei de construir é pra agora, é pra hoje, urgentíssimo! Será a morada de deus quando decidir partir da minha propriedade. Farei com todo esforço possível, e que fique abaixo, bem pra baixo, pra depois dos infernais.

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Noite

Das fontes graúdas da noite grávidos do dia seguinte surgem orvalhados grânulos, e no pé dos postes eu recolho em cachos formigas saúvas, e maravilhado moldo a dor branca espalmada no rosto banhado em luz parda de minha mudez lamacenta.

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As florestas contidas num livro Do primeiro encontro a fragilidade dócil

florescerá a fragrância arsênica, doce e una como o carbono, suave como a seda: tempestades...

O césio a terra devasta, mas sua beleza atenciosa, majestosa e fulgurante, irrompe das cores incestuosa, verde aquoso e anêmico brilha tal qual as gramíneas entre os musgos da encosta.

Como desenvolve o líquen a vida, como ajudam os insetos as flores, como estalam o grão os não-me-toques e enroscadas vivem as madressilvas; nalgumas cascas famintas orquídeas, catando moscas lá vão as dionéias, estranhas mortuárias são as raflésias na terra do céu estrelas caídas; a cuscuta faz ingerir a planta como tênias selvagens a cicuta -estamos longe, indo em direção ao sol!

Olhem só a que beleza o meu canto comparado à sombra duma figueira logo abaixo –bem abaixo -chegou, por fim. A experiência à natureza da miséria uniu-se: o orvalho caiu por terra,

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tal qual figueira sua sombra estrangula outras sombras, sua Veia estraçalha as veias, sua Artéria espreme as artérias, e cava fundo na desgraceira a graciosidade febril das colméias qual fogo de galafoice, qual docilidade dos doces, qual surpresa em tela branca da inocência banal dum pintor menor.

Os perfumes surgem aos montes

em garrafas de vidro e de plástico, quando saberemos de novo a essência desses odores que não clamam por libertação? Estamos derrotados e na derrota vivemos, o rosto erguido e o brilho nos lábios, frutos dóceis e amaneirados numa história sem contestação.

Essas mudezas que não se declaram florescendo à sombra de nossas ausências são a oitava-rima do desamparo no céu espelhado das incertezas.

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Sazão na seca Não te alegre com a sazão na seca,

não percorra os campos cheios de corpos buscando tua luz entre os desmembrados e ouvindo “foste tu o bom pároco“, pois a ninguém coube reclamar no teu latim um mingau escasso e que ao Pero Botelho da Morte e aos platôs agonizantes oferece uma milagrosa fruta paradisíaca, dela jorra água-de-cheiro, mínima em meio ao negrume do sangue, murmura aos cancros e barrancos ser a cura, mas contrasta leitosa com o barro sujo dos corpos garimpado.

Montaste um banquete, no princípio era inverno, e todos aqueles bovinos fétidos no lamaçal do abatedouro chamaste:

Quem dentre eles fez com que virasses a mesa?

Um pavão surge em meio aos abutres,

escreverás, tu, sobre a beleza?

Brinque, Artur, brinque de rei: Truncas o truco, viras a manilha, enquanto escarra em tua testa a graça estival de tua rainha e o santo graal absorvido -são a condição do teu reino e reinado.

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Certa vez Fui uma certa vez

fantasiado para o carnaval de Cristo crucificado, e tinha lá a cruz, a groselha e a coroa tudo junto comigo.

Naquele carnaval acho que não fui bem aceito; quando todos olharam, eles sabiam, furiosos,

“Lá vai o palhaço!...” e minha fantasia desmontada aos olhos cruzados virou disfarce para saída egípcia de Tiradentes à francesa.

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Deslumbrado Me acorde, Maria, Co aquela vasilha Cheia de mar azul Me molhe, Maria, Naquela vasilha Com todo mar azul Rodando a saia A Lua em prata De onde vem, praonde vai O mar azul? Me dê, Maria, Aquela vasilha Pra eu lembrar do mar azul. Me aceite, Maria, Voltei (sem ela Minha ilha de lá era vazia) Se lembra, Maria, Que naquela vasilha Eu via um mar azul? Sem você, minha menina, Que é o azul e o mar De todo mar azul Sem você, minha menina, Não havia naquela vasilha Nem azul do mar nem mar azul nenhum

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Tangerina cabeleira*2 Tangencia a janela, Tangerina cabeleira, Eu a ouço cantando Uma ária menineira. Meu livro está fechado, Eu não leio mais, Atento à chama dançando Que no assoalho jaz. Eu deixei meu livro, Eu deixei o meu aposento, Para ouvi-la cantando Através do relento. Cantando e cantando, Que ária menineira! Tangencia a janela, Tangerina cabeleira. De outra maneira, saindo um pouco do

quesito excentricidade e exuberância, podemos lê-la dessa forma: *3

2Adaptado do V poemeto de James Joyce em “Chamber Music”

(n.a.) 3Nota adaptada de uma conversa que tive com Vittorio D’Afflitto

na qual ele mostrava-me sua preferência pela segunda versão (n.a.)

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Encoste-se à janela, Cabelos dourados,

Ouço em sua cantadela Um ar esmerado.

Meu livro está fechado

Não o leio mais Atento à dança da chama

Que no assoalho jaz.

Eu deixei o meu livro Eu deixei meu aposento

Para ouvir você cantando Através do relento.

Cantando e cantando

Que ar esmerado! Encoste-se à janela, Cabelos dourados...

Este bonito poemeto de James Joyce parece marcar a entrada da aurora nos planos da noite. Há um ritmo de reza, mas também de sutil profanação na languidez com que as palavras são entoadas, até mesmo uma paixão vaporosa poderia estar presente no corpo desse texto.

Parece-me com uma representação da primavera poética adentrando as esperanças do poeta confinado no invernal açoite do tédio.

É também a primavera por excelência a estação das paixões: My book is closed / I read no more parece parafrasear uma das passagens famosas de Dante na Divina Comédia –é

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justamente o V canto no qual Dante encontra os dois amantes, Paolo e Francesca, no Inferno: no dia do beijo em diante nada mais leram com tanto interesse.*4

4 Nota retirada da primeira versão do prefácio redigido por

Vittorio D’Afflitto no qual ele reitera sua preferência e dá explanações (n.a.)

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No depois Descendo da noite: a luz,

vê que terrível é a morte já que nada a ilumina e nossos corpos antes em brasa para o nada também atiçam.

Vamos escrever aos nossos amigos do tempo da inocência, a melhor forma de atraí-los; depois o campo em versos e uma flor dentro da carta, embaixo da minha e da sua assinatura eu mesmo escreverei, em letras pequenas, que nós estamos mortos no momento da leitura e os olhos vão lê-las chorando, lamentando terem esquecido.

Como um mar apareceremos nos sonhos,

jogos de ciranda turvos com crianças encapuzadas oscilarão cristalinos, na pureza de uma piscina -pois seria impossível o mar tanto tempo durar nos sonhos- chamaremos com rostos aflitos, como nos filmes; será mais triste que nós e a fratura na terra logo logo sara como curam-se as asas dum pássaro.

Há quanto tempo perdemos a posse

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da lavoura e da colheita? Nós vamos colher frutos Onde estivermos próximos, de mãos dadas, onde a terra é plena e mais redondo é o Sol.

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Amor Eu vou lá eu vou lá

Vai me dar as voltas de um vestido Bem trançado não me arrendará Luar seu pleno amor?

Eu vou lá eu vou lá Abraça o céu co a voz Da boca livre pra beijar O chão do mar azul

À toa pomba voa Vou lhe dar sete laços De cetim pomba à-toa À toa à toa à toa à toa à toa à toa à toa à toa à toa

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Na casa rasa Na parede vi meu pai, minha mãe,

Colados. Envoltos em dourados talhos de madeira. Atenção especial tive era que eram especiais, mas especiais como? que não nos poderíamos ajuntar e jamais conheceria os dois além daquela rasa parede:

"Parede mãe! Parede pai! Já vou embora..."

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Conto Regina: Regina!

Cortaram os cabelos de tua beleza porque hoje descolori o lenço que habitava o bolso, o teu bolso! Quanta crueldade na tua existência.

Rana: Rana!

Parece o mundo uma só tristeza porque ante o afago de tuas mãos impôs-se o cruel destino dos teus irmãos! Rana no fundo do poço, Rana no fundo do rio, já vejo tua imagem torta, seria uma triste aberração?

Estão mortos os dias de verão no quando dos jardins cercados pelas hortas da minha família. Nos confins de tua imaginação vagou a visão de meu fim, mas era da tua natureza que falavam teus sonhos!

Que o universo te absorva, aquela que fôra apunhalada e morta na triste história que começo agora! Rana no fundo do poço, retirem Rana do fundo do rio! Para aqueles que nunca a viram céu abaixo possam recebê-la agora em vossos cantos.

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Regina: Rana!

Não há história para ti, e fizeram de Regina rainha: É rainha, sim, da loucura e malvadeza!

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Anúncio de: Sofrimento*5 Meu amigo, Jesus Cristo!,

permita-me um último cigarro: Um triângulo ao fundo, Um triângulo em primeiro plano, Um retângulo altanado retábulo de um quadrado -este é o quadro: Parede anêmica e aparelhagem, Um filho Francisco e a santa Mulher, eles vêm, em nome do pai entubado; as bocas todas em lua minguada e o cano atacado à sinistra. As cores enforcadas ao fundo como chagas sangram nos trajes, por mais uma vez elas voltam: “Ó bom pai mais leitoso que o travesseiro a mãe e o filho com a tristeza das tábuas” -a mandorla amadeirada contorna os rostos e desviando-se o halo em sua íris observa a marmórea expressão do desgraçado.

5 De uma observação dos anúncios atrás dos maços de cigarro

(n. a.)

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Celebration*6

Ó, minha mãe, não chores não! O filho pródigo volta buscando a armadura contra o teu angustiante sermão.

E há o número das casas nas casas da minha rua que são iguais aos números nas casinhas de outras ruas, diferentes da minha, porém

O azulejo que habita

o realejo da minha garagem é o mesmo azulejo de outra garagem, ou outro quintal, que fica noutra rua noutra casa, e, ufa! que sorte, de número diferente.

Mas á! Como é fácil escorregar quando o chão está molhado e como é difícil pisar em chão pelado e descalço sem não me desculpar: “Ô mãe, desculpa”

6 Em homenagem aos condomínios fechados guarulhenses

expandindo-se (n.a.)

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A gênese da besta A ave avista talhada na flor

o garbo do fruto, a veste grená, com grato cuidado atiça a cor, mas de luto se pinta ao deus-dará. E da semente a tostar na garganta grasnando engasga em rompante perdão e cobrando aos sentidos a vã lembrança de avivar no céu a voz do irmão: “Tu és uma besta mesmo! Agora sim tu se igualas a mim.” A ave ao cair da árvore grassou a graça de Deus, da boca dela pro campo florou o fruto e jazeu.

E a ti, espectador, ela deixou oito sílabas. Desculpe-me, foram só sete.

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Confissão in natura Vou descer à fonte dos sussurros

onde as águas claras desaguam em vão, encardido de barro e pé sujo cantarei o mínimo do Kyrie eleisson; a cidade –eterna eleita da maleita -será desgovernada por mercúrio, e mancharei a terra e a água com um lamento terno e puro; indiferente a mim é a natureza porque sua serenidade murmura e nega meu lamento sacro: o templo há em toda parte, mas em nenhum lugar posso morrer -eu morro!, descubro em pranto raso, qual vil cancro acho-me aturdido, perseguido e enganado nesse destino que sempre vi inacabado, até desajeito um sorriso; a natureza não acha nada disso, nem nada disso do contrário, a ela não devo nem permito e então rio encabulado.

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Cola-peixe*7 Cola-peixe: As metamorfoses me desejam

sou acima disso multicolor, os deuses do abismo, eu pulo! Os deuses do abismo... raso!

Á! Lágrima reptil na fala rançosa do rei.

Uma gota no rio cavado bem ao fundo por Cola-peixe.

Rei: A coroa e meu reino,

o meu reino e volta, Cola-peixe! Bem ao fundo e volta? A coroa, meu reino inteiro, não volta... nunca mais voltará!

Trocou Cola-peixe o orgulho e os vitrais as coroas, todos os reinos e os ais pelas profundezas marginais.

“Ai, se pudesse ser assim, a coroa e meu reino inteiro.”

7 Adaptação de uma fábula italiana presente na edição de Ítalo

Calvino “Fábulas Italianas” (n.a.)

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Querida D… Que beleza ancestral carrega o seu rosto!

De passados e passados de pedras preciosas Ornando todas as suas linhas de expressão, O peso da tradição dos antepassados É o desconhecimento dos seus fardos:

A última dama de Damasco Quantos cristãos decepou A bainha despontando aos céus A apreciar o sorriso da lua? Quantos cristãos converteu No caule de sua espada? Vaporosa, seu trajeto É do luar vestindo a lua.

(Fevereiro-2009) Poema cadafalso D..., na escuridão adoeço

É quando o mundo revela um canteiro Das tuas flores feito um sorriso:

Eu, abelha triste, Na solidão adoeço

Porque antes um leito Reencontrei –de amor e alegria, Erguida uma colméia de sonhos Para cruzar a noite solitária Encontrando o dia em ti.

(Novembro-2008)

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A fala Talvez as invenções do mundo

já não sirvam mais para otimizar um abraço, e a maquinaria toda estendida pelo campo já não sirva muito para criar mais descanso, e toda peça de engrenagem que falta nos relógios já não sirva senão como peso de papel para anotar os arredores do tempo, talvez toda ferrugem que contemos no sorriso se dissolva e dê início a qualquer coisa falada que nos conte algo que nos faça contar e cantemos ao redor disso até que possamos falar -que nós contamos, que nós cantamos, que falamos.

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Lamento Eu, apegado pouco à noite,

já não sou mais que um pano-de-chão lustrando os móveis nos quais morrem os iluminados pela solidão.

Eles deixam a poeira entrar no aposento onde o sol vai passando por Janeiro, o verão abrindo um caminho fino pelas janelas cheias de festas e frestas -caminho só visto, porque a poeira que dança no ar constrói essas tábuas de luz.

E tudo a volta solitário é a solidão abrindo os olhos a observar essa estrada divina: a vista não mais habita, caminha, deus meu, caminha...

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Azul Azul, profundo azul,

talvez nunca force meus olhos para ver a sua luz, talvez por onde passa guarda os meus mistérios, por onde passa, onde penso passar, azul, profundo azul, talvez nunca force meus olhos para ver a sua luz, se ela passa por todos e todos algum dia são quem eu amo, talvez por onde passa guarda meus mistérios, guarda...

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Enigma De você herdei a flor

sem saber do nome, só da cor; estando ela em minha frente procuro nos livros uma foto, algo que comprove o seu nome, uma fonte, confiável se puder.

Ela é lilás, sim, é lilás! Suas pétalas encolheram, ficaram rijas e fragilmente duras parecendo plaquinhas de isopor, mas a cor continuou e continua até agora.

E eu vou contando aos outros que achei ser um lírio lilás, mas é magrinha demais essa flor, achei ser um jacinto, mas a flor está distante para que possa comparar mia florzinha, poderia bem ser uma campainha-de-flor-azul se a mia não fosse lilás e de anteras, já se passou muito tempo...

A cor continua na fragilidade de seu corpo, me disseram da orquídea que desbotou lilás, perguntaram-me: adivinha a cor? E eu respondi “lilás...”

Que flor é esta? Qual o seu nome?

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Já não parece natural, parece queimada na ternura plástica daquela madeira perolada como esculpida em metal ...e envernizada em seda.

Ela é roxa, mas acima de tudo lilás, nos campos passeariam os anos e muitas flores parecidas com ela cairiam no chão de mercúrio, sendo elas próprias grãos de areia medindo na ampulheta, elas mesmas, o ritmo da natureza.

Coube a nós decifrar o nome da flor, a elas coube preservar a cor, indefinidamente, nomeando seu lugar, sua nascente; elas se vão, mas o lilás retorna sempre na flor das flores, na flor dos lugares, na flor dos tempos, na flor, na flor, na flor...

Eu mesmo retorno outro nessa florzinha murcha que observa meu rosto contrariada como se perguntasse:

“Qual o meu nome? Qual o meu nome?!”

E eu acalmo sua angústia Respondendo com a minha angústia:

“Flor, guardarei sua cor e seu nome tentarei decifrar,

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mas de todo modo eu lembro”

Um monte de flores assim são um espantalho lilás espantando a morte que vem buscar a cor: a essência da vida.

Somando nas flores flores passadas e afirmando o mesmo local, quando este intocável.

Lugar lilás, Lugar das flores, Da flor lilás, Lugar da flor, Da flor das flores, Da flor dos tempos, Da flor dos lugares, Da flor, da flor, da flor Lilás.

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Branco*8 Cobertos de azul-bebê,

vemos o céu despontar no teto recriado por nós: noite branca, paredes brancas e à margem do Rubayiat devoramos as horas (sinto como se fôssemos os abençoados da capa) tão serenos e amáveis sendo impossível a distinção senão por palavras, do seu sono à minha respiração.

8 De uma narrativa de Vittorio D’Afflitto sobre sua querida e mui

amada “Naniá” (n.a.)

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O encontro Das longas vestes mudas

Flutua o cetim prateado E o carmim dos lábios trêmulos Da mia senhora refestelada no divã:

Ela sua divindade...

E desodoriza o ar que ocupo No tempo e espaço, contrário A tudo que é minha essência.

Seus olhos nos meus olhos, olhos,

Revolta a cabeça contra os céus E faz morada na Terra, Lugar onde sou o escolhido:

-Hoje devo ir pescar?

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Pavlov para crianças

Pratinho com comida o cachorrinho salivou Sonzinho da sineta as orelhas aprumou Passou; passou. (Bom cãozinho!) tempo; tempo até demais. Sonzinho da sineta o cão levanta a cabeça e fala: -Ixi hoje não dá meu rapaz, tenho um encontro com uma gata.

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Em casa No espelho me vi em morte

e o dia parecia tão claro quanto olhasse através de um pote cheio de gafanhotos: eles trazem ao dia a noite... mas ali fechados ainda é dia! Após cantarem (o máximo que podem alcançar latitude) o canto gregoriano gafanhótico, oferendarão a mim, no pote, trazer ao dia a noite e cumprimentarão, eles pensam que eu sou, o Deus da Morte.

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Cão

Essa respiração ofegante canina

“rrã...rrã...rrã...rrã...rrã...rrã...rrã....rrã...rrã...” Vem cruzar a minha varanda, pela noite arrastada, e lentamente avançada me impede de dormir -é canina, porque temeria que fosse qualquer outra coisa e por isso não saio, não olho, não vejo -lá fora pode ser outra coisa, uma criança febril morando no meu quintal “rrã.rrã.rrã.rrã.rrã.rrã.rrã.rrã.rrã.” Vem romper barreiras, pelas portas de madeira passa; sem ecoar, a rosa dos ventos: faz o trajeto todo, mas sem tomá-lo, sem eu notar: ela quer me tomar... me possuir... “rrãrrãrrãrrãrrãrrãrrãrrãrrã” Alimento sua forma, lamento seu ar que não é ar e chama, me chama sem me chamar... -haveria de ser mesmo apenas o respirar ofegante de um cão, ou seria mesmo... seria o ofegante respirar de um cão ou seria a minha mesmo respiração?

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Silvestre

-1 A voz da vela está em meus olhos,

-sou caçador galante e arejo o ar num instante de noite pura simplesmente silenciosa... ela dorme.

-2 Brancura em meus sonhos,

não vejo mais nada da sombra do dia, possível dia que nos parecerá amanhã tão claro... ela dorme.

-3 -Pai e mãe, devo com ela?

O quê? Se devo... Devo ir-me? Pra onde? Onde... Onde... Pindorama já existia antes de insultá-la brasileira, mas espera! Eu também era antes de sê-la! Antes de vivê-la!

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antes de querê-la... ...antes de sabê-la... -sereia bela! Agora vira moça! Já! Já! Já! já... ela dorme.

-4 O meu espanto está lá fora,

na noite que engoma o pouco que tenho que possa de roupa, a poça de lama tinta lá fora vai me sujar aqui dentro, e quando chegar a me ver como um canto sombrio e frio, já não será de espanto que amanhecerá meu rosto morto: ela dorme... e eu terei que acordá-la de seu sonho menina para a viração, que vem da noite pro dia como um presente meu para ela.

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Margeando a solidão ...ao levar de conchas um colar

e prender e pegar na sua mão eu fui até a beira da praia e os meus pés raiaram o sol sobre o sal desse chão, ao você me soltar e apontar com alegria pra onde irá, ó não, eu fui à beira da praia raiar e os meus pés contaram o sal sob o sol deste chão, para você sorrir e olhar pra mim e voltar para o seu lar pro meu sertão: o mar...

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As estações da alma Pelo fim do caminho

A via bloqueada É o que tanto fiz E o que tanto falta

Os pés colhem espinhos Minha vista salga Onde as pedras habitam E a poeira estrada

Com o sol a pino Não há mais sombra O calor magoa É mentira suar de frio?

Demora a verdade É chegada a hora Próximo a uma casa Onde um rosto exclama

Pela janela aberta Esse rosto chora A dívida para com a casa Ela por espiá-la me salda

Mas não erguerei a mão Nem darei as costas Nem contorno das voltas Não há desvio

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A construção da solidão Por este caminho honesto

reina a dúvida como gracejo no encalço dos meus dias ordinários a perseguir um retorno aos braços de minha testamental amiga:

Que consta sempre em meu pensamento.

Por esta estrada reta e sincera também lamentam as vespas negras e pelos vossos zumbidos adivinho um ninho comum ao meu canto que fez-se pranto à tempestade:

A qual não vi, pois sonhava noite afora logo abaixo das árvores, pois sonhava dia adentro logo acima do meu dorso fraco.

E no meu avatar era Prometeus

mistura petarda*9 de tristeza e solidão (de ciência e religião) e apenas lá, apenas lá... a ti deixei um vestígio de pegadas para que possas algum dia me encontrares.

9 Petardo: explosivo usado antigamente para explodir portões e

pontes. Aqui foi usado como adjetivo. (n.a.)

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Ó, doce Laetitia! constrói teu reino em minha homenagem que só Deus sabe quanto cuidado esta abadia lisa de fino trato me custou:

Por ela andei sempre em frente pela estrada da ciência, pelo caminho da religião, mas só consegui finalizá-la porquanto só olhava para trás... E, minha amiga, eu gritei Como gritei em minha autoria! Adentrei a morada, Corri pela balaustrada, Mas os ecos, se comparados a ti, Apenas se assemelhavam a ecos.

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Rabbit Revisited*10 -Ô, Rabbit, Rabbit,

-cries the frog above the bog -Don´t you find scary by, maybe, mix up the air of our scarlet rage with your downy ass dawn´s hole of airy shit escape? -No, -echoes the Rabbit, -Not at all.

So the frog take the Rabbitt And like a blank page Print a wish brown-egged Faking the fable and his friend, Who bundled buryed by a primrose flame, Seeking a place for wash up the corn flakes.

10

escrito na forma de embromação (n.a.)

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O jovem

O jovem olha a borda do espelho. O jovem penteia-se de olhos fechados.

O jovem penteia jovem O

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O desenho Este desenho é do agora que não vou remendar. Mentira: As linhas de um grande faraó deitado em seu sarcófago. Tardio. Se deitarem a ele a máscara funerária, caíremos todos nós –não no quarto escuro de apenas uma luminária: as linhas são para o mundo lá de fora. Fazendo vento com a boca, eu sopro o céu no papel com a cor do giz vou além da palavra. E o dourado do sol -além do meu tempo – é feito com apenas um tom de amarelo e que não precisa ser dourado: basta achá-lo certo rabiscado em outra folha de rascunho para que eu continue, pois se não fosse assim ele seria esquecido –e será. O pássaro em cima da árvore espelha a liberdade; mas a liberdade... como ela voa livre em meu pensamento: e já são muitas liberdades, ruins e outras boas para mim, como voam longe!

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Do pássaro só fica o canto, vem vindo encostado nas colcheias, do desenho só lembrarão as colcheias porque o pássaro eu não o contornei muito bem. E com o giz avante eu vou pra depois do som e da palavra, depôr o rei mau que habita uma casa, sem: C-A-S-A

E há uma sombra na varanda, ela vai se casar, é uma moça que vai se casar comigo –ela será má também porque não me ama e espera outra pessoa: que não seja eu a outra! Não posso escrever “casa”, porque seria muito diferente do papel a escrita que feriria meu coração: e não teria o presente, a dança e a música que eu guardaria para detrás da folha, como uma festa, se não sobrasse espaço na parte da frente. Mas sobra, e a moça casa e a minha casa vêm tudo junto –só de olhar já diriam que sim, que são iguais: nada poderia me arrumar mais problemas se eu falasse “as duas são iguais”? –entenderiam errado porque ela casa e minha casa

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tanto fazem no desenho, mas com as palavras é tudo diferente: as duas seriam lembranças porque existe o pretérito e envelhecemos, e ela que casa já casou, e minha casa o moinho de vento do canto esquerdo –o qual eu não mencionei antes porque parecia uma cruz rabiscada –ganhou terreno e caiu por terra, e o vento da minha boca virou furacão e arrastou tudo para o rio. Só via as sobras da madeira boiando às margens do rio, que era uma das partes da margem de trás da folha; na outra parte do outro lado, então outra margem, coloquei uma barca construída de palitos de picolé colados em cima de um mar azul que dava em lugar nenhum, e a moça chorava por seu pai, o rei mau que não estava desenhado e por isso se afogou. Nada mais poderia ser motivo para tantas brigas e discórdia, peguei o barco sob acusações monstruosas vindas de minha mulher e partí. Tudo era paz e descanso naquele azul, depois voltei minha cabeça

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para além das nuvens arredondadas onde já era novamente realidade e por isso estou vivo. Agora penso nas imagens que eu desenhei e nas imagens que não apareceram, ou que se aglutinaram, ou as que não pude desenhar por faltar espaço, ou as que não lembrei.

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Adágio Ada: Quando os olhos teus secarem

Um rio inteiro por vaidade Da tua face enrugada, Trocarei teu nome, Ada, Por um mais empedernido, Mas isto será possível?

Meu ouvido riscado pelo choro Não lamentará mais a tua perda E pela janela lembrarei Da última vez que passou E de ti contarei, proverbioso, O belo canto que me atraiu: Agora em outro rosto iluminado Novamente canta Esse teu destino meu.

Gabriela: Quando vires, Gabriela,

Meu rosto de amor cantado Conta as pedras na calçada E dobra o número achado: Assim vai indo a saber O porquê da tua voz Ser pra mim ainda a foz De um sorriso e o meu viver.

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Corpo de rato Um rato morreu,

Eu fui descobri-lo hoje. Ele não era meu rato, Era uma ratazana o rato, Mas o corpo encurtou e secou. Está amassado, colado ao asfalto, Parece-me apenas Com um centímetro plano Acima do asfalto (em alto relevo...) Seu rabo morreu, Ao seu lado, O lado do rato, um toco, E para lá o rabo quase inteiro Sem o pouco que lhe falta. Não há mau cheiro, Estou à distância deixando-o respirar (e respira?...) -Nem parece mais ccom um rato!..., é o que diriam. Uniu-se ao asfalto, Enquanto os dias passaram De sol a chuva, de chuva a sol. Esse rato não é também Mais rato para os outros: Parece um grande chiclete De veludo mascavo, como sola descolada de sapato mascada pelos dentes da rua (borracha né?...) Mas mesmo assim

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A natureza tratou de cobrí-lo De si para os outros (porque morrer sem nunca rir deve ser vergonhoso...) E as florzinhas, Pequeninas e amarelas, E algumas folhas Dão-lhe os louros De um dia girassol. E com a ajuda de seu amigo vento, Que vai retirando flores E colocando folhas novas, Refestela-se ao lado delas Como num canto de canteiro. E se existe o estar-vendo-lá-de-cima Com certeza ele agradece Por lembrarem dele aqui Ao invés de varrê-lo Para debaixo do carpete Feito do corpete da memória. E o vento responde todo dia Com flores e folhas novas: -Adeus, ratinho! -e lá aparece a ratazana na forma das nuvens (de ô a ó) roendo um biscoito de polvilho: -Chau! -e fala chau porque depois de tudo isso não há preocupação com a finitude. E o adeus lá em cima, meus bons amigos, é um conto da carochinha.

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A Ítalo, o Calvino*11 Quando decidi sair à cidade

com o meu rosto ensolarado na mesma cidade fiquei cinza só pó e por mais que olhasse girassôis árvores e coisas e tais nunca seria... Ela me deixa alguns presentes de vez em quando, essa cidade: escarros, baratas, bitucas, cigarros todos sóis num mar branco... Traz doenças que no campo eu teria também Mas não seriam culpadas de mim Porque lá eu estaria fatigado daqui.

11

Após uma leitura do livro Marcovaldo, ou as Estações na Cidade (n.a.)

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As horas do verdugo Eu não tenho um plano B,

Meu tempo é um ramo folhado Do mais veloz outono.

Se desvia-me num dia

A pretensão dum final feliz, Encarcera-me a hora infantil em açoite -sempre a mesma mais horrenda-

Na tragédia tortuosa

Do não-passar final e reconfortante Do agora finado Nos nervos farinhosos do outro dia:

E vou trabalhar hoje

Já estando no trabalho d’amanhã. A fumaça cegou meus olhos,

Não param os pensamentos Minha cabeça não volta.

Na redenção voluntária Da agonia suspensa e trinada, Da moeda que não ganhei, Saltada do bolso furado do espírito: Tédio, seja o meu remorso florido E amigo da minha companhia No cadafalso eterno e solitário No qual, em fantasia, Declarou-se-me o meu carrasco.

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Volúpia da eternidade

A carne nova, minha cara, embriaga-se de perfumes rosados, doces, e tantos outros mais odores produz libertos, largas vestes, a seda chanfrada das asas de cada libélula. Nas frestas desse leque farináceo veja, ó pálido sol oriental, o corpo. Meu amor, o corpo é o incômodo apelo das horas, fantástico soerguer tedioso do que nunca será póstumo. Declina a febre! Pois qual etapa no processo da morte envolve a perda de nossa angústia?

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Lamentatio Ieremiae Prophetae ALEPH.

Ego vir videns paupertam meam In virga indignationis eius.

ALEPH. Me minavit, et adduxit in tenebras, Et non in lucem. ALEPH. Tantum in me vertit, Et convertit manum suam tota die. BETH. Vetustam fecit pellem meam, Et carnem meam, contrivit ossa mea. BETH. Aedificavit in gyro meo, Et circumdedit me felle et labore. BETH. In tenebrosis collocavit me, Quasi mortuos sempiternos. GHIMEL. Circumaedificavit adversum me, Ut non egrediar: Aggravavit compedem meum. GHIMEL. Sed, et cum clamavero et rogavero, Exclusit orationem meam. GHIMEL. Conclusit vias meas lapidibus quadris, Semitas meas subvertit.

Ierusalem, Ierusalem,

Convertere ad Dominum Deum tuum.

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Lamentações do Profeta Jeremias:

ALEPH. Eu sou o homem que conheceu a dor,

sob a vara de seu furor. ALEPH.

Conduziu-me e me fez caminhar nas trevas e não na claridade.

ALEPH. Ele não cessa de voltar a mão

todos os dias contra mim. BETH.

Consumiu minha carne e minha pele, partiu meus ossos.

BETH. Em torno de mim acumulou

veneno e dor. BETH.

Fez-me morar nas trevas como os mortos do tempo antigo.

GHIMEL. Cercou-me com muralhas sem saída,

carregou-me de pesados grilhões. GHIMEL.

Não obstante meus gritos e apelos sufocou a minha prece!

GHIMEL. Fechou-me a vereda com pedras

e obstruiu o meu caminho.

Jerusalém, Jerusalém, Retorna a teu Deus, YHVH

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um Apêndice

por

Vittorio D’Afflitto

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Por uma poesia de Garde Mastafanni

“Que toda espera se delongue e por repetidas vezes

seja reiterada, como uma problemática cesariana para o nascimento de mais uma estranha criatura.”

Garde Mastafanni

I

No momento preparo uma introdução ao volume "completo" das poesias de Garde Mastafanni. Fôra necessária sua partida para MT para haver a necessidade da coletânea de poemas Esperando - as horas do verdugo publicado em 2010 pela editora virtual de livros sob demanda Bookess (www.bookess.com) com uma pequena, porém valiosa, introdução de João Campos Nunes (aliás, lançando também um livro agora em julho de 2011 chamado Num estalar de dedos). Agora fala mais alto sua obra "completa" de poesias, deixada num caderno com pouco mais de 50 páginas.

Garde dirá que suas poesias parecem "a masturbação de um celibatário dentro do quarto após ter confessado seus pecados". Esse chiaroscuro da acedia espiritual é acompanhado da afirmação do corpo. Para Garde é necessário existir a afirmação do pecado da carne para haver a consciência, espírito para ele é uma forma elementar das faculdades mentais e a noção de pecado e culpa está entre as mais altas especulações intelectuais.

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Aproxima-se de uma frase de Clarice Lispector que aparece nesses sites de frases famosas para as pessoas falarem de seus egos nas redes sociais virtuais diluindo o sentido original, é similar ao que fazem os caminhoneiros de modo mais apropriado e inteligente, copiando frases vulgares, piadas e trechos da Bíblia Sagrada em seus parachoques: "Acho que devemos fazer coisa proibida – senão sufocamos. Mas sem sentimento de culpa e sim como aviso de que somos livres." -Clarice Lispector.

II R... de S... G..., poeta paranaense, comenta o

livro Esperando... de Garde Mastafanni, e eis que surge a figura de Baudelaire, aparece como o canto de um cisne trazendo na metade do século XIX a modernidade ao coração aflito dos homens; mas, ao que tudo indica no comentário melancólico de Germani, seu canto é breve e estéril.

Esse cisne com certeza não é a imagem de uma ave renascida das cinzas, como seria a idéia da tradição capaz de gerar novos significados (Virgílio uma vez recriou o grego Homero e outros latinos na Eneida, e Dante aceitou ser guiado por Virgílio em sua Comédia), a imitação não póde ser concretizada e essa phoínix é transferida à figura de Baudelaire que nos acena com suas flores em chamas.

Aí está então um convite, em suas linhas gerais aposta em uma aproximação de Garde com Baudelaire, aproximação ainda insuficiente:

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"Neste mundo hodierno ao avesso, teu grito é o reverso do verso. É uma pena existirem tão poucos poetas semelhantes a ti em sensatez e breve lucidez para verdades escancarar. Ao menos, no além, pela ousadia das palavras libertas, Baudelaire nos acena com suas flores em chamas. Belo trabalho!"

-Rogério de S. Germani

III J... dos C... N..., poeta e escritor paulistano,

situa-o no registro da loucura (poesia não é dom, poesia é loucura): "Uma vez, falaram que não sei quem tinha o Dom da poesia. Hoje sei que isso é besteira. Poesia não é questão de Dom. Poesia é loucura.(...) (...)Quando ele me propôs prefaciar esse, e me mandou o original, tive outro desses ataques. E lendo sua poesia, sendo entortado por ela, entortando-a, pensei: “Se isso não é poesia, então não sei mais o que pode sê-la.” Porque poesia tem que parecer loucura, mas ser sempre sã. Como no caso de “As horas do verdugo”, onde Mastafanni tece um ótimo retrato do absurdo e da resignação começando, louco, com “Eu não tenho plano B” e terminando seu livro, corajosamente, com “No qual declarou-se-me o meu carrasco.”.

-João dos Campos Nunes

O privilégio da poesia não é mais do ser

próximo às divindades, não mais escutaremos as

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musas, a auréola do poeta caiu na lama, Baudelaire avista isso, a poesia é uma questão de loucura sã, de transgressão ativa, de negação dos privilégios do espírito em detrimento dos privilégios da carne. Como dirá Raduan Nassar no início de sua Lavoura Arcaica: "(...)quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo(...)" Raduan Nassar inicia sua obra com uma negação comum ao indivíduo (masturbação), no centro erige a proibição, o tabu (incesto) e finaliza de modo a sublimar o narrador-personagem: ele se encontra no tempo de uma memória, mas esse tempo é também imemorial, de tradições acumuladas, pesando sobre suas costas, negando sua subjetividade. Quando reitera o discurso do pai é para negar uma face condescendente, destruir em sua mente o que concedemos às lembranças: o consentimento delas próprias possuirem um rosto. Fica a moldura apenas da tradição.

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Despedida

por

Vittorio D’Afflitto

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Um quarto para o confinamento

“Here I am, an old man in a dry month, Being read to by a boy, waiting for rain.”

T.S. Eliot – Gerontion*12 Aqui estão reunidos os escritos findados de

Garde Mastafanni. Alguns dos poemas presentes nesta edição já haviam ganhado um lugar ao sol sob o título geral Esperando – as horas do verdugo e agora ampliado, para incluir outras poesias, o volume passa a se chamar Confinamento.

A minha opção pela mudança do título (aceito,

é claro, por um Garde Mastafanni um tanto apático em relação a sua poesia) parte da mudança de vida do autor: Garde viajou para o Mato Grosso em 2010, pretendia cursar Engenharia Ambiental, logrou êxito pelo que sei, é o que está escrito em sua última carta –e o que isso pode significar?

Eu penso que talvez seja um reflexo da

inquietude que paira sobre suas idéias e atitudes, desencadeada por uma espécie de cristalização da insatisfação. Ele numa das tantas correspondências que trocamos na época de sua estada em Guarulhos demonstrava já o problema do Confinamento:

12

Eis-me aqui, um velho em tempo de seca ,

Um jovem lê para mim, enquanto espero a chuva. (trad. Ivan Junqueira)

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“CARO amigo Afflitto,

Aonde reside vida? Da onde vem sua força? À procura da vida, nada parece me satisfazer

mais; tudo parece... ou pelo menos os espaços sóbrios nos quais conduzo e... ao que me parece dou de cara comigo... eles se esgotam, têm uma finitude não recompensada. Quando me vejo só, sem falar nos amigos que escasseiam, as coisas e matérias e futuro que eu faço, vejo e desejo se destroçam num local que não alcanço e não posso denominar; arruinam-se sem eu ter tocado sequer o fundo. Há muito mágoa... é o que posso dizer.

A maior parte das vivências desbotada, os planos interrompidos sem nada ou coisa alguma no lugar; desânimo, desalento. Uma trajetória sem luz, o rosto empoeirado das minhas leituras... elas não me falam muita coisa a respeito... grandes obras e nenhum valor de constância no meu pensamento. Nada constante e ao mesmo tempo tudo tão solidificado! A vida eu desejo... onde pulsa seu toque em meu corpo e espírito? Insatisfação, mas também cristalização de estar insatisfeito:

...o problema?

...a insatisfação transformou-se no meu conforme sem haver revolta. Insatisfação; mas a formação de um estado dentro de mim conformado a isto –a capital deverá organizar à luz do dia um motim... espero.

Engano minhas emoções concordando com elas enquanto no fundo –é o que eu espero –organizo um motim contra minha insatisfação sem revolta. Espero por esse motim. Espero que haja e que ele me pegue de surpresa, porque senão será

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idéia conformada novamente. É impossível escrever nessa situação.

O motim deverá vir de dia, no calor da hora mais quente do dia, aquela hora na qual o coração instalou-se na sesta do espírito, tomando sua forma enquanto adormece.

Pense nisso Libreretto, pense com todo

carinho. Até mais,

G. M.

Obs: Haverá oportunidade para nós que não bajulamos nada mas nos conformamos?

Agosto/2010”

Após esse esclarecimento é possível notar o problema existencial que assola Garde: há o desejo de motim, de um outro eu que o autor deseja, aflorado em oposição ao que ele é: um eu de um outro estado em seu ser, um eu que derrubará as convenções do poeta oficial em sua capital dolente, um eu que vê o cotidiano destroçar a beleza de um outro mundo apenas sonhado. Um eu que não faria, possivelmente, mais parte desta coletânea.

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