concepcao e gestao da protecao social nao contributiva no brasil

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Braslia, junho de 2009

Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome Patrus Ananias Ministro Ana Lgia Gomes Secretria Nacional de Assistncia Social Laura da Veiga Secretria de Avaliao e Gesto da Informao Simone Albuquerque Diretora de Gesto do Suas Ala Vanessa de Oliveira Canado Diretora de Formao de Agentes Pblicos e Sociais Monica Rodrigues Coordenadora Geral de Publicaes Tcnicas Representao da UNESCO no Brasil Vincent Defourny Representante Marlova Jovchelovitch Noleto Coordenadora do Setor de Cincias Humanas e Sociais Rosana Sperandio Oficial de Projetos

Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

2009 Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO)

Reviso Tcnica: Monica Rodrigues e Katia Belisrio Couto Reviso: Reinaldo Reis Diagramao: Via Braslia Projeto grfico e capa: Edson Fogaa

Concepo e gesto da proteo social no contributiva no Brasil. -- Braslia: Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, UNESCO, 2009. 424 p. ISBN: 978-85-7652-092-4 1. Assistncia Social - Brasil 2. Poltica Social - Brasil 3. Servios Sociais - Brasil I. Brasil. Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome II. UNESCO CDD 361

Representao no Brasil SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar. 70070-914 - Braslia - DF - Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Organizao Fax: (55 61) 3322-4261 Unidas das Naes para www.unesco.org.br a Educao, a Cincia e a Cultura [email protected]

Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome Secretaria de Avaliao e Gesto da Informao Esplanada dos Ministrios, Bloco A, Sala 409 70.054-906 - Braslia - DF - Brasil Tel.: (55 61) 3433-1501 Fax: (55 61) 3433-1598 www.mds.gov.br [email protected]

SumrioPREFCIO Qualificao e reflexo crtica ......................................................................7Patrus Ananias

APRESENTAO Construindo o novo modelo de proteo social no Brasil ..............................................................................9Vincent Defourny Marlova Jovchelovitch Noleto

PaRtE 1 Modelo brasileiro de proteo social no contributiva: concepes fundantes ...............................................................................13Aldaza Sposati

Proteo social no Brasil: debates e desafios ...............................................57Luciana Jaccoud

Poltica Social: alguns aspectos relevantes para discusso ...........................87Jorge Abraho de Castro

Gesto estratgica de programas sociais....................................................133Cristina Almeida Cunha Filgueiras

Monitoramento e avaliao de programas sociais: principais desafios....................................................................................157Jeni Vaitsman

Vulnerabilidade, empoderamento e metodologias centradas na famlia: conexes e uma experincia para reflexo .................................................171Carla Bronzo

PaRtE 2 O Sistema nico de Assistncia Social: uma nova forma de gesto da assistncia social ......................................................................................205Berenice Rojas Couto

Notas sobre o desenvolvimento do trabalho social com famlias no mbito da Poltica de Assistncia Social ...................................................219Priscilla Maia de Andrade Mariana Lpez Matias

O financiamento da Poltica de Assistncia Social na era Suas ..................229Gisele de Cssia Tavares

Notas sobre o gasto e o financiamento da assistncia social e sobre as transferncias fundo a fundo....................................................................259Rosa Maria Marques

A centralidade da informao no campo das polticas pblicas ................287Roberto Wagner da Silva Rodrigues

A gesto da informao em assistncia social............................................304Luziele Tapajs

Pesquisa de informaes bsicas municipais 2005 Suplemento de assistncia social ..............................................................321Vnia Pacheco

Transferncia de renda com condicionalidade: a experincia do Programa Bolsa Famlia .................................................331Rosani Cunha

Sistemas de informao e de gesto do Programa Bolsa Famlia e do Cadastro nico de Programas Sociais do Governo Federal ......................363Ana Vieira

Desafios das polticas e programas de desenvolvimento social ..................383Rmulo Paes-Sousa

Combatendo a pobreza e enfrentando as vulnerabilidades: desafios para a articulao entre o Programa Bolsa Famlia e a Proteo Social Bsica......401Edgar Pontes de Magalhes

PrefcioQualificao e reflexo crtica Desde a criao do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, em fevereiro de 2004, estamos sendo chamados a demonstrar a que viemos, uma questo que diz respeito aos nossos compromissos. O ministrio representa um marco de mudana no paradigma das polticas sociais no Brasil, que passam a ser estruturadas sobre o patamar de polticas pblicas, de carter permanente, na perspectiva de construo das bases materiais de um Estado de Bem Estar Social. Nesse contexto, a presente publicao, elaborada em parceria com a UNESCO, bastante significativa de um momento em que estamos investidos na tarefa de consolidar essa estrutura das polticas de desenvolvimento social, em uma iniciativa pioneira em nossa histria. E a questo da capacitao dos profissionais coloca-se como fator estratgico, fundamental para materializar as metas de efetivao das polticas pblicas na rea social. No ano de 2008, implementamos o Programa Gesto Social com Qualidade que capacitou 1.531 gerentes sociais que atuam nas reas de assistncia social e transferncia de renda. Essa ao alcanou 573 municpios de todos os estados e do DF. Em publicao anterior1 reunimos histrias que nos mostraram a dimenso do programa e neste livro editamos os artigos elaborados por estudiosos da rea e que foram utilizados nos cursos. Os textos buscam estabelecer uma ponte entre a teoria (poltica social) e a prtica institucional recente (Sistema nico de Assistncia Social e o Programa Bolsa Famlia), mas no se constituem em simples registro da ao governamental ou em manual de execuo de programas. Os especialistas que participaram da elaborao desse material se pautaram por um rigor conceitual e estmulo anlise crtica dos processos de implementao de programas e polticas sociais brasileiras. Eles tambm procuraram municiar os tcnicos com prticas inovadoras de gesto, de forma a habilit-los a elaborar diagnsticos que orientem a atuao local.1 MINISTRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE FOME. Capacitao: gestores sociais que mudam vidas pelo Brasil. Braslia: Secretaria de Avaliao e Gesto da Informao (Sagi/MDS), 2009.

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Certamente, estamos avanando na questo da capacitao, mas sabemos que ainda temos muito por fazer nesse campo. O compartilhamento das informaes e do material utilizado nos cursos de capacitao nos ajudar nesse sentido. Queremos avanar nas questes metodolgicas, trabalhar mais intensamente com as pessoas que esto na ponta, nos Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS) e nos Centros de Referncia Especializado de Assistncia Social (CREAS), bem como, com os beneficirios. Nossa proposta, como demonstram os textos aqui compilados, expandir a percepo das pessoas, no na linha doutrinria, mas instigante. Afinal, nossa meta que neste processo de capacitao todos possamos amadurecer e que tenhamos condies de promover o necessrio aperfeioamento das polticas sociais. Est claro que queremos mudar definitivamente a realidade social brasileira. Estamos estabelecendo novos parmetros, definindo como mediadores de nossa prtica poltica, valores voltados para definir redes de solidariedade e cooperao, aliando desenvolvimento com justia social. Nesse processo de aperfeioamento e qualificao profissional, o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome refora seu papel de promotor da defesa fundamental pela vida. Vale ressaltar que estamos vencendo a luta contra a fome, a desnutrio, a misria e a pobreza no Brasil e vamos continuar avanando cada vez mais nessa direo at que se estabelea uma sociedade onde todos tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Entre os artigos includos nesta publicao, destaco um que foi elaborado pela nossa saudosa Rosani Cunha, que foi Secretria Nacional de Renda de Cidadania. No Transferncia de Renda com Condicionalidade: A Experincia do Programa Bolsa Famlia, ela descreve sobre o que foi uma de suas mais fortes bandeiras nos ltimos anos. Servidora pblica exemplar, Rosani Cunha se dedicou de corpo e alma ao Bolsa Famlia e tarefa de pensar e estruturar rede de proteo e promoo social no Brasil, demonstrando um profundo compromisso com os pobres. Deixo aqui registrada minha homenagem amiga que nos deixou precocemente, mas cuja presena de seu trabalho continua a nos servir de inspirao. Patrus Ananias Ministro do Desenvolvimento Social e Combate Fome

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APresentAoconstruindo o novo modelo de proteo social no Brasil

A publicao Concepo e Gesto da Proteo Social No Contributiva no Brasil constitui decisivo momento na parceria entre o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS) e a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), iniciada em 2003, por meio de um acordo de cooperao tcnica, e focada no fortalecimento das polticas sociais pblicas no Brasil. Ao longo destes seis anos, a UNESCO tem participado, com satisfao, do eficiente trabalho do MDS, que cada vez mais contribui para mudar a histria da assistncia social no Brasil, deixando no passado a cultura centrada na caridade e no favor. Dessa maneira, d-se continuidade aos avanos iniciados em 1993 com a aprovao da Lei Orgnica da Assistncia Social (Loas), que regulamentou o artigo 204 da Constituio Federal de 1988, conhecida como Constituio Cidad. Como afirma o Ministro Patrus Ananias, trata-se no somente de colocar em prtica um conjunto de direitos garantidos constitucionalmente, mas, tambm, de mudar a forma de fazer poltica pblica no Brasil. Nesse novo padro, esto presentes elementos imprescindveis ao sucesso de qualquer iniciativa consequente, sobretudo na rea social, tais como: a qualificao de gestores e operadores do sistema de proteo social; o investimento racional de recursos pblicos; a avaliao sistemtica das aes; o controle social das prticas desenvolvidas; a reflexo continuada e sustentada em teorias consistentes; o envolvimento dos beneficirios e, acima de tudo, o trabalho pautado na busca do bem coletivo, na melhoria da qualidade de vida dos cidados e na criao de condies capazes de gerar o desenvolvimento humano e social para todos os cidados. Todos esses elementos reunidos, e presentes nas iniciativas do MDS, esto produzindo resultados histricos. So nmeros expressivos 14 milhes de9

famlias sendo retiradas da condio de pobreza para ter acesso a bens e servios que lhes permitam viver com mais dignidade , gerados graas a esse novo modelo de proteo social pautado na justia, no exerccio dos direitos humanos e, por que no dizer na construo de um Brasil mais igual e justo. Esta publicao parte imprescindvel de um processo de formao continuada dos profissionais que atuam na ponta (nos estados e nos municpios) e que permitem garantir a qualidade e a competncia necessrias para dar permanncia e efetividade poltica pblica da assistncia social. As reflexes e o processo de capacitao em si somam-se a outras aes desenvolvidas pelo MDS, sempre com a participao de grandes especialistas da rea da assistncia social. Essas iniciativas contribuem para reescrever a histria da proteo social no Brasil. Constituem modelo inovador desenhado pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, que vem atraindo a ateno de outros pases e tm permitido, tambm, que a contribuio da UNESCO reforce seu papel catalisador para a cooperao internacional. com muito orgulho que a UNESCO, por meio da parceria com o MDS, est contribuindo para escrever esta nova histria, cujo protagonista a sociedade brasileira, para quem a Organizao vem trabalhando incessantemente nos ltimos 40 anos.

Vincent DefournyRepresentante da UNESCO no Brasil

Marlova Jovchelovitch NoletoCoordenadora de Cincias Humanas e Sociais da UNESCO no Brasil

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MoDeLo BrAsiLeiro De Proteo sociAL no contriButivA: concePes funDAntesAldaza Sposati 1

A Constituio Federal (CF) brasileira de 1988, ao afianar os direitos humanos e sociais como responsabilidade pblica e estatal, operou, ainda que conceitualmente, fundamentais mudanas, pois acrescentou na agenda dos entes pblicos um conjunto de necessidades at ento consideradas de mbito pessoal ou individual. Nesse caminho, inaugurou uma mudana para a sociedade brasileira ao introduzir a seguridade como um guarda-chuva que abriga trs polticas de proteo social: a sade, a previdncia e a assistncia social. As constituies anteriores j reconheciam o papel da previdncia social em assegurar a maior parte das atenes da legislao social do trabalho. O seguro social de contribuio tripartite entre Estado, patro e empregado foi implantado no Brasil na segunda dcada do sculo XX e absorvido pela sociedade, ainda que no alcanasse todos os trabalhadores, como o caso dos domsticos. Essa poltica contava com interlocutores significativos, como os sindicatos de trabalhadores e as empresas e alimentava at opinies e anlises tcnico polticas sobre seus caminhos/descaminhos no Estado brasileiro ou sobre seus acordos com o capital e com os trabalhadores. Discutir a previdncia social tem significado, no Brasil, o exame de um seguro social, portanto, diretamente contributivo, quer pelos beneficirios para os quais presta assistncia, quer para seus patres e para o Estado. A sade s foi includa e reconhecida como direito de todos pela CF/88. O texto constitucional prope um Sistema nico de Sade para todos os cidados e em todo o territrio nacional. Convive nesse modelo com o setor1 Professora titular do Programa de Estudos Ps-Graduados em Servio Social da PUC-SP; coordenadora do Ncleo de Estudos e Pesquisa em Seguridade e Assistncia Social (Nepsas/PUC-SP); coordenadora do Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais (Cedest/PUC-SP-Inpe).

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privado (individual ou coletivo) que oferece seguros entre os quais as antigas mutualidades de base tnica ou profissional ou servios lucrativos de ateno individual para as sades clnica, hospitalar, teraputica, laboratorial etc. A incluso da assistncia social na seguridade social foi uma deciso plenamente inovadora. Primeiro, por tratar esse campo como de contedo da poltica pblica, de responsabilidade estatal, e no como uma nova ao, com atividades e atendimentos eventuais. Segundo, por desnaturalizar o princpio da subsidiariedade, pelo qual a ao da famlia e da sociedade antecedia a do Estado. O apoio a entidades sociais foi sempre o biombo relacional adotado pelo Estado para no quebrar a mediao da religiosidade posta pelo pacto Igreja-Estado. Terceiro, por introduzir um novo campo em que se efetivam os direitos sociais. A incluso da assistncia social significou, portanto, ampliao no campo dos direitos humanos e sociais e, como consequncia, introduziu a exigncia de a assistncia social, como poltica, ser capaz de formular com objetividade o contedo dos direitos do cidado em seu raio de ao, tarefa, alis, que ainda permanece em construo. Novos desafios surgiram e ainda esto presentes. Especificar rea de atuao para a assistncia social significa romper com a hegemnica concepo de que uma poltica de ateno aos pobres, aos necessitados sociais, aos frgeis e carentes. Esse modo de ver contm em si uma manifestao que aparta um segmento da populao, recorta os cidados por nveis de renda e separa aqueles de baixa renda confinando-os em um aparato especfico, como se suas necessidades fossem diversas daquelas do cidado brasileiro. O processo de alfabetizao, por exemplo, quando assumido pelo Estado, por meio do Movimento Brasileiro de Alfabetizao (Mobral), foi inserido no mbito da assistncia social e no na educao, o mesmo ocorrendo com as creches. Incluem-se a as favelas, os medicamentos e as prteses, at que a sade os assuma de fato como parte do tratamento. A histria do Estado social brasileiro revela o funcionamento da assistncia social como rea de transio de atenes, sem efetiv-las como plena responsabilidade estatal e campo de consolidao dos direitos sociais. Em face dessa histria institucional que a registra como um campo que opera sob a negao de direitos, so mltiplos os desafios que se apresentam. Sob a concepo hegemonizada, principalmente pela viso conservadora, liberal e neossocial-liberal, a assistncia social transversal, porque est dedicada14

a possibilitar acessos materiais que no esto disponveis no mercado aos convencidamente pobres, com explcita demonstrao de sua precariedade. Confrontar essa maneira de ver, significa adotar a concepo de que a assistncia social uma poltica que atende determinadas necessidades de proteo social e , portanto, o campo em que se efetivam as seguranas sociais como direitos. Trata-se de uma forte guinada de concepo, pois, como segurana social, est sendo tratada como bem pblico e social do estatuto de uma sociedade para alcanar todos os seus membros. Portanto, trata-se de um pacto que inclui a universalidade da proteo social na seguridade social. E at a promulgao da CF/88 no se dispunha de uma concepo nacional sobre assistncia social, embora j existisse h mais de dez anos uma Secretaria Nacional de Assistncia Social instalada no Ministrio da Previdncia e Assistncia Social. No existiam dados sistematizados sobre o que ocorria em cada estado ou municpio. Como criar uma concepo nacional em um Estado federativo? Como trazer os quase seis mil municpios, os 26 governos estaduais e um distrito federal para assumir a compreenso e a gesto da assistncia social como direito de seguridade social e numa perspectiva de abranger todo o territrio nacional? No campo da assistncia social, portanto, a CF/88 foi amplamente inovadora. Todavia o que os constituintes aprovaram foi mais um vir a ser, mais uma intuio para o futuro do que uma racionalidade da ento e at mesmo da atual oferta da assistncia social. Pode-se dizer que o modelo brasileiro que contempla a assistncia social no campo da seguridade social no ainda pleno consenso. Isso porque no se entende o contedo da seguridade ou porque h resistncias em tornar a assistncia social poltica pblica, afianadora de direitos, ou como parte da seguridade social. Trata-se de uma construo heterognea. No mais das vezes, uma desconstruo cercada de debates, movimentos, contradies, regulaes. A assistncia social, como toda poltica social, um campo de foras entre concepes, interesses, perspectivas, tradies. Seu processo de efetivao como poltica de direitos no escapa do movimento histrico entre as relaes de foras sociais. Portanto, fundamental a compreenso do contedo possvel dessa rea e de suas implicaes no processo civilizatrio da sociedade brasileira.15

Torna-se cada vez mais claro o embate entre duas abrangentes concepes da poltica de assistncia social. Uma que, nos termos da CF/88, busca configur-la como poltica de Estado (dever de Estado) e direito da populao. Essa direo exige rgos pblicos gestores com capacidade para operar as funes de assistncia social, que sejam reguladores, com recursos humanos pblicos e gesto democrtica e tambm com transparncia de fundos. De qualquer modo, preciso objetivar o modelo pblico da CF/88. Este texto a defende como poltica pblica nacional. Outra, que interpreta a CF/88 pelo princpio de subsidiariedade, isto , o Estado deve ser o ltimo e no o primeiro a agir. Nesse sentido, opera a assistncia social sob o princpio de solidariedade como ao de entidades sociais subvencionadas pelo Estado. Sob essa tica no h interesse em ter recursos humanos estatais ou fortes regulaes para a insero de entidades na rede socioassistencial. O rgo gestor pode estar sob a tutela de uma primeira-dama sem configurar nepotismo. A ausncia do Estado natural. Desconstruir/reconstruir o modelo social pblico brasileiro de proteo social no contributiva, em bases crtico-conceituais, supe introduzir mltiplos recortes em seus elementos constitutivos, mas, tambm, alertar quanto perspectiva histrica contida na concepo de modelo. Refiro-me ao fato de que um modelo indica sempre uma relao do presente com o futuro. Como conceito, ele um vir a ser. A sua aplicao real que vai lhe dar a forma para alm do conceito. Aplicar um modelo na realidade exige a capacidade estratgica de enfrentar condicionantes, determinantes e impactos nos elementos do presente e do passado, que no condizem com o modelo que se deseja concretizar para o futuro. Portanto, a aplicao do modelo supe a alterao do que j vinha ocorrendo e, ainda, um novo modo de realizar a leitura dos fatos e elementos em mutao. Um modelo no tem aplicao quando concebido sob o estranhamento do real. Sua aplicao supe conhecer os fatos e os fatores do real que podem fragiliz-lo, isto , que retiram a fora dos fatores que estrategicamente o fortalecem. Tudo isso, a proposta e o conhecimento dos fatores que a aceleram ou interditam so parte do pr-desenho do futuro desejado. Usar uma bssola, por exemplo, para ter claro o ponto aonde se quer chegar, no significa ignorar os acidentes de percurso, as armadilhas, os obst16

culos, apesar de a rota, com esse instrumento, ter sempre o norte orientador. O modelo de proteo social no contributivo uma direo (ou um norte histrico) de um caminho em construo na sociedade brasileira. Supe conhecer e enfrentar obstculos no percurso e tambm no desistir da chegada, pelo fato de ter que realizar mudanas durante o processo. Portanto, um modelo por si s no altera o real, pelo contrrio, pode at ser condicionado e deformado pelo real, caso no se tenha domnio dos elementos constitutivos do modelo e das dificuldades a serem enfrentadas. preciso ter claro, tambm, que a realidade e a concretude dos fatos que a conformam no so males ou empecilhos, mas sim, as efetivas configuraes ou condies com que se deve lidar. Nesse sentido, se o modelo no d conta (em seus elementos de base) das configuraes do real, ele se transforma em uma ideologia ou em um discurso como mero arranjo de palavras impactantes, e isso no significa o efetivo alcance de mudanas e dos resultados esperados. ter um modelo brasileiro de proteo social no significa que ele j exista ou esteja pronto, mas que uma construo que exige muito esforo de mudanas. preciso atentar que vivemos em uma federao, e por mais que se tente captar as diversidades, a tendncia manter um nvel de generalizao que certamente ter de ser adequado s particularidades das regies do pas, dos estados, dos municpios e das microrregies, especialmente nas reas metropolitanas. A concretizao do modelo de proteo social sofre forte influncia da territorialidade, pois ele s se instala, e opera, a partir de foras vivas e de aes com sujeitos reais. Ele no flui de uma frmula matemtica, ou laboratorial, mas de um conjunto de relaes e de foras em movimento. Quando se explicitam, neste texto, essas ressalvas, se quer aclarar o topus, ou o lugar escolhido (e possvel) para a anlise do tema. No se far aqui um tratado acadmico sobre a(s) teoria(s) dos elementos constitutivos do modelo de proteo social no contributivo. O limite examinar o modo de aplicao de conceitos. Portanto, sero feitas releituras de teorias para sua aplicao em um tempo histrico e sob o ngulo de uma poltica pblica no incio do terceiro milnio. O heterogneo pblico e as diversas realidades regionais aos quais este texto se destina exigem essas relativizaes. A inteno explicar de modo con17

ceitual e programtico os elementos que constituem o modelo brasileiro de proteo social no contributiva. As ideias aqui tratadas esto divididas em trs partes. Na primeira, faz-se um recorte do significado de modelo de proteo social no contributiva. Em seguida, demonstra-se como ele tratado pela CF/88; faz-se uma rpida abordagem diferencial entre proteo social e desenvolvimento social e, por ltimo, uma reflexo sobre riscos e vulnerabilidades sociais. Na segunda parte, destacam-se os elementos que constituem o modelo brasileiro de proteo social no contributiva. A terceira parte flui do conceito de modelo adotado como construo histrica e aborda o que se denomina de ideias-fora que operam a transio do modelo, de um conceito para um fato. 1. pontos de partida para exame do tema Afirmar a existncia de um campo de proteo social no contributiva, no Brasil, como rea de gesto pblica, significa delimitar uma rea da ao estatal para os trs entes federativos, mas significa tambm entender que essa rea se instala em um campo social constitudo por iniciativas histricas advindas da paixo, mais particularmente da compaixo, do altrusmo e de prticas religiosas voltadas ao exerccio do amor ao prximo e caridade. O primeiro passo supe separar o campo pblico de prticas privadas, para depois reconstruir novas formas de relao entre um e outro (MESTRINER, 2001). As prticas privadas, cuja validade no se contesta, so por natureza individualizadas, j que se vinculam s misses estatutrias de suas organizaes e so dirigidas a algumas pessoas. A ao pblica, por seus princpios, destinada a todos e tem a responsabilidade de resolver, suprir e prover determinadas necessidades sociais da populao. O gestor pblico desloca sua preocupao e a ao do processo de ajuda s entidades sociais e se responsabiliza diretamente por criar solues e respostas s necessidades de proteo social da populao. A primeira mudana est no mbito da responsabilidade do rgo pblico. uma forte atitude a ser introduzida na maior parte das cidades brasileiras. Trata-se, portanto, do exerccio racional de gesto estatal fundado em princpios e valores sociais como direitos, cidadania e dever de Estado fora do escopo que compe culturalmente as prticas sociais no Brasil em seus 500 anos de existncia. Por isso, desde a Lei Orgnica de Assistncia Social (Loas), tornou-se necessrio que cada ente governamental tenha um plano de ao,18

que deve estabelecer o tempo determinado, publicamente conhecido e democraticamente reconhecido, das necessidades de proteo social, propondo o que vai realizar e submeter essa deciso aprovao de um conselho cuja criao objeto de lei especfica, de constituio paritria entre representantes do governo e da sociedade. A segunda mudana est em vincular a assistncia social ao estatal planejada, apontando os resultados esperados e interveno no conjunto da ao pblica. A gesto deixa de ser reativa para ingressar na atuao proativa. No s atender ocorrncias, como deve prever e reduzir as desprotees sociais. No pode resignar-se a apontar a capacidade de atendimento, mas deve mostrar a qualidade de resultados. A terceira mudana configura-se quando se rompe com os modelos unilaterais e autoritrios de gesto criando espaos de deciso democrtica com representaes da sociedade. No se trata de permanecer reproduzindo o modelo em que a assistncia social a face humana do governante, como campo adjutrio da imagem poltica, mas de rea de gesto estatal e pblica operada diretamente e com/em parcerias. Est em questo um novo campo de saber: o significado da capacidade protetiva de famlia, do mbito dessa proteo e das fragilidades e riscos sociais a que a prpria famlia e seus membros esto sujeitos. Um modelo de proteo social no contributiva para o Brasil resulta no s de implantao de novos programas de governo, mas de mudana mais incisiva que exige do gestor pblico assumir um novo papel baseado na noo de cidado usurio (e no de carente ou assistido) de seus direitos, e na responsabilidade do Estado em se comprometer com a capacidade de as famlias educarem seus filhos tratando-as como ncleos bsicos de proteo social. A CF/88 foi um marco histrico ao ampliar legalmente a proteo social para alm da vinculao com o emprego formal. Trata-se de mudana qualitativa na concepo de proteo que vigorou no pas at ento, pois inseriu no marco jurdico da cidadania os princpios da seguridade social e da garantia de direitos mnimos e vitais construo social. Houve uma verdadeira transformao quanto ao status das polticas sociais relativamente s suas condies pretritas de funcionamento. Em primeiro lugar, as novas regras constitucionais romperam com a necessidade do vnculo empregatcio contributivo na estruturao e concesso de benefcios previdencirios aos trabalhadores19

oriundos do mundo rural. Em segundo lugar, transformaram o conjunto de aes assistencialistas do passado em um embrio para a construo de uma poltica de assistncia social amplamente inclusiva. Em terceiro, estabeleceram o marco institucional inicial para a construo de uma estratgia de universalizao no que se refere s polticas de sade e educao bsica. Alm disso, ao propor novas e mais amplas fontes de financiamento alterao consagrada na criao do Oramento da Seguridade Social , a Constituio estabeleceu condies materiais objetivas para a efetivao e preservao dos novos direitos de cidadania inscritos na ideia de seguridade e na prtica da universalizao (IPEA, 2007, p. 8). Portanto, cabe a cada ente federativo consolidar um novo formato de relao com as necessidades de proteo social da populao e, nela, das famlias. O modelo de proteo social no contributiva no o continusmo de velhas prticas assistencialistas ou de modos de gesto tecnocrtica. A CF/88, em seu artigo 204, explicita a clara opo pelo formato democrtico de gesto, o que detalhado pela Loas.1.1 significado do modelo de proteo social no contriButivo

Um modelo assim como se olha em um figurino, ou em uma foto, os recortes e as pences que demarcam o estilo de uma roupa, isto , os detalhes que compem o todo do figurino, aqui se tentar criar um olhar, ou um modo de olhar, que permita atentar para detalhes do modelo de proteo social no contributivo concebido para o Brasil. bom lembrar que, entre o modelo da roupa em uma revista e sua transformao em vestimenta (para um dado corpo, com dado tecido e um dado domnio do corte e da costura), h uma clara diferena. A ideia de modelo a de um pr-desenho, uma referncia a ser reproduzida, uma representao do que se pretende executar. Trata-se da explicao do arranjo de um conjunto de elementos e de relaes que, juntos, criam um sistema de referncias que simula e prev aonde se quer chegar. um meio de dar coerncia e comunicar uma concepo, uma ideia a ser concretizada. Social no caso, esse modelo diz respeito s necessidades e objetivos sociais que se constituem nas relaes em sociedade. Ocupa-se, portanto, das condies objetivas de acesso aos modos de reproduo social (condies de vida) como componentes da dignidade humana, da justia social e dos direitos e da vigilncia social.20

Proteo social o sentido de proteo (protectione, do latim) supe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruio, sua alterao. A ideia de proteo contm um carter preservacionista no da precariedade, mas da vida , supe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista que exige tanto a noo de segurana social como a de direitos sociais. A Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS) de 2004 afirma que a proteo social deve afianar segurana de: sobrevivncia: de rendimento; de autonomia; acolhida; convvio: de vivncia familiar. A segurana uma exigncia antropolgica de todo indivduo, mas sua satisfao no pode ser resolvida exclusivamente no mbito individual. tambm uma necessidade da sociedade que se assegure em determinada medida a ordem social e se garanta uma ordem segura a todos seus membros. As polticas sociais representam um dos instrumentos especializados para cumprir essa funo (VILLA LOBOS, 2000, p. 58). Confunde-se, por vezes, o sentido de amparo com o de proteo, pois a CF/88 usa as duas expresses. Amparo (anteparare, do latim) tambm significa proteo, como escora, arrimo, auxlio ou ajuda para impedir a queda de algo. Supe abrigo, refgio, resguardo. A noo de amparo indica um estancamento da condio de deteriorao, e a noo de proteo indica por sua vez o impedimento de que ocorra a destruio. Diramos que a proteo mais vigilante, por isso mais preservacionista, proativa, desenvolvendo aes para que alguma destruio no venha a ocorrer, enquanto o amparo j ocorre a partir de um risco. A ideia de proteo social exige forte mudana na organizao das atenes, pois implica superar a concepo de que se atua nas situaes s depois de instaladas, isto , depois que ocorre uma desproteo. A aplicao ao termo desproteo destaca o usual sentido de aes emergenciais historicamente atribudo e operado no campo da assistncia social. A proteo exige que se desenvolvam aes preventivas. Por decorrncia, desse entendimento que a assistncia social, no modelo brasileiro de proteo social no contributiva, passa a ter trs funes, conforme explicita a PNAS-2004. Para alm da21

proteo social, ela deve manter a vigilncia social e a defesa de direitos socioassistenciais. Uma poltica de proteo social contm o conjunto de direitos civilizatrios de uma sociedade e/ou o elenco das manifestaes e das decises de solidariedade de uma sociedade para com todos os seus membros. uma poltica estabelecida para preservao, segurana e respeito dignidade de todos os cidados. No contributivo o sentido aplicado na proteo social como forma de distinguir a previdncia social do seguro social. Os benefcios previdencirios ou do seguro s so acessveis quando algum se filia previdncia e recolhe ou paga uma quantia mensal. Portanto, essa proteo contributiva porque pr-paga e s se destina aos filiados e no a toda a populao. No significa que a assistncia social, como outras polticas sociais, opere uma doao, entregue um bem a algum financiado pelo oramento pblico. A assistncia social nasceu como prtica estatal, sob a compreenso liberal, pela qual a cada um cabe suprir por seus meios suas prprias necessidades. Sob essa concepo, o dinheiro pblico s pode ser aplicado para atender a algum na condio de um socorro, isto , quando no tem mais condies pessoais e est em uma situao que a coloca em risco. A noo de seguridade social, ao se ocupar da proteo social, busca gerar garantias que a sociedade brasileira afiana a todos os seus cidados, isto , mais do que atitudes de socorro. Como atitude, s estaria tratando de uma reao de um governante de planto ou de um funcionrio pblico. Uma atitude pode ou no ser tomada como responsabilidade social ou construo de imagem pessoal. A CF/88 alcana o campo de polticas de Estado, isto , define que uma responsabilidade a ser afianada como direito e no como atitude pessoal. A caracterstica de no contributiva quer dizer que no exigido pagamento especfico para oferecer a ateno de um servio. O mesmo ocorre no atendimento em uma unidade bsica de sade ou em uma escola. O acesso custeado pelo financiamento pblico, cuja receita vem de taxas e impostos. Assim, os custos e o custeio so rateados entre todos os cidados. A proteo social no contributiva significa que o acesso aos servios e benefcios independe de pagamento antecipado ou no ato da ateno. H aqui uma polmica. Para alguns, o acesso a esses servios s poderia ocorrer quando a pessoa demonstrasse que ganha pouco e que no tem como22

comprar atenes na oferta privada. Para outros, a CF/88, ao estabelecer o direito seguridade, entendemos que determina no ser necessrio que um brasileiro primeiro mostre que no tem renda para depois ter acesso a um servio pblico. Esse modo de gesto do servio pblico seria vexatrio, por submeter que o cidado abdique da condio de ter direitos ou fora prpria e que se mostre como necessitado. O enquadramento como pobre, carente, necessitado a anttese do direito cidadania, ou do direito a ser includo no servio a partir de sua necessidade. O sentido de no contributivo relativo sociedade de mercado. Nesse tipo de sociedade, onde vivemos, concordando ou no com seus princpios (diferentemente da sociedade indgena, por exemplo), o acesso ao que precisamos feito por meio de compra e venda de mercadorias. No caso, uma sociedade regida pelo dinheiro e pela mercadoria. O sentido de no contributivo significa do ponto de vista econmico o acesso a algo fora das relaes de mercado, isto , desmercantilizado ou desmercadorizado. Para Esping-Andersen (1991), o carter do acesso desmercantilizado que caracteriza uma poltica pblica. No caso, no se est comprando uma ateno social pblica. Em alguns pases, como os escandinavos, um conjunto de servios so desmercantilizados para todos os cidados. No caso brasileiro, alguns entendem que a desmercantilizao uma concesso aos pobres e no um direito de todos. H ainda no Brasil servios e benefcios de assistncia social, isto , com e sem relao de renda dos dois tipos. Alguns ainda exigem teste de meios, isto , demonstrao de quanto ganha aquele que pretende ser atendido por um benefcio ou um servio de proteo social transformando os cidados em necessitados sociais, ou em no cidados. A concesso de benefcios ainda traz essa marca de seleo do acesso pela renda, em vez da necessidade ou da segurana a ser alcanada. No caso dos servios socioassistenciais, ocorre maior centralidade na necessidade expressa pelo(a) cidado(), sem exigir comprovao de renda, para acess-lo. Todavia, nem sempre esto comprometidos em garantir a qualidade de seus resultados. H aqui uma tenso ainda no resolvida, no modelo brasileiro, com gente puxando a corda dos dois lados. Alguns defendem que a proteo deve ser vinculada com a misria, propondo aes focalizadas nos necessitados, enquanto outros, que o vnculo da proteo deve ter atenes baseadas em direitos, com perspectiva universal em face uma dada necessidade.23

Na complexidade dessa discusso, encontram-se algumas srias questes. Primeiro, pela forte desigualdade social, isto , os ricos so poucos e muito ricos; os pobres so muitos e tm sua pobreza medida em graus que os qualificam como indigentes, miserveis, remediados etc. Propostas de ateno que operam pelo corte de renda, isto , pela condio financeira dos necessitados, esto baseadas na condio de poder ser ou no um consumidor e no na de um cidado com dada necessidade. No caso brasileiro, no se pode de imediato dizer que polticas por corte de renda sejam focalizadas. O contingente de brasileiros nelas includos atinge cerca de 50 milhes de pessoas. Esse nmero torna as polticas massivas e no focalizadas, e aplicar o conceito de focalizao para essa massa populacional, muito maior em quantidade do que a populao de muitos pases, no uma concepo adequada. No caso brasileiro, a quantidade produz uma nova qualidade, embora, sem dvida, tambm demonstre a precariedade e a desigualdade que atinge o povo brasileiro. Outra dimenso a ser considerada aqui diz respeito necessria vinculao entre benefcios e servios. O benefcio em espcie deveria ter o acesso necessariamente vinculado a um conjunto de servios. Nessa perspectiva, o modelo de gesto deve estar apto no s a cadastrar beneficirios, mas a vincular territorialmente os benefcios a um conjunto de servios que fortaleam as condies do cidado. uma operao que supe tanto o trabalho com pessoas como com as condies de qualidade de vida instaladas ou a serem instaladas. Talvez por fora de agentes financiadores internacionais, usa-se o termo focalizao, que aplicado desde o Consenso de Washington. De fato, a perspectiva em direcionar corretamente o programa para a demanda trouxe o desafio de construir-se vrias ferramentas de anlise da realidade, principalmente sobre a excluso social. O fato de se aproximar os servios da demanda deve ser referenciado a um processo de incluso, de ampliao de acessos, e no de apartao, segregao, que o sentido de focalizao, ao se contrapor universalizao, traz.1.2 o oBjeto da proteo de assistncia social

Afinal, o que se quer proteger no mbito da assistncia social? Antes de qualquer coisa, a assistncia social se alinha como poltica de defesa de direitos humanos. Defender a vida, independentemente de quaisquer24

caractersticas do sujeito, como o caso da sade, tambm um preceito que a orienta. No contraponto da desproteo, est em questo evitar as formas de agresso vida. Em distino sade, a vida aqui no est adstrita ao sentido biolgico, mas sim ao sentido social e tico. Portanto, a assistncia social se coloca no campo da defesa da vida relacional. As principais agresses vida relacional esto nos campos: Do isolamento, em suas expresses de ruptura de vnculos, desfiliao, solido, apartao, excluso, abandono. Todas essas expresses reduzem em qualquer momento do ciclo de vida as possibilidades do sujeito, e sua presena agrava a sobrevivncia e a existncia nos momentos em que ocorrem maiores fragilidades no ciclo de vida: a infncia, a adolescncia e a velhice. Em contraponto ao isolamento, a centralidade a convivncia em todas suas expresses de pertencimento desde o ncleo familiar e a construo da reciprocidade de afetos, cuidados, valores, cultura at os espaos socializantes e socializadores. Nesse caso, as desprotees esto nas rupturas, nas expresses de violncia, na ausncia de cuidados, na desagregao. O mbito de convivncia, ao se expandir para esferas mais amplas, supe a construo da autonomia, da liberdade, da representao, da cidadania. Da resistncia subordinao, em suas expresses de coero, medo, violncia, ausncia de liberdade, ausncia de autonomia, restries dignidade. Em contraponto busca de emancipao como direito humano liberdade, felicidade, emancipao, e ao exerccio democrtico de opinies. Da resistncia excluso social, em todas as suas expresses de apartao, discriminao, estigma, todos distintos modos ofensivos dignidade humana, aos princpios da igualdade e da equidade. Em contraponto excluso, est a construo do alcance da incluso social como possibilidades de acesso, pertencimento, igualdade, equidade nas relaes. A dinmica da construo do tecido social, seu esgaramento e coeso esto inseridos nesses campos de ao da assistncia social. E do ponto de vista dos direitos, cabe assistncia social prover a rede de atenes para que a dignidade humana seja assegurada e respeitada. Pessoas no vivem sem abri25

go, sem teto, sem acolhida. Crianas no podem ter que prover sua prpria manuteno trabalhando, em vez de desenvolver-se. Idosos no devem ser descartados como inteis e desvalidos. No caso, se est considerando uma tica nas relaes sociais. Analistas crticos da sociedade capitalista levantaram sobre essas consideraes dois tipos de questo. A primeira que a sociedade do capital, por ser espoliativa da fora de trabalho, reproduz de forma reiterada a precarizao do humano. A segunda, que a matria que est no campo da assistncia expressa a questo social, portanto s ter resolutividade se superada a questo estruturante que subordina o trabalho ao capital. Seguramente, do ponto de vista estrutural, a anlise crtica da sociedade do capital est plenamente correta. Alguns crticos diro que, como consequncia, as aes no campo da assistncia social so compensatrias e no resolutivas. Nessa perspectiva, h que se trazer outros elementos. O carter estrutural da sociedade do capital, de fato, demarca campos, mas no impede a luta e o desejo por aquisies no mbito da educao, cultura, civilidade, qualidade de vida, desenvolvimento humano, autonomia, equidade, avano cientfico e do campo civilizatrio. A noo de compensatrio poder advir no da presena da assistncia social, mas das alternativas adotadas por seu modelo. Quanto mais voltada para o mercado, para o ajuste laboral, e quanto mais precrias e focalizadas suas respostas tanto mais compensatrias, porque funcionais ao ajuste do mercado. No caso, o horizonte no a dignidade humana, mas o ajuste do homem ao mercado e s suas regras. Quanto mais a assistncia social for transversal a outras polticas, mais funcional e compensatrio ser seu modelo porque se ajusta s demais. Trata-se de uma diferenciao social e no em atender a todos independentemente da renda de cada um. A sade vai solicitar a prtese assistncia social enquanto no for plenamente responsvel pelas atenes de sade ao seu usurio. Ela no pode ser s indicativa de solues que seus usurios adquirem no mercado, o que significa que devem ter poder de compra ou ser consumidores. Outra relao que preciso particularizar a da assistncia social com a pobreza. Na perspectiva socorrista, aqui j comentada, a assistncia social tradicionalmente aceita como provedora de alguns bens materiais ou, em especial, para situaes-limite dos comprovadamente pobres. paradigmtica a26

esse conceito a realizao de uma campanha do agasalho. preocupante que a sociedade no perceba o quanto deprimente admitir que um brasileiro, no terceiro milnio, no tenha condies de possuir roupas para cobrir o corpo. Essas campanhas do agasalho so feitas com alarido, msica, polcia militar, vistosas caixas dispostas em bancos, shoppings, isto , no percurso da riqueza, para que os ricos demonstrem sua bondade para com a pobreza, enquanto os receptores da bondade dos que tm muito so os coitadinhos. No se trata da descrio de uma situao de catstrofe que passe a exigir a solidariedade de todos, mas de um perodo natural de inverno do ciclo climtico. E no faltam exemplos quanto ao uso da assistncia social como meio de exposio pblica da bondade de ricos e poderosos. O exemplo aqui utilizado para introduzir uma questo fundamental: a sociedade brasileira construiu ao longo dos sculos um modelo que aparta ricos e pobres. A naturalizao dessa desigualdade oculta a violncia nela contida, e a assistncia social, como poltica pblica, pode manter-se como mecanismo de reiterao dessa naturalizao ou de sua ruptura. Novamente, e recorrendo ao exemplo, vale lembrar que o primeiro direito de proteo alcanado pelo trabalhador foi o do acidente de trabalho, ainda no incio do sculo XX, quando a ocorrncia do acidente deixou de ser vista, entendida e respondida como uma falha individual e pessoal do trabalhador, para tornar-se uma responsabilidade do patro. Qualquer ocorrncia com o trabalhador durante a jornada passou a ser responsabilidade do patro. O homem ento ganhou finalmente a equivalncia s mquinas, por mais absurda que essa afirmao possa parecer tica. A constituio da assistncia social como poltica de proteo social afianadora de direitos tem por destino proporcionar travessia similar. A responsabilidade por uma criana que vive nas ruas da sociedade e no da criana, ou de exclusividade de seus pais. Entregar-lhe uma esmola reforar a proposta da campanha do agasalho. O trnsito do mbito individual para o social a raiz fundante da poltica pblica que exige seu distanciamento da mediao da benemerncia ou da caridade. Piovesan, especialista em direitos humanos, tem refletido sobre a pobreza como violao dos direitos humanos. Ela prope o direito incluso social como um direito humano inalienvel, constituindo a pobreza uma violao aos direitos humanos (PIOVESAN, 2003, p. 146). E acresce:27

[...] a efetiva proteo ao direito incluso social demanda no apenas polticas universalistas, mas especficas, endereadas a grupos socialmente vulnerveis, enquanto vtimas preferenciais da pobreza, isto , o direito incluso social requer a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, acrescidas do valor da diversidade (PIOVESAN, 2003, p. 147).

Em nenhum momento a jurista aplica a concepo de focalizao. A perspectiva do direito a ser impregnado no modelo de proteo social nos faz pensar em vitimizao, porquanto h uma violao do direito. Enquanto a educao e a sade, como polticas universais, partem do pressuposto de um objetivo a atingir a educao para todos; sade como completo bem estar de todos , em relao aos bens pblicos sociais no se tem ainda a mesma leitura da proteo social. O Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) claro em atribuir, como valor universal, a proteo integral a toda criana e adolescente como seres em desenvolvimento. preciso estender essa noo aos diferentes momentos do ciclo de vida e s contingncias que neles ocorrem. Sob essa perspectiva a proteo social no demandada pelo fato de serem essas crianas e adolescentes, pobres ou ricas, mas como valor de uma sociedade que se quer justa, solidria e voltada para o avano social em seu futuro. Alguns consideram que a proteo social no contributiva necessria porque as pessoas so pobres, e a pobreza que gera a desproteo. Seguramente, a pobreza agrava as vulnerabilidades, os riscos e as fragilidades, mas no significa que todas as vulnerabilidades, riscos e fragilidades existam por causa da pobreza. uma polmica que merece ser aclarada.1.3 o vnculo entre proteo social, riscos e vulneraBilidades sociais

A constituio da assistncia social como poltica que busca construir seguranas sociais, o que prprio do ambiente da seguridade social, traz um necessrio debate sobre as desprotees e suas causas, bem como a discusso sobre riscos e vulnerabilidades sociais. A proximidade desses dois conceitos tem gerado mltiplos debates e concepes entre os que militam e analisam a poltica de assistncia social.1.3.1 a questo de risco

A aproximao entre capitalismo e risco gentica. O princpio do empreendedorismo do capital supe correr risco. Ser bem-sucedido significa correr menos riscos, antever estrategicamente riscos e reduzi-los. Essa relao28

gentica to forte que at os pases possuem medida de risco para os investimentos econmico-financeiros. frequente ouvir comentrios sobre a subida ou descida do risco Brasil. Um segundo conceito de risco repousa nas questes ambientais e na capacidade de decodificar a natureza no sentido de reduzir os danos vida humana provocados por tufes, maremotos, terremotos, enchentes etc. Um terceiro diz respeito segurana no ambiente de trabalho, de forma a prevenir acidentes e agresses. Um quarto refere-se segurana de instalaes, adequando-as, e o seu funcionamento, ao pblico que a frequenta e aos produtos que manipula. Aqui, trata-se da segurana urbana, que vai se aproximar da segurana pblica e das medidas de policiamento e de reduo do crime e da violncia. Podem-se ainda incluir s moes relacionadas ao risco do confronto entre pases, culturas, grupos tnicos e religiosos como confrontos massivos. Nesta ltima perspectiva nos aproximamos do campo dos riscos sociais como a natureza das questes com que se lida. Est-se tratando do convvio conflituoso de formas de pensar diversas bem como das ofensas, da presena de desigualdade, do desrespeito equidade e das violaes das integridades fsica e psquica. So os riscos que surgem das relaes e que levam, como j indicado, apartao, ao isolamento, ao abandono, excluso. Ainda podem ser includos os riscos relacionados violncia fsica e sexual nas formas de convvio. a noo de riscos tem um contedo substantivo, um adjetivo e outro temporal. O contedo substantivo diz explicitamente o que o risco. Essa noo imediatamente leva sua abordagem temporal: o antes, que se ocupa das causas do risco, e o depois, que se ocupa dos danos, sequelas, perdas que provoca. H, porm, uma questo adjetiva, que vai se tornar fundamental para o desenho da poltica e diz respeito graduao do risco. A vivncia do risco pode proporcionar sequelas mais ou menos intensas, por decorrncia da vulnerabilidade/resistncia dos que sofrem o risco, como tambm do grau de agresso vital do prprio risco. Portanto, trabalhar situaes de risco supe conhecer as incidncias, as causalidades, as dimenses dos danos para estimar a possibilidade de reparao e superao, o grau de agresso do risco, o grau de vulnerabilidade/resistncia ao risco. Proteo significa preveno, o que supe a reduo de fragilidade aos riscos, que podem ser permanentes ou temporrios, e que passam a fazer parte do exame da questo do enfrentamento de riscos sociais.29

Os riscos provocam padecimentos, perdas, como privaes e danos, como ofensas integridade e dignidade pessoal e familiar, por isso conhecer onde os riscos sociais se assentam seguramente matria primordial para aqueles que trabalham com proteo social. Nesse sentido at se podem aproximar dos ambientalistas, por protegerem a vida. Por certo anlises marxistas dessa questo confirmaro o carter predatrio do sistema capitalista, pautado na lgica da expropriao (do homem e da natureza) para proporcionar a acumulao de riqueza. Seus contestadores diro que essa anlise se refere ao capitalismo selvagem e que a responsabilidade social de empresas reduz esse efeito nocivo, o que poucas vezes ocorre. As manifestaes dos riscos vo ocorrer no cotidiano das pessoas, nos territrios onde vivem e podem sujeit-las a maior, ou menor, exposio ao risco social. Desse modo, diz-se que a segregao espacial, isto , a vida em territrios urbanos ou rurais com precrios acessos e infraestrutura representa fatores de risco e/ou agravadores das vulnerabilidades de famlias e de pessoas. Outro campo de risco est nos padres de coeso e convivncia familiar, comunitria e social. Os fenmenos de isolamento, desagregao, desfiliao, ausncia de pertencimento, discriminao, apartao, excluso so todos provocadores de sequelas e danos ou de privaes e fragilidades. As contingncias da natureza, como enchentes, desabamentos, tambm so vitimizadoras, tornando as populaes que vivem em reas ribeirinhas ou em regies sujeitas a deslizamentos bastante vulnerveis. H ainda que se considerar campos polmicos como altos fatores de risco que so o da etnia, do gnero, da religio, da orientao sexual. Do ponto de vista da etnia e, no caso brasileiro, dos indgenas, dos afrodescendentes, dos quilombolas e, ainda, dos pomeranos, so grupos populacionais que tm recebido destaque como mais sujeitos a riscos pessoal e social. A desigualdade socioeconmica tambm fator de forte risco geradora de vulnerabilidades sociais, onde se insere a populao infanto-juvenil e adulta que vive nas ruas constituindo um grupo que merece ateno especial, pois os riscos sociais tm relao direta com a vida e o modo de viver das pessoas, que so sobredeterminados por sua condio social. Autores como Viveret (2006) e Gadrey (2006) mostram os riscos contidos no desenvolvimento econmico e de como o indicador do Produto Interno Bruto (PIB) per capita esconde, em sua mdia, os riscos de degradao humana.30

Beck (2002), a partir do acidente de Chernobyl, considera que o risco se globalizou. Isso significa que a velocidade e a abrangncia da expropriao da natureza pelo capital bem como a flexibilidade de sua produo afetam a vida humana em qualquer parte do planeta. Com essa compreenso, ele considera a sociedade capitalista como de alta modernidade e difusora da cultura do risco como um exterminador do futuro: risco de poluio, risco de aquecimento, risco de contaminao, risco de falta de gua, risco de solo contaminado etc. Beck chega a considerar que o fato de o risco ser to abrangente, chega a destituir a sociedade de classes, tornando-a uma sociedade de risco. Embora guarde razo a anlise de Beck quanto expanso do risco, improvvel considerar a superao da sociedade de classes. Na verdade, ocorre um acmulo das velhas e das novas precarizaes e sujeies aos riscos sociais. Para Beck, a produo social da riqueza sistematicamente acompanhada da produo social de riscos produzidos tcnico-cientificamente. A globalizao como modelo econmico um fator de risco, principalmente para a populao dos pases que no pertencem ao grupo econmico de Davos, do G7 ou do G8. Pode-se afirmar, portanto, que a sociedade industrial tem um comportamento predatrio, cuja sequela, por exemplo, o risco do aquecimento global, fragilizador da vida humana e da natureza. Esping-Andersen (2000) considera que os riscos atuais so distintos daqueles que fundaram o welfare state na metade do sculo XX. Esse fato exige a reproposio do alcance e das caractersticas da proteo social. As alteraes no mercado de trabalho (desemprego, insegurana da oferta e manuteno no trabalho, dificuldade de ingresso do jovem etc.) e as alteraes na famlia (risco de pobreza na infncia, unies pouco estveis, famlias monoparentais), so fatores que aumentam o risco social no terceiro milnio. A institucionalizao dos cuidados antes familiares quer pela entrada da mulher mais incisivamente na fora de trabalho (na perspectiva emancipatria ou por necessidade de ampliar o ganho familiar), quer pela total ocupao de todos os membros da famlia para o sustento antes obtido por um de seus membros fez crescer as despesas com servios sociais. Para Esping-Andersen, amplia-se a desigualdade de condies entre vrios tipos de famlias e o acesso social, ao ser mais demandado, termina selecionando as famlias em ganhadoras e perdedoras (ESPING-ANDERSEN, 2000, p.191).31

Os dois pilares de bem estar o emprego e a famlia tornam-se eles mesmos fatores de risco. Como consequncia, as atenes sociais prestadas pelos servios de bem estar, antes considerados complementares, ou de baixa necessidade, ganham maior demanda. A trajetria vital, ou o ciclo de vida, era disciplinada no modelo inaugural do welfare state: escola at o grau fundamental completo, cerca de 45 a 50 anos de trabalho estvel, aposentadoria entre 65 e 70 anos. Em face da expectativa de vida, o trabalhador recebe os proventos da aposentadoria por cerca de sete anos, e a viva recebe a penso por mais quatro ou cinco anos. A ampliao dessa expectativa, de um lado, a instabilidade do trabalho, de outro, aliadas inexistncia de cuidados na famlia para a infncia e velhice, quebram por completo essa lgica. Era ela pensada a partir de uma mobilidade de classe que seria inclusiva, pelo crescimento do acesso educao. Com isso, no era tomada como determinante a relao entre origens de classe e oportunidade de vida. Na verdade, o que ocorreu foi um crescimento da desigualdade e no uma aproximao social, principalmente pela forte presena e centralidade do capital financeiro. Para Andersen, a velha esperana pluralista consistente com uma classe mdia satisfeita foi substituda pelo medo da polarizao e da apartao. Nesse contexto expropriatrio, a disponibilidade e o acesso a servios de assistncia social passam a ser centrais. Andersen chama a ateno para o necessrio apoio s famlias jovens, as mais bombardeadas por todos esses novos riscos sociais, o que as torna com grande chance de serem as perdedoras sistemticas no jogo desigual da sociedade de mercado. preciso destacar que, embora riscos e contingncias sociais afetem, ou possam afetar todos os cidados, as condies que caracterizam o padro de vulnerabilidade social para enfrent-los e super-los so diferenciadas entre esses cidados, por decorrncia da sua condio de vida e da ocorrncia da cidadania precria, que lhes retira condies de enfrentamento a tais riscos com seus prprios recursos. Assim as sequelas da vivncia desses riscos e as vulnerabilidades em enfrent-los e super-los podem ser mais ampliadas para uns do que para outros. Por isso preciso desenvolver conhecimentos, dados, metodologias de ao, enfim, um saber sobre riscos e vulnerabilidades sociais. Esse propsito, para32

ser atingido, precisa, antes de tudo, ter claros os riscos e as vulnerabilidades sociais que a proteo social no contributiva tem por responsabilidade cobrir e prevenir. A exemplo, seguindo a reflexo de Andersen, urge ter especial cuidado com as famlias jovens, com seu trabalho e com a possibilidade de acesso a servios sociais destinados aos cuidados com as crianas. Temos que considerar, aqui, as expresses de risco e vulnerabilidade social, a partir de seguranas sociais afetas proteo social no contributiva. Muitas inseguranas e riscos esto relacionados ao trabalho, habitao, educao, sade, ao transporte, entre tantas outras reas nas quais se setorizam as respostas s necessidades humanas. No so todas as necessidades humanas de proteo que esto para a resolutividade da assistncia social, como tambm no so as necessidades de proteo social dos pobres que aqui so consideradas como especficas da assistncia social. Elas so comuns a vrias polticas sociais e econmicas. preciso caracterizar os riscos sociais a serem enfrentados pela poltica de assistncia social conforme a natureza do ciclo de vida, a dignidade humana, e a equidade. Considerando a infncia um perodo de alta fragilidade e vulnerabilidade, quais as possveis ocorrncias entre maus-tratos, negligncia, violncia, abandono, por exemplo? Como a assistncia social responde a essas situaes? Qual o agravante dessas situaes a partir da capacidade protetiva da famlia fragilizada ou fortalecida? Aprofundar essas dimenses permite a oferta de servios apropriados para responder a tais situaes reduzindo danos e restaurando vidas.1.3.2 as vulnerabilidades sociais

A concepo de vulnerabilidade social adotada pela PNAS-2004 tem recebido interpretaes diferenciadas. A primeira delas pode trazer um estigma ao carimbar algum de vulnervel. Digamos que, do mesmo modo que se pode aplicar o conceito de pobre, carente, excludo como estigmas, tambm se pode aplicar os conceitos de vulnerabilidade e de vulnervel. Trata-se do uso de uma categoria como o designativo de algum e, por isso, esse algum abre mo de ser sujeito para ser sujeitado, perdendo a categoria de cidado. Nesse sentido, o designativo usado como forma de reduo social e, at mesmo, culpabilizao do indivduo por sua fragilidade. Para encontrar outra aplicao, preciso construir o sentido de vulnerabilidade social relacionada a um dado risco social. Nessa tica o sentido de ser33

vulnervel a uma dada ocorrncia, estar mais sujeitado por algumas vivncias e capacidades j instaladas. Do ponto de vista biolgico, a vulnerabilidade inclui a ideia de estar mais predisposto a que ocorra algo. E necessrio eliminar a vulnerabilidade substituindo-a por fora/resistncia bem como eliminar os fatores de risco. A ideia de vulnerabilidade social indica uma predisposio precarizao, vitimizao, agresso. Oliveira associa a ideia de vulnerabilidade social carncia de direitos, pois ainda que polticas sociais pblicas sejam uma das exigncias mais prementes para a atenuao de vrias vulnerabilidades, elas no esgotam o repertrio de aes que se situa muito mais no campo dos direitos (OLIVEIRA, 1994). Numa sociedade complexa a vulnerabilidade social no s econmica, ainda que os de menor renda sejam mais vulnerveis pelas dificuldades de acesso aos fatores e condies de enfrentamento a riscos e agresses sociais. De forma paradoxal ao entendimento que considera a aplicao da categoria vulnervel como estigmatizadora, outra vertente utiliza essa concepo como fortalecedora das capacidades. Parte do entendimento/valorizao do potencial ou das habilidades humanas, no sentido de que ningum vulnervel sob todas as dimenses, e desenvolver as capacidades seria um modo de confrontar as vulnerabilidades. Sob essa compreenso esto os que defendem a noo dos ativos sociais, isto , o capital humano (como uma operao financeira) tem ativos e passivos.A vulnerabilidade entendida como o desajuste entre ativos e a estrutura de oportunidades, provenientes da capacidade dos atores sociais de aproveitar oportunidades em outros mbitos socioeconmicos e melhorar sua situao, impedindo a deteriorao em trs principais campos: os recursos pessoais, os recursos de direitos e os recursos em relaes sociais (KATZMAN, 1999).

Alguns crticos consideram que essa proposta seria mais um avano capitalista em mercadorizar potencialidades. Esse processo denominado de difuso do empreendedorismo, no sentido de que o pobre deve ser estimulado a investir em uma de suas competncias. Outros compreendem que as agncias internacionais, ao considerarem as vulnerabilidades sociais, tm por perspectiva a valorizao do capital humano, mas como nova fonte de expropriao para o capital.34

Como se percebe por estas rpidas consideraes, um debate longo, provocado pela impotncia conceitual da expresso vulnerabilidade social. Insisto que ela deve ser tomada sempre relacionada a algo, no caso, a um agravamento na forma de ocorrncia de um risco social. Nesse sentido, a discusso sobre vulnerabilidade social abre campo para a preveno como monitoramento de agravantes. Quando se tem por centralidade, na poltica de assistncia social, a matricialidade sociofamiliar, a necessria anlise a da capacidade protetiva da famlia e dos fatores de risco que a reduzem. Nas discusses do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistncia Social (Nepsas) da PUC-SP sobre o tema, a mestranda Stela Ferreira responde pergunta haveria um devir nas concepes de risco e vulnerabilidade capaz de nos ajudar a responder ao desafio de produzir conhecimentos para desvelar os invisveis, os sem voz, sem teto, sem cidadania?. Ela responde com uma hiptese: a potncia e a proteo seriam o devir da vulnerabilidade e do risco respectivamente, por isso preciso analisar mais a fundo seus atributos e suas sinergias com outros conceitos. O exame da vulnerabilidade social diz respeito densidade e intensidade de condies que portam pessoas e famlias para reagir e enfrentar um risco, ou, mesmo, de sofrer menos danos em face de um risco. Seria at a vivncia de situaes de quase-risco. A vulnerabilidade, como o risco, tambm tem graduao, ao abranger os mais e os menos vulnerveis, isto , os mais e os menos sujeitos a um risco; ou a serem mais, ou menos, afetados quando a ele expostos. Portanto, podemse identificar dois planos: o das fragilidades e o da incapacidade em operar potencialidades. No caso, atuar com vulnerabilidades significa reduzir fragilidades e capacitar as potencialidades. Esse o sentido educativo da proteo social, que faz parte das aquisies sociais dos servios de proteo. O olhar da vulnerabilidade no pode ser s da precariedade, mas tambm o dimensionamento da capacidade ou, como tenho preferido, da resilincia, isto , da capacidade de resistncia a confrontos e conflitos. Para planejar a poltica de proteo social no contributiva, tem sido utilizado o exame territorial de vulnerabilidade pela conjugao de alguns dados de precarizao de famlias agregadas por domiclio. O primeiro exerccio nessa direo foi realizado pelo Centro de Estudos da Metrpole do Centro35

Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEM/Cebrap) contratado pela Secretaria de Assistncia Social da Cidade de So Paulo em 2003 (disponvel em: ). A precariedade da vida o primeiro fator que hierarquiza as famlias por setor censitrio (agregados de cerca de 200 famlias/domiclios), pela renda, escolaridade dos chefes de famlia, nmero de filhos, famlias chefiadas por mulheres. O segundo fator a vulnerabilidade pela idade dos chefes de famlia, pois famlias mais jovens estariam em perodo de procriao, com mais dependentes e maior dificuldade de insero no mercado de trabalho. A esse estudo, que mostra territorialmente, e na microescala de setor censitrio, as famlias de uma cidade, diferenciadas por graus de vulnerabilidade, podem e devem ser agregados e georreferenciados os acessos infraestrutura e aos servios, de modo a entender os agravamentos que as condies do territrio lhes trazem. Essa ferramenta tem possibilitado avanar na delimitao dos territrios de gesto da assistncia social. No caso, parte-se de uma medida dos Centros de Referncia de Assistncia Social (Cras), que um para cinco mil famlias ou cinco mil domiclios, ou cerca de 18 a 20 mil pessoas, ou ainda cerca de 20 setores censitrios. O trabalho com as vulnerabilidades reduz os danos provocados por riscos, isto , diminui o possvel efeito de deteriorao que poder causar uma futura vivncia de risco. A existncia e a gradualidade do risco e o trabalho preventivo sobre as vulnerabilidades levam hierarquizao das atenes de proteo social em nveis bsicos e especial e, ainda, em mdia e alta complexidades. So, portanto, a escala do agravamento e o grau do vnculo de pertencimento ao convvio familiar que vo definir se o trabalho com a famlia partir do seu domiclio ou se sero adotados espaos substitutos, permanentes ou temporrios, desse convvio, quando irremediavelmente precrio.1.3.3 das entidades no campo da assistncia social

Embora, pela Loas, caiba aos conselhos municipais a inscrio de uma organizao/entidade para atuar no campo da assistncia social, o dispositivo no impeditivo de sua instalao e funcionamento. Apenas um passo fundamental para que essa organizao obtenha reconhecimento na prpria poltica pblica de assistncia social.36

O campo das entidades de assistncia social tem interpretaes que refletem as diferentes concepes do mbito e das responsabilidades da poltica de assistncia social, aqui j abordada. Ainda se faz necessrio um esclarecedor pacto que afirme o que deve, no desenvolvimento da assistncia social, ser de prestao pblica exclusiva e o que pode ser realizado em parceria. Outra definio ainda pouco clara sobre a garantia de direitos ao cidado em aes realizadas em parceria. Por ltimo, a plena garantia da transparncia e da aplicao das regras pblicas pelas entidades que usam o dinheiro pblico sob convnios e acordos. Esse conjunto de destaques e polmicas interpretativas fundamental para a compreenso do modelo brasileiro de proteo social no contributiva e para balizar algumas dimenses que nela esto implcitas. 2. eixos do modelo Brasileiro de proteo social no contriButiva A discusso sobre proteo social relativamente nova na sociedade brasileira, desde que foi desagregada da legislao social do trabalho, embora ambas sejam direitos sociais explicitamente tratados nos arts. 6 e 7 da CF/88. A condio de proteo a desproteo no mbito do trabalho regulada pela legislao do trabalho, pela aplicao dos direitos trabalhistas, pela formalizao do contrato de trabalho e pelo seguro pblico, na forma da previdncia social. Trata-se, portanto, de campo bastante regulado, cuja dinmica (no campo privado ou no campo pblico) tem processualidade jurdica significativa, jurisprudncia de monta, alm de sujeitos coletivos representativos, na forma de centrais sindicais e de sindicatos, entre outras. O trabalho, o trabalhador, a relao de emprego supem um conjunto de dispositivos reguladores, mas todos eles s se concretizados a partir de uma dada relao formalizada. No caso, no se aplica a todos os brasileiros, mas a uma parte deles. A proteo social no contributiva nasce do princpio de preservao da vida e, sobretudo, a partir do terceiro fundamento da repblica brasileira: a dignidade de pessoa humana (CF/88, art. 1, inciso III). Entre os direitos sociais, esto a segurana, a proteo maternidade e infncia, e a assistncia aos desamparados (CF/88, art. 6). No artigo 203, relativo assistncia social, a CF/88 estende essa proteo:37

famlia: maternidade; ao ciclo de vida (infncia, adolescncia e velhice) e, neste ltimo caso, com o acesso ao benefcio de um salrio mnimo; s pessoas com deficincia (promoo, habitao, reabilitao, acesso a benefcio de um salrio mnimo). Esse mesmo artigo da CF particulariza o amparo a crianas e adolescentes carentes, o que acentua a perspectiva da proteo integral criana e ao adolescente regulada pelo ECA. Mas, ao redigir o adjetivo carente junto com a condio de criana e adolescente, em uma sociedade de mercado, a CF/88 passa a referir os nveis de fragilidade a um contedo econmico-financeiro, fato que repe a confuso, j abordada, entre garantia a um direito ou capacidade financeira prpria para atender a uma necessidade. Em seu Captulo VII Da Ordem Social e no artigo 227, a CF/88 aplica o princpio da subsidiariedade no trato da criana e do adolescente. Primeiro, cabe famlia, depois sociedade, e, por fim, ao Estado, assegurar-lhes um conjunto de direitos. No caso, no deixa de ser um respeito ao direito da privacidade entre pais e filhos.art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso. art. 229. Os pais tm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carncia e enfermidade.

A CF/88, do mesmo modo, usa o princpio da subsidiariedade ao considerar o dever de amparar pessoas idosas cuja ateno deve ser executada preferencialmente em seus lares (art. 230, 1). Aqui, no parece haver uma razo para usar a subsidiariedade. O Estatuto do Idoso clareia essa questo.art. 230. A famlia, a sociedade e o Estado tm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participao na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito vida.

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1 Os programas de amparo aos idosos sero executados preferencialmente em seus lares.

interessante constatar que o princpio de subsidiariedade aplicado na proteo ao ciclo de vida no ocorre no caso da pessoa com deficincia, pois o inciso II do art. 23 torna especfica a responsabilidade das trs instncias de poder de Estado, no Brasil, para com os deficientes.art. 23. competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios: Inciso II Cuidar da sade e assistncia pblica, da proteo e garantia das pessoas portadoras de deficincia.

Vale destaque ainda o inciso X, do mesmo artigo, que estabelece como dever do Estado: combater as causas da pobreza e os fatores de marginalizao, promovendo a integrao social dos setores desfavorecidos. Esse breve percurso pela Lei Maior do pas mostra que o modelo brasileiro tem por particularidade configurar o campo da seguridade social como aquele destinado a assegurar os direitos relativos sade, previdncia e assistncia social. Todavia a CF/88 limita-se a apontar como elemento integrador dessas trs reas/campos de direitos um conjunto de objetivos. Especifica o modelo de gesto da sade e suas competncias sem demonstrar quais direitos atende; detalha o contedo da previdncia social a partir de direitos previdencirios. No caso da assistncia social, limita-se a citar o campo de trabalho e das diretrizes organizativas, e no especifica nem o sistema como na sade, nem os direitos como na previdncia. Portanto, a regulao da assistncia social deve ocorrer em legislao prpria, ps-CF/88. No h tambm qualquer indicao sobre o modo de relao das trs reas, sob o mbito da seguridade, para alm dos objetivos estabelecidos no pargrafo nico do artigo 194:Pargrafo nico. Compete ao Poder Pblico, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I universalidade da cobertura e do atendimento; II uniformidade e equivalncia dos benefcios e servios s populaes urbanas e rurais; III seletividade e distributividade na prestao dos benefcios e servios; IV irredutibilidade do valor dos benefcios;

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V equidade na forma de participao no custeio; VI diversidade da base de financiamento; VII carter democrtico e descentralizado da gesto administrativa, com a participao da comunidade, em especial de trabalhadores, empresrios e aposentados.

Pelo que aqui se resgata da CF/88, percebe-se que o grau de consistncia das diferentes polticas protetivas diferenciado no detalhamento como parte do texto constitucional. Essa heterogeneidade reflete mais a ausncia de maturidade de contedos poca, do que um quadro de importncias primrias e secundrias entre elas. Percebe-se, tambm, a dupla presena do princpio da subsidiariedade (que atribui primeiro famlia, depois sociedade e, por ltimo, ao Estado, a responsabilidade) como do princpio republicano. A CF/88, e conforme a matria, utiliza ora uma ora outra concepo. Essa dualidade dificulta o entendimento da seguridade como dever de Estado. Faz-se referncia aqui, por exemplo, ao contedo do art. 230, relativo ao amparo s pessoas idosas. A igual distribuio de responsabilidade entre famlia, sociedade e Estado termina por reduzir o dever do Estado para com a populao idosa sob fragilidade. Esse duplo movimento que, alis, marca nossa sociedade, tem como forma de ataque estratgico a efetivao da vigilncia social. preciso saber onde esto e quantos so os demandatrios de proteo e, de outro lado, qual a capacidade da rede instalada em suprir suas necessidades. Essa viso de totalidade fundamental para definir responsabilidades dos entes federativos no modelo de proteo social. A Loas de 1993 arbitra at certo ponto essa dualidade, mas esse arbtrio foi mais direcionado a criar um processo de gesto participativo do que propriamente resolver o pleno entendimento do alcance da assistncia social como poltica pblica. Criar conselhos, conferncias, gesto paritria, sem dvida produziu, ao longo dos 20 anos, muitos avanos. Todavia, no se pode dizer que eventuais avanos sejam consenso e estejam consolidados como gesto. A Fotografia da Gesto de Assistncia Social nos municpios e estados, preparada pela V Conferncia de 2005, d a explcita medida da distncia que existe. A PNAS-2004 concretiza o esforo de sistematizar o contedo da assistncia social como poltica de proteo social. No se pode dizer que essa poltica contenha todas as respostas s questes apresentadas ao longo desta reflexo,40

mas, com certeza, seu contedo estabelece o fio condutor de uma poltica de proteo que se quer pblica e de direitos. A primeira aquisio a de hierarquizar a proteo social em bsica e especial. Essa organicidade contm a possibilidade estratgica de combinar as velhas iniciativas que atuavam aps a ocorrncia de riscos, agresses, distines com um novo campo que se prope preventivo de ocorrncias e/ou de seu agravamento. A PNAS-2004 concebida como responsvel por trs funes. Vigilncia social capacidade de detectar, monitorar as ocorrncias de vulnerabilidade e fragilidade que possam causar a desproteo, alm da ocorrncia de riscos e vitimizaes. Esta uma rea nova que exige atualizados conhecimentos, capacidades e ferramentas de trabalho. Defesa de direitos trata-se de uma preocupao com os procedimentos dos servios no alcance de direitos socioassistenciais e na criao de espaos de defesa para alm dos conselhos de gesto da poltica. Proteo social inclui a rede hierarquizada de servios e benefcios. Trata-se aqui de duas formas complementares de ateno: Benefcios transferncia em espcie fora da relao de trabalho ou da legislao social do trabalho para atender a determinadas situaes de vulnerabilidade, operando como substitutivo ou complementarmente remunerao vinda da ocupao/renda da famlia. O acesso aos benefcios no Brasil submetido a teste de meios (renda da famlia). Alguns pases superam essa conduta e consideram o benefcio como de direito em determinadas situaes de vulnerabilidade ou fragilidade sem passar por um processo seletivo. Servios conjunto de atividades prestadas em um determinado local de trabalho que se destinam a prover determinadas atenes, desenvolver procedimentos com e para pessoas, afianar aquisies. Os servios produzem bens e se caracterizam em modalidades, a partir desses bens, que atendem a determinadas necessidades com esse objetivo. Agregam competncias tcnicas e especialidades profissionais para o desenvolvimento desses bens. No caso da proteo social, seus servios devem afianar: acesso a bens materiais, fora da relao de mercado, quando necessrios reduo das sequelas do risco ou desproteo vivida;41

aquisies sociais que resultam do desenvolvimento de capacidades e conhecimentos de si e das relaes que vivencia por meio de metodologias de trabalho social e trabalho socioeducativo. O paradigma de proteo social (bsica e especial) estabelecido pela PNAS2004 rompe com a noo dos cidados como massa abstrata e os reconstri a partir da realidade de sua vida. Opera a partir de potencialidades, talentos, desejos, capacidades de cada um, dos grupos e segmentos sociais. A proteo social da assistncia social age sob trs situaes: proteo s fragilidades/vulnerabilidades prprias ao ciclo de vida; proteo s fragilidades da convivncia familiar; proteo dignidade humana e combate s suas violaes. O primeiro eixo protetivo da assistncia social contempla o ciclo de vida do cidado, isto , a oferta de apoio s fragilidades dos diversos momentos da vida humana, como tambm de apoio aos impactos dos eventos humanos que provocam rupturas e vulnerabilidades sociais. Esse eixo protetivo coloca a assistncia social em dilogo com os direitos de crianas, adolescentes, jovens e idosos. Opera sob as matrizes dos direitos ao desenvolvimento humano e experincia humana. O segundo eixo protetivo da assistncia social decorre do direito dignidade humana expresso pela conquista da equidade, isto , o respeito heterogeneidade e diferena, sem discriminao e apartaes. A ruptura com as discriminaes contra as mulheres, os ndios, os afrodescendentes, entre outros, so centrais na dinmica dessa poltica. Inclui, ainda, a proteo especial contra as formas predatrias da dignidade e cidadania, em qualquer momento da vida, as quais causam privao, violncia, vitimizao e, at mesmo, o extermnio. As pessoas em desvantagem pessoal, em abandono, ou com deficincia, so as possveis vtimas dessa predao, assim como as crianas, os jovens vtimas da violncia sexual, da drogadio, de ameaas de morte. O terceiro eixo protetivo est no enfrentamento s fragilidades na convivncia familiar como ncleo afetivo e de proteo bsica de todo cidado. Aqui, a ampliao das condies de equilbrio e resilincia do arranjo familiar so fundamentais na reconstituio do tecido social e no reforo do ncleo afetivo de referncia de cada pessoa. O modelo de proteo social no contributiva assentado nos princpios de: universalidade significando que pode ser acessado por todos os cidados42

que dele necessitem, independentemente do territrio onde vivem, e sob a diretriz tica de ser portador do direito proteo social. Alar a universalidade para alm do respeito ao princpio tico significa ter capacidade concreta de proporcionar resposta institucional expressa por meio da instalao de infraestrutura de dispositivos de ateno e de qualidade tcnica de ao. matricialidade sociofamiliar parte da concepo de que a famlia o ncleo protetivo intergeracional, presente no cotidiano e que opera tanto o circuito de relaes afetivas como de acessos materiais e sociais. Fundamentase no direito proteo social das famlias, mas respeitando seu direito vida privada. O modelo de trabalho social com famlias exige o aclaramento prvio sobre qual o conceito de capacidade protetiva da famlia. Ou, ainda, se o trabalho social com famlias , em si mesmo, uma das aquisies do processo de proteo social ou um administrador de acessos sociais. O apoio s famlias de baixa renda pode ser associado a um programa com mulheres (ou com mes e seus filhos). Nesse caso, ocorre uma viso restrita da matricialidade familiar ao impossibilitar a leitura da totalidade da dinmica da famlia e de seus membros. Por vezes, usa-se no trabalho social com famlias uma agenda do tipo moralista, voltada para regular o comportamento de ncleos de baixa renda e no uma agenda poltica de construo de direitos proteo social. Ainda no esto plenamente equacionados na concepo do Sistema nico de Assistncia Social (Suas) e no interior das protees bsica e especial o significado e as implicaes concretas da matricialidade sociofamiliar. Ainda predominam segmentos desvinculados de suas relaes familiares. Trata-se de um desafio a ser superado. Por vezes, a seleo de famlias para o acesso a benefcios leva a uma reduo no seu trato, por parte do agente institucional, que passa a enxerg-la sob a noo de renda familiar per capita, isto , como unidade econmica, esquecendo ou tornando secundrio o seu exame como unidade de vnculos sociais. No caso, preciso desenvolver a concepo de capacidade protetiva de famlia, campo que ainda carece de estudos e proposies. O conceito de famlia em vulnerabilidade social precisa ser desconstrudo em seus componentes para que o objetivo famlia sem/com baixa vulnerabilidade possa ser construdo e, com ele, criadas as metodologias e estratgias que levem sua concretizao, considerado-se que a dimenso socioeduca43

tiva dos servios de proteo social est articulada por ciclo de vida, e no pela vulnerabilidade familiar, alm de vinculados ideia de vulnerabilidade pessoal. A articulao da matricialidade sociofamiliar com a lgica das fragilidades individuais no est ainda construda como estratgia, nos servios socioeducativos de proteo social bsica, nem na especial. Esta supe servios de alta complexidade por causa da ausncia de famlia, fato que no pode ser estabelecido como verdadeiro, constituindo-se em mais um dos desafios a ser enfrentado dentre as prticas no campo da assistncia social que antecediam a PNAS-2004 e o modelo de proteo social nela contido. descentralizao compartilhada supera o conceito de municipalizao como prefeiturizao, isto , como o processo de empurrar competncias federais e estaduais para os municpios restringindo as responsabilidades federal e estaduais. Trata-se do chamado federalismo cooperativo, cuja concepo se opera pelo processo de regionalizao. E para que isso ocorra, exige-se que os estados desenvolvam a concepo de regies intraestaduais, e os municpios de regies intraurbanas. Est em curso o processo de nacionalizao do modelo brasileiro de assistncia social. Trata-se de longo percurso de pactuao dos agentes federativos para tornar nacional a poltica de assistncia social. A concretizao desse processo se d pela habilitao do ente gestor. A operao do sistema de federalismo cooperativo realizada pela adeso individual de cada municpio, que passa a ter um grau de habilitao no Suas a partir da infraestrutura implantada. Os municpios que no possuem conselho, plano e fundo, no esto habilitados a pertencer ao Suas (2,8% deles, ou 158, estavam nessa situao, em dezembro de 2006). A vinculao ao Suas se d em trs nveis: inicial em torno de 20% dos municpios; bsico em torno de 70% dos municpios; pleno em torno de 7% dos municpios (SUAS, 2007). preciso lembrar, ainda, que se aplica entre os municpios a relativizao das exigncias, de acordo com o porte do municpio, conforme seu contingente populacional:44

pequeno I (at 20 mil/habitantes) 3.994 (72%); pequeno II (de 20 at 50 mil/habitantes) 1.008 (18%); mdio (de 50 a 100 mil/habitantes) 309 (5,5%); grande (de 100 a 900 mil/habitantes) 237 (4%); metrpole (+ de 900 mil/habitantes) 16 (0,5%) (PNAS-2004). territorializao uma dimenso da poltica que supe o reconhecimento da heterogeneidade dos espaos em que a populao se assenta e vive bem como o respeito cultural aos seus valores, referncias e hbitos. Tem como perspectiva a insero do cidado e a manuteno da expresso de indivduo. Tem tambm por entendimento a identificao das efetivas condies de vida do territrio onde ele vive com sua famlia. Certamente, o nvel de qualidade de um territrio pode ser fator de proteo e/ou de desproteo. A territorializao tem por objetivo o conhecimento das possibilidades reais do cidado, do seu sofrimento, quando vive em territrio de precria condio de vida, mas sem uma focalizao. O georreferenciamento de beneficirios em um territrio permite a aproximao por meio da formao de grupos, e a territorializao permite ainda localizar os servios de assistncia social em face da presena/concentrao da demanda. A PNAS-2004 prope que cada um dos Cras referencie-se a 5 mil famlias. possvel, portanto, como j aqui foi registrado, caracterizar esses territrios com dados da Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) produzindo indicadores que faam avanar em qualidade as decises de totalidade, no mbito da poltica de assistncia social, em cada cidade brasileira. intersetorialidade outro princpio organizativo da poltica de assistncia social que requer parmetros. Sob a concepo de ser uma poltica processual ou transversal s demais, entendida por alguns como uma rea sem resolutividade prpria, um territrio de passagem, a porta de entrada para outras polticas. A intersetorialidade to substantiva para a assistncia social como o para as demais polticas, ao se considerar que nenhuma delas guarda resolutividade plena em si mesma. Deve ser, ento, construda, uma relao de complementaridade entre as polticas. O modelo de intersetorialidade de respostas indicado como o de melhor efetividade para qualquer poltica social, entretanto no se trata nem de nega45

o da intersetorialidade, tampouco de produto acabado, e se formos consider-la como onipotente dentro da assistncia tende a ser segregadora, sem perder de vista que cabe assistncia social resolver toda e qualquer necessidade dos pobres ou dos mais pobres. Sob esse aspecto a intersetorialidade , para alm de um princpio, um modelo de gesto que supe a convergncia da ao. Esse princpio reflete mais uma racionalidade interna da ao no caso da ao de governo do que um valor para a sociedade. E no pode ser confundido. No se pode transformar a intersetorialidade em modo de relao poltica do Estado com a sociedade. Essa confuso pode fragilizar a inteligncia tcnica do Estado que advm, sobretudo, da especializao, isto , da setorialidade referida ao interesse pblico. Mas deve-se ter em mente que a assistncia social compe o esforo intersetorial de construo do desenvolvimento social; do enfrentamento da pobreza, das desigualdades sociais e econmicas; da diversidade de possibilidades regionais. E do ponto de vista da seguridade social, deveria ocorrer contnua relao de intersetorialidade entre sade, assistncia social e previdncia social, mas isso ainda mais uma perspectiva do que um fato. O modelo brasileiro de proteo social no contributiva tem, em sntese, cinco caractersticas que demarcam