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CONCEPÇÕES PIAGETIANAS PARA UMA PSICOPEDAGOGIA DO PRÉ-ESCOLAR LÚCIA SAMPAlO CASTELO Auxiliar de Ensino do Departamento de Eco- nomia Agrícola da U.F.C. INTRODUÇAO o movimento em torno da educação chamada pré-escolar vem tomando vulto recentemente, caracterizando-se não apenas como uma preocupação psicopedagógica mas como condição julgada necessária para resolver problemas deter- minados pela pobreza tais como "marginalização cultural, desnutrição, evasão escolar, reprovação". Dentro desta perspectiva programas são implantados e providências tomadas para que um número maior de crian- ças receba alguma forma de atendimento nos seus primeiros anos, atendimento que vem se caracterizando como compen- satório, por se propor a compensar "deficiências" que a crian- ça possa ter com relação a padrões comportamentais exigidos pela escola. O desenvolvimento cognitivo então passa a ter grande importância com esta visão e necessário se faz uma funda- mentação para que a pré-escola realmente atinja o seu obje- tivo. RE\'. EDUC. EM DEBATE - FORT., V. 3 - N.O 3- PÁG. 55-72 1979 55

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CONCEPÇÕES PIAGETIANAS PARA UMAPSICOPEDAGOGIA DO PRÉ-ESCOLAR

LÚCIA SAMPAlO CASTELO

Auxiliar de Ensino do Departamento de Eco-nomia Agrícola da U.F.C.

INTRODUÇAO

o movimento em torno da educação chamada pré-escolarvem tomando vulto recentemente, caracterizando-se nãoapenas como uma preocupação psicopedagógica mas comocondição julgada necessária para resolver problemas deter-minados pela pobreza tais como "marginalização cultural,desnutrição, evasão escolar, reprovação".

Dentro desta perspectiva programas são implantados eprovidências tomadas para que um número maior de crian-ças receba alguma forma de atendimento nos seus primeirosanos, atendimento que vem se caracterizando como compen-satório, por se propor a compensar "deficiências" que a crian-ça possa ter com relação a padrões comportamentais exigidospela escola.

O desenvolvimento cognitivo então passa a ter grandeimportância com esta visão e necessário se faz uma funda-mentação para que a pré-escola realmente atinja o seu obje-tivo.

RE\'. EDUC. EM DEBATE - FORT., V. 3 - N.O 3 - PÁG. 55-72 1979 55

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Considerando estas circunstâncias o nosso estudo visaos seguintes objetivos: a) propor uma fundamentação comrelação a princípios educacionais para uma psicopedagogiado pré-escolar; b) caracterizar a criança neste período e c)oferecer sugestões metodológicas baseadas nesses princípiose nessa caracterização.

Como o nosso enfoque se restringe ao aspecto específicodo desenvolvimento cognitivo, nos baseamos em Piaget, cujostrabalhos têm fornecido contribuições valiosas para estaárea.

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Podemos mesmo afirmar que qualquer trab lho dt Itlllgência repousa no interesse.

Sendo toda a inteligência uma adapta ão qu \ I' 1111.1\

dos processos de assimilação e acomodação, ela sup 1\ I, vIdade, pois a 'assimilação se refere a incorporação d umntuação a esquemas gerais adquiridos, enquanto a mo I \ção implica na aplicação desses esquemas a situa õ ivn. .A cognição, então, não pode ser considerada como um pí.ipassiva de dados objetivos.

Piaget admite o homem como um ser ativo, cuja a;" (,regida pelas leis do interesse ou da necessidade, sendo impr -cindível para o pleno rendimento desta atividade o apelaos móveis autônomos da ação.

Do que foi dito sobre motivação, concluimos que devehaver uma conexão entre o que é ensinado e a estruturamental do educando. Piaget defende mesmo que um estímulosó se torna estímulo na medida em que é assimilável, isto é, àmedida em que se adequa aos esquemas mentais da criança,tornando-a ativa.

Se estamos focalizando ensino e atividade, a adequaçãodo que se ensina é ponto crítico, uma vez que precisamosatender às necessidades da criança para torná-Ia ativa. Aatividade necessária para o desenvolvimento cognítívo sóacontece mediante uma motivação, isto é, à proporção que omaterial ensinado seja significativo para a criança, sejacapaz de fazê-Ia agir.

Piaget falando do erro inicial com relação ao ensinocientífico elementar, focaliza a matemática, mostrando comoesta deveria ser ensinada. Se a aprendizagem supõe atividade,necessário se faz que esta atividade seja suscitada, ou me-lhor, provocada. Assim, antes de serem apresentadas à crian-ça, considerações numéricas, (contagem, reconhecimento denumerais, subtração) se faz necessário apelar para as suasrelações lógicas, aspecto que se constrói gradativamente emdecorrência de suas atividades.

, As noções qualitativas (relações lógicas de mais, de me-nos, e não de quanto) devem constituir pré-requisito para as

1. PRINCíPIOS EDUCACIONAISPIAGETIANOS-IDÉIAS BASICAS

1.1. Apelo às atividades espontâneas da criança

Os métodos ativos constituem condi ã básica para umapedagogia da inteligência que se bas ia não na verdade trans-mitida simplesmente, mas na v rdad r inventada ou pelomenos reconstruída pelo aluno (Piag t, 1976).

Para uma compreensão do qu seja atividade, precisa-seconsiderar a necessidade de ação f tiva e também o fato deque toda atividade decorre d uma necessidade (Castro,1974). Piaget parte do princípio de que esta necessidade pro-voca um desequilíbrio que no fundo constitui uma força pro-pulsora que leva a pessoa a agir em busca do equilíbrio per-dido. O desequilíbrio se identifica então com a necessidadeque é o princípio da ação.

A noção de motivação é explicada, então, pela tendênciaconstante para o equilíbrio, para a auto-regulação. Destemodo um estímulo só se torna um estímulo realmente, seimpulsionar a pessoa a agir, portanto se vinculado às possi.-bilidades operativas do educando. Vale enfatizar, aqui, queas necessidades e portanto os interesses são mecanismos cons-tantes, mas que variam com relação ao seu objeto, acompa-nhando os períodos de desenvolvimento.

Uma pedagogia que vise o crescimento da inteligênciadará atenção especial à atividade que emana de um interesse.

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relações numéricas, atendendo, desta maneira, às estruturascognitivas da criança e portanto levando-a à atividade.

Piaget ainda enfatiza que o princípio básico do aprendi-zado das ciências é a ação sobre o concreto, o material. So-bre relações lógicas que se formarão pela atividade em rela-ção ao concreto, se assentarão as noções mais abstratas.

Referindo-se a uma pedagogia da inteligência, consideraser o fortalecimento do pensamento a base para qualqueraprendizagem específica.

Furth (1974), estudioso de Piaget, r fere-se ao ensinoda leitura nos anos iniciais, mostrando ser sta atividadedesenvolvida em função da cognição figurativa e não ope-rativa.

Faz ele a distinção entre a cogni ão figurativa e a ope-rativa - a figurativa enfoca a conügur cã o stática decoisas dadas, como são percebidas pios s ntidos. A operativa"opera" sobre dada situação e a tran f rm numa "forma"que é o alimento para o entendim nto p d s r assimiladasegundo os esquemas disponíveis.

Piaget realmente considera pr ndizagem da leituracomo uma atividade merament figurativa e assim defendeque nos primeiros anos escolar s a preocupação maior nãodeveria ser com a aprendizagem da leitura e da escrita, mascom o aspecto ativo da cognição (operativo).

Baseando-nos neste principio, poderíamos propor para anossa estrutura escolar, onde pesa realmente o ensino da lei-tura e da escrita, uma preocupação maior no sentido de pos-sibilitar à criança o fortalecimento do pensamento atravésde elaborações pessoais. Aqui caberia uma consideração :1-respeito do material utilizado pelas escolas para o ensino daleitura. Uma revisão poderia ser feita, no sentido de melhorajustar este material aos interesses da criança e, portanto, àssuas estruturas cognitivas.

O método experimental com relação ao ensino da lêiturapreconiza o aproveitamento da própria linguagem e expe-riências da criança, o que servirá de material para a aprendi-zagem da leitura. A criança é suscitada pelo que lê pois nãolhe será imposto um vocabulário sem significação. Ela pro-

duz suas próprias estórias, estórias essas registrada n -lisadas com a ajuda da professora. A troca de exp ri n j

entre as crianças concorrerá para a ampliação quantí-qu 11-tativa da linguagem.

1.2. Preocupação com o DesenvolvimentoPleno da Personalidade

No seu livro Para Onde Vai a Educação, Piaget faz umacrítica à escola tradicional que impõe a submissão do alunoa uma autoridade moral e intelectual do professor e se limi-ta a registrar o acúmulo de conhecimentos necessários aosucesso das provas finais (Piaget, 1976).

Aqui levantaríamos o problema da nossa escola, namaioria ainda dentro dos padrões citados, sem uma preocu-pação maior com a pessoa.

Sabemos que o conceito de pessoa supõe reciprocidade,uma vez que é entendido como o indivíduo interagindo comos outros, com a sociedade. Supõe, portanto, atividade, auto-nomia. Assim a atividade espontânea é ponto básico para oestabelecimento desta reciprocidade - o indivíduo ou aceitaespontaneamente normas de disciplina e noções ou contribuipara a formulação destas normas e noções. Não se submetesimplesmente, sem entrar no processo.

Então as operações e a cooperação constituem a basepara o desenvolvimento do indivíduo como pessoa.

Vale ainda ressaltar o relacionamento afetivo do edu-cando e lembrar que na realidade não se pode separar os as-pectos intelectuais, afetivos, sociais e morais do seu relacio-namento.

Embora Piaget tenha conduzido os seus estudos dentrodo aspecto cognitivo, reconhece o papel da afetividade, in-clusive o seu poder de inibição intelectual.

O aluno precisa ser considerado um todo indissociável.Quanto mais ativo intelectualmente, mais livre no domínio

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1.3. Importância de uma Dimensão Social naEducação

1.4. Adaptação do Ensino à Estrutura Mental daCriança

Piaget parte do princípio de que as estruturas mentaisconstituem o fundamento da aprendizagem e de que estasestruturas modificam-se progressivamente.

Nessa estruturação progressiva, considera que as estru-turas superiores supõem estruturas inferiores que são inte-gradas, dando origem a uma organização mais complexa.

O autor chama atenção para o ensino adaptado à capa-cidade do aluno e afirma ser condição básica para isso oconhecimento das características do desenvolvimento psico-lógico da inteligência na criança e no adolescente.

Com isto não diminui a importância de um ambienteestimulante para o desenvolvimento pois a estimulação am-biental vai possibilitar uma multiplicação de esquemas quepor sua vez, relacionando-se, reestruturam o pensamento.

Quando há dissociação entre o que se ensina e os esque-mas mentais do educando, acontece o verbalismo, a memo-rízação, que não contribuem para o desenvolvimento do ra-ciocínio, podendo mesmo embotá-lo. Dá-se o acúmulo de in-formações sem sentido e por conseguinte não leva a umaaprendizagem realmente significativa.

Em confronto com essas afirmações podemos afirmarque a grande preocupação da escola é com o aspecto quanti-tativo. Ela se interessa apenas em transmitir informaçõessem se preocupar com o raciocínio, nem tampouco com onível operatório do educando para que são dirigidas aquelasinformações.

moral e menos vulnerável aos distúrbios afetivos em suamaioria determinados pela pressão social.

'. O indivíduo, defende Piaget, atingirá o estado de perso-nalidade, quando for capaz de exercer um autogoverno e desituar o seu eu na verdadeira perspectiva em relação aosoutros (descentralização da própria atividade).

Quando Piaget preconiza mais atençã a pensamentoe menos às habilitações específicas, fica clar que ele se re-fere não apenas ao pensamento aplicado à ciência e às letrasmas também ao relacionamento da p sso com as outraspessoas, com a sociedade.

Partindo da premissa que o hom m col cado em con-tacto com o meio através de esqu mas attv d cognição,:::tcontribuição do sujeito sugere a lib rdad de pensamento,sua participação ativa. Isto não s falando apenas da rela-ção homem-ambiente físico, mas também homem-ambientesocial.

A educação para o pensamento tem então por objetivoajudar o homem a ter uma atitude ativa em relação à vidasocial. A realidade social faz parte do meio onde a criançacresce e, por isso, ela precisa ser orientada para colocar-sediante desta realidade, de forma ativa, como diante do meiofísico.

Ê necessário também considerar que das suas relaçõessociais, da troca com os companheiros, resulta também odesenvolvimento intelectual. À proporção que a criança con-vive, ela vai se tornando capaz de colocar-se diante do pon-to de vista do outro, não considerando o seu como único.

Oportunidades então acontecem para que a criança atin-ja o nível das operações e cooperações ativas, aspecto impor-tante para a nossa época em constante mudança.

2. CARACTERIZAÇÃODA ESTRUTURAMENTALDO PRÉ-ESCOLAR

2.1. Parte Introâutôria

RI V.• D . FM DEBATE - FORT., V. 3 - N.O 3 - PÁG. 55·72 1979

Referindo-se às fases do desenvolvimento cognitivo,Piaget considera o período sensório-motor, o pré-operacionaJ,o das operações concretas e os das op rações formais.

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Ao pré-operacional chama de 1.a infância, considerando-ocomo um período de preparação e organização das operaçõesconcretas e subdividindo-o em dois subperíodos: o pré-conceí-tual (2 a 4 anos) e o intuitivo (4 a 7 anos).

Durante o período sensório-motor que antecede o pré-operacional, as funções inteligentes da criança se restringema manipulações externas, ações explícitas. Com o apareci-mento da linguagem ela já não se limitará ao universofísico. O mundo das representações interiores é do seu domí-nio, sendo estas representações possibilitadas pelas manipu-lações simbólicas da realidade.

Surge assim, o pensamento propriamente dito, segundoPiaget, sob a influência da linguagem e da socialização queesta permite.

"A linguagem permitindo ao sujeito contar suasações, fornece de uma só vez a capacidade de recons-truir o passado, portanto, de evocá-Ia na ausênciade objetos sobre os quais se referiram as condutasanteriores, de antecipar as ações futuras, ainda nãoexecutadas, e até substituí-Ias, às vezes, pela pala-vra isolada, sem nunca realizá-Ias. Este é o pontode partida do pensamento". (Piaget, 1967, p. 27).

Deduz-se então que a inteligência representativa supõea função simbólica e que esta exige a capacidade de dife-renciar significantes e significados. Explicando melhor o quequer dizer Piaget, o símbolo tem uma significação, mas estasignificação é separada do seu significado pelo indivíduo.Por exemplo, quando a criança imita ou descreve verbal-mente um acontecimento, distingue sua imitação e descriçãodo que está imitando e descrevendo.

É a imagem mental que a criança é capaz de formar,ação interna, representação mental de algo que ela significa.

Aliás, esta capacidade de formular imagem já se verificana imitação, quando a criança atribui os seus primeiros signi-ficantes a significados ausentes. É a "imitação r tardada"que com o crescimento a criança é capaz de fazer, prescíndín-

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do de ações que externem esta imitação, mas apenas reali-zando-a internamente.

Flavell, referindo-se ao caráter ativo da imagem, co-menta:

"Para Piaget, uma imagem, longe de ser um engra-ma passivo de seu referencial externo, é uma aco-modação ativa ao referencial que difere da acomo-dação sensório-motora somente na medida em queé internalizada" (Flavell, 1965, p. 154).

Piaget dessa forma não admite que a assimilação designos verbais (definidos culturalmente, sem um significadoatribuído pela pessoa ao significante) seja ponto de partidapara o pensamento representativo. A atividade mental seriao princípio básico da representação, uma vez que o símbolosignifica algo, mas é separado pelo indivíduo, de seu sígni-ficado.

Pode-se assim caracterizar o pensamento pré-operacio-nal como pensamento em termos de símbolos. Isto quer dizerque ele exige, como condição necessária, a presença de sím-bolos embora estes limitem o funcionamento do pensamentooperativo.

Na 1.a infância são considerados, como vimos, dois es-tágios - o pré-conceitual (2 a 4 anos) que pode ser chamadotambém de estágio do jogo simbólico ou jogo de imaginaçãoe imitação, quando a criança não faz nenhum esforço parasubmeter-se ao real. Ela transfonna a realidade em funçãodos seus desejos, numa atitude de assimilação pura. A fan-tasia, a ficção completam esta realidade.

No segundo estágio, o do pensamento intuitivo (4 a ?anos), a criança está mais adaptada ao real, embora a ope-ração racional não exista e sim a simples intuição.

Caracterizaremos o período pré-operacional como umtodo, ficando explícito que mesmo dentro deste período háuma evolução do pensamento infantil.

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2.2.1. Egocentrismo

do este fato uma descentração. Aspectos superficiàis são per-cebidos, em detrimento de outros fundamentais.

Piaget cita um exemplo que pode muito bem caracte-rizar esta centração.

Se apresentarmos à criança seis ou oito fichas azuis,enfileiradas, com pequenos 'intervalos e pedirmos que ela(por volta de 5 a 6 anos) arrume uma outra fileira com fichasvermelhas à sua disposição, ela será capaz de fazer umacorrespondência termo a termo entre as fichas azuis e ver-melhas. Se, no entanto, afastarmos um pouco as fichas extre-mas da fileira vermelha, de modo que não haja mais corres-pondência, ela dirá que a fila que ocupa mais espaço temmais elementos (Piaget, 1967). Podemos dizer que a criança.centrou sua atenção num único aspecto, o espaço ocupadopelas fichas. É uma cognição isolada, sem referência siste-mática a cognições passadas.

O aspecto específico no qual foi centrada sua atençãoequivale a uma totalidade definitiva.

Concluímos que, devido à incapacidade de descentraçãona idade pré-escolar, a criança tem dificuldade de conceberuma classe, uma vez que centraliza cada membro a cada mo-mento, com uma idéia apenas muito vaga da existência deoutros membros.

2.2. Características do Pensamento Pré-Operacional

o egocentrismo antes, no período sensório-motor, carac-terizava-se pela ausência de diferenciação entre o objeto eo "eu". Agora com a capacidade de representação, a criançaé egocêntrica com relação aos símbolos,pois não os diferen-cia daquilo a que eles se referem. É ela incapaz de separar aaparência da realidade, de tudo fazendo uma imagem basea-da exclusivamente no seu ponto de vista.

Conseqüências advêm desta característica que pratica-mente envolve todas as outras. Entre estas conseqüênciaspodemos citar a incapacidade da criança de se colocar noponto de vista dos outros, sendo isto bastante observado noseu comportamento verbal durante o período pré-operacional,quando muito freqüentemente não procura agir sobre o in-terlocutor.

Piaget fala desta linguagem egocêntríca, mostrando sero monólogo coletivo ainda muito freqüente até a idade de 7anos, e, explicando ser esta forma de linguagem uma lingua-gem não socializada, ou melhor, um pensamento alto emque o interlocutor é mais um excitante que um ouvinte.

Flavell se refere a uma outra conseqüência deste ego-centrismo: 2.2.3. Incapacidade de Classificar

"A criança não sente nem necessidade de justificarseu raciocínio para os outros, nem de procurar pos-síveis contradições em sua lógica" (Flavell, 1965,p. 158).

2.2.2. Centração

Para que seja possível a classificação, necessário se fazque a criança distinga um conjunto de objetos individuais,mas com características comuns que os unam em classes.

Piaget afirma ser a criança pré-escolar perturbada aolidar com as relações de classe e, por isso, acredita que nesteperíodo ela não é capaz de pensamento conceitual. Assim,acredita que quando a criança -pequena coloca objetos seme-lhantes num grupo, ou quando os nomeia corretamente, nãoestá necessariamente classificando, pois para a classificaçãose faz necessário a distinção dos aspectos comuns dos obje-tos a serem classífícados e dos aspectos individuais, particu-lares, que caracterizam o objeto.

Durante o período pré-operacional a criança volta suaatenção para um único aspecto da realidade que se lhe apre-senta, sem capacidade de considerar os outros aspectos.

Ela prende-se a uma qualidade particular do objeto,àquilo que se faz foco de sua atenção no momento, impedin-

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.Desta forma a criança não atribui uma palavra a umaclasse de objetos e, uma palavra que a princípio pareça signi-ficar um conceito, logo observa-se, não passa de um pré-con-ceito. Ex., a palavra pássaro evoca à criança o canário.

2.2.4. Irreversibilidade

Um conceito muito claro de reversibilidade nos é dadopor Flavell:

"Uma organização cognitiva é reversível quando écapaz de percorrer um caminho cognitivo e entãoinverter mentalmente a direção para encontrar umponto de partida não modificado (a premissa ini-cial, o ponto de partida não modificado"). (Flavell,1965, p. 161).

Como vemos a reversibilidade supõe uma forma de pen-samento flexível, móvel, descentrado, o que não é possível àcriança pré-escolar. As operações inversas, portanto, nãoestão ao seu alcance neste período.

Poderemos comprovar isto, nos reportando aos experi-mentos de Piaget, com relação ao domínio da noção de con-servação (nível da água) inicialmente tomando doiscopos iguais com a mesma quantidade de líquido, depois in-vertendo o líquido de um dos copos num copo mais fino, deforma que o nível da água fique mais alto, a criança é levadaa dizer que existe maior quantidade de líquido neste copo.Ela não compreende que o líquido pode ser despejado nova-merite no vaso original, de modo a restaurar a igualdade ín.-cial. Este caminho inverso se torna difícil para a criança, nosentido de restituir a situação inicial.

2.2.5. Falta de Domínio da Noção de Conserva-ção (Princípio de Invariância)

Segundo a hipótese de Piaget, a criança na primeira in-fância fracassa no experimento de invariância por causa dalguns fatores.

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portemo-nos ao experimento com relação à conserva-('I o da quantidade de líquido, para citar estes fatores.

a) Pela incapacidade da criança de voltar no tempo,de se reportar à configuração inicial, procura solu-cionar o problema, centrando-se na situação presen-te.

b) A falta de reversibilidade dos seus esquemas nãolhe permite compreender que a igualdade inicialpode ser restituída.

c) A ausência de suposição de que, se nada se acrescen-ta ou se tira, a quantidade permanece a mesma.

d) A ausência de compreensão de que um aumento naaltura e uma redução na largura podem compen-sar-se.

Estes aspectos nos mostram que a criança no períodopré-escolar tende a operar com a aparência da realidade,realidade esta, que é composta de imagens concretas e está-veis. As coisas para ela dependem da sua percepção momen-tânea, imediata, não lhe permitindo a mobilidade de pensa-mento.

2.2.6. Outras Características

Finalismo - a criança dá uma explicação simples e ego-cêntrica para as coisas que a cercam, não admitindo o acasona natureza e, portanto, considerando que tudo é feito paraas crianças e os homens.

Artificialismo - tudo se lhe apresenta como feito pelohomem. Assim, os rios, as montanhas, são obras do homemu de um ser divino que opera do mesmo modo que a pessoa

humana.Animismo - tendência para atribuir vida a tudo que

L m movimento. No início será atribuída vida a todo objeto'lu exerça uma atividade. Depois somente aos agentescorpos que se movem por si.

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Moral Primitiva - a moral da criança na primeira in-fância depende de imposições externas dos pais ou das pes-soas respeitadas. É a moral heterônoma, quando a criançase adapta às proibições do adulto, considerando-as como ver-dades morais absolutas.

Interessante as observações feitas por Piaget sobre ojulgamento da criança com relação à mentira - esta é con-siderada maior, quando se afasta mais da realidade e quandoé dirigida aos adultos e não aos companheiros. As intençõese os motivos envolvidos não são considerados.

Os julgamentos da criança sobre a noção de justiça ecastigo também são impregnados desta falta de consideraçãocom relação às intenções e motivos envolvidos nos atos.

Esta moral primitiva é vista c mo uma decorrência daspróprias estruturas mentais da crian a n sta fase. É a moraldo dever que devido a própria irr v rsibilidad não cede lu-gar à moral da cooperação.

3. SUGESTõES METODOLÓGICASPARA OENSINO PRÉ-ESCOLAR

Piaget defende, como ponto básico de qualquer metodo-logia, a provocação da atividade. As estratégias devem levara criança a uma assimilação ativa, única maneira de promo-ver o desenvolvimento das suas estruturas mentais.

Além de preconizar a atividade, defende a sucessão deestruturas diferentes no desenvolvimento, dependendo a as-similação da estrutura mental do momento.

Nestes dois aspectos - a seqüência das estruturas men-tais e a provocação da atividade - devem se basear todasas estratégias de ensino que pretendem fomentar o desenvol-vimento cognitivo. Aliás, o conhecimento da seqüência destasestruturas mentais é o ponto de partida para a provocaçãoda atividade, pois esta só se manifestará diante de estímulospertinentes, isto é, diante de estímulos condizentes com 3-estrutura mental.

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Um outro aspecto deve ser colocado em evidência - osocial. A criança confrontando os agentes sociais, (col gas,professores, pais) adquire uma percepção objetiva de si domundo que a rodeia.

Como vimos, o período pré-operacional é o período de"preparação" para as operações concretas, com caracterís-ticas próprias que precisam ser consideradas pela escola para,que realmente aconteça este preparo que constitui o cami-nho para a organização do pensamento operacional.

Aqui novamente ressaltamos a importância dada porPiaget à seqüência do desenvolvimento cognitivo - a aquisi-ção do conhecimento dá-se através de diferentes modalida-des cognitivas, em diferentes níveis de idade.

Levando em conta os princípios educacionais de Piagete, as características que ele atribui à criança neste períodopré-operacional, vejamos algumas sugestões a serem consi-deradas.

Diante da organização rígida e egocêntríca do pensa-mento do pré-escolar, oferecer oportunidades estimulantesque levem a criança à operatividade. O ambiente físico commateriais variados deve constituir um dos pontos de partidapara levar a criança à atividade.

Piaget não defende o uso de materiais específicos, este-reotipados, mas de algo que suscite a criança a agir, a for-mular suas noções.

Assim, com relação ao ensino das ciências, deve existirpreocupação com as relações lógicas que a criança vai esta-belecendo, gradualmente, e não com a transmissão do expe-rienciado pelo professor, uma vez que não é o aspecto cumu-lativo que conta para o desenvolvimento do raciocínio.

O processo da aprendizagem deve ser considerado comomais importante e, assim, quanto mais a criança vivencie,experiencie, mais ela se desenvolverá.

Quanto à matemática, a escola deve levar a criança aatividades que conduzam à classificação, seriação, noção denúmero. Para isto necessário se faz a presença de materialconcreto que permita à criança a manipulação - por ex.,obj tos de várias formas, tamanhos e cores, para as opera-

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ções de classificação. Estes objetos poderão ser seriados portamanho, cor, peso, forma, etc.

A noção. de son:a e subtração dependerá da manipulaçãodeste ~atenal e na~ do ensino figurativo que o professorpossa Impor. As noçoes de mais, de menos antecedem o"quanto" e já constituem caminho para as operações,

Com relação às ciências físicas, as atividades preconi-zadas pela escola devem levar a criança a atuar sobre os obje-tos, a observar os fenômenos como eles acontecem, a contac-tar com_a natureza, numa atitude ativa de descoberta. deexploraçao da realidade.. Referin~o-nos agora à capacidade de representação sur-

gI~~ no pe.rlOdopré-escolar e sabendo ser esta ainda uma~tIvIdade simbólica (significant s individuais, pessoais) que,Impregn~da de egocentrismo, distorc a realdade, não po-demos ve-la, como uma cópia passiva da realidade. E é ím-po~ant~ considerá-Ia pré-r quísito para as atividades oue-raCIOnaISdo pensamento concr to. -

Enfatizamos então a importância de a escola estimulartod~ forma ~e atividade simbólica - a imitação, o desenho,a pmtura, o Jogo, a modelag m, tc. - valendo ressaltar queestas. devam ser sempre atividad s xpressivas, espontâneasda criança. Esta repr sentará a r alidade por meio de signí-fi_cantesdistintos dos significados, o que mostra uma evolu-çao com relação ao período sensório-motor.

.Numa apologia do jogo, Piaget afirma que tanto atravésdo Jogo sensório-motor, como do simbólico, a crianca trans-fo~ma a re~lidade em função das suas necessidade~, consti-tumdo, aSSIm,um~ assimilação do real a sua própria ativi-dade. ~or esta ~azao defende que a escola ofereça material~onvem~nte, a fím de que, jogando, a criança assimile as rea-lidades mtelectuais.

Es~e processo de assimilação pura, a princípio, se trans-formara e~ condutas adaptadas pela própria síntese com 3-

ac0r.n0daç~o,o que determinará cada vez mais um trabalhoefetIvo (PIaget, 1972).

Considerações espe.cíficas?re~isam ser feitas sobre o pa-pel da escola, no que diz respeito a linguagem. Antes, porém,

vult 1 mbrar as novas perspectivas d corr nt s d pont dvi ta de Piaget com relação à linguagem - Ia c nstítutum instrumento pelo qual o pensamento é expr sso, nd:pr cedida por ações internalizadas que eventualm ntxpressas em comportamento verbal e simbólico.

Daí ser necessário que a escola considere a atividad dacriança como ponto de partida para o desenvolvimento dasatividades de linguagem. Que sejam consideradas as experiên-cias da criança e a sua expressão verbal valha como materialde ensino. Que as atividades de linguagem levem sempre acriança à reflexão, determinando deste modo uma operativí-dade e não uma atitude passiva. A palavra precisa ser veículodo pensamento, inclusive para se tornar comunicação. Nosanos iniciais, a expressão verbal da criança e o intercâmbiode idéias através desta forma' de expressão devem ser esti-muladas.

Como Piaget não defende deva ser preocupação maiorda escola nos anos iniciais, o ensino da leitura e da escritapor serem estas atividades figurativas e portanto operativasa baixo nível, a nossa escola que enfatiza tanto estes aspec-tos, poderia, tomando o ponto de vista do autor, modificara sua metodologia.

O material de leitura não deveria ser imposto à criança,como algo fora doexperienciado por ela e além do seu nívelde assimilação.

A socialização é um outro aspecto a ser evocado quandose fala da educação do pré-escolar. Sabemos que a criançaneste período, dominada _pelo egocentrismo, não está capac:-tada a trabalhar efetivamente em grupo e suas atividadeslúdicas não têm como base grupos organizados. No entanto, oeducador precisa ter em mente que embora não possa forçara interação interpessoal, deve criar oportunidades para queesta se desenvolva.

A troca verbal, a cooperação nos jogos e trabalhos sãode muita valia para isto. O contexto social que envolve acriança, realmente, pode oferecer a ela oportunidade de co-operação e conseqüentemente de objetividade.

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Page 10: CONCEPÇÕES PIAGETIANAS PARA UMA · PDF filedo desenvolvimento cognitivo, nos baseamos em Piaget, cujos ... riências da criança, o que servirá de material para a aprendi-zagem

Sabemos que no período pré-escolar a criança é egocên-trica em pensamento e ação, mas em confronto com o mundofísico e social este se~ egocentrismo vai cedendo lugar a umcomportamento mais socializado.

Ao educador cabe a conscientização do quanto a intera-ção social favorece o desenvolvimento intelectual - a opera-tividade para Piaget pressupõe participação, sendo portantoindispensável o relacionamento da criança com seus com-panheiros.

Concluindo, ressaltamos que qualquer planejamento deensino deve se basear no que se espera que a criança assimi-le e acomode. As seqüências do desenvolvimento, portanto,devem ser cuidadosamente examinadas e consideradas peloeducador que acreditará na evolução da estrutura cognitiva,não a considerando como fixa ou dada no processo de adap-tação esta torna-se modificada e reconstruí da, como novasestruturas, em níveis subseqüentes, no tempo.

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