conclusÕes do advogado-geral l. a. geelhoed apresentadas

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CONCLUSÕES DE L. A. GEELHOED - PROCESSO C-102/03 CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL L. A. GEELHOED apresentadas em 20 de Janeiro de 2005 1 I Introdução 1. O presente reenvio prejudicial, apresen- tado pelo Vestre Landsret (Dinamarca) diz respeito à interpretação da Directiva 85/374/ /CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legis- lativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsa- bilidade decorrente dos produtos defeituosos (a seguir «directiva») 2. Diz essencialmente respeito à questão de saber se esta directiva, que imputa a responsabilidade por um produto defeituoso, a título principal, ao produtor e somente a título subsidiário ao fornecedor, permite aos Estados-Membros alterar essa divisão de responsabilidade e, se for caso disso, em que medida. 2. O órgão jurisdicional de reenvio subme- teu ao Tribunal de Justiça cinco questões relativas à interpretação da directiva. Dizem respeito a uma problemática que já foi objecto dos processos Comissão/França (C-52/00) 3, Comissão/Grécia (C-154/00) 4e Gonzalez Sánchez (C-183/00) 5, e em espe- cial à questão de saber se a directiva permite que a responsabilidade decorrente de pro- dutos defeituosos seja alargada a outros operadores económicos diferentes daqueles que por ela são definidos. II Quadro jurídico A Direito comunitário 3. Nos termos do artigo 1.° da directiva, o «produtor» é responsável pelo «dano cau- sado por um defeito do seu produto». Na acepção da directiva, o conceito de «produ- tor» de um produto engloba o fabricante (artigo 3.°, n.° 1) e o importador na Comunidade (artigo 3.°, n.° 2). 1 — Língua original: francês. 2 - JO L 210, p. 29. 3 — Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect., p. 1-3827). 4 - Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect.. p. 1-3879). 5 - Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect., p. 1-3901). I - 202

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CONCLUSÕES DE L. A. GEELHOED - PROCESSO C-102/03

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL L. A. GEELHOED

apresentadas em 20 de Janeiro de 2005 1

I — Introdução

1. O presente reenvio prejudicial, apresen­tado pelo Vestre Landsret (Dinamarca) diz respeito à interpretação da Directiva 85/374/ /CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legis­lativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsa­bilidade decorrente dos produtos defeituosos (a seguir «directiva») 2. Diz essencialmente respeito à questão de saber se esta directiva, que imputa a responsabilidade por um produto defeituoso, a título principal, ao produtor e somente a título subsidiário ao fornecedor, permite aos Estados-Membros alterar essa divisão de responsabilidade e, se for caso disso, em que medida.

2. O órgão jurisdicional de reenvio subme­teu ao Tribunal de Justiça cinco questões relativas à interpretação da directiva. Dizem respeito a uma problemática que já foi

objecto dos processos Comissão/França (C-52/00) 3, Comissão/Grécia (C-154/00) 4 e Gonzalez Sánchez (C-183/00) 5, e em espe­cial à questão de saber se a directiva permite que a responsabilidade decorrente de pro­dutos defeituosos seja alargada a outros operadores económicos diferentes daqueles que por ela são definidos.

II — Quadro jurídico

A — Direito comunitário

3. Nos termos do artigo 1.° da directiva, o «produtor» é responsável pelo «dano cau­sado por um defeito do seu produto». Na acepção da directiva, o conceito de «produ­tor» de um produto engloba o fabricante (artigo 3.°, n.° 1) e o importador na Comunidade (artigo 3.°, n.° 2).

1 — Língua original: francês. 2 - JO L 210, p. 29.

3 — Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect., p. 1-3827).

4 - Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect.. p. 1-3879).

5 - Acórdão de 25 de Abril de 2002 (Colect., p. 1-3901).

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SKOV E BILKA

4. O artigo 3.°, n.° 3, da directiva dispõe:

«Quando não puder ser identificado o produtor do produto, cada fornecedor será considerado como produtor, salvo se indicar ao lesado, num prazo razoável, a identidade do produtor ou daquele que lhe forneceu o produto. O mesmo se aplica no caso de um produto importado, se este produto não indicar o nome do importador referido no n.° 2, mesmo se for indicado o nome do produtor.»

5. Nos termos do artigo 13.° da directiva:

«A presente directiva não prejudica os direitos que o lesado pode invocar nos termos do direito da responsabilidade con­tratual ou extracontratual ou nos termos de um regime especial de responsabilidade que exista no momento da notificação da pre­sente directiva.»

B — Direito nacional

6. Na Dinamarca, a directiva foi transposta pela Lei n.° 371, de 7 de Junho de 1989 (a seguir «lei dinamarquesa»).

7. As disposições pertinentes da lei têm a seguinte redacção:

Artigo 4.°:

«1. É considerado produtor quem fabrica um produto acabado, ou uma parte componente ou produz uma matéria-prima, quem produz ou colhe um produto natural, e ainda quem se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo.

2. Também é considerado produtor quem importa um produto na Comunidade tendo em vista uma venda, locação, locação finan­ceira ou qualquer outra forma de negócio no âmbito da sua actividade comercial.

3. É considerado fornecedor quem coloca um produto em circulação no âmbito das suas actividades comerciais sem ser considerado o produtor.

4. Considera-se produtor qualquer fornece­dor do produto quando o lesado por um produto que é produzido na UE não puder determinar quem o produziu ou quando o lesado por um produto que é produzido fora da UE não puder determinar quem o importou para a UE.

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5. O n.° 4 não se aplica se o fornecedor em tempo útil prestar ao lesado informações sobre o nome e endereço do produtor ou do importador ou sobre o nome e endereço de quem lhe forneceu o produto. O fornecedor não pode remeter o lesado para um respon­sável cujo tribunal do domicílio se situa fora da UE.»

Artigo 10.°:

«Um fornecedor é responsável pelo produto defeituoso directamente perante o lesado e perante os subsequentes fornecedores do circuito comercial.»

Artigo 11.°:

«1. Se, em aplicação da presente lei, várias pessoas forem responsáveis pelo mesmo dano, a sua responsabilidade é solidária.

[...]

3. Quem, como fornecedor ou produtor, na acepção do artigo 4.°, n.° 2 ou n.° 4, indemnizar o lesado ou um fornecedor subsequente fica subrogado no direito do

lesado em relação a operadores a montante no circuito de produção e comercialização [...]»

III — Matéria de facto e tramitação processual

8. Em 24 de Abril de 1998, Jette Mikkelsen e Michael Due Nielsen compraram uma emba­lagem de 30 ovos na loja Bilka Lavprisvare­hus A/S (a seguir «Bilka)».

9. Esses ovos foram utilizados em 15 de Maio de 1998 para preparar um bolo de ovos que J. Mikkelsen e M. Nielsen consumiram juntos.

10. Em 16 de Maio de 1998, tanto J. Mikkelsen como M. Nielsen adoeceram. Exames efectuados, em seguida, no hospital revelaram que ambos tinham adoecido com salmonelose.

11. Os lesados accionaram judicialmente o fornecedor Bilka, que requereu a intervenção do produtor Skov (a quem os ovos tinham sido comprados).

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SKOV E BUKA

12. O órgão jurisdicional de primeira ins­tância declarou, na sua decisão, que a Bilka, enquanto fornecedor, era responsável pelos danos sofridos por J. Mikkelsen e M. Nielsen e podia accionar judicialmente Skov, dado que este era responsável como produtor dos ovos contendo salmonelas.

13. A Bilka e a Skov interpuseram recurso, alegando que o artigo 10.° da lei dinamar­quesa é incompatível com a directiva. O Vestre Landsret, por despacho de 26 de Setembro de 2003, decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Primeira questão:

A Directiva do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decor­rente dos produtos defeituosos, opõe-se a um regime legal segundo o qual é imputada ao fornecedor, sem limitação, a responsabilidade que incumbe ao produtor nos termos da directiva?

2) Segunda questão:

A acima referida directiva do Conselho opõe-se a um regime segundo o qual,

nos termos da jurisprudência, é impu­tada ao fornecedor, sem limitação, a responsabilidade por culpa do produtor, estabelecida na jurisprudência, por pro­dutos defeituosos dos quais resultam danos na pessoa ou nas coisas do consumidor?

3) Terceira questão:

Tendo em conta:

1. O protocolo do Conselho de Minis­tros publicado em BEUC-News, Legal Supplement, 12 Novembro/Dezembro 1985, páginas 20-21, em que se declara no ponto 2:

'Considerações sobre os artigos 3.° e 12.°: 'o que respeita à interpretação dos artigos 2.° e 10.°, o Conselho e a Comissão estão de acordo em que nada obsta a que cada Estado-Membro intro­duza na sua legislação nacional regras respeitantes à responsabilidade do for­necedor, uma vez que esta responsabi­lidade não está abrangida pela directiva. Também existe acordo em que, nos termos da directiva, os Estados-Mem­bros podem estabelecer regras sobre a partilha final da responsabilidade entre os vários produtores responsáveis nos termos do artigo 3.° e os fornecedores (v. artigo 39.°)".

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2. O artigo l.° da directiva dispõe:

'A presente directiva não prejudica os direitos que o lesado pode invocar nos termos do direito da responsabilidade contratual ou extracontratual ou nos termos de um regime especial de responsabilidade que exista no momento da notificação da presente directiva'.

Pretende-se que seja esclarecido se a directiva se opõe a que um Estado--Membro regule na lei a responsabili­dade do fornecedor por produtos defeituosos, no caso de o fornecedor, como sucede no § 3, n.°l, ponto 1, da lei dinamarquesa, ser definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial coloca um produto em circulação, não sendo considerado produtor nos termos da definição dada no artigo 3.° da directiva relativa à responsabilidade por produtos defeituosos.

4) Quarta questão:

A directiva (Directiva do Conselho de 25 de Julho de 1985 relativa à aproxi­mação das disposições legislativas, regu­lamentares e administrativas, dos

Estados-Membros em matéria de res­ponsabilidade decorrente dos produtos defeituosos) opõe-se à adopção por um Estado-Membro de uma disposição legal sobre responsabilidade por produ­tos defeituosos, segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem ser ele próprio produtor ou considerado como tal nos termos do artigo 3." da directiva:

— A responsabilidade do produtor nos termos da directiva?

— a responsabilidade por culpa do produ­tor, estabelecida na jurisprudência, por produtos defeituosos, pelos danos cau­sados na pessoa e nas coisas do consumidor?

A disposição legal referida na questão pressupõe:

a) que o fornecedor é definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial, coloca um produto em cir­culação, não sendo considerado produ­tor (§ 3, n.°l, ponto 1, da lei dinamarquesa relativa à responsabili­dade por produtos defeituosos);

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SKOV E BILKA

b) que o produtor pode ser responsabi­lizado e, portanto, o fornecedor não responde se não for esse o caso (§ 10 da mesma lei).

c) que o fornecedor tem direito de regresso contra o produtor (§ 13, n.° 3, da mesma lei).

5) A directiva (Directiva do Conselho de 25 de Julho de 1985 relativa à aproxi­mação das disposições legislativas, regu­lamentares e administrativas, dos Estados-Membros em materia de res­ponsabilidade decorrente dos produtos defeituosos) opõe-se a que um Estado--Membro mantenha uma regra existente anteriormente à directiva relativa à responsabilidade por produtos defeituo­sos, não baseada na lei mas sim na jurisprudência, segundo a qual é impu­tada ao fornecedor, não sendo ele próprio produtor nem considerado como tal nos termos do artigo 3.° da directiva:

— a responsabilidade que incumbe ao produtor pelos produtos defeituosos nos termos da directiva?

— a responsabilidade por culpa do produtor, estabelecida na jurispru­dência, por produtos defeituosos,

pelos danos causados na pessoa ou nas coisas do consumidor?

A regra baseada na jurisprudência referida na questão pressupõe:

a) que o fornecedor é definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial coloca um produto em circulação, não sendo considerado produtor (artigo 3.°, n.° 3, ponto 1, da lei dinamarquesa relativa à res­ponsabilidade por produtos defei­tuosos).

b) que o produtor pode ser responsa­bilizado, e que, portanto, o fornece­dor não é responsável se não for esse o caso (§10 da mesma lei)

c) que fornecedor tem direito de regresso contra o produtor (§ 11, n.° 3, da mesma lei).»

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IV — Observações

14. As observações escritas e orais feitas no presente processo podem ser divididas em duas categorias. Por um lado, as observações dos demandados no processo principal — os lesados — e do Governo dinamarquês, que sustentam a tese segundo a qual a directiva só realizou a harmonização completa da responsabilidade dos produtores decorrente dos produtos defeituosos e segundo a qual, por conseguinte, os Estados-Membros con­tinuaram a ter competência para manter ou adoptar uma regulamentação específica rela­tiva à responsabilidade objectiva dos forne­cedores. Por outro lado, as observações das demandantes no processo principal — a Bilka e a Skov —, do Governo espanhol e da Comissão, que observam que a directiva prevê efectivamente a harmonização com­pleta da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, ao imputar essa res­ponsabilidade exclusivamente aos produto­res e aos operadores económicos equipara­dos aos primeiros.

15. O Governo dinamarquês apoia a sua tese em dois argumentos diferentes. Começa por sustentar que o artigo 3.° da directiva apenas contém uma definição do produtor e dos operadores económicos a ele equiparados. Daqui conclui, a contrario, que a directiva não regulamentou a responsabilidade dos intermediários, como o fornecedor, no cir­cuito de produção e de comercialização. Esta interpretação é corroborada pelo artigo 13.°

da directiva e por duas declarações — a segunda e a décima sexta — que figuram na acta da 1025.a reunião do Conselho, de 25 de Julho de 1985.

16. A título subsidiário, o Governo dina­marquês explica que, segundo a legislação dinamarquesa, a responsabilidade do forne­cedor não é autónoma, uma vez que, de acordo com os artigos 10.° e 11.°, n.° 3, da lei dinamarquesa, o fornecedor só responde perante os lesados na medida em que o produtor possa ser responsável. A situação do fornecedor é, portanto, parecida com a de uma caução solidária. A regulamentação dinamarquesa distingue-se, portanto, da regra francesa, declarada incompatível com a directiva no acórdão Comissão/França, já referido 6. O Governo dinamarquês infere daí que essa jurisprudência não é aplicável à regulamentação dinamarquesa.

17. Para o caso de esta interpretação não ser acolhida, o Governo dinamarquês convida o Tribunal de Justiça a reapreciar a sua jurisprudência, pelo menos no que diz respeito à responsabilidade do fornecedor, devido às consequências negativas dessa jurisprudência para a protecção dos interes­ses dos consumidores. No caso de o Tribunal de Justiça declarar a incompatibilidade da lei dinamarquesa com a directiva, este Governo pede que os efeitos do acórdão a proferir sejam limitados no tempo à data da prolação.

6 — N.° 2 das presentes conclusões.

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SKOV E BILKA

18. A Skov, a Bilka, o Governo espanhol e a Comissão remetem essencialmente, nos seus argumentos, para o acórdão Comissão/ /França 7, já referido. Consideram que esse acórdão impõe a conclusão de que as disposições dos artigos 3.°, n.° 3, 10.° e 11.° da lei dinamarquesa infringem a directiva.

19. Segundo estes intervenientes, a segunda declaração que consta da acta do Conselho deve ser interpretada no sentido de que os Estados-Membros podem definir regras pró­prias relativas à responsabilidade do forne­cedor, mas não transferir para o fornecedor a responsabilidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos, tal como a directiva a imputou ao produtor.

20. A Skov alega ainda que o artigo 10.° da lei dinamarquesa deve ser interpretado em conformidade com a directiva, que, em sua opinião, é de aplicação directa. O artigo 10.° da lei dinamarquesa não pode, assim, impu­tar ao fornecedor obrigações mais pesadas do que as referidas no artigo 3.° da directiva. Em apoio desta tese, faz referência à jurispru­dência do Tribunal de Justiça nos processos Von Colson e Karmann, Marleasing, Wag­ner, Miret e Faccini Dori 8.

V — Apreciação

A — Observações preliminares

21. Neste processo, a questão principal é de saber se a directiva impede uma aplicação segundo a qual o fornecedor (ou qualquer outro intermediário) é obrigado a assumir sem restrições a responsabilidade do produ­tor nos termos da directiva.

22. A directiva prevê uma regulamentação da responsabilidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos. Nos termos do seu artigo 1.°, os interessados podem pedir a reparação dos danos sofridos devido a um produto defeituoso, na condição de prova­rem o nexo de causalidade entre o defeito e os danos (artigo 4.°). No artigo 1.°, o produtor do produto defeituoso é definido como sendo o responsável.

23. O artigo 3.° da directiva contém a definição legal do termo «produtor» — como responsável — na acepção da directiva. Trata-se nomeadamente:

— do fabricante de um produto acabado, do produtor de uma matéria-prima e de

7 - N.° 2 das presentes conclusões.

8 - Acórdãos de 10 Abril de 1984. Von Colson e Karmann (14/83, Recueil, p. 1891); de 13 de Novembro de 1990. Maricasing (C-105/89, Colect., p. 1-4135); de 16 de Dezembro de 1993, Wagner, Miret ((.'-334/92, Colect.. p. 1 6911); e de 14 de julho de 1994, Faccini Don (C-91/92, Colect., p. I-3325).

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qualquer pessoa que se apresente como produtor pela aposição no produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo (n.° 1);

— de qualquer pessoa que importe um produto na Comunidade para venda, locação, locação financeira ou qualquer outra forma de distribuição no âmbito da sua actividade comercial (n.° 2);

— do fornecedor quando não puder ser identificado o produtor ou o importador do produto, salvo se indicar ao lesado, num prazo razoável, a identidade do produtor ou de quem lhe forneceu o produto (n.° 3).

24. Esta disposição foi transposta para o direito dinamarquês pelo artigo 4.°, n.os 1, 2, 4 e 5, da lei dinamarquesa relativa à responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos. No entanto, o legislador dina­marquês acrescentou uma categoria especial às categorias de responsáveis previstas na directiva. Segundo o artigo 10.° da lei dinamarquesa, os fornecedores respondem directamente pelos defeitos de um produto perante os lesados e fornecedores a jusante no circuito de distribuição. Nos termos da definição do artigo 4.°, n.° 3, da referida lei, o

fornecedor na acepção do artigo 10." é quem põe um produto em circulação no âmbito das suas actividades comerciais sem ser considerado como um produtor.

25. Em suma, o juiz a quo pede que o Tribunal de Justiça especifique se a harmo­nização da responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos efectuada pela directiva deve ser considerada como uma harmoniza­ção completa, não deixando nenhum poder discricionário aos Estados-Membros quanto à definição do círculo dos responsáveis.

26. Numa série de acórdãos recentes, Comissão/França, Gonzalez Sánchez e Comissão/Grécia, já referidos9, o Tribunal de Justiça debruçou-se sobre esta questão de princípio. Nas minhas conclusões nesses processos, considerei, com base numa aná­lise da sua redacção, da sua economia e dos seus objectivos, tal como decorrem dos considerandos, que a directiva tem por objectivo uma harmonização total da res­ponsabilidade objectiva decorrente dos pro­dutos defeituosos. Daí se conclui que as margens de apreciação de que dispõem os Estados-Membros no momento da trans­posição da directiva para a ordem jurídica nacional foram totalmente determinadas pelo seu texto. Com base numa argumenta­ção análoga, o Tribunal de Justiça, nos referidos acórdãos chegou à mesma conclu­são, como resulta claramente dos pontos 16 a 19 do acórdão Comissão/França, já refe­rido.

9 — N.° 2 das presentes conclusões.

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SKOV E BILKA

27. No n.° 16, o Tribunal de Justiça consi­derou, nomeadamente, que a margem de apreciação de que dispõem os Estados--Membros é integralmente determinada pela própria directiva e deve ser inferida da redacção, do objectivo e da economia da mesma.

28. O Tribunal de Justiça declara, a seguir, no n.° 17, que a directiva, ao estabelecer um regime de responsabilidade civil harmoni­zado dos produtores pelos danos causados pelos produtos defeituosos, prossegue o objectivo de garantir uma concorrência não falseada entre os operadores económicos, de facilitar a livre circulação de mercadorias e de evitar as diferenças no grau de protecção dos consumidores.

29. O Tribunal de Justiça considera, ainda, no n.° 18, que a directiva não contém nenhuma disposição que autorize expressa­mente os Estados-Membros a adoptarem ou a manterem, relativamente às questões nela reguladas, disposições mais estritas para assegurar um grau de protecção mais ele­vado aos consumidores.

30. Por último, o Tribunal de Justiça salienta, no n.° 19, que o facto de a directiva prever certas derrogações ou remeter quanto a certos pontos para o direito nacional não significa que, nos aspectos por ela regulados, a harmonização não seja exaustiva.

31. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça chega à conclusão de que o artigo 13.° da directiva não pode ser interpretado no sentido de que permite que os Estados--Membros mantenham um regime geral de responsabilidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos diferente do regime previsto pela directiva.

32. Depois, no n.° 22 do acórdão Comissão/ /França e nos n.°s 31 a 33 do acórdão Gonzalez Sánchez, já referidos, o Tribunal de Justiça afirma que o regime aplicado pela referida directiva não exclui a aplicação de outros regimes de responsabilidade contra­tual ou extracontratual baseados em funda­mentos diferentes, tais como a garantia dos defeitos ocultos ou a culpa.

33. Antes de responder às questões coloca­das, apreciarei, em primeiro lugar, a questão de saber se os argumentos apresentados pelo Governo dinamarquês e pelos demandados no processo principal contêm elementos novos em relação aos referidos argumentos e se podem levar a uma revisão desta jurisprudência.

34. O Governo dinamarquês sustentou, detalhadamente, a tese segundo a qual a directiva só tem por objectivo a harmoniza­ção da responsabilidade do produtor. Excep­tuada a regulamentação parcial da responsa­bilidade subsidiária do fornecedor no caso de um produtor de um produto defeituoso não poder ser identificado, prevista no artigo 3.°,

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n.° 3, da directiva, esta não tem por objectivo a regulamentação em geral da responsabili­dade do fornecedor e dos outros interme­diários. Daí o Governo dinamarquês deduz que, sob este aspecto, os Estados-Membros conservaram as suas competências legislati­vas.

35. Não posso estar de acordo com esta tese, nem com a argumentação em que se baseia. Como resulta da jurisprudência já referida várias vezes, a directiva tem por objectivo uma harmonização completa da responsabi­lidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos. Essa regulamentação contém, pelo menos, uma definição do objecto da responsabilidade, isto é, o prejuízo causado por um produto defeituoso, do círculo das pessoas protegidas e, por último, do círculo dos responsáveis. Ora, se se partir do princípio de que a directiva tem por objectivo uma harmonização completa, chega-se à conclusão de que a definição do círculo dos responsáveis é igualmente exaus­tiva.

36. Por esta razão, não é permitido que os Estados-Membros alarguem o círculo dos responsáveis aos fornecedores e aos outros intermediários, excepto nos casos expressa­mente previstos no artigo 3.°, n.° 3, da directiva.

37. Em apoio da sua tese, o Governo dinamarquês também invocou duas declara­

ções, uma do Conselho, outra do Conselho e da Comissão, que, a respeito da directiva, foram inseridas na acta da 1025.a reunião do Conselho, de 25 de Julho de 1985 10. Embora não tenham sido invocadas nos processos referidos supra, são pertinentes para a interpretação da directiva.

38. Antecipando a apreciação da terceira questão, onde voltarei a debruçar-me mais detalhadamente sobre essas declarações, concluo que nem a sua natureza jurídica, nem o seu conteúdo material podem afectar o texto, a economia e o objectivo da directiva.

39. Tanto nas suas observações escritas como na audiência, as demandantes no processo principal e o Governo dinamarquês sublinharam as diferenças que, em sua opinião, existem entre a regulamentação dinamarquesa da responsabilidade objectiva dos fornecedores e o artigo 1386-7 do Código Civil francês, que foi declarado incompatível com a directiva pelo Tribunal de Justiça no processo Comissão/França, já referido 11.

40. A este respeito, observo que, no presente processo, está, em primeiro lugar, em causa a

10 — Trata-se da segunda declaração do Conselho e da Comissão e da décima sexta declaração que figuram na acta da reunião do Conselho, de 25 de Julho de 1985 (n.° 8631/85, Bruxelas, 15 de Outubro de 1985).

11 — N.° 2 das presentes conclusões.

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questão de saber se uma disposição legal como a dinamarquesa é compatível ou não com a directiva. Das diferenças invocadas entre essas duas disposições não se podem extrair argumentos decisivos para apoiar a resposta a esta questão.

41. Se o Tribunal de Justiça não concordar com a sua opinião segundo a qual a regulamentação dinamarquesa relativa à responsabilidade objectiva dos fornecedores decorrente dos produtos defeituosos é com­patível com a directiva tal como foi inter­pretada no acórdão Comissão/França, o Governo dinamarquês pede ao Tribunal de Justiça que reveja essa jurisprudência.

42. Parece-me que uma revisão dessa juris­prudência, de data recente, é inadequada. Tanto nos acórdãos em causa como nas minhas conclusões, foi afirmado, com fun­damento numa análise gramatical, sistemá­tica e histórica, que a directiva tem efectiva­mente por objectivo uma harmonização total. Os argumentos avançados pelo Governo dinamarquês — que se reduzem essencialmente ao facto de a interpretação do Tribunal de Justiça, em sua opinião, ter por resultado uma protecção insuficiente dos consumidores — não podem conduzir a um resultado que contraria a nítida vontade do legislador comunitário tal como expressa na directiva.

43. Se uma directiva relativa a uma matéria tão difícil e delicada como a da responsabi­

lidade decorrente dos produtos defeituosos for contra as preferências de um ou vários Estados-Membros, é necessário procurar resolver essa divergência no quadro da ordem constitucional comunitária, não atra­vés de uma interpretação contra legem, mas efectivamente por iniciativa do legislador comunitário. De resto, resulta das diligências empreendidas pelo Governo dinamarquês na sua qualidade de presidente do Conselho que este está consciente desta lógica constitucio-nal 12.

44. Para todos os efeitos úteis, noto, além disso, que, se o Tribunal de Justiça preten­desse adoptar a versão preconizada pelo Governo dinamarquês, haveria uma revira­volta completa da jurisprudência recente tal como está contida nos acórdãos Comissão/ /França e González Sánchez, já referidos 13 Essa interpretação teria, efectivamente, por consequência que a responsabilidade primá­ria dos produtores, expressamente desejada pela directiva, fosse alargada aos outros elos da cadeia de produção, como as pessoas intermediárias (fornecedores).

45. Essa mudança da jurisprudência impli­caria também que os argumentos enunciados pelo Tribunal de Justiça — a redacção, a economia e os antecedentes da directiva — a

12 — Resolução do Conselho, de 19 de Deľembro de 2002. relativa à alteração da directiva relativa à responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos( JO 2003, C 26 p. 2).

13 — N.° 2 das presentes conclusões.

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favor de uma harmonização completa, que imputa a responsabilidade objectiva decor­rente dos produtos defeituosos exclusiva­mente ao produtor, se tomassem insustentá­veis.

B — Quanto à primeira questão

46. A primeira questão é respeitante aos operadores económicos que não os produ­tores, tal como são definidos no artigo 3.°, n.° 3, da directiva. Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se esta disposição obsta a uma regra nacional nos termos da qual os fornecedores respon­dem sem restrições pela responsabilidade dos produtores nos termos da directiva.

47. A resposta a esta questão infere-se facilmente do acórdão Comissão/França, já referido. Nesse processo, estava em causa uma disposição do Código Civil francês (artigo 1386-7) que equiparava os fornece­dores aos produtores no que diz respeito à responsabilidade. O Tribunal de Justiça decidiu que essa equiparação completa era contrária à directiva, dado que o seu artigo 3.°, n.° 3, prevê apenas uma responsa­bilidade subsidiária no caso de a identidade ser desconhecida.

48. Resulta da comparação entre o artigo 1386-7 do Código Civil francês e o artigo 10.° da lei dinamarquesa que as duas disposições são muito similares.

49. O artigo 1386-7 do Código Civil francês dispõe que o vendedor, o locador, com excepção do locador financeiro ou do locador equiparável ao locador financeiro, ou qualquer outro fornecedor profissional é responsável pela falta de segurança do produto nas mesmas condições que o produtor. Se for caso disso, o intermediário tem direito a acção de regresso contra o produtor.

50. O artigo 10.° da lei dinamarquesa prevê a responsabilidade do fornecedor pelos defei­tos de um produto relativamente aos lesados e aos fornecedores situados a jusante na cadeia de distribuição. Nos termos do artigo 11.°, n.° 3, desta lei, qualquer interme­diário que tenha indemnizado o lesado goza do direito de regresso contra o produtor.

51. Embora as duas disposições tenham algumas diferenças quanto à definição do círculo dos responsáveis, deve dizer-se que ambas alargam o círculo dos responsáveis aos fornecedores e outros intermediários num sentido substancialmente mais amplo do que o previsto no artigo 3.°, n.° 3, da directiva. Além disso, o artigo 1386-7 do

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Código Civil francês e os artigos 10.° e 11.°, n.° 3, da lei dinamarquesa contêm, por razões evidentes, a acção de regresso, ao passo que a directiva tem precisamente por objectivo evitar esse cúmulo de processos, ao limitar o círculo dos responsáveis aos produtores.

52. Tanto os demandados no processo principal como o Governo dinamarquês invocaram as diferenças entre a disposição francesa e as disposições dinamarquesas. Uma contém uma verdadeira cláusula de responsabilidade, enquanto as outras se referem a uma responsabilidade condicional. Segundo o regime francês, o lesado tem o direito de imputar ao fornecedor a respon­sabilidade decorrente de qualquer produto defeituoso que este lhe tenha vendido, quer dizer, tanto dos produtos que já eram defeituosos no momento da sua colocação em circulação como dos produtos que se tornaram defeituosos nas fases posteriores da comercialização. Pelo contrário, segundo as disposições dinamarquesas, o lesado só pode intentar urna acção de indemnização contra um fornecedor quando se trate de produtos defeituosos no momento da sua entrada em circulação.

53. Independentemente destas diferenças, elas não me parecem ser pertinentes para determinar se o alcance ratione personae dos artigos 10.° e 11.°, n.° 3, da lei dinamarquesa está em conformidade com o artigo 3.° da directiva. A este respeito, deve observar-se que a definição que as disposições dinamar­quesas dão do círculo dos responsáveis contra as quais o lesado tem direito de

intentar uma acção devido aos produtos defeituosos, é mais ampla que a prevista no artigo 3.° da directiva. Resulta do acórdão Comissão/ França que esse aspecto é, só por si, suficiente para provar a falta de confor­midade destas disposições com a directiva. Por outro lado, a aplicação da regulamenta­ção dinamarquesa envolve quase inevitavel­mente um cúmulo de processos, precisa­mente o efeito que o legislador comunitário quis evitar 14.

C — Quanto à segunda questão

54. Através da segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio solicita o parecer do Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade com a directiva da jurisprudência dinamar­quesa segundo a qual o fornecedor assume a responsabilidade, sem restrições, por actos culposos do produtor, tal como ela é determinada pela jurisprudência, devido a defeitos do produto que tenham ocasionado danos à pessoa ou aos bens do consumidor.

55. Resulta dos autos que, antes da adopção da directiva, a responsabilidade decorrente

14 — Acórdão Comissāo/França, já referido na nota 3. n.° 40.

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dos produtos defeituosos — tanto a do produtor como a do fornecedor — era regida na Dinamarca pela jurisprudência.

56. Segundo essas regras jurisprudenciais, a responsabilidade decorrente de produtos defeituosos é, em primeiro lugar, apreciada à luz de uma das regras gerais da responsa­bilidade civil do direito dinamarquês, basea­das no conceito de culpa. No entanto, a evolução da jurisprudência e da doutrina levou a que o produtor seja considerado responsável com fundamento numa respon­sabilidade por culpa grave e, em determina­dos casos, numa responsabilidade sem culpa.

57. Neste sistema jurisprudencial, o forne­cedor assume a responsabilidade dos opera­dores económicos a montante da cadeia de produção e de distribuição pelos prejuízos causados pelo produto. Essa responsabili­dade foi — e continua a ser — uma responsabilidade sem culpa.

58. A transposição da directiva para o direito dinamarquês pela Lei n.° 371, teve por consequência que, no que diz respeito à responsabilidade objectiva do produtor decorrente dos produtos defeituosos, o regime da directiva tivesse sido totalmente adoptado. No respeitante à sua responsabi­lidade assente na culpa, o sistema jurispru­dencial existente continuou a ser aplicado.

59. Através do artigo 10.º da referida lei, a jurisprudência anterior relativa à responsa­bilidade objectiva do fornecedor foi codifi­cada. Resulta dos trabalhos preparatórios da lei que o legislador dinamarquês quis con­firmar essa jurisprudência por intermédio desta disposição e que, no momento da adopção da lei, o Governo dinamarquês estava convencido de que a responsabilidade do fornecedor não era regulamentada pela directiva.

60. O conglomerado de regras legais e jurisprudenciais relativas à responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos pode ser decomposto em três elementos:

— a responsabilidade objectiva do produ­tor,

— a obrigação do fornecedor de assumir a responsabilidade do produtor («a res­ponsabilidade derivada do fornecedor»),

— a responsabilidade por culpa, ou culpa grave do produtor.

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61. No respeitante à responsabilidade objec­tiva do produtor, as definições do artigo 3.° da directiva foram retomadas no artigo 4.°, n.os 1, 2, 4 e 5, da lei dinamarquesa, enquanto o princípio da responsabilidade objectiva foi enunciado no artigo 6.° desta lei. Segue-se que, estando em conformidade com a directiva, este elemento não necessita de mais observações.

62. No que diz respeito ao segundo ele­mento — a responsabilidade derivada do fornecedor — já observei, na minha análise da primeira questão, que as regras dos artigos 10.° e 11.°, n.° 3, da lei dinamarquesa estão em contradição com a directiva, que limitou a responsabilidade objectiva aos produtores.

63. Resulta do despacho de reenvio que o órgão jurisdicional dinamarquês se interroga também sobre a questão de saber se o artigo 13.° da directiva não pode fornecer a base legal para a extensão da responsabili­dade resultante de produtos defeituosos.

64. No processo Comissão/França, já refe­rido 15 , foi colocada a mesma questão. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça respondeu de

forma negativa. Remeto para os n.°s 21 a 23, em que o Tribunal de Justiça afirmou «que o artigo 13.° da directiva não pode ser inter­pretado no sentido de que deixa aos Estados--Membros a possibilidade de manterem um regime geral de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos diferente do pre­visto pela directiva». Segue-se que a regula­mentação dinamarquesa relativa à responsa­bilidade objectiva do fornecedor não é justificada no artigo 13.° da directiva.

65. Pelo contrário, uma regulamentação nacional assente na culpa do produtor, tal como a que decorre da jurisprudência dinamarquesa, deve ser considerada compa­tível com a directiva, como se deduz do n.° 22 do acórdão Comissão/França, já referido, onde o Tribunal de Justiça decidiu que «[...] o regime instituído pela referida directiva [...] não afasta a aplicação de outros regimes de responsabilidade contratual ou extracontratual assentes em fundamentos diferentes, como a garantia dos vícios ocultos ou a culpa».

66. Assim, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão da seguinte forma: o artigo 13.° da directiva opõe-se a uma regulamentação nacional que estende o regime da responsabilidade objec­tiva previsto pela referida directiva aos fornecedores dos produtos defeituosos. Em contrapartida, essa disposição não exclui a aplicação aos fornecedores de outros regimes de responsabilidade contratual ou extracon­tratual assentes em fundamentos tais como a garantia dos vícios ocultos ou a culpa. 15 — N° 2 das presentes conclusões.

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D — Quanto à terceira questão

67. Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a directiva impede que um Estado-Membro regulamente de forma legal a responsabili­dade do fornecedor decorrente dos produtos defeituosos, na condição de o fornecedor ser definido, como sucede no artigo 3.°, n.° 3, primeiro parágrafo, da lei dinamarquesa, como sendo a pessoa que coloca o produto em circulação no âmbito das suas actividades comerciais sem ser considerado um produtor na acepção da definição que dele é dada no artigo 3.° da directiva, e isto por referência à declaração do Conselho e da Comissão relativa aos artigos 3.° e 12.° que figuram na acta da 1025.a reunião do Conselho de 25 de Julho de 1985 16 e no artigo 13.° da directiva.

68. Na redacção da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio transcreveu na totalidade a segunda declaração que figura na acta. Assim, remeto para essa acta.

69. Nas suas observações escritas, o Governo dinamarquês invocou também a décima sexta declaração do Conselho, que figura na acta e que tem a seguinte redacção: «O Conselho expressou o voto que os Estados-Membros que actualmente aplicam

disposições mais favoráveis no que diz respeito à protecção dos consumidores do que as que resultam da directiva, não se prevaleçam das possibilidades proporciona­das pela directiva para reduzir esse nível de protecção.»

70. O Governo dinamarquês deduz dessas duas declarações que a manutenção em vigor de regras anteriores à directiva e que asseguram uma melhor posição jurídica ao consumidor são perfeitamente compatíveis com estas últimas. As duas declarações são totalmente coerentes com os artigos 3.° e 13.° da directiva e confirmam o seu conteúdo.

71. Tendo em consideração esta conformi­dade com a directiva e o facto de elas emanarem do Conselho e da Comissão, quer dizer, do próprio legislador comunitário, deve ser-lhes atribuída a maior importância no momento da interpretação da directiva.

72. No que diz respeito ao alcance jurídico das declarações do Conselho que figuram nas suas actas, a jurisprudência do Tribunal de Justiça pode ser resumida da seguinte forma:

— quando o conteúdo de uma declaração não tem qualquer expressão no texto da

16 — Nas suas observações escritas, o Governo dinamarquês observou com razão que ba um lapsus calami no título dessa declaração: em vez de «artigos 3.° e 12.°» deve ler-se «artigos 3.° e 13.°».

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disposição em causa, a declaração não pode ser escolhida para interpretação dessa disposição de direito derivado 17. O alcance objectivo das disposições do direito comunitário só pode resultar da redacção das próprias disposições, tendo em conta o seu contexto 18;

— todavia, tal declaração pode constituir uma referência para a interpretação de disposições de direito derivado, cuja elaboração ou redacção suscitaram essa declaração, na medida em que se trate de precisar o sentido dessas disposições por hipótese ambíguo e equívoco. Além disso, essa declaração não pode servir como única referência, antes deve ser utilizada conjuntamente com outras 19.

73. Ora, embora as duas declarações referi­das no presente processo sejam utilizadas como referências para a interpretação do artigo 13." da directiva, elas podem confirmar a interpretação dessa disposição como expus anteriormente ao examinar a resposta a dar à segunda questão. Com efeito, elas precisam o sentido desta disposição, na medida em que

referem que a directiva não se opõe à manutenção, nem mesmo à adopção das regras relativas à responsabilidade baseada na culpa e da responsabilidade contratual.

74. Pelo contrário, segundo a jurisprudência referida no n.° 72, não se podem retirar argumentos das declarações evocadas para demonstrar que a directiva não se opõe à extensão aos fornecedores da responsabili­dade objectiva decorrente dos produtos defeituosos, fora dos casos expressamente previstos no artigo 3.°, n.° 3, da mesma directiva. Tal referência à interpretação iria directamente contra a redacção e a economia da directiva e é, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, inadmissível. Resulta deste raciocínio que os argumentos invoca­dos pelo Governo dinamarquês não são procedentes.

75. Assim, chego à conclusão de que as duas declarações invocadas pelo Governo dina­marquês não podem servir de referência a favor de uma interpretação da directiva segundo a qual os Estados-Membros têm o direito de estender aos fornecedores a responsabilidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos, em casos diferentes daqueles que são definidos de forma limitada no artigo 3.°, n.° 3, da directiva.

17 — Acórdão de 2b de Fevereiro de 1991, Antonissen (C-292/89, Colect., p. I-745, n.° 18).

18 - Acórdão de 15 de Abril de 1986, Comissão/Bélgica (237/84, Colect., p. 1247).

19 — Acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, Auer (136/78, Colect., p. 199. n.° 25).

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E — Quanto às quarta e quinta questões

76. Através das suas quarta e quinta ques­tões, o órgão jurisdicional de reenvio reitera as suas primeira e segunda questões, na medida em que elas visam mais especifica­mente os artigos 3.°, n.° 3, primeiro período, 10.° e 11.°, n.° 3, da lei dinamarquesa, respectivamente a regra jurisprudencial, anterior à directiva, segundo a qual o fornecedor — sem ser ele próprio o produtor nos termos do artigo 3.° da directiva — assume a responsabilidade do produtor nos termos da directiva e a responsabilidade por culpa do produtor.

77. Segundo uma jurisprudência constante, que vem sendo seguida desde o acórdão Costa/Enel 20, o Tribunal de Justiça não pode, por via do artigo 234.° CE, pronun­ciar-se quanto à validade de uma medida de direito interno. Contudo, o Tribunal de Justiça considera-se competente para forne­cer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de apreciação do âmbito do direito comunitário que possam permitir--lhe apreciar essa compatibilidade para julgar o processo que lhe foi submetido 21.

78. Dado que as respostas às primeira e segunda questões que proponho já contêm

todos os elementos de que o órgão jurisdi­cional de reenvio tem necessidade para determinar a compatibilidade das disposi­ções da lei nacional consideradas e da jurisprudência nacional aplicável, não há que responder às presentes questões.

F — Limitação dos efeitos do acórdão no tempo

79. Resulta do despacho de reenvio que os demandados no processo principal — os lesados — pediram que o Tribunal de Justiça declare no seu acórdão que este só produz efeitos a partir da data da sua prolação, isto no caso de as respostas do Tribunal de Justiça lhes serem desfavoráveis. O Governo dinamarquês apoia este pedido, ao sublinhar as graves consequências para a segurança jurídica que o acórdão do Tribunal de Justiça pode acarretar pelos seus efeitos nos pro­cessos já transitados em julgado desde a entrada em vigor da directiva.

80. A este respeito, observo que, nos termos da regra geral, os acórdãos do Tribunal de Justiça através dos quais se pronuncia sobre a interpretação do direito comunitário produ­zem efeitos ex tunc. No entanto, a título

20 - Acórdão de 15 de Julho de 1964 (6/64, Colect. 1962-1964, p. 549).

21 — Acórdão de 25 de (unho de 1997, Tombesi e o. (C-304/94, C-330/94, C-342/94 e C-224/95, Colect. p. I-3561, n.° 36).

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excepcional o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitá­ria, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição que o Tribunal de Justiça tenha interpretado com o objectivo de pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé 22. Contudo, essa limitação está sujeita a determinadas condições, que podem variar segundo a situação de facto e de direito que está na base do litígio no processo principal: a boa fé das partes interessadas, o risco de perturba­ções graves23, as eventuais consequências financeiras graves provocadas pela retroacti­vidade 24.

81. No presente processo prejudicial, trata--se da questão de saber que categoria de operadores económicos deve responder pelos produtos defeituosos. Provavelmente, a decisão do Tribunal de Justiça só provo­cará, na ordem jurídica nacional, a trans­ferencia dessa responsabilidade dos fornece­dores para os produtores. Todavia, nem a natureza da responsabilidade nem o seu âmbito serão afectados. Em seguida, dado que a lei dinamarquesa, prevê no seu artigo 11.°, n.° 3, a acção de regresso do fornecedor contra o produtor, parece-me que essa transferência de responsabilidade primária não dará origem, do ponto de vista

da segurança jurídica, a riscos de tal modo graves que possam justificar uma limitação excepcional dos efeitos do acórdão no tempo.

82. Aliás, recordo que, nos processos prece­dentes Comissão/França, Comissão/Grécia e González Sánchez, já referidos 25, nenhuma das partes pediu que fossem limitados os efeitos dos acórdãos e que, por conseguinte, o Tribunal de Justiça, se absteve de decidir nesse sentido. Não pretendo negar que esses acórdãos tenham dado origem, nas respecti­vas ordens jurídicas nacionais, a consequên­cias comparáveis às mencionadas pelo Governo dinamarquês.

83. Por último, desde a prolação dos referi­dos acórdãos, os meios interessados na Dinamarca perspectivaram a provável incompatibilidade da lei e da jurisprudência dinamarquesas.

84. Todas as considerações precedentes levam-me à conclusão de que o pedido de limitação dos efeitos do acórdão no tempo deve ser recusado.

22 - Acórdãos de 9 de Março de 2000, EKW e Wein & Co (C-437/97. Colect-, p. 1-1157, n.° 57); de 23 de Maio de 2000, Buchner e o. (C-104/98. Colect., p. I - 3525. n.° 39); e dc 12 de Outubro de 2000, Cooke (C-372/98, Colect.. p. 1-8683, n.° 42).

23 — Acórdão Cooke (já referido, n.° 42).

24 - Acórdão EKW c Wein & Co (já referido, n.° 59). 25 — N.° 2 das presentes conclusões.

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VI — Conclusão

85. Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões colocadas pelo Vestre Landsret da seguinte forma:

«1) A Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos opõe-se a um regime legal segundo o qual um fornecedor responde sem limitação pela responsabilidade do produtor nos termos da directiva, quer este regime resulte de uma legislação quer da jurisprudência.

2) O artigo 13.° da dita directiva opõe-se a uma regulamentação nacional que estende o regime da responsabilidade objectiva previsto pela referida directiva aos fornecedores dos produtos defeituosos. Em contrapartida, essa disposição não exclui a aplicação aos fornecedores de outros regimes de responsabilidade contratual ou extracontratual assentes em fundamentos tais como a garantia dos vícios ocultos ou a culpa.

3) A segunda e décima sexta declarações que fazem parte da acta da 1025.a reunião do Conselho, de 25 de Julho de 1985, não podem servir de referência a favor de uma interpretação da directiva segundo a qual os Estados-Membros têm o direito de estender aos fornecedores a responsabilidade objectiva decorrente dos produtos defeituosos, em casos diferentes daqueles que são definidos de forma limitada no artigo 3.°, n.° 3, da Directiva 85/374.»

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