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Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo Para começarmos essa reflexão, faz-se mister trazer à baila o modo de pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin denominou de “objetivismo abstrato”, para, de forma dialógica, trazer à luz a concepção de linguagem construída pelo Círculo. Essa corrente, da qual o mestre genebrino Ferdinand de Saussure é compositor e regente, nos apresenta a seguinte dicotomia: Língua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcação considerado a dimensão social da linguagem, e o segundo é encarado pelo linguista como expressão individual de cada sujeito falante. Saussure, ao instituir as categorias analíticas fundamentais para estudo da língua, como a fonética e a morfologia, baseou-se nos estudos da linguística comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as línguas mortas e as estrangeiras. Saussure não negava o aspecto social da língua, contudo o modo de fazer ciência da sua época exigia que o objeto de estudo apresentasse comportamentos idênticos, portanto passíveis de normatização, como a fonética, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a língua atava a diversidade, a pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de regras. Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenômeno da linguagem, as variações sociais da língua, bem

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Concepo(es) de linguagem: Fundamentos dialgicos do Crculo

Para comearmos essa reflexo, faz-se mister trazer baila o modo de pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin denominou de objetivismo abstrato, para, de forma dialgica, trazer luz a concepo de linguagem construda pelo Crculo. Essa corrente, da qual o mestre genebrino Ferdinand de Saussure compositor e regente, nos apresenta a seguinte dicotomia: Lngua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcao considerado a dimenso social da linguagem, e o segundo encarado pelo linguista como expresso individual de cada sujeito falante. Saussure, ao instituir as categorias analticas fundamentais para estudo da lngua, como a fontica e a morfologia, baseou-se nos estudos da lingustica comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as lnguas mortas e as estrangeiras. Saussure no negava o aspecto social da lngua, contudo o modo de fazer cincia da sua poca exigia que o objeto de estudo apresentasse comportamentos idnticos, portanto passveis de normatizao, como a fontica, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a lngua atava a diversidade, a pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de regras.Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenmeno da linguagem, as variaes sociais da lngua, bem como as variantes individuais dos falantes no podiam ser consideradas nos estudos lingusticos. Para os estruturalistas, esses fatores eram considerados desordenados, demasiadamente heterogneos e aleatrios, fugindo do padro e do rigor exigidos pela cincia. Isso fez com que a fala assumisse um papel quase que irrelevante, nos estudos lingusticos do final do sculo XIX, a fim de no inviabilizar o projeto estruturalista de instituir uma unidade da lngua como sistema. Esse modelo positivista de conceber a linguagem como um sistema abstrato, tomando por base suas caractersticas formais, passveis de serem repetidas, seguindo o modo de fazer cientfico da poca, levou ideia de que a lngua um fenmeno esttico. Tal concepo admitia que o sentido pr-fabricado, fechado dentro de um sistema de normas lingusticas, como se a linguagem fosse uma espcie de espelho do mundo, refletindo verdades nicas e universais, e que, para a compreenso do enunciado, os aspectos sociais da lngua eram irrelevantes. Tal postura desconsiderava, portanto, as diversidades e multiplicidades do signo, deixando a intencionalidade dos falantes em segundo plano (BRAIT, 2011).Por outro lado, em oposio ao pensamento de Saussure e dos estruturalistas que se seguiram, Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da fala, ou seja, a dimenso que leva em conta a pluralidade das manifestaes lingusticas em circunstncias concretas de interao social. Ele acreditava que a realidade fundamental da linguagem estava centrada na interao entre os falantes, no seu uso real e no em um ponto de vista ideal, intangvel. Ele concebia a linguagem no como um sistema abstrato, mas como algo vivo, dinmico e coletivo, parte de um dilogo cumulativo entre o eu e o outro, entre muitos eus e muitos outros (STAM, 1992). Mas Bakhtin no nega a existncia da lngua enquanto sistema, j que por trs de todo texto, encontra-se o sistema da lngua (BAKHTIN, 2003, p. 332). Ao contrrio de desqualificar qualquer estudo srio da estrutura da lngua, o filsofo russo considera-o adequado para estudar as suas unidades (fonemas, morfemas, oraes). Por outro lado, com sua translingustica[footnoteRef:1], ele demonstra que lingustica estruturalista no suficiente para explicar o funcionamento, no mbito social, da linguagem, que possui como unidade mnima o enunciado, irrepetvel, instvel e inclassificvel. [1: Disciplina proposta por Bakhtin, que visa ao estudo e anlise de elementos externos lngua enquanto sistema. Tal disciplina daria conta dos aspectos dialgicos e polifnicos da linguagem, principalmente da fala, no contemplados pela lingustica. ]

Para Bakhtin, a estabilidade da lngua constitui-se um mito, pois, para ele, a mutabilidade do signo uma das caractersticas constitutivas da linguagem. Sobre isso, ele esclarece:Assim, o elemento que torna a forma lingustica um signo no sua identidade como sinal, mas sua mobilidade especfica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificao da forma lingustica no o reconhecimento do sinal, mas a compreenso das palavras no seu sentido particular, isto , a apreenso da orientao que conferida palavra por um contexto e uma situao precisos, uma orientao no sentido da evoluo e no do imobilismo (BAKHTIN, 2003, p. 94).Spinelli (2005) enfatiza que o dinamismo social do signo, historicamente gerado, vivifica esse mesmo signo. Ela lembra ainda sua dimenso poltico-ideolgica, por meio da qual ressignificado o tempo todo na arena da palavra, onde as classes e grupos sociais, com seus interesses e conflitos permanentes, se apropriam dele, dando-lhe novos significados. A essa capacidade que possuem os signos de extrair variveis tons e valoraes sociais, a depender das situaes scio-histricas, Bakhtin (apud SPINELLI 2005, p.34) denominou de multiacentualidade.Acertadamente, a partir das reflexes realizadas por Bakhtin e o seu Crculo, no incio do sculo XX, em obra conjunta denominada Marxismo e Filosofia da Linguagem, os estudos de linguagem, atualmente, vm adotando uma postura que supera a viso estruturalista de lngua. Os linguistas hodiernos, sobretudo os sociolingustas, tm assumido uma postura que leva em conta os mecanismos variveis responsveis tambm pela produo de sentidos. Essa nova atitude situa, par e passo, estrutura lingustica e a dimenso histrica, cultural, social e ideolgica da linguagem, copartcipes na significao dos signos. Assim, apresentam-se novas possibilidades de entender e significar o mundo, baseadas numa concepo dialgica de linguagem que contempla as pluralidades, desfazendo, de uma vez, o mito do sentido pr-fixado.Tais reflexes em torno das concepes de linguagem fazem-nos recordar de um conceito bakhtiniano, o qual nos parece bastante produtivo para enriquecer este debate. Trata-se da noo de foras centrpetas e centrfugas, que nos ajuda a compreender esse jogo dialtico mencionado por Bakhtin, que, segundo o filsofo, caracteriza toda a linguagem. Desta forma, as foras centrpetas atuariam numa direo favorvel concepo estruturalista de linguagem, atuando na normatizao. De outro lado, as foras centrfugas agiriam de forma corroborativa com a concepo interacionista, tendendo s diversificaes da lngua, embora ambas as foras existam e atuam independentemente da concepo de linguagem. Para ele, essas foras convivem, dialtica, simultnea e ininterruptamente. Nas palavras do autor:(...) esta estratificao e contradio reais no so apenas a esttica da vida da lngua, mas tambm a sua dinmica: a estratificao e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a lngua est viva e desenvolvendo-se; ao lado das foras centrpetas caminha o trabalho contnuo das foras centrfugas da lngua, ao lado da centralizao verbo-ideolgica e da unio, caminham ininterruptos os processos de descentralizao e desunificao (BAKHTIN, 1998, p. 82).Diante dessa explanao dialgica das concepes de linguagem, conforme prenunciado na introduo deste captulo, passemos agora a um fecundo dilogo entre tais conceitos e o cinema. Acreditamos que essa aproximao nos fornece subsdios que nos possibilitam identificar qual concepo de linguagem tem balizado os produtores de filmes. Entendemos que a crtica feita por Bakhtin ao objetivismo abstrato, no mbito da linguagem verbal, seja perfeitamente aplicvel ao sistema imagtico utilizado pelo cinema, cujas possiblidades de interpretao so potencializadas pela natureza de sua linguagem. O simples fato de mudar o ngulo de uma imagem por meio do jogo de cmeras j possibilita a produo de novas interpretaes. Mas, para que essa relao seja concebvel, precisamos deixar claro que encaramos o cinema como linguagem. Esse posicionamento nos permite aplicar ao cinema a mesma metfora que Bakhtin (1992) utilizou em Marxismo e Filosofia da Linguagem para explicar a natureza dialgica da linguagem, a qual se constitui uma ponte entre um eu e um tu. Essa alegoria revela a igual importncia atribuda por Bakhtin ao locutor e ao interlocutor na construo dos enunciados, dado que, se, por um lado, essa ponte tem o eu por sustentao, necessariamente precisar de um segundo pilar de apoio, o tu. Tendo como base essa linha de raciocnio, o autor de uma obra cinematogrfica e o espectador possuem, ou deveriam possuir, igual relevncia no procedimento comunicacional, pois ambos fazem parte do processo de interao e contribuem diretamente para a produo de sentidos. Nessa perspectiva, o texto flmico considerado, ento, como uma criao solidria de sentido, cuja propriedade no exclusiva do autor nem do telespectador. Trata-se, porm, do resultado de uma interao verbo-visual entre os sujeitos da enunciao, a qual gera seus sentidos na relao, afastando a ideia de uma mensagem encerrada em si, com um sentido imanente.No entanto, como bem disse Bakhtin (1998, p.82), paralelas a essa tendncia centrfuga natural da linguagem de descentralizao e desunificao, existem as foras centrpetas ideolgicas e centralizadoras na indstria cinematogrfica tambm; sobretudo nos longas americanos, os quais sofrem a presso centrpeta da ideologia dominante, do poder institucional, hegemnico, financiado pelo capital, no qual predomina a voz masculina, branca, heterossexual e euro-americana, tendendo monoglossia. Assim, as produes cinematogrficas que privilegiam a linguagem hegemnica demonstram adotar uma concepo monologizante da linguagem. Nesse modelo de pensar a linguagem, o sentido unidirecional, partindo invariavelmente do emissor at encontrar o receptor. Nesse paradigma, diferentemente da concepo dialgica de linguagem, retira-se do telespectador qualquer participao na produo de significados, uma vez que o sentido da mensagem vai depender apenas do diretor da obra cinematogrfica. Trata-se de um modelo hermtico, cujo emissor ativo e o receptor totalmente passivo. Neste caso, o sentido do filme algo dado, pronto e acabado, e no produzido dialogicamente. Na outra ponta, em contrapartida hegemonia da linguagem utilizada pelos enlatados, esto os dialetos, ou equivalentes, que destoam do padro euro-americano, como o curta-metragem, o cinema engajado e o documentrio independente, os quais recebem influncias das foras centrfugas radiadas pela ideologia do cotidiano, privilegiando o perifrico e o marginal, em oposio ao central e ao dominante. Essas produes se utilizam de linguagens cinematogrficas que demonstram respeito s pluralidades das identidades lingusticas dos grupos representados nas narrativas, tendendo heteroglossia e revelando, portanto, a partir de nosso prisma terico, uma filiao concepo interacionista de linguagem. Assim, propomos explorar a pertinncia das categorias conceituais de Bakhtin para pensar um cinema que adote uma concepo de linguagem em que se valorize o outro, o diferente e o multicultural. Nessa proposta, deve-se chamar a ateno para o uso crtico dos conceitos e categorias de Bakhtin, especialmente sua viso de linguagem baseada no dialogismo, que permita identificar um cinema que assuma uma postura democrtica e heteroglota, em que as mltiplas vozes tenham seus espaos garantidos. Nessa direo, recomendamos ao professor fazer uso didtico dos curtas-metragens do projeto Curta na Escola. Voltaremos a falar desse assunto no captulo III, porque na prxima seo abordaremos as especificidades da linguagem cinematogrfica e como o conhecimento dessa pode contribuir para uma compreenso ativa do discurso cinematogrfico.