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Todos os direitos reservados ao autor. Texto extraído do site www.justenfilho.com.br p. 1/24 CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS E AS MULTAS POR INADIMPLEMENTO DO CONCESSIONÁRIO por MARÇAL JUSTEN FILHO 1. INTRODUÇÃO A opção política em favor da delegação de serviços públicos à gestão privada, por meio de concessões, tem produzido inúmeras disputas. Em um primeiro momento, a maior parte das controvérsias envolvia o processo licitatório e as formalidades acerca da outorga. Vencida essa etapa e iniciadas as atividades dos particulares, começaram a se evidenciar dificuldades de outra ordem. O ponto nuclear dessas disputas passou a ser a determinação mais precisa do regime jurídico a ser aplicado ao longo do tempo, durante a vigência da concessão. A Lei, os atos convocatórios e os instrumentos contratuais contêm inúmeras determinações acerca dos direitos e deveres das partes. Na maior parte dos casos, verifica-se intensa preocupação em impor ao concessionário um conjunto amplo de encargos, limitações e deveres. Rapidamente, no entanto, comprovou-se que a aplicação literal das determinações estatuídas acerca dessa sujeição passiva do concessionário conduziria à inviabilização do empreendimento. O presente estudo versa sobre essa temática, a qual foi considerada a partir de algumas experiências concretas, especificamente no setor de rodovias. Eventualmente, haverá explícita referência — mais a título de exemplificação — a determinações relacionadas a casos concretos e específicos. Texto publicado no ILC – Informativo de Licitações e Contratos, Curitiba, n° 100, jun/2002, p. 492-509 (edição especial em homenagem a Hely Lopes Meirelles). * o autor é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Universidade Federal do Paraná, colaborador Informativo de Licitações e Contratos (ILC) e autor das obras Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 8. ed., 2000, Concessões de Serviços Públicos, 1997, e Pregão, 2001, todas publicadas pela Editora Dialética.

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CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS E AS MULTAS

POR INADIMPLEMENTO DO CONCESSIONÁRIO∗

por MARÇAL JUSTEN FILHO∗

1. INTRODUÇÃO A opção política em favor da delegação de serviços públicos à gestão privada, por meio de concessões, tem produzido inúmeras disputas. Em um primeiro momento, a maior parte das controvérsias envolvia o processo licitatório e as formalidades acerca da outorga. Vencida essa etapa e iniciadas as atividades dos particulares, começaram a se evidenciar dificuldades de outra ordem. O ponto nuclear dessas disputas passou a ser a determinação mais precisa do regime jurídico a ser aplicado ao longo do tempo, durante a vigência da concessão. A Lei, os atos convocatórios e os instrumentos contratuais contêm inúmeras determinações acerca dos direitos e deveres das partes. Na maior parte dos casos, verifica-se intensa preocupação em impor ao concessionário um conjunto amplo de encargos, limitações e deveres. Rapidamente, no entanto, comprovou-se que a aplicação literal das determinações estatuídas acerca dessa sujeição passiva do concessionário conduziria à inviabilização do empreendimento. O presente estudo versa sobre essa temática, a qual foi considerada a partir de algumas experiências concretas, especificamente no setor de rodovias. Eventualmente, haverá explícita referência — mais a título de exemplificação — a determinações relacionadas a casos concretos e específicos.

∗ Texto publicado no ILC – Informativo de Licitações e Contratos, Curitiba, n° 100, jun/2002, p. 492-509 (edição especial em homenagem a Hely Lopes Meirelles). * o autor é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Universidade Federal do Paraná, colaborador Informativo de Licitações e Contratos (ILC) e autor das obras Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 8. ed., 2000, Concessões de Serviços Públicos, 1997, e Pregão, 2001, todas publicadas pela Editora Dialética.

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2. AS PECULIARIDADES DA “NOVA” CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO O êxito da verdadeira “onda” de concessões que se difundiu pelo Brasil depende da aplicação de um regime jurídico próprio, compatível com suas características. E imperioso dissociar o tratamento jurídico das concessões das concepções relacionadas com os contratos de obras públicas praticados anteriormente. A concessão de serviço público não é, pura e simplesmente, uma “espécie anômala” de contrato de obra pública. Não é possível submeter a delegação de serviço público ao mesmo regime jurídico adotado para os contratos de obra pública, sob pena de serem frustrados valores fundamentais de relevante interesse público. É imperioso tomar em vista que a concessão é instrumento pelo qual se produz a colaboração entre Estado e iniciativa privada para o desempenho de serviços públicos. A função pública de persecução do bem comum impõe ao Estado inúmeras competências, que importam uma forma de submissão jurídica do concessionário. Por seu turno, o delegatário do serviço público busca a obtenção de lucro através da exploração empresarial da prestação de utilidades essenciais ao interesse da comunidade. O concessionário não é um “inimigo” da Administração nem pode ser tratado como tal. Não será viável o sucesso do modelo da concessão enquanto se supuser que o concessionário se configura como um agente pernicioso, tal como se fosse uma espécie de “explorador” da comunidade.1 Lembre-se, ainda uma vez, o pensamento preciso de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramon Fernandez, no sentido de que as novas concepções acerca de concessão fundam-se no postulado de que “Administração concedente e concessionário privado aparecem desse modo como colaboradores comprometidos na consecução de um mesmo fim, mais do que como antagonistas em uma pura relação de intercâmbio”.2 Essa asserção inicial se relaciona com a impossibilidade de a Administração ignorar as dificuldades enfrentadas pelo concessionário privado, especialmente na implantação dos serviços públicos concedidos. A atuação do Estado não pode ser puramente repressiva, mas deve ser norteada pela concepção de que o sucesso do concessionário satisfaz o interesse público. 1 Abordagem mais ampla acerca dessa questão foi realizada pelo signatário no estudo Algumas considerações acerca das licitações em matéria de concessão de serviços públicos, publicado em Direito do Estado — Novos Rumos (Paulo Modesto e Oscar Mendonça - coordenadores), Max Limonad, t. 2, 2001, p. 107-183. 2 Curso de Derecho Administrativo. Madrid: Civitas, 1980, v. 1, p. 614, orig. em castelhano. No mesmo sentido, Agustín Gordillo (Tratado de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1997, t. 1, 4. ed. p. XI-46).

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O objetivo do Estado não é diverso daquele do concessionário. Essas considerações se aplicam inclusive no tocante ao tema das infrações praticadas pelo concessionário. Deve ter-se em vista que o sancionamento do concessionário reduz a probabilidade da prestação adequada e satisfatória do serviço público. Dito de outro modo, o exercício pelo Estado de suas competências dirigentes do serviço público não pode ignorar a finalidade a ser atingida: a prestação adequada do serviço público. A correção de equívocos e defeitos, eventualmente verificados no desempenho do concessionário, é dever do poder concedente — mas isso não significa produzir situação que torne ainda menos plausível a obtenção do serviço público adequado. Isso envolve a necessidade de examinar matéria que, usualmente, merece menor atenção da própria doutrina. Trata-se do regime jurídico das infrações e sanções administrativas, no campo das concessões de serviço público. Em especial, o que merece consideração é o regime jurídico da multa administrativa no âmbito das concessões de serviços públicos.

3. A QUESTÃO DAS MULTAS ADMINISTRATIVAS Como se observa a partir das concepções de Teoria Geral do Direito, a multa pode configurar-se como puramente punitiva ou como patrimonialmente ressarcitória. A multa apresenta cunho ressarcitório quando se destina a compensar eventuais perdas e danos sofridos pela parte inocente. E uma contrapartida econômico-financeira que o causador do dano estará obrigado a realizar para eliminar os danos emergentes e os lucros cessantes. Sob esse ângulo, a multa se identifica com a cláusula penal e realiza uma predeterminação das perdas e danos.3 O pagamento da multa propicia a composição das perdas e danos produzidas pelo inadimplemento da parte culpada por este. Essa figura é largamente adotada no âmbito da iniciativa privada, nas negociações entre particulares. Confunde-se com a cláusula penal disciplinada nos arts. 916 e seguintes do Cód. Civil. Lembre-se que o Código de Defesa do Consumidor alude à “multa de mora”, no art. 52, § 1°, ao estabelecer limites destinados a evitar que a parte econômica e juridicamente mais poderosa se valha das multas para explorar a outra parte.

3 Daí por que há autores que qualificam a multa ressarcitória na categoria de “figuras afins” da sanção administrativa em sentido estrito (cf. José Suay Rincón, Sanciones Administrativas, Zaragoza, Publicaciones dei Real Colegio de Espaíla, 1989. p. 65 e seguintes).

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Mas a multa pode apresentar natureza puramente punitiva. Quando a conduta do sujeito se reveste de ilicitude de maior gravidade, pode gerar a imposição de sanção de natureza econômica. A multa não se destinará, então, a recompor os efeitos patrimoniais danosos do inadimplemento de uma prestação. Será estritamente orientada a punir o sujeito que adotou comportamentos reprováveis. Haverá punição patrimonial, correspondendo a uma modalidade de sofrimento imposto ao infrator. Será obrigado a pagar uma certa importância em dinheiro ao Estado como conseqüência pela adoção de comportamentos reprováveis e anti-sociais. A natureza jurídica da multa, nos contratos administrativos, nunca consta em termos claros e precisos dos correspondentes instrumentos regulatórios. Não se determina, com clareza, se a multa se destina a compor as perdas e danos derivados do inadimplemento do sujeito ou se configura uma punição por comportamentos lesivos ao interesse público. Isso não significa que o intérprete esteja dispensado de promover o exame da questão. Ela é relevante, tanto mais porque o regime jurídico aplicável é diverso e varia segundo a natureza que se reconheça à multa. Quando se reconhecer a existência de uma multa patrimonial, sua finalidade fundamental será a indenização por perdas e danos. Terá um cunho de recomposição do interesse patrimonial da Administração. Sua exigência refletirá o postulado de que todo aquele que causa dano a outrem tem o dever de recompor o patrimônio do lesado no estado anterior, acrescido dos lucros cessantes. Nesse caso, a multa é o instrumento pelo qual o patrimônio público é recomposto. Já na hipótese de multa punitiva, o Estado se vale de sua posição de guardião das condutas intersubjetivas. Exerce poderes fiscalizatórios e punitivos, reprimindo condutas indesejáveis e incompatíveis com a convivência social. Quando desempenha tal função jurídica, a multa é instrumento de desincentivar as condutas anti-sociais e de impor um sofrimento àquele que agiu de modo reprovável. Ora, o regime jurídico da multa patrimonial é, basicamente, idêntico ao aplicável nas relações entre particulares. Já a multa punitiva somente pode ser encontrada no âmbito de relações de Direito Público, com a participação do Estado. Daí por que doutrinadores como Alejandro Nieto compreenderem a capacidade punitiva da Administração como “parte de um genérico ius puniendi do Estado”.4 Apenas o Estado é titular de competência dessa natureza, que pressupõe uma espécie de delegação da soberania popular à órbita pública. Uma das diferenças significativas se relaciona à dimensão quantitativa da multa. 4 Derecho Administrativo Sancionador, 2. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2000. p. 80.

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A multa ressarcitória tem de ser proporcionada à dimensão das perdas e danos verificadas, enquanto a multa punitiva deve relacionar-se com a gravidade da infração praticada. No primeiro caso, busca-se eliminar os efeitos danosos de uma conduta culposa, enquanto no outro o que se pretende é atingir o sujeito que atuou mal. Justamente por isso, a multa ressarcitória não é afetada em caso de desaparecimento do causador do inadimplemento. O sucessor responde pela multa ressarcitória, tendo em vista sua natureza estritamente patrimonial. Já a multa punitiva se norteia pelo princípio da personalidade da sanção: o falecimento do infrator importa a extinção da multa punitiva. Não se transmite, por sucessão, a multa punitiva. A identificação da natureza da multa, portanto, propicia dificuldades severas. Nem sempre é possível determinar com segurança se a multa apresenta natureza punitiva ou ressarcitória. O signatário tem sustentado existir uma tendência a se configurar como ressarcitória a multa calculada em porcentagem sobre o valor da contratação, partindo do pressuposto de que a multa punitiva independe de alguma estimativa de perdas e danos. Assim o é porque a multa punitiva se vincula à dimensão da conduta subjetiva do sujeito, sendo destinada a impor-lhe um sofrimento — o que equivale à desvinculação de qualquer efetivo prejuízo sofrido pela parte lesada. Esse sofrimento deverá ser tanto mais intenso quanto mais reprovável for sua conduta e mais graves e danosos seus efeitos materiais. Isso significa a impossibilidade, corno regra, de configuração de multa patrimonial no âmbito da concessão de serviço público. E que a infração por parte do concessionário não acarretará “perdas e danos” ao poder concedente.5 O poder concedente exige que o concessionário adote certas condutas e omita outras como forma de obtenção do serviço adequado. Atua, em última análise, na proteção do interesse dos usuários. A infração aos deveres dos concessionários é apta a prejudicar os usuários — titulares únicos de alguma pretensão de indenização por perdas e danos derivada do descumprimento pelo concessionário a seus deveres próprios. Ora, as multas impostas aos concessionários não revertem — a não ser por uma modalidade de liberalidade do poder concedente, devidamente autorizada em lei — em prol dos usuários. Logo, não há cabimento em imaginar que a multa, no âmbito da concessão, teria natureza ressarcitória. Se o tivesse, sua destinação seria a transferência necessária e obrigatória para os bolsos dos sujeitos lesados pela conduta indevida do concessionário.

5 Ressalvada a hipótese em que se assegure ao poder concedente uma participação nas receitas da concessão. Nesse caso, a eventual demorana percepção de tarifas poderá caracterizar infração ao interesse patrimonial do poder concedente. Mas essa é uma hipótese marginal, que pode ser excluída, como regra.

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Portanto, deve presumir-Se que a natureza da multa, no campo das concessões de serviço público, é punitiva. Trata-se de sancionar aquele que, encarregado de produzir utilidades necessárias ao interesse da comunidade, deixa de fazê-lo no modo e no tempo adequados. Em última análise, portanto, a imposição da multa não se vinculará à concretização de algum dano material, mas sim à configuração de condutas reprováveis imputáveis ao concessionário.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O REGIME JURÍDICO DA MULTA PUNITIVA Assim colocadas as premissas, torna-se necessário aprofundar o exame do regime jurídico das multas repressivas. As regras a elas pertinentes são entranhadas de algumas peculiaridades próprias, que não podem ser olvidadas.

4.1 A Aplicação do Regime de Direito Penal A doutrina nacional e estrangeira concorda, em termos pacíficos, que as penalidades administrativas apresentam configuração similar às de natureza penal, sujeitando-se a regime jurídico se não idêntico, ao menos semelhante6

Embora não seja possível confundir Direito Penal e Direito Administrativo (Repressivo), é inquestionável a proximidade dos fenômenos e institutos. Como ensina George DeIlis, reconhece-se que “a idéia clássica de autonomia pura e simples da ação administrativa e da ação penal está muito bem ultrapassada: a concepção da unidade do domínio repressivo ganha progressivamente terreno”.7 Por isso, os princípios fundamentais de Direito Penal vêm sendo aplicados no âmbito do Direito Administrativo Repressivo, com a perspectiva de eventuais atenuações necessárias em face das peculiaridades do ilícito no domínio da atividade administrativa. Mas a regra é a de que todos os princípios fundamentais do Direito Penal devem ser respeitados, especialmente pela impossibilidade de distinção precisa e absoluta entre sanções administrativas e penais. Daí o acerto da lição de Lúcia ValIe Figueiredo, quando afirma que os procedimentos sancionatórios caracterizam-se precisamente pela “aplicação dos princípios do Direito Penal...”. 8 6 Confira-se em ALDANDRO NIETO, Derecho Administrativo Sancionador, cit., p. 167 e seguintes; EMILIO ROSINI, Le Sanzioni Amministrative. Milano, Giuffrè, 1991, p. 31 e seguintes, e MARIA ALESSANDR.A SANDULLI, Le Sanzioni Amministravive Pecuniarie, Napoli. Jovene Editore, 1983. p. 71 e seguintes. 7 Droit Pénal et Droit Administratif — L’Influence des Principes du Droit Pénal sur le Droit Administrativ Répressif. Paris, 1997. p. 27. 8 Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 1994. p. 284.

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Isso propicia inúmeras decorrências, algumas das quais pertinentes ao caso concreto.

4.2 A Restrição à Discricionariedade (Princípio da Especificação) É um truísmo afirmar que o princípio da legalidade domina toda atividade administrativa do Estado. Como regra, é vedado à Administração Pública fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Em contrapartida, somente se pode impor a um particular que faça ou deixe de fazer algo em decorrência da lei.9 Não se passa diversamente no âmbito do Direito Penal, ao qual o princípio da legalidade deve suas mais antigas formulações. Nenhum crime pode ser reconhecido e nenhuma sanção pode ser imposta senão em virtude de lei. A legalidade é instituto fundamental tanto do Direito Penal como do Direito Administrativo. Logo, não poderia deixar de reconhecer-se que também o Direito Administrativo Repressivo se submete ao dito princípio. Não se pode imaginar um Estado Democrático de Direito sem o princípio da legalidade das infrações e sanções. O princípio da legalidade representa uma garantia sob diversas abordagens. Sob uma perspectiva estática, retrata a remessa da punição à soberania popular. Submeter a competência punitiva ao princípio da legalidade equivale a afirmar que somente o povo, como titular da soberania última, é quem se encarregará de qualificar certos atos como ilícitos e de escolher as sanções correspondentes e adequadas. De um ponto de vista dinâmico, o princípio da legalidade propicia a certeza e previsibilidade da ilicitude, propiciando a todos a possibilidade de ordenar suas condutas futuras. Tipificar em lei a ilicitude e sua sanção equivale a atribuir ao particular a possibilidade de escolha entre o lícito e o ilícito. Alejandro Nieto faz menção a uma formulação dita “canonizada” pelo Tribunal Constitucional Espanhol, a propósito do princípio da legalidade na esfera punitiva da Administração: “dito princípio compreende uma dupla garantia: a primeira, de ordem material e sentido absoluto, referida tanto ao âmbito estritamente penal como ao das sanções administrativas, reflete a especial transcendência do princípio da segurança jurídica em ditos campos limitativos e supõe a imperiosa necessidade de predeterminação normativa das condutas infratoras e das sanções correspondentes, isto é, a existência de preceitos jurídicos (lex previa) que permitam prognosticar com suficiente grau de certeza (lex certa) aquelas condutas e se saiba a que se vincular no que diz respeito à responsabilidade e a eventuais sanções; a segunda, de caráter

9 Essa formulação até comporta certa matização, mas reflete, em termos essenciais, a distinta extensão dos regimes jurídicos público e privado.

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formal, relativa à exigência e existência de uma norma de adequada hierarquia e que este Tribunal identifica como lei em sentido formal”.10

A supressão da legalidade das infrações elimina garantias do particular em face do Estado e atenta contra princípios fundamentais. Por isso, nem seria necessário invocar regra constitucional explícita acerca do tema. Bastaria considerar o § 2° do art. 4° da CF/88. Ter-se-ia de admitir que o sistema constitucional brasileiro impede qualquer penalizaçãO aos particulares sem uma lei prévia que defina a infração e a sanção. Observe-se que, mesmo na ausência de dispositivo constitucional equivalente, a jurisprudência e a doutrina de outros países atingiu a idêntico resultado.11

A aplicação do princípio da legalidade ao âmbito das chamadas penalidades administrativas tem merecido amplo prestígio da jurisprudência pátria. Cabe lembrar a lição de Eduardo Rocha Dias, no sentido de que “O Supremo Tribunal Federal, antes mesmo do advento da atual Carta Magna, já estendeu às sanções administrativas em geral e às fiscais em particular o princípio da legalidade e a proibição de ato administrativo inferior à lei fixar sanção”.12

Alguma discordância se desenvolve, no entanto, a propósito da aplicação do princípio da tipicidade penal. Tem-se reputado que a lei não necessitária exaurir a previsão do tipo e dos pressupostos da sanção administrativa. Seria possível mera instituição legislativa da ilicitude e da sanção em seus termos genéricos, remetendo-se a atos administrativos regulamentares a disciplina precisa e exata. Essa solução é reforçada nos casos em que a relação jurídica entre Administração e particular envolve uma situação peculiar. Há referência à chamada sujeição especial, verificada quando se impõe uma modalidade de relação estatutária ou semelhante. Poderia cogitar-se daqueles casos em que o particular não se encontra em posição de total independência em face da Administração, mas se constitui uma relação jurídica de execução contínua, ao longo do tempo.13 Em tais situações, surgem deveres e direitos inerentes à obtenção da finalidade contratual, com grande amplitude e complexidade, inclusive de modo a impedir exaustiva descrição legal. Daí a impossibilidade de adoção do princípio da tipicidade, sob pena de inviabilizar o sancionamento às infrações relevantes.14

10 Derecho Administrativo Sancionador. Op. cit., p. 214-215 (original em castelhano). 11 Consulte-se MARIE-CLAIRE PONTHOREAU, La Reconflaissance des Droits non-écrits par les Cours Constitutionnelles Italienfle et França ise. Paris: Economica, 1994. 12 Sanções Administrativas Aplicáveis a Licitantes e Contratados. Dialética, 1997. p. 49. 13 Sobre o tema da relação de poder especial, consulte-se KONRAD HESSE, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. Trad. de Luís Afonso Heck, p. 259 e seguintes; RICARDO GARCIA MACHO, Las Relaciones de Especial Sujeición en la Constituición Espaiiola. Madrid: Editorial Tecnos, 1992. 14 A argumentação não me parece procedente, especialmente quando não existir qualquer especificação legal mínima das infrações. Ressalvo, deste modo, minha opinião divergente sobre a matéria.

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4.3 O Tratamento da Questão no Âmbito das Leis n° 8.666 e 8.987 O tema das sanções no âmbito da Lei n° 8.666/93 não propiciou debates mais aprofundados na doutrina. Muito menor atenção receberam as regras pertinentes à Lei no 8.987, no tocante às concessões de serviço público. Os autores mais abalizados costumam passar sobre a matéria num vôo de pássaro. O único autor que dedicou esforços aprofundados sobre a matéria foi ojá citado Eduardo Rocha Dias, cujo trabalho merece aplausos (ainda que não adesão integral a suas conclusões). A Lei n° 8.666/93 previu as sanções aplicáveis aos contratados que infringissem deveres legais ou contratuais. A grande dificuldade está na definição legal da ilicitude. Um exemplo permite compreender a discussão. Suponha-se uma lei penal que cominasse a pena de reclusão de seis a vinte anos para quem praticasse “ato criminoso”. Imagine-se que, ademais disso, existisse outra lei fixando a pena de multa pecuniária para o sujeito que desenvolvesse “ato criminoso”. Mais ainda, cogite-se que outra lei determinasse pena de interdição de direitos para o autores de “ato criminoso”. Existiriam três sanções distintas para repressão a condutas descritas de modo idêntico. Poderia sustentar-se que cada espécie de sanção seria reservada a distintas hipóteses de atos criminosos, gênero que comportaria gradação segundo a gravidade e lesividade das condutas. Ora, isso possibilitaria dois grandes problemas. Por um lado, seria necessário descobrir o que poderia entender-se por “ato criminoso”. Por outro, haveria a remessa à avaliação subjetiva do julgador, a quem incumbiria determinar a gravidade da sanção no caso concreto, sem qualquer parâmetro legislativo. No caso da Lei n° 8.666/93, essa é a situação verificada. Determina-se que a inexecução dos deveres contratuais acarreta a imposição de sanção, a qual pode consistir em advertência, multa, suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade. Até se pode determinar o conceito de “inadimplemento” ou “violação a deveres contratuais”, mas é inviável discriminar os casos de cabimento de cada espécie de sanção. Reputa-se inconstitucional e incompatível com a ordem jurídica brasileira argumentar que a autoridade administrativa disporia da faculdade discricionária de escolher, no caso concreto, a sanção cabível. Essa solução infringe o sistema constitucional. Seria possível apontar um longo elenco de disposições constitucionais infringidas. Porém, bastam os incs. XXXV e XLVI do art. 5° da Constituição. Definir infração e regular a individualização da sanção significa determinar com certa precisão os pressupostos de cada sanção cominada em lei.

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4.4 Sancionamento e Proporcionalidade Ainda quando se insista acerca da legalidade e da ausência de discricionariedade, é pacífico que o sancionamento ao infrator deve ser compatível com a gravidade e a reprobabilidade da infração. São inconstitucionais os preceitos normativos que imponham sanções excessivamente graves, tal como é dever do aplicador dimensionar a extensão e a intensidade da sanção aos pressupostos de antijuridicidade apurados.15

O tema traz a lume o princípio da proporcionalidade. Em lição plenamente aplicável ao caso, Michael Kohl esclarece que

proporcionalidade de uma medida é estabelecida pela satisfação de um teste de três estágios: (1) a medida deve ser apropriada para o atingimento do objetivo (elemento de idoneidade ou adequação); (2) a medida deve ser necessária, no sentido de que nenhuma outra medida disponível será menos restritiva (elemento de necessidade); (3) as restrições produzidas pela medida não devem ser desproporcionadas ao objetivo buscado (elemento de proporcionalidade stricto sensu)16

A proporcionalidade em sentido estrito é um princípio aberto, na acepção de envolver uma ponderação acerca da importância dos valores e interesses envolvidos, no ângulo específico da relação entre meios e fins a realizar. Ou seja, o sacrifício produzido pela adoção de uma certa medida não pode ser excessivo ou intolerável para os interessados. A incidência do princípio da proporcionalidade no âmbito do processo administrativo foi objeto de explícita consagração por parte do art. 2°, parágrafo único, inc. VI, da Lei no 9.784, que exigiu “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. Idêntica foi a orientação da Lei Paulista n° 10.177, que impôs a observância pela Administração Pública, em todos os seus atos, aos princípios da legalidade e, inclusive, da razoabilidade (arts. 4° e 5°). Daí deriva a aplicação do princípio da proporcionalidade. De todo o modo, a orientação é comum a todos os povos civilizados, no tocante ao Direito Punitivo. Lembre-se a exposição de Franck Moderne, no sentido de que, “Como o princípio da especificação e o princípio da não retroatividade, o princípio da proporcionalidade originalmente se impôs no Direito Penal. De lá, foi passado ao Direito Administrativo Repressivo, onde ele 15 Talvez se pudesse invocar uma distinção tradicional, para sustentar que a ausência de discricionariedade incide sobre a “hipótese normativa” enquanto o mandamento sancionatório comporta a atribuição ao aplicador de uma margem de autonomia para produzir a “dosimetria” da punição. 16 Constitutional Limits to Regulation with Anticompetitive Effects: the Principle of Proportionality, Florence, European University Institute, p. 11.

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é entranhado das mesmas preocupações e produz os mesmos efeitos: adaptar a sanção à gravidade da infração, evitar as punições excessivas em relação aos fatos que as motivam (o que implica a motivação das decisões)”.17

4.5 Ilicitude e Culpabilidade Por outro lado e ainda quando se trate de conduta imputável à pessoa jurídica, a imposição da multa pressupõe a verificação de elementos subjetivos. Não se admite a configuração da responsabilização civil sem culpa, a não ser em situações especiais, extremamente limitadas. O princípio geral a ser aplicado é o constante do art. 159 do Cód. Civil, que pressupõe a culpabilidade do sujeito. Portanto, a imposição da multa patrimonial, com natureza indenizatória, depende da comprovação da concorrência da culpabilidade do sujeito, prova essa ao encargo da pessoa que imputa a prática do ato ilícito ao sujeito passivo. Nem poderia ser diversamente no tocante à multa punitiva. Um Estado Democrático de Direito abomina o sancionamento punitivo dissociado da comprovação da culpabilidade. Não se pode admitir a punição apenas em virtude da concretização de uma ocorrência danosa material. Pune-se porque alguém agiu mal, de modo reprovável, em termos anti-sociais. A comprovação do elemento subjetivo é indispensável para a imposição de penalidade, ainda quando se possa pretender uma objetivação da culpabilidade em determinados casos18

Como assevera Franck Moderne,

A regra é, então, que a repressão administrativa, como a repressão penal, obedece ao princípio da culpabilidade e que as sanções administrativas, como as sanções penais, não podem ser infligidas sem que o compoitamento pessoal do autor da infração não tenha revelado uma culpa, intencional ou de negligência.19

17 Sanctions Administratives et Justice Constitutionnelle — Contribution à I’étude du jus puniendi de l’Etat dans les démocraties conteporaines. Paris: Economica, 1993. p. 263. 18 É a hipótese, por exemplo, da multa de trânsito. Como regra, há um dever objetivo do motorista de cumprir certos parâmetros. A infração às posturas de tráfego faz presumir a presença do elemento subjetivo reprovável. Mas é evidente que a situação não pode ser levada às últimas conseqüências — ainda que alguns agentes públicos assim não o compreendam. Suponha-se o exemplo do motorista que, acometido de ataque cardíaco, perde o domínio dos senbdos e produz infração às regras de trânsito. E evidente, nesse caso, a não caracterização de conduta punível com multa. 19 Sanctions Administratives et Justice Constitutionnelle..., op. cit., p. 283.

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O mesmo autor acrescenta, logo após, que a responsabilização

administrativa (ou penal) das pessoas jurídicas pressupõe a transferência à entidade personalizada das condutas culposas (“fautes”) ometidas pelos órgãos que exprimem sua capacidade jurídica ou por seus agentes".20

Lembre-se que, no âmbito do Direito brasileiro sobre contratos

administrativos, a Lei n° 8.666/93 determina que a multa se constitui em uma penalidade administrativa imponível em face do inadimplemento do contratado (arts. 86 e 87), o que pressupõe inexecução culposa. Portanto, não basta a mera verificação da ocorrência objetiva de um evento danoso. E imperioso avaliar a dimensão subjetiva da conduta do agente, subordinando-se a sanção não apenas à existência de elemento reprovável, mas também fixando-se a punição em dimensão compatível (proporcionada) à gravidade da ocorrência.

4.6 As Garantias na Aplicação das Sanções A incidência do regime penal produz necessariamente a extensão dos

princípios atinentes à aplicação das sanções administrativas. O sancionamento tem de ser produzido segundo rigoroso processo administrativo, no qual se adotarão garantias de extrema relevância em prol do acusado. Ademais disso, não se admitirão punições fundadas em meros indícios do evento ilícito imputado. Os indícios prestam-se apenas para eventual prova de circunstâncias acessórias — nos termos do art. 158 c/c 239 do CPP — depois de cabalmente comprovado, por meios instrutórios diretos, o fato principal. Idêntica orientação se aplica aos processos sancionatórios administrativos. Para utilizar uma expressão clássica (e objeto de inúmeras crfticas), prevalece no âmbito dos processos repressivos’ o princípio da verdade real, o que significa orientar-se a atividade persecutória a revelar a verdade dos fatos.

De todo o modo, a questão processual administrativa, por sua relevância, será objeto de considerações mais aprofundadas adiante.

5. A MULTA E SEUS LIMITES NA CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO

As considerações acima permitem compreender mais perfeitamente a necessidade de diferenciação das práticas cabíveis em matéria de sancionamento no tocante à concessão de serviço público e aos contratos administrativos comuns (entre os quais, o de obra pública). A diferença torna-se cristalina, sob o ângulo da punição de eventuais defeitos no desempenho das atividades do particular. A função jurídica e econômica da multa 20 Sanctions Administratives et Justice Constitut/onnelle..., op. cit., p. 287

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administrativa deve ser proporcionada à diferença entre as duas hipóteses.

Num contrato de obra pública, a imposição de multa por conduta inadequada do empreiteiro significa a redução dos montantes que serão desembolsados pelo Estado. Reflete uma punição imposta ao particular, cujo interesse primordial consiste na percepção do preço contratualmente a ele assegurado.

Já na concessão de serviço público, a imposição de multa não afeta os valores desembolsados pelo Estado — eis que, na concessão, o Estado não arca com valor algum. O cunho punitivo da imposição permanece, mas com uma dimensão de gravidade muito superior. E que o particular não receberá um valor global ao final da execução da obra. Ele depende de anos e anos de exploração para recuperar seus investimentos e obter lucro. O valor desembolsado a maior pelo concessionário, a título de multas, reflete-se na redução das verbas disponíveis para realizar o interesse público. Ou seja, a multa se traduz em ampliação do risco de insucesso da prestação do serviço público sob modalidade de concessão. Em última análise, a multa repercute sobre a qualidade do serviço público prestado, o que representa uma enorme contradição com o fim que norteia a competência fiscalizatória estatal. Quando se vale da multa, o poder concedente amplia a probabilidade de agravamento dos problemas verificados, antes do que obter o resultado oposto.

Num contrato administrativo comum, o particular tem por único objetivo a percepção da remuneração decorrente da execução da sua prestação. Se o Estado fará bom uso das utilidades a ele transferidas em virtude da execução contratual, isso é questão alheia ao âmbito de cogitações do particular contratado. Em última análise, o Estado é o agente principal da promoção do bem comum, quando se trata de contratos comuns.

A situação é radicalmente diversa quando se enfoca uma concessão de serviço público. A diferença está em que o particular apenas extrairá algum lucro na medida em que desenvolva atividades satisfatórias para o interesse público, ao longo do tempo.

Lembre-se que o custeio de todos os investimentos necessários à implantação da obra não sai dos cofres públicos, mas do patrimônio do concessionário. A recuperação do investimento não se fará através do recebimento, ao final da obra, do valor integral pago pela Administração Pública, mas dependerá do desempQnho adequado e satisfatório por parte do concessionário ao longo do tempo.

Isso tudo impõe o reconhecimento de diversos limites à imposição das multas, no âmbito das concessões de serviço público. As peculiaridades existentes nesse campo não se verificam no tocante aos contratos

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administrativos comuns.

A Administração tem o dever de colaboração com o concessionário particular, em uma espécie de contrapartida daquilo que se pretende desse último. Assim como a natureza da função pública desempenhada pelo concessionário exige a funcionalização da sua atividade privada, também as competências estatais devem ser exercitadas segundo o mesmo postulado. Ou seja, também a Administração deve gerir a execução do contrato tomando em conta que o particular atua em prol da realização do interesse público. Por isso tudo, o dimensionamento de eventuais sanções dependerá não apenas da caracterização de um evento objetivo, caracterizador de infração contratual ou regulamentar, devidamente definido previamente. E indispensável a especificação do ilícito e a autorização normativa para sua punição. Mas é necessário, ademais disso, o reconhecimento da estrita vinculação entre o desempenho da concessão e a prestação do serviço público. Ou seja, o exercício da competência punitiva deve ser norteado pela avaliação da culpabilidade do concessionário e da gravidade das repercussões de sua conduta. Na ausência de elemento subjetivo, a punição é juridicamente inviável. Mas também deverá ser dimensionada essa punição à verificação de eventos de menor gravidade. Não se pode punir o concessionário quando a conduta praticada não afetou (nem era apta a afetar) o desempenho do serviço público adequado.

6. AVALIAÇÃO DA QUESTÃO DAS MULTAS NO TOCANTE ÀS CONCESSÕES É usual que os atos concretos que disciplinam as concessões prevejam três espécies de penalidades por inadimplemento do concessionário: advertência, multa e caducidade da concessão. De costume, a multa apresenta gradações, para o caso de inexecução total ou parciaL De modo genérico, porém, não existem critérios explícitos para identificar os pressupostos de incidência da multa. Essa indeterminação dos atos convocatórios se reflete nos instrumentos contratuais. O resultado é uma enorme dificuldade de aplicação prática de penalidades, ao longo da execução da concessão, tendo em vista a ausência de parâmetros mais precisos e determinados. E necessário, bem por isso, aprofundar o estudo do tema.

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6.1 A Graduação das Multas e o Princípio da Proporcionalidade Afigura-se relevante iniciar com a ponderação da necessidade de fixação de critérios para avaliação da gravidade das infrações, de modo a permitir a aplicação das multas em consonância com o princípio da proporcionalidade. A ausência de especificação dos critérios de apuração da gravidade até pode motivar o entendimento da pura e simples invalidade do sancionamento. Essa não seria uma solução excessivamente rigorosa, tendo em vista a ausência de critérios dotados de maior objetividade para produzir a aplicação do sancionamento. No entanto, o resultado poderia ser incompatível com o próprio princípio da indisponibilidade do interesse público. Sob justificativa de tutelar (de modo absoluto) o interesse do concessionário, abrir-se-ia a porta para infração aos deveres relevantes para satisfação do interesse coletivo. Portanto, não se pode ignorar a necessidade de reprovação a condutas indevidas do concessionário, O mais desejável seria assegurar a discriminação das irregularidades e de sua punição. Na ausência de explicitação minuciosa acerca das infrações, a solução é adotar interpretação que preserve, com a maior intensidade possível, todos os interesses envolvidos. Logo e se reputando superável a ausência de regulamentação dos critérios para avaliação da gravidade dos atos ilícitos, a solução não pode ser a exacerbação da punição. Não se pode admitir a aplicação de sanções de maior gravidade para toda e qualquer conduta irregular praticada pelo concessionário. Ou seja, não se pode extrair da ausência de regulamentação o efeito jurídico da não incidência dos princípios fundamentais ao Direito Administrativo Repressivo. Tanto seria imperiosa a aplicação do princípio da especificidade da ilicitude (definição normativa da conduta reputada como irregular) como também seria inafastável o dever de dosar a sanção de acordo com a gravidade da irregularidade, sempre assegurando a possibilidade de cumprimento das finalidades inerentes à concessão. Mas o raciocínio se aplica mesmo perante a regulação eventualmente existente acerca da sanções administrativas e de eventuais critérios de aplicação proporcionada. Não basta a mera existência de critérios destinados a dimensionar a gravidade da sanção. E evidente que somente apresentará validade regulação que concretize os valores constitucionalmente assegurados, entre os quais a proporcionalidade.

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6.2 Invalidade de Previsão Genérica e Indeterminada da Ilicitude Não podem ser consideradas como válidas regras que imponham deveres genéricos e indeterminados à concessionária, vinculando à infração dessas condutas imprecisas a incidência de uma multa. Ainda que se admita, como acima apontado, a desnecessidade de explicitação legislativa de todos os deveres e infrações imputáveis ao concessionário, isso não significa a instituição de competência discricionária para definir a ilicitude. Talvez se pudesse admitir a aplicação dos chamados conceitos jurídicos indeterminados, mas mesmo essa alternativa se afigura como incompatível com a Constituição. Ou seja, não se poderia qualificar a ilicitude através de uma fórmula tal como deixar de prestar serviços adequados. É imperioso especificar como se configura o serviço inadequado reprovável. Isso se fará através de indicações objetivas relacionadas à qualidade do serviço, apontando-se os limites dentro dos quais a conduta é lícita e aqueles a partir dos quais se aperfeiçoa a ilicitude.

6.3 Invalidade da Multa Desvinculada da Avaliação da Culpabilidade Depois, serão inválidas todas as sanções que dispensem a concorrência de elemento subjetivo. A ilicitude somente se configura quando o concessionário tiver incorrido em falha ou defeito de atuação, caracterizando-se a existência de culpa ou dolo. A mera ausência de compatibilidade entre a condução dos serviços e as regras disciplinadoras da concessão é insuficiente para configurar ilícito punível. Esse postulado deve orientar a aplicação das disposições regulamentares, as quais costumeiramente se restringem a indicar uma situação material para caracterizar a ilicitude. A interpretação conforme à Constituição exige que o intérprete pressuponha que a tipificação do ilícito pressupõe, sempre, a presença de um elemento subjetivo. Até pode ser diversa a situação do concessionário em face do usuário. Em virtude do disposto na CF/88, art. 37, § 6°, as falhas objetivas de serviço acarretam responsabilidade civil do concessionário de serviço público por danos sofridos pelos usuários. Mas essa regra não estende seus efeitos ao relacionamento entre concessionário e poder concedente. Lembre-se, inclusive, que a natureza da multa imposta pelo poder concedente não é patrimonial, ressarcitória. A punição pelo poder concedente,

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também por isso, não se assujeita à regra da responsabilidade objetiva. Também é evidente que a efetiva punição ao concessionário depende da comprovação da presença desse elemento subjetivo do ilícito. O ônus dessa prova incumbe ao poder concedente, em razão do princípio da presunção de inocência, e sempre se ressalva ao concessionário a faculdade de evidenciar que o defeito (se ocorrido) não derivou de ação ou omissão culpável, a ele imputável. Justamente por isso, não é possível impor sanções ao concessionário quando a ação ou omissão objeto de questionamento tenha resultado de caso fortuito ou força maior.21

Aplicam-se, nesse ponto, as construções tradicionais do Direito, acerca da ausência de ilicitude quando o evento resultar de circunstâncias alheias à vontade ou à intervenção do sujeito. Se o evento danoso era imprevisível ou se todas as providências adequadas para evitá-lo foram adotadas, mas sem sucesso, então estará configurada uma circunstância extraordinária. Essa extraordinariedade é amplamente reconhecida no âmbito do Direito Público, eliminando a ilicitude do evento objetivamente ocorrido. Nessa linha, há disposição no art. 57, § 10, incs. II e V, da Lei n° 8.666/93, cuja incidência se estende ao campo das concessões — inclusive porque apenas traduz princípio geral do Direito. Poderia exemplificar-se com os eventos da natureza, que podem propiciar a inviabilidade do cumprimento dos prazos originalmente previstos. Esse exemplo é até trivial, não despertando maiores dúvidas para a Administração. Ou seja, o Poder Público reconhece que um eventual excesso de chuvas é causa excludente da ilicitude no caso de atraso de obras. No entanto, há maior dificuldade em reconhecer idêntico regime jurídico para eventos de outra ordem. Mas não há fundamento para introduzir diferenciação: se o descumprimento do dever contratual derivou de fator estranho e alheio à vontade do concessionário, não há ilicitude. Assim, suponha-se que a licitação tivesse ocorrido antes da sucessão das crises dos países emergentes. Em decorrência da alteração radical e imprevisível da economia mundial, suponha-se que todas as operações bancárias internacionais com o Brasil tenham sido suspensas ou adiadas. Não se pode imputar ao concessionário a prática de infração contratual se, como decorrência da ausência do financiamento (previsto por ocasião da licitação e devidamente indicado à autoridade administrativa), ocorrer atraso no desenvolvimento do cronograma de obras. O atraso, nessa hipótese, não é imputável à conduta do concessionário, que foi atingido pelos efeitos de eventos imprevisíveis, cuja concretização não 21 Nesse sentido, JOSÉ SUAY RINCON, Sanciones Administrativas, op. cit., p. 124.

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poderia ter sido evitada por alguma providência de sua parte. Portanto, não basta o puro e simples atraso na execução de uma obra, mas é imperioso verificar a presença do elemento subjetivo, consistente em culpa ou dolo.

6.4 Invalidade da Multa Desvinculada do Efeito da Irregularidade Também não se compadece com os princípios jurídicos que a multa seja desvinculada, no seu dimensionamento econômico, dos efeitos da eventual irregularidade. Insista-se em afirmar que a multa deve ser proporcionada à reprobabilidade da conduta do infrator e à danosidade dos efeitos daí derivados. Ou seja, se a conduta praticada pelo concessionário for absolutamente incapaz de gerar qualquer efeito negativo para a qualidade do serviço, dever-se-á reconhecer a ocorrência da infração. Mas não se poderá impor sancionamento de grande vulto econômico-financeiro, que provoque sérias repercussões patrimoniais no âmbito da concessionária. Um exemplo que se poderia apontar envolve a ausência de início de obra no prazo previsto em cronograma, mas com a conclusão realizada no prazo determinado. Deve ter-se em vista que a fixação de um termo para início das obras não revela a tutela direta e imediata ao interesse público. Estabelece-se regra obrigando o concessionário a iniciar seus trabalhos até determinada data não porque isso traduza algum benefício para o interesse público. O que se tutela, de modo indireto, é a conclusão da obra no prazo previsto. Parte-se do pressuposto de que a Administração não pode permanecer inerte até o decurso do prazo para conclusão da obra para adotar providências contra o inadimplemento. Presume-se que o prazo previsto no cronograma é o necessário para executar a obra. Logo, se não for ela iniciada até uma certa data, isso importará o atraso na conclusão. Mas, sempre, o que interessa ao poder concedente é a data de conclusão. Daí deriva que a ausência de início da obra na data prevista é juridicamente irrelevante se o concessionário estiver apto a concluí-la no prazo apropriado. Suponha-se que a Administração estimou o prazo de seis meses para execução de uma obra, mas o concessionário dispõe de condições de executá-la em quatro meses. Portanto, se o concessionário cumprir o cronograma no tocante ao início, a obra estará concluída dois meses antes da data prevista. Isso pode ser interessante para o atendimento ao interesse público, mas não traduz conduta exigível por parte do poder concedente.

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Não se pretende, com isso, afirmar que o concessionário estaria livre para cumprir os cronogramas de início de obra apenas quando bem o entendesse. Afigura-se obrigatório que o concessionário comunique ao poder concedente o motivo pelo qual pretende iniciar em outro momento a obra, apresentando evidências de que isso não prejudicará o interesse público. Em tal o fazendo, o particular terá o direito a obter a alteração do cronograma, o qual é fixado — repita-se — para assegurar a data de conclusão, não a de início. Imagine-se, no entanto, que o concessionário deixe de comunicar ao poder concedente o motivo do não cumprimento do cronograma inicial. Isso não eliminará a faculdade de fazêlo a qualquer tempo, mesmo após iniciada a apuração administrativa da irregularidade. Ou seja, o fundamental reside em que o concessionário possa comprovar, objetivamente, a viabilidade da execução da prestação em prazo mais exíguo, mas respeitando o cronograma final. Quando muito, poderia imaginar-se uma punição administrativa ao concessionário que omitisse a comunicação prévia, acerca da ausência de cumprimento do cronograma inicial. Mas essa punição teria de ser proporcionada à ausência de gravidade dos efeitos da conduta. Dito de outro modo, poderia cogitar-se multa de pequeno valor — destinada a reprimir não a conduta de não iniciar a obra, mas envolvendo a ausência de comunicação tempestiva acerca do momento de início dela. Essa é situação de gravidade tão diminuta que poderia quando muito gerar sanção de advertência. Mas, ademais disso, configura-se como absolutamente ofensivo ao princípio da proporcionalidade fixar multa, num caso desses, vinculada ao valor do serviço ou à remuneração global extraível da concessão. Surge o risco de o valor da multa superar o próprio custo da obra, o que configuraria inconstitucionalidade “escarrada” para utilizar expressão forte. Essa imposição seria tanto mais odiosa quanto não houvesse dúvida acerca do cumprimento do cronograma final. O resultado prático seria o de que a concessionária teria executado a obra, no prazo devido, e estaria subordinada ao pagamento de multa de valor superior ao custo da obra — pelo exclusivo motivo de que não iniciara a execução (ou melhor, não comunicara o não início da execução) no prazo previsto. A conduta da concessionária nem se apresenta como reprovável a ponto de merecer punição dessa dimensão nem se pode localizar algum efeito material concreto que possa justificar a severidade da punição.

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6.5 Invalidade da Multa em Face de Alterações do Cronograma Outra série de casos relaciona-se com o sancionamento ao concessionário na pendência de pleitos de alteração de cronograma. Também se pode considerar a situação em que, posteriormente à imposição da sanção, verificou-se a alteração dos prazos contratuais. Consideram-se situações em que os cronogramas previstos vieram a ser modificados, readequando-se os prazos atinentes à execução de certas prestações. Também nessa situação afigura-se descabida a punição ao particular. Deve ressaltar-se, desde logo, a impossibilidade de fixação de um cronograma definitivo e imutável para as obras, serviços e investimentos relacionados com empreendimentos de grande complexidade. Aliás, é extremamente freqüente que as licitações para outorga de concessões de serviço prevejam a execução de obras, das quais existem apenas projetos básicos. Atribui-se ao futuro concessionário o dever de produzir o projeto executivo. Isso propicia enorme risco de que se constate, apenas após a outorga, a impossibilidade de cumprimento de cronogramas originalmente estabelecido. Ainda quando exista o projeto executivo já por ocasião da licitação ou, mesmo, se o projeto executivo for produzido posteriormente, a complexidade das atividades inerentes à concessão sempre dá oportunidade à configuração de alterações imprescindíveis. Somente é possível enfrentar essas dificuldades através da concepção “associativa” da concessão. Estado e particular têm interesse comum na mais adequada prestação do serviço. Na impossibilidade de antecipação prévia e completa de todos os encargos e do modo de sua execução, esses pontos deverão ser objeto de negociação e ajuste no curso da própria concessão. Essa característica foi bem apanhada por Amoldo Wald e Outros, em trabalho precursor acerca das características da concessão moderna, tal como se vê no trecho abaixo reproduzido:

...o gigantismo de algumas das obras estatais e a velocidade em que devem ser realizadas, para atender o interesse público, nem sempre permitem um planejamento prévio, detalhado, tanto no campo técnico como financeiro, obrigando a Administração e o empresário a recorrerem, constantemente, à criatividade para dar soluções aos problemas que surgem. Assim sendo, a viabilidade da realização de grandes obras, especialmente quando pioneiras e de tecnologia complexa, pressupõe um diálogo constante entre o contratante e o contratado, abrangendo as

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decisões de situações não previstas contratualmente ou daquelas que sofreram profundas mutações...22

Portanto, a modificação dos projetos é uma circunstância que acaba por caracterizar as concessões dos dias atuais, relacionada às características de complexidade e dinamicidade das atividades objeto da concessão. Bem por isso, torna-se usual e comum a necessidade de revisão de cronogramas, o que não envolve algum tipo de anomalia — ainda que não se possa reputar como desejável a alteração dos prazos. Cabe investigar a situação jurídica do concessionário, na pendência de um pleito de revisão de cronograma. Supõe-se que o concessionário havia formulado pleito formal e específico acerca da modificação do cronograma. A situação pode conduzir a duas alternativas radicalmente opostas, ambas descabidas. A primeira consistiria em afirmar que o sujeito está obrigado a cumprir o cronograma original, não obstante a pendência do pedido de alteração do cronograma. A segunda seria a de sustentar que o sujeito estaria desobrigado de atender ao cronograma original, enquanto não fosse decidido o pleito de alteração. A primeira alternativa tornaria inútil o pedido de alteração do cronograma. Se o concessionário requereu a modificação do cronograma, isso deriva de motivos razoáveis (presume-se). Eventual demora na manifestação da Administração poderia conduzir à perda do objeto do pedido de alteração do cronograma: quando fosse produzida a resposta, o particular já teria executado (se possível) o cronograma original. Mas a segunda alternativa também não pode ser pura e simplesmente admitida. Se bastasse ao particular formular o requerimento de alteração de cronograma, isso poderia induzir a uma “enxurrada” de pleitos à Administração. Até que se produzisse sua rejeição, o particular estaria a salvo do cumprimento de seus deveres. Nessa abordagem, a demora na solução do pedido tornaria sem objeto a resposta ao pedido de modificação do cronograma: quando fosse produzida a resposta, o particular já não teria executado o cronograma original. Os dois raciocínios demonstram a impossibilidade da admissão de um princípio geral absoluto, consistente na admissão de uma ou outra das duas alternativas. Parece claro que a solução deve ser enfrentada caso a caso.

22 Direito de Parceira e a nova Lei de Concessões, op. cit., p. 36. No mesmo sentido, EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA e TOMÁS-R.AMON FERNANDEZ (Curso de Derecho Administrativo, op. cit., v. 1, p. 617).

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É evidente, antes de tudo, o dever de diligência da Administração. Em face de pleitos de alteração do cronograma, a Administração não pode manter-se inerte por meses e meses. Assim o fazendo, produzirá efeito de consolidação de um certo estado de fato. E imperioso, pelo dever de boa-fé, que seja produzida resposta no mais breve espaço de tempo. Quanto mais rápida a decisão administrativa, tanto menores serão os problemas gerados. Independentemente disso, devem examinar-se as situações caso a caso. É necessário diferenciar as hipóteses em que se configure atuação meramente procrastinatória do concessionário daquelas em que o pleito é sério e motivado. Ou seja, até se pode rejeitar um pleito sério e motivado, em face de algum imperativo de ordem pública. Mas não cabe impor punição ao concessionário cuja atuação não se revelar reprovável. A penalidade cabe ser imposta especificamente quando a conduta do concessionário merecer reprovação, envolvendo tentativas desatinadas de escapar a deveres Afigura-se evidente que o pleito era sério e adequado quando a Administração reputar procedente o pedido. Se houver revisão do cronograma acatandose o requerimento do interessado então o cronograma anterior será substituído pelo novo. Isso significa não apenas a seriedade do requerimento mas a supressão do dever de o sujeito cumprir o cronograma anterior. Logo, não seria cabível impor-lhe sanção pelo atraso, eis que o cumprimento do novo cronograma excluía o dever de realizar tarefas nos prazos previstos anteriormente Sob um certo ângulo, a alternativa anteriormente tratada assemelhase ao caso da retroatividade da lei penal mais benéfica Em se tratando de dispositivos repressivos, a lei nova que descriminaliza a conduta ou minora sua punição aplica-se aos eventos ocorridos anteriormente. O deferimento do pedido de alteração do cronograma corresponde à supressão do dever de realizar uma certa prestação dentro de um determinado prazo. Portanto o sujeito não pode ser punido pela infração ao dever que deixou de existir Até se poderia cogitar de Subordinar o pleito de readequação de cronograma a um juízo semelhante ao que se exercita por ocasião do pedidos de antecipação de tutela ou de providências acautelatórias de direitos Ou seja, é necessário apurar a existência de uma aparência de direito, tanto quanto da necessidade e urgência do pleito. Quando presentes tais requisitos o cumprimento do cronograma deverá aguardar a decisão a ser adotada pela Administração Desse modo, obtém-se uma solução mais equilibrada que evite desvirtuamentos indefensáveis quer a favor do particular quer contra ele. Ainda nos casos em que tal não se passe, ocorrendo a manutenção do

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cronograma original, a multa eventualmente cabível teria de ser dimensionada em face da gravidade da ocorrência e da reprobibilidade da conduta Não se podem padronizar todas as situações e impor punição idêntica para supostos fáticos diversos, assimilando casos distintos entre si.

6.6 Inadimplemento Parcial e Mufta O princípio da proporcionalidade exige a distinção entre as hipóteses de inexecução total e parcial para fins de punição ao concessionário Lembrese que o art. 87 da Lei n° 8.666/93 explicitamente se refere ao caso. A caracterização do inadimplemento parcial nem sempre é fácil. Pressupõe a possibilidade de fracionamento quantitativo ou qualitativo da prestação, de molde que o concessionário executaria de modo satisfatório e tempestivo apenas uma parcela de seu encargo. Logo, existiria adimplemento parcial da prestação. Configurada como possível a inexecução parcial do dever, o concessionário estaria sujeito à punição. Mas esse sancionamento teria de considerar a dimensão do inadimplemento parcial. Ou seja, a imposição da multa deve ser proporcionada às circunstâncias Não se pode impor multa que seria cabível pela inexecução total quando o concessionário tiver executado uma parte da Prestação devida. A concretização da extensão da multa não pode afastar-se da avaliação da gravidade da conduta e da Iesivjdade de seus efeitos. Ainda mais, deverá tomar-se em vista dos reflexos da Punição sobre a prestação do serviço Público concedido.

7. CONCLUSÃO A multiplicação de penalidades sobre o concessionário de serviço público reflete, muitas vezes, pressões sociais derivadas da insatisfação dos usuários — não propriamente com a qualidade dos serviços públicos, mas muito mais com a dimensão da própria tarifa. Não é incomum que o poder concedente ceda à opinião pública que imagina que as tarifas são instrumento de mero locupletamento do concessionário. Esse é um risco muito grave, apto a produzir efeitos nocivos não apenas no âmbito específico das concessões. Sempre que o governante preferir o caminho mais imediato e simples, consistente em agradar a massa, surge o risco do comprometimento dos valores jurídicos fundamentais.

Page 24: CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS E AS MULTAS POR ...justenfilho.com.br/wp-content/uploads/2008/12/mjf59.pdf · eliminar os danos emergentes e os lucros cessantes. Sob esse ângulo,

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O que se pretende é defender a concepção de que o poder concedente não pode atuar com leniência em face do concessionário de serviços públicos. Não se pode admitir que falhas, defeitos ou excessos praticados pelo particular, ao longo da concessão, sejam ignorados ou perdoados pelo poder concedente. Mas a postura de aplicar a lei e o regulamento de modo impessoal impõe vedação equivalente a propósito de excessos opostos. O poder concedente nem é amigo nem inimigo do concessionário. Ambos têm de buscar a realização de um interesse comum, consistente na prestação do serviço público mais adequado, mediante a menor tarifa possível. Mais ainda, não é compatível com o Estado Democrático de Direito, vigente entre nós, a implantação de uma orientação administrativa em que a imposição de penalidades excessivas torna inviável o desenvolvimento pelo concessionário dos serviços adequados — razão e finalidade da outorga da concessão.