conceito de musicalidade e implicações para a educação musical

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA/ MÚSICA KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA CONCEITO DE MUSICALIDADE E IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL: UM OLHAR ATRAVÉS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL ENGENHEIRO COELHO 2014

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Monografia de conclusão de curso

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  • CENTRO UNIVERSITRIO ADVENTISTA DE SO PAULO

    CAMPUS ENGENHEIRO COELHO

    CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAO ARTSTICA/ MSICA

    KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA

    CONCEITO DE MUSICALIDADE E IMPLICAES PARA A EDUCAO MUSICAL:

    UM OLHAR ATRAVS DA PSICOLOGIA HISTRICO-CULTURAL

    ENGENHEIRO COELHO

    2014

  • KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA

    CONCEITO DE MUSICALIDADE E IMPLICAES PARA A EDUCAO MUSICAL:

    UM OLHAR ATRAVS DA PSICOLOGIA HISTRICO-CULTURAL

    Trabalho de concluso de curso apresentado ao curso de Licenciatura em Msica do Centro Universitrio Adventista de So Paulo, Campus Engenheiro Coelho Orientadora: Prof. Dr. Maria Flvia Silveira Barbosa

    ENGENHEIRO COELHO

    2014

  • Trabalho de Concluso de Curso do Centro Universitrio Adventista de So Paulo,

    Campus Engenheiro Coelho, do curso de Licenciatura em Msica apresentado e

    aprovado em 09 de Novembro de 2014.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Flvia Silveira Barbosa

    Prof. Dr. Jetro Meira de Oliveira

  • Em memria daquela que sempre me incentivou a buscar o conhecimento e a fazer diferena onde quer que eu estivesse: minha me Nair Cesrio Costa.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus que me deu capacidade e conduziu todos os processos

    para que este trabalho chegasse a sua concluso.

    minha orientadora Prof. Maria Flvia Silveira Barbosa pelo seu empenho em prol do

    meu crescimento acadmico neste e em outros trabalhos realizados.

    professora de piano Rita Ramenzoni pela minha formao musical, por ter acreditado

    na minha capacidade e por ter sempre me instigado a ir alm.

    Ao amigo e parceiro em diversos trabalhos Rafael Beling pelas nossas conversas, trocas

    de ideias, pelos seus pontos de vista e conselhos to importantes na conduo deste

    trabalho.

    Aos amigos Leonardo Moralles, Helena Mendona e Bruno Nascimento pelos momentos

    de alegria, afeto e cuidado: sem vocs eu no teria chegado at aqui.

    s queridas Liza, Gabriela, Amlia e Andria em quem sempre me inspirei como exemplo

    de comprometimento, dedicao e sucesso acadmico.

    Ao meu primo Thiago Hilrio e ao amigo Thiago Pereira pelo apoio, incentivo e

    patrocnio dedicados para que esta pesquisa fosse possvel.

    Elizabeth Turclio e Evany Fvero pelo apoio e cuidado incondicional.

  • Todo inventor, por genial que seja, sempre produto de sua poca e de seu ambiente.

    Lev. S. Vigotski

    As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os desenhos (...) e a dedicar-me de preferncia geografia, histria, matemtica, gramtica. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor. Fora desencorajado pelo insucesso de meu primeiro desenho.

    O Pequeno Prncipe Antoine de Saint-Exupry

  • RESUMO

    O presente trabalho pesquisou a predominncia do mito do talento inato nas falas e prticas de diversos grupos de pessoas, incluindo profissionais da msica, educadores e leigos. Esta viso, segundo este estudo, de carter inatista, pode gerar preconceitos e excluso dentro do mbito da educao musical. O referencial terico adotado foi a perspectiva histrico cultural de Lev Vigotski, que postula que o desenvolvimento humano acontece de forma social e histrica, contradizendo pressupostos biologizantes e mecanicistas. Este trabalho, portanto, busca esclarecer que a msica um bem da humanidade e, portanto, deve ser acessvel a todos. Palavras chave: Talento; Musicalidade; Vigotski; Histrico-cultural.

  • ABSTRACT

    This study investigated the prevalence of the innate talent myth in the speeches and practices of various groups of people, including music professionals, educators and lay people. This view, according to this study, the innate character, can generate prejudice and exclusion within the scope of music education. The theoretical framework adopted was the cultural historical perspective of Lev Vygotsky, which postulates that human development happens social and historical form, contradicting biologizing and mechanistic assumptions. This paper therefore seeks to clarify that the music is a good of humanity and therefore must be accessible to all. Keywords: Talent; musicality; Vygotsky; Historical-cultural.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................... 02

    2 METODOLOGIA ............................................................................................................. 06

    3 DESENVOLVIMENTO ..................................................................................................... 07

    3.1 Sobre msica, talento e musicalidade: uma viso da atualidade ................................... 07

    3.2 A teoria histrico-cultural de Lev S. Vigotski ................................................................. 10

    3.3 Msica como linguagem ............................................................................................. 14

    4 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 16

    5 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................................... 18

  • 1 INTRODUO

    Muitas pessoas, envolvidas ou no com a msica, e at mesmo artigos de jornais e

    revistas que se dedicam a falar do assunto, na maioria das vezes, tratam os msicos como

    seres dotados de um talento especial. No cotidiano, comum expresses do tipo meu filho

    nasceu para a msica, puxou ao pai, admiro quem consegue tocar um instrumento ou

    cantar; queria muito ter esse dom, eu no tenho o menor talento pela msica, no adianta

    nem tentar ou para fazer isso s se nascer com um talento especial. Ou seja, a todo o

    momento estamos rodeados de pessoas que tm como concepo de msico uma pessoa

    especialmente dotada e veem a msica como algo disponvel para poucos. Tal conceito

    apresenta-se to arraigado no vocabulrio das pessoas que praticamente tomada como

    consenso.

    A polmica que envolve a questo da origem e natureza da musicalidade no

    recente. Vrios autores j se propuseram discutir esse tema sem, no entanto, chegarem a

    concluses satisfatrias. Em sua pesquisa, por exemplo, Ricieri Zorzal (2012, p. 201) elenca

    vrios autores que se propuseram a discutir o tema e afirma que Gagne e Baker defendem

    veementemente a existncia do talento inato (GAGNE, 1999; 2003; 2007; BAKER, 2007),

    [enquanto] outros alegam a inexistncia de bases cientficas para comprov-lo (ERICSSON et

    al, 1993; SLOBODA, 1985; SLOBODA; HOWE, 1991) .

    Em meados do sculo XX, Theodor W. Adorno (1903-1969), filsofo e msico alemo

    da escola de Frankfurt, em sua Introduo Sociologia da Msica, faz uma crtica viso de

    talento como um dom musical. Segundo o autor,

    Caso algum questionasse o privilgio do dom musical, isso era visto como blasfematrio tanto pelos indivduos musicais, que com isso se sentiam degradados, quanto pelos no musicais, que j no podiam se convencer, diante da ideologia cultural, de que a natureza havia privado-lhes de algo (ADORNO, 2011, p. 272-273).

    Contudo, a supracitada premissa encontra-se notoriamente presente, o que nos leva

    a crer que ainda no fui superada. E ainda que algumas pesquisas nesse campo (cf. PEDERIVA,

    2009; SCHROEDER, 2005; BARBOSA, 2009) busquem desenvolver modos eficientes para o

    ensino-aprendizagem musical, desmistificando tais premissas, o mito do dom inato ainda

    permanece, atuando como uma justificativa cabal tanto para aqueles que conseguiram

  • alcanar um certo grau de desenvolvimento musical, quanto para a frustrao daqueles que

    no se dedicaram o suficiente enquanto estiveram em contato com a msica em algum

    momento de sua vida. Portanto, mostra-se relevante, para a educao musical, um

    esclarecimento acerca desse tema.

    Penna (2012, p. 29), nesse sentido, elucida que ser musical ou ser sensvel a msica

    no uma questo mstica ou de empatia, no se refere a uma sensibilidade dada, nem a

    razes de vontade individual ou de dom inato. Trata-se, na verdade de uma sensibilidade

    adquirida, e consequentemente, acessvel a todos. Logo, se o educador cr que a

    musicalidade ou a sensibilidade musical algo nascituro, ento tornar intil o prprio

    trabalho (PENNA, 2012, p. 28).

    Pederiva (2009, p. 13) acrescenta que a crena no mito do dom musical, no dom de

    poucos para poucos, implica, dessa forma, um distanciamento entre seres humanos e a

    msica. Gera descrena nas possibilidades humanas e, assim, a excluso. Dentro dessa

    perspectiva, segundo a autora, somente corpos biotipicamente conformados, pr-dispostos,

    seriam os ideais para o adestramento musical (PEDERIVA, 2009, p. 69). Essa viso, no

    entanto, induz a uma educao excludente, que condena ao fracasso aqueles que no se

    adaptam ao padro de aprendizagem estabelecido pela escola de msica formal, gerando,

    assim, preconceitos. Infelizmente, a excluso na escola um acontecimento; ainda que

    discursivamente negado, veladamente praticado entre os professores (PEDERIVA, 2009, p.

    14).

    A fim de superar tais preconceitos, encontramos na teoria do desenvolvimento

    humano do psiclogo sovitico L. S. Vigotski1 (1896-1934) e seu grupo2 o aporte terico que

    pode trazer uma soluo essa problemtica da educao musical. A referida teoria,

    conhecida como Psicologia Histrico-Cultural, parte da filosofia do materialismo histrico

    dialtico, e entende que est na vida social o esteio da edificao dos atributos que, de fato,

    qualificam o homem como ser humano (MARTINS, 2013, p. 53). As funes psquicas

    humanas, aquelas que diferenciam o homem dos outros animais, no so algo concebido a

    1 Em decorrncia de o idioma russo possuir um alfabeto distinto do nosso, tm sido utilizadas diversas formas de escrever o nome desse autor com o alfabeto ocidental. Adotaremos aqui a grafia Vigotski, mas preservaremos nas referncias bibliogrficas a grafia utilizada em cada edio.

    2 Em especial: Alexander R. Luria (1902-1977) e Alexis N. Leontiev (1903-1979).

  • priori no indivduo, ou seja, algo com o qual o ser humano j nasce, sendo, portanto, produto

    de processos de apropriao no decurso da histria humana por meio da atividade que vincula

    o homem a natureza.

    Barbosa (2001, p. 8), nesse sentido, nos explica que

    O processo de tornar-se humano no resultado do amadurecimento de estruturas j presentes na psique humana ao nascer; ao contrrio, a condio de humanidade s pode ser adquirida como resultado da vida em sociedade e da apropriao das habilidades e saberes criados pelo homem ao longo de sua histria.

    Vigotski, Luria e Leontiev reconhecem o crebro como substrato material dos

    processos psquicos, porm, o funcionamento psicolgico se fundamenta nas relaes sociais

    entre o indivduo e o mundo exterior. O homem transforma sua prpria natureza biolgica em

    natureza scio-histrica, por meio da atividade mediada pelas relaes e pelas objetivaes

    humanas social e historicamente produzidas. Isso s acontece porque o homem, durante sua

    vida social, apropria-se da sua segunda natureza: a cultural; uma vez que cada pessoa no

    nasce pronta e acabada, mas com a possibilidade de vir a ser humana. As funes biolgicas

    no desaparecem com a emergncia das culturais, mas adquirem uma nova forma de

    existncia: elas so incorporadas na histria humana (PINO, 2000, p. 51 grifos do autor).

    Dentro dessa teoria, toda funo psicolgica ocorre primeiro como uma forma de

    colaborao entre os homens, como categoria coletiva interpsquica e, em seguida, como um

    meio de comportamento individual; como categoria intrapsquica (VIGOTSKII, 2012).

    Desse modo, o desenvolvimento do psiquismo humano identifica-se com a formao

    da imagem subjetiva da realidade objetiva (MARTINS, 2013, p. II). Em suma, entendemos

    que:

    todo o desenvolvimento das funes psquicas caractersticas do homem so resultado, so produto da histria (histria particular de cada indivduo e da histria conjunta da humanidade e suas conquistas); no um dado a priori, mas o resultado do trabalho ou das atividades que o indivduo desenvolve ao longo da vida, no de maneira solitria, mas em contato estreito com seus pares e com o conhecimento (os diversos sistemas sgnicos produzidos ao longo dos sculos) (BARBOSA, 2009, p. 42).

  • Por assumir a natureza histrica e cultural do desenvolvimento humano, a Psicologia

    Histrico-cultural permite compreender a musicalidade no como resultado de dados a priori.

    Podemos afirmar que o desenvolvimento da musicalidade pode ser entendido como algo

    apreendido socialmente atravs da vivncia, pelo contato dinmico entre o indivduo e a

    msica. Pois, ao considerarmos a msica parte da cultura, ou seja, como uma atividade

    essencialmente humana, fica difcil submeter o desenvolvimento da musicalidade a fatores

    biolgicos ou maturacionais (SCHROEDER, 2005).

    A viso de msica como algo inato excludente. Um professor, um pai ou at o aluno

    pensar que a msica uma capacidade para poucos vai contra a ideia de inserir a msica na

    escola regular, conforme dita a lei 11.769/08. Propomo-nos, portanto, com esse estudo: a)

    identificar e desmistificar conceitos equivocados acerca de como percebemos a msica; b)

    compreender a musicalidade, luz da psicologia histrico-cultural.

    Nosso objetivo apresentar elementos para a compreenso da forma como

    aprendemos e apreendemos a msica. Isso pode ser o caminho para uma educao musical

    mais igualitria.

  • 2 METODOLOGIA

    Para a elaborao deste trabalho de concluso de curso, na modalidade de anlise

    terica, foi feito, primeiramente, um levantamento bibliogrfico e fichamentos de artigos e

    livros que abordam o tema da musicalidade. Concomitantemente, procurou-se em

    depoimentos informais, revistas cientficas e no cientficas desvelar as concepes usuais

    sobre a musicalidade.

    O prximo passo foi elaborar o captulo de fundamentao terica, luz da psicologia

    histrico-cultural, cujo principal elaborador foi o psiclogo sovitico Lev Semionovich Vigotski,

    que defende que para compreender qualquer fenmeno humano complexo, temos que

    reconstruir suas formas mais primitivas e simples e acompanhar seu desenvolvimento at seu

    ponto atual em outras palavras, estudar a sua histria.

    Por fim, chamamos a contribuio de educadores musicais que assumem a perspectiva

    histrico-cultural do conhecimento para compreendermos as possibilidades desse referencial

    no que toca ao conceito de musicalidade e, consequentemente, educao musical.

  • 3 DESENVOLVIMENTO

    3.1 Sobre msica, talento e musicalidade: uma viso da atualidade

    Testes e estudos em psicologia da msica de base cognitivista ainda no

    compreenderam a natureza da musicalidade (HALLAM, 2006; ZORZAL, 2012; SLOBODA, 2008).

    Consequentemente, um consenso sobre os termos msica e musicalidade ainda no foi

    alcanado uma vez que cada autor segue seu prprio parmetro ao apresentar suas

    definies. Para alguns, a musicalidade vem sendo apresentada como sinnimo do ser

    musical, ou seja, aqueles que tem habilidade para msica, em oposio ao amusical, aqueles

    que no possuem habilidades musicais (PEDERIVA, 2009, p. 21 grifos do autor). De forma

    geral, a primeira coisa que se espera de um msico, vista como facilidades musicais,

    chamadas genericamente de talento, e que, na maioria das vezes manifestam-se

    precocemente (SCHROEDER, 2005, p. 43), levando a crer que esse talento seja uma condio

    sine qua non para o msico.

    Durante a apurao de dados para a pesquisa, notamos que o conceito do dom como

    o arcabouo da musicalidade, ou o talento musical como algo disponvel a poucos indivduos

    est arraigado nas falas de algumas pessoas, inclusive entre profissionais da rea musical.

    Apresentamos alguns exemplos:

    Em entrevista concedida a Revista Concerto, Elizabeth del Grande, percursionista da

    Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo (OSESP), declara que iniciou seus estudos entre

    os 9 e 10 anos de idade. Nas suas palavras: fazia tudo de ouvido, nunca ningum me ensinou

    a pegar na baqueta (FRSCA, 2013, p. 18 grifo nosso). Tal precocidade e autodidatismo da

    prtica musical sugere a ideia de que os bons msicos j trazem consigo um saber inato sobre

    a msica, restando apenas traz-los conscincia e organizar tais conhecimentos. Esse

    pensamento corrobora a epistemologia apriorista, isto , a que afirma o que posto antes

    como condio do que vem depois. No senso comum, representada frequentemente pelo

    uso de frases como filho de peixe, peixinho ou tal pai, tal filho numa tentativa de

    comprovar que as pessoas que nascem em famlias de msicos, herdam no sangue esse

    talento. Corrobora esse pensamento, Seashore (citado por ZORZAL, 2012, p. 202), ao afirmar

    que

  • O talento musical um dom concedido de maneira muito desigual aos indivduos. No somente o dom da msica em si inato, como inato em tipos especficos. Esses tipos podem ser detectados precocemente na vida, antes do incio de uma educao musical mais sria (SEASHORE, 1919, p. 6).

    Em outro exemplo, Marcelo Sussekind msico, engenheiro de som e produtor

    musical que fez parte das bandas A Bolha e Erva Doce e produziu os primeiros discos de

    Lobo, Paralamas do Sucesso, alm de Capital Inicial, Ira!, Engenheiros do Hawaii, 14 Bis, Lulu

    Santos, Daniela Mercury, entre outros em artigo escrito para o site territoriodamusica.com,

    evidencia um certo conflito de ideias no que se refere a qualidade de ser musical, ou, em suas

    palavras, ser msico. Segundo ele, ser msico bem diferente de escolher uma profisso

    qualquer. Os verdadeiros msicos que existem no mercado foram tomados por um vrus o

    vrus da msica. E isso no qualquer um que tem, no (SUSSEKIND, 2004 grifo nosso).

    Nesse exemplo, percebemos que, mesmo na tentativa de explicar a aptido musical

    ou, como Sussekind citou, a qualidade de ser msico como algo adquirido partindo de algo

    exterior no caso, o vrus musical, no qual o indivduo se apropria, interioriza, ou se

    contamina , existe ainda a premissa de que a musicalidade seja algo disponvel para alguns

    poucos.

    No livro O Fole Roncou! Uma histria do forr, o sanfoneiro Geraldo Correia declara

    que tem muita gente que quer tocar, t tocando porque acha bonito: mas boniteza que s

    ele acha. No tem msica dentro dele, a msica no gosta dele (MARCELO; RODRIGUES,

    2012, p. 459 grifo nosso). Esse trecho aponta outra viso muito comum que define a esttica

    (a boniteza, como disse o sanfoneiro) como fator determinante da musicalidade ou do

    talento. Ou seja, a pessoa s musical se aquilo que toca/canta condiz com o padro

    estabelecido pelo grupo social que detm aquela tcnica.

    Essas premissas so levantadas por Levitin (2010, p. 220). O autor afirma que a

    qualificao musical definida em termos de empreendimento tcnico o domnio de um

    instrumento ou dos mtodos de composio. O autor explica que Michel Howe em conjunto

    com seus colaboradores Jane Davidson e John Sloboda iniciaram uma discusso a respeito do

    conceito leigo de talento, levantando o debate da possibilidade de se defender esse tema

    do ponto de vista cientfico. Esses autores

    definem talento como algo que (1) tem origem em estruturas genticas; (2) pode ser identificado desde as primeiras manifestaes por pessoas

  • treinadas antes mesmo que sejam alcanados nveis excepcionais de desempenho; (3) pode ser usado para prever quem tem probabilidade de se destacar; e (4) pode ser encontrado apenas numa minoria, pois se todos fossem talentosos o conceito perderia o significado (LEVITIN, 2010, p. 221).

    Analisando materiais da educao musical, notamos a presena de concepes

    inatistas do desenvolvimento musical no discurso de alguns educadores musicais, servindo

    essa perspectiva inclusive de base para suas teorias educacionais.

    Violeta de Gainza, educadora musical argentina, acredita que as capacidades musicais

    j existem em estado latente no indivduo e se afloram quando estimuladas por fatores

    internos ou externos. Nas suas palavras,

    uma determinada porcentagem de crianas costuma demonstrar precocemente condies especiais para a compreenso, execuo e criao musicais. Essas condies aparecem em maior ou menor grau nos diversos tipos individuais, devido a um claro impulso interno ou por ao de estmulos externos que atuam como desencadeantes (GAINZA, 1972, p. 59.3 grifos nossos)4.

    Esse pensamento, do mesmo modo, coaduna com o de Edgar Willem, conhecido

    pedagogo belga, que expe que papel do educador levar em conta as possibilidades

    potenciais do aluno e, por conseguinte, a natureza dos primeiros elementos do dom musical:

    instinto rtmico, ouvido e compreenso musical em suas diferentes manifestaes (WILLEMS,

    1969, p. 197)5. Dentro de sua perspectiva, capacidades como o sentido de ritmo, de escala,

    dos acordes e at mesmo o senso de tonalidade so encaradas como qualidades congnitas

    ou hereditrias6 (Ibid., p. 23).

    Para Sloboda (2008, p. 257),

    3 Todas as tradues presentes nesse estudo so de nossa responsabilidade.

    4 No original: Un determinado porcentaje de nios, suele demonstrar desde temprano condiciones especiales

    para la comprensin, ejecucin o creacin musicales. Dichas condiciones afloran en mayor o menor grado en los

    diversos tipos individuales, por obra de un claro impulso interno o por accin de estmulos externos que actan

    como desencadenantes (GAINZA, 1972, p. 59).

    5 No original: debe, en efecto, tener en cuenta las posibilidades potenciales del alumno y por consiguiente la

    naturaleza de los primeros elementos del don musical: instinto rtmico, odo e inteligencia musicales en sus

    diferentes manifestaciones (Willems, 1969, p. 197).

    6No original: cualidades musicales congnitas o hereditarias (Ibid., p. 23).

  • A habilidade musical adquirida atravs da interao com um meio musical. Consiste na execuo de alguma ao cultural especfica em relao aos sons musicais. Entretanto, a habilidade musical construda sobre uma base de competncias e tendncias inatas. Todo desenvolvimento humano envolve alguma forma de construo a partir daquilo que j presente.

    Partindo de um referencial terico cognitivista, Sloboda tambm entende a

    habilidade musical como resultado da interao com o meio musical sob a base de

    caractersticas internas (competncias e tendncias inatas) (BELING; BARBOSA, 2014, p. 4).

    Howard (1984, p. 46), entretanto, chega a ser mais radical ao afirmar, em seu livro A

    Msica e a Criana, que no existe uma nica faculdade humana que no tenha existido pelo

    menos uma vez em algum dos membros da imensa srie de ascendentes sob forma perfeita.

    Segundo o autor, todas as faculdades humanas, em especial a msica, so transmitidas de

    forma hereditria bastando descobrir entre seus ascendentes um parente distante [...]

    excepcionalmente dotado para a msica, para que, num s golpe, sentissem surgir neles o

    mesmo dom (Ibid., p. 47).

    possvel afirmar que os dados acima apresentados, apesar de remotos, no foram

    superados, pois ainda latente a discusso sobre esse tema em trabalhos hodiernos

    (SCHROEDER, 2005; PEDERIVA, 2009; BELING; LIMA, 2013; ZORZAL, 2012; LEVITIN, 2010). Isso

    posto, pode-se afirmar que pesquisadores esto em busca de uma compreenso de maneiras

    mais eficientes para o processo de ensino-aprendizagem.

    3.2 A teoria histrico-cultural de Lev S. Vigotski

    Lev Semenovich Vigotski nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-Rssia e morreu

    prematuramente, aos 38 anos vtima de uma tuberculose. Proveniente de uma famlia judaica

    de grande desenvolvimento intelectual, Vigotski era um grande conhecedor da filosofia e da

    psicologia. Formou-se em Direito, Filologia e Medicina. Foi tradutor de obras importantes dos

    grandes psiclogos da poca: Sigmund Freud (1856-1939) e Kurt Koffka (1986-1941), e liderou

    em Moscou um grupo de estudos tambm chamado troika juntamente com Alexander R.

    Luria (1902-1977) e Alexis N. Leontiev (1903-1979).

    Juntos trabalharam, na dcada de vinte, em torno do desafio de edificar uma base

    comum psicologia. Empenharam-se na criao de um novo modelo de estudo dos processos

  • psicolgicos humanos que viesse a superar os enfoques idealistas ou materialistas

    mecanicistas7 vigentes. Vigotski, entretanto, busca superar esse dualismo entendendo que,

    embora o ser humano tenha caractersticas biolgicas (por exemplo, o crebro e suas sinapses

    fsico-qumicas), o que o torna humano no so suas caractersticas herdadas biologicamente,

    mas aquilo de que efetivamente ele vai se apropriando nas relaes com outros homens, no

    meio em que est inserido. Com isso, romperam com explicaes biologizantes e

    mecanicistas, sem deixar de reconhecer no crebro o substrato material dos processos

    psquicos, e, da mesma forma, com concepes abstratas idealistas, sem perder de vista a

    propriedade ideal dos referidos processos (MARTINS, 2013, p. 53).

    A situao da psicologia da poca era paradoxal, pois as estratgias utilizadas nas

    pesquisas a transformavam em uma cincia natural. Vigotski e seus colaboradores queriam

    mostrar que a multiplicidade terica entre os psiclogos da cincia natural e os psiclogos

    fenomenlogos havia criado teorias que impossibilitavam o estudo cientfico do psiquismo e

    suas funes complexas. Segundo Alves (2010, p. 9), Vigotsky critica os pesquisadores em

    psicologia que buscam compreender os fenmenos psicolgicos a partir do isolamento dos

    elementos mais simples desses fenmenos e da anlise desses elementos em si e por si

    mesmos. Vigotski questiona:

    o que que tem em comum todos os fatos que a psicologia estuda, o que que converte os fenmenos mais diversos em fatos psquicos desde a salivao dos cachorros at o prazer pela tragdia que tem em comum os devaneios de um louco e os rigorosssimos clculos de um matemtico? A psicologia tradicional responde: o que tem em comum que todos so fenmenos psquicos, que no se desenvolvem no espao e s so acessveis percepo do sujeito que os vive. A reflexologia responde: o que tem em comum que todos esses fenmenos so fatos do comportamento, processos correlativos de atividade, reflexos, atos de resposta do organismo. Os psicanalistas dizem: o que h de comum entre todos esses fatos, o mais primrio, o que os une e constitui sua base o inconsciente. Portanto, essas trs respostas estabelecem trs significados distintos da psicologia geral, a qual definem como cincia: 1) do psquico e suas propriedades; 2) do comportamento, ou, 3) do inconsciente (VYGOTSKI, 1997, p. 266 apud MARTINS, 2013, p. 18).

    7 A psicologia idealista defende que as caractersticas humanas vm do pensamento, das ideias, enquanto a

    psicologia mecanicista materialista tem suas teorias pautadas na viso fisiolgica do indivduo, sendo Ivan Pavlov

    (1849-1936) seu principal representante.

  • Em contraposio a esse contexto, o autor postula a necessidade da psicologia resolver

    a sua crise. Para tanto, defendeu a formulao de uma psicologia geral que teve como base o

    materialismo histrico e dialtico.

    A tarefa de conceber uma nova representao da psicologia no seria resolvida com a acumulao de dados organizados a partir das posies dominantes do saber psicolgico, mas sim, por meio de uma nova representao terica que atuaria como modelo para gerar novas zonas de sentido na produo do conhecimento psicolgico. Tal dimenso terico-metodolgica seria o materialismo histrico-dialtico, que na sua essncia se apresenta como um mtodo capaz de gerar ncleos de sentido a partir da noo de contradio (ALVES, 2010, p. 11).

    Utilizando-se do mtodo materialista histrico-dialtico, Vigotski se apropria dos

    conhecimentos produzidos pelos tericos e prope novos pressupostos na busca da

    superao das ideias apresentadas pelos pesquisadores da poca. Vigotski adota, assim, a

    dialtica para a construo do conhecimento cientfico em psicologia.

    Segundo Alves (2010, p. 5),

    o componente dialtico afirma que a realidade concreta no uma substncia esttica numa unidade indiferenciada, mas uma unidade que diferenciada e especificamente contraditria: o conflito de contrrios faz avanar a realidade num processo histrico de transformao progressiva e constante.

    Ou seja, a dialtica vem a ser a grande ideia fundamental segundo a qual o mundo no

    pode ser considerado como um conjunto complexo de coisas acabadas; nesse processo, o

    conceito de transformao fundamental. O que o mtodo dialtico considera que nenhum

    fenmeno da natureza pode ser compreendido quando encarado isoladamente. O

    materialismo dialtico pode ser definido como a filosofia do materialismo histrico, ou o corpo

    terico que pensa a cincia da histria (Ibid. p. 1). Em vista disso, a base da teoria histrico-

    cultural da psicologia a compreenso do carter histrico do desenvolvimento das funes

    psquicas superiores.

    Dentro da teoria formulada por Lev Vigotski, o psiquismo humano se revela como

    unidade material e ideal: material na medida em que estrutura orgnica e ideal em razo

    de ser o reflexo da realidade representada subjetivamente. Inaugura-se, ento, uma forma

  • especial de relao entre sujeito e objeto, isto , uma forma de relao mediada pela

    conscincia em especial, a linguagem (VIGOTSKII et al., 2012).

    Segundo Vigotski (2012), o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores

    memria lgica, ateno voluntria, pensamento verbal, linguagem intelectual, domnio de

    conceitos, planejamento etc. um processo nico que se desenvolve na criana de acordo

    com uma lei fundamental. De acordo com essa lei fundamental,

    todas as funes psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso de desenvolvimento da criana: a primeira vez nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funes interpsquicas; a segunda, nas atividades individuais. Como propriedades internas do pensamento da criana, ou seja, como funes intrapsquicas (VIGOTSKII, 2012, p. 114).

    Contrariando teorias vigentes no incio do sculo XX, que entendiam o

    desenvolvimento do psiquismo humano como um processo dependente de fatores biolgicos

    vinculados a maturao, os autores russos (Vigotski, Luria e Leontiev) afirmavam que a

    interao entre as pessoas e a apropriao da cultura ocupava um papel central nesse

    desenvolvimento. Por intermdio do trabalho e da capacidade de transformao da natureza,

    o homem desenvolve suas funes psicolgicas superiores.

    Chegamos, portanto, ao ponto nevrlgico da teoria defendida pela troika: a

    historicidade do desenvolvimento humano. A maneira como o homem se torna um ser cultural

    , sem dvida alguma, um detalhe muito importante, pois o carter histrico que diferencia

    a concepo de desenvolvimento humano de Vigotski das outras concepes psicolgicas e

    lhe confere um valor inovador ainda nos dias de hoje (PINO, 2000, p. 48).

    Leontiev, portanto, esclarece que

    no decurso do seu desenvolvimento ontognico o homem entra em relaes particulares, especficas, com o mundo que o cerca, mundo feito de objetos e de fenmenos criados pelas geraes humanas anteriores. Esta especificidade antes de tudo determinada pela natureza desses objetos e fenmenos. Por outro lado, determinada pelas condies em que se instauram as relaes em questo. O mundo real, imediato, do homem, que mais do que tudo determina a sua vida, um mundo transformado e criado pela atividade humana. Todavia, ele no dado imediatamente ao indivduo, enquanto mundo de objetos sociais, de objetos encarnados pelas aptides humanas formadas no decurso do desenvolvimento da prtica scio-histrica; enquanto tal, apresenta-se a cada indivduo como um problema a

  • resolver (LEONTIEV, 1978, p. 166 apud BARBOSA, 2009, p. 41 itlico do autor).

    As formulaes de Lev Vigotski e seus colaboradores sobre a origem social e histrica

    das funes psquicas superiores nos permitem entender a musicalidade de uma forma

    diferente: como sistema de signos constitudo pelos homens nas relaes sociais. Partindo

    dessa premissa, iniciaremos uma anlise de como as relaes sociais podem desenvolver a

    musicalidade nos indivduos.

    3.3 Msica como linguagem

    Para esse momento, ento, chamamos discusso Silvia Schroeder (2005), que em sua

    tese de doutoramento, intitulada Reflexes sobre o conceito de musicalidade: em busca de

    novas perspectivas tericas para a educao musical, esclarece luz da perspectiva

    histrico-cultural de Vigotski a relao entre o desenvolvimento e a aprendizagem musical.

    Como j exposto na introduo deste trabalho, a autora esclarece que ao considerarmos a

    msica como sendo parte da cultura do homem, como uma atividade especfica do ser

    humano, no existe a possibilidade de atrelarmos o desenvolvimento musical aos fatores da

    maturao. Segundo Schroeder (2005, p. 95),

    estando totalmente vinculada ao desenvolvimento histrico do indivduo, qualquer tipo de capacidade musical depende integralmente de um processo de aprendizagem. Sem ela, ou seja, sem a interferncia de outros indivduos, no h como ativar mecanismos biolgicos exigidos para o desenvolvimento de capacidades musicais, mesmo que o indivduo possua todos os pr-requisitos necessrios a esse fim.

    Schroeder, assim como Barbosa (2001; 2009) e Pederiva (2009), entende que a msica,

    como patrimnio cultual humano, s pode ser aprendida/apreendida no mbito das relaes

    sociais.

    Essa concepo de msica parece ser endossada tambm por outros autores como

    Penna (2012), por exemplo, que mesmo partindo de outro vis, que nos parece ser mais

    adepto s cincias sociais, chega concepes que se coadunam com as ideias dos autores

    citados acima. Para a autora, a msica poderia ter semelhana a uma forma de linguagem;

    uma linguagem culturalmente construda. A msica seria, portanto, uma atividade

  • essencialmente humana, atravs da qual o homem constri significaes na sua relao com

    o mundo (PENNA, 2012, p. 17).

    Vale salientar, todavia, que compreender a msica como forma de linguagem precisa

    ser assimilado com algumas ressalvas. comum o equvoco de considera-la uma linguagem

    universal. Porm, salientamos que a msica no se constitui como uma linguagem universal,

    uma vez que o fazer musical varia, diferenciando-se conforme o momento histrico e o espao

    social na qual se encontra. Em seu livro Msica(s) e seu ensino, Penna (2012, p. 23-24) afirma:

    Na medida em que alguma forma de msica est presente em todos os tempos e em todos os grupos sociais, podemos dizer que um fenmeno universal [...]. Esperamos, portanto, deixar claro que a msica no uma linguagem universal. , sem dvida, um fenmeno universal, mas como linguagem culturalmente construda (2012, p. 23-24).

    importante compreender que cada grupo social, em seu tempo e espao, seleciona

    aquilo que ser seu material sonoro, aquilo que lhe trar significado, e que pode no ser

    considerado msica por outro grupo que no partilha das mesmas selees. Esses significados

    tambm podem ser modificados com o tempo deixando de ser significativo em outro

    momento da histria daquele grupo social. Assim, podemos afirmar que a msica, enquanto

    um fenmeno, universal, pois est presente em todas as culturas humanas, mas como

    linguagem culturalmente construda.

    Tal compreenso da msica apresenta-se como sendo muito relevante, pois uma vez

    que a linguagem musical s pode ser apreendida/aprendida atravs das relaes

    socioculturais o prprio processo de aprendizagem dessa linguagem pode ser interpretado de

    forma diferente. Se o processo de aprendizagem musical se constitui apenas nas relaes

    sociais, o ensino de msica, na escola regular, por exemplo, no s pode como deve ser visto

    de uma nova forma: se a linguagem musical s pode ser aprendida nas relaes sociais e se

    tal linguagem varia de local para local e de cultura para cultura, chegamos a promissora

    concluso de que, dada as devidas ferramentas, essa linguagem pode ser acessvel a todos.

    4 CONSIDERAES FINAIS

  • Ao entendermos a teoria de Lev Vigotski, que diz que todo o desenvolvimento cultural

    ocorre primeiro no mbito social para s depois ocorrer no individual, veremos que, quando

    aplicada ao processo de aprendizagem musical, essa tese pode ser totalmente pertinente no

    que se refere a vencer os preconceitos criados a respeito da capacidade musical do indivduo.

    Somente ao imergir o indivduo no universo da msica, tornando-a significativa, possvel,

    ento, criar mecanismos que venham possibilitar as capacidades musicais.

    Atravs dos estudos realizados durante esta pesquisa, feitos em material bibliogrfico,

    sites e revistas, notou-se uma marcante presena do mito do talento inato nas falas de

    diversos autores, msicos e artistas. O que confirma a problemtica levantada de que a msica

    ainda vista como sendo algo hereditariamente herdado e reservado a poucos escolhidos.

    Porm, selecionar as artes, e em especial a msica, como algo especial reservado apenas para

    poucos no corrobora com a educao musical que buscamos para o futuro.

    Entender o desenvolvimento do ser humano luz da psicologia histrico-cultural

    mostrou que grande parte das aes do homem no so movidas por motivos estritamente

    biolgicos. A musicalidade um bem acessvel a todos, pois se depender das nossas

    possiblidades humanas, todos somos capazes de nos expressar musicalmente, de expressar

    nossas emoes por meio dos sons, do mesmo modo como, de modo geral, se depender da

    anatomia e da fisiologia humana, todos somos capazes de nos expressar por meio da

    linguagem falada (PEDERIVA, 2009, p. 38).

    Compreender a teoria histrico cultural de Vigotski abriu caminhos para o

    estabelecimento de estreitas relaes entre a qualidade do desenvolvimento psquico e o

    papel da educao escolar (MARTINS, 2013 p.1). Como educadores musicais, temos que ter

    a conscincia e a misso de defender um ensino de msica que seja acessvel a todos. Pois,

    como afirma Duarte (2006, p. 282), toda vez que um ser humano impedido de apropriar-se

    daquilo que faa parte da riqueza do gnero humano, estamos perante um processo de

    alienao, um processo que impede a humanizao desse indivduo.

    De acordo com Schroeder (2005, p. 158),

    Todo processo de musicalizao deve passar, necessariamente, por uma internalizao. [] No exatamente a msica como um sistema lgico que internalizada e qual, posteriormente, se atribui um significado, mas,

  • inversamente, so os sentidos musicais, nos seus vrios nveis que, uma vez internalizados, possibilitaro a absoro do sistema.

    A inteno desse trabalho foi compreender a origem e a natureza da musicalidade

    luz de uma teoria que nos permite atribuir tal capacidade a todos os indivduos, desde que

    disponibilizadas as devidas ferramentas. Tal teoria mostrou-se bastante pertinente na

    compreenso dos processos da formao das capacidades humanas, oferecendo uma base

    que possibilita vencer os preconceitos criados a respeito da musicalidade.

    Segundo SOBREIRA (2013, p. 64),

    Ao submeter os alunos a um pesado programa de aprendizado multidisciplinar ao longo dos anos escolares, no se questionam os talentos e habilidades especiais de cada um para as diversas reas do conhecimento. Entretanto, ao se falar de artes e, mais especificamente, de atividades musicais, surge o pressuposto fundamental que diz respeito ao dom musical. Como se a prtica musical fosse reservada aos alunos que geneticamente apresentem dotes musicais. Tal exigncia, que reserva a prtica musical com exclusividade para os grandes talentos quer seja na escola, nas famlias e mesmo nos conservatrios, talvez seja a causa importante de muitos equvocos relacionados ao aprendizado da msica.

    Almejando uma educao que modifique o ser humano e oferea-lhe subsdios para

    seu desenvolvimento, conclumos este trabalho nos apropriando da fala de Leontiev (citado

    por PEDERIVA, 2009, p. 54):

    Escolhi o problema do biolgico e do social porque hoje ainda muitos sustentam a tese fatalista de uma determinao do psiquismo do homem pela herana biolgica. Esta tese vem alimentar, em psicologia, as ideias da discriminao racial e nacional, do direito ao genocdio e s guerras de exterminao. Ela ameaa a paz e a segurana da humanidade.

  • 8 REFERNCIAS

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