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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO LICENCIATURA EM MÚSICA Monografia de Conclusão de Curso Afinal, existe música boa? Análise das implicações do discurso da qualidade musical no ensino de música Matheus Felipe de Oliveira Pagliacci Orientador Prof. Ms. Fernando Galizia São Carlos 2011

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RESUMOEste trabalho teve como objetivo geral investigar as implicações do discurso da qualidade musical no ensino de música. Como objetivos específicos, pretendemos: descrever as concepções sobre qualidade em música de diferentes atores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem; e apontar as implicações desse discurso no contexto da educação escolar básica. A hipótese levantada aqui é de que há, entre os profissionais do ensino de música, um preconceito quando da utilização da música consumida pelos alunos, entendida como pertencente à indústria cultural, em muitos casos, em sala de aula. O método de pesquisa utilizado foi o estudo multi-casos e, como técnica de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semi-estruturada. Dessa forma, pretendemos dar voz a diferentes atores envolvidos na implantação da educação musical na rede de ensino municipal de São Carlos, onde ocorreu a pesquisa. A partir da análise dos dados, concluiu-se que há sim um discurso de qualidade musical que aparece de diferentes formas e, em determinados casos, de forma velada. Além disso, foi possível concluir que a formação do educador musical é um aspecto limitador para as abordagens de linguagens musicais das mais diversas (incluindo aí as músicas midiáticas que são consumidas pelos alunos).Palavras-chave: 1. Ensino de música; 2. Música midiática; 3. Discurso da qualidade musical.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

LICENCIATURA EM MÚSICA

Monografia de Conclusão de Curso

Afinal, existe música boa? Análise das implicações do discurso da qualidade musical no ensino de música

Matheus Felipe de Oliveira Pagliacci

Orientador

Prof. Ms. Fernando Galizia

São Carlos

2011

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Matheus Felipe de Oliveira Pagliacci

Afinal, existe música boa? Análise das implicações do discurso da

qualidade musical no ensino de música

Monografia apresentada como conclusão da Disciplina de Projeto em Educação Musical 2 – Trabalho de conclusão de curso do Curso de Licenciatura em Música com habilitação em Educação Musical, do Departamento de Artes e Comunicação, Centro de ciências humanas, Universidade Federal de São Carlos.

São Carlos

2011

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AGRADECIMENTOS

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso

corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o

tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de

nós mesmos” (Fernando Pessoa).

E foi com Beto, Ananda, João de Itirapina, Mariana e Fabrítio, especialmente,

que passei por esse período de travessia, além é claro dos demais amigos da turma 08.

Período no qual aprendi a pensar além dos meus próprios conceitos e pré-conceitos, a

tentar entender um estilo de vida que não o meu e a questionar, mais do que nunca,

padrões pré-estabelecidos. Esses aí são amigos de risadas, reflexões filosóficas,

chateações, desabafos... Fazem parte desse período, também, Ana Lívia, Carol Porto e

Patrícia (que gentilmente me cedeu textos de sociologia) que me apoiaram e refletiram

comigo sobre as idéias deste trabalho.

Mas é claro que não teria condições de pensar em “atravessar” se não fosse o

alicerce, a ousadia, a determinação e o amor da minha mãe, Cida. É mãe, né!? O

carinho do meu pai Orestes e o cuidado do meu irmão Bruno. Essas três pessoas são o

meu abrigo. Sabem se estou bem só pela maneira como entro em casa.

Além desses, possuo alguns amigos na terrinha, Pirajuí, conhece? (Se não

conhece, não sabe o que está perdendo!) Passamos pelo mesmo processo de

“desbravamento” em outras terras ao mesmo tempo, só que cada um em uma cidade.

Eles sabem quem são... À Diego Ramiro agradeço porque desde quando eu era

pequeno conversava de igual pra igual, como se eu fosse gente grande.

Em São Carlos fui acolhido como filho pela família Souza. Tinha até um lugar

reservado no carro pra mim! Nunca vi tanta superação e força de vontade em uma casa

só!

Fernando Galizia, meu orientador, comprou minhas idéias e apostou nelas.

Apostou em mim. É clichê isso, né? Mas é! Dedico a ele meu respeito, amizade e

admiração. Esse cara tem uma percepção aguçada...

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Agradeço à Jorge Leite Junior por sua disposição em contribuir na avaliação

deste trabalho como integrante da banca e à professora Jusamara Souza pela presteza

e simplicidade com que aceitou o convite para participar da mesma. É uma grande

contribuição. Fiquei até surpreso!

Sou muito grato às diversas pessoas que tive oportunidade de conhecer e à

chance de poder levar, de alguma forma, algo delas. Apesar disso tudo, pessoas vão

embora, são finitas, se ausentam... Então, dedico ao autor da minha fé a gratidão maior.

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RESUMO

Este trabalho teve como objetivo geral investigar as implicações do discurso da qualidade musical no ensino de música. Como objetivos específicos, pretendemos: descrever as concepções sobre qualidade em música de diferentes atores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem; e apontar as implicações desse discurso no contexto da educação escolar básica. A hipótese levantada aqui é de que há, entre os profissionais do ensino de música, um preconceito quando da utilização da música consumida pelos alunos, entendida como pertencente à indústria cultural, em muitos casos, em sala de aula. O método de pesquisa utilizado foi o estudo multi-casos e, como técnica de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semi-estruturada. Dessa forma, pretendemos dar voz a diferentes atores envolvidos na implantação da educação musical na rede de ensino municipal de São Carlos, onde ocorreu a pesquisa. A partir da análise dos dados, concluiu-se que há sim um discurso de qualidade musical que aparece de diferentes formas e, em determinados casos, de forma velada. Além disso, foi possível concluir que a formação do educador musical é um aspecto limitador para as abordagens de linguagens musicais das mais diversas (incluindo aí as músicas midiáticas que são consumidas pelos alunos).

Palavras-chave: 1. Ensino de música; 2. Música midiática; 3. Discurso da qualidade

musical.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 07

PARTE I – PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ......................................... 12

Capítulo 1 – Referencial teórico e delimitação do tema ....................................... 13

Capítulo 2 – Metodologia da Pesquisa .................................................................. 22

2.1. Método .............................................................................................................. 22

2.2. Técnica de Coleta de Dados .............................................................................. 23

2.3. Instrumento de Coleta de Dados........................................................................ 24

PARTE II – RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................. 26

Capítulo 3 – O ensino de música na rede municipal de São Carlos .................... 27

Capítulo 4 – O discurso da qualidade em música ................................................ 33

4.1 Analisando os discursos ..................................................................................... 33

4.2 Possíveis implicações no ensino de música ........................................................ 38

Capítulo 5 – Considerações Finais ........................................................................ 41

Referências ............................................................................................................. 43

Apêndice A – Roteiro da entrevista semi-estruturada .......................................... 45

Apêndice B – Termo de consentimento informado .............................................. 47

Ficha de Avaliação da Banca Examinadora.............................................................48

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INTRODUÇÃO

Algumas experiências exerceram influência decisiva sobre minha escolha

profissional na área da música. Aos seis anos de idade demonstrei interesse em ter

aulas de teclado. A geração mais nova da família, da qual faço parte, se envolveu

com música desde cedo através de aulas com uma prima que já era formada em

piano e, também, pela motivação que a Igreja Batista, que freqüentava com meus

pais, proporcionava ao ingresso na prática musical. Esta influência foi significativa,

sendo grande responsável pelo meu amadurecimento musical. Paralelamente ao

estudo de teclado, tocava bateria nos encontros da Igreja tendo em vista a ausência

de quem o fizesse.

Após alguns anos de prática nos dois instrumentos passei então a me

dedicar ao estudo de teclado, exclusivamente, só que em uma abordagem

direcionada para a formação de banda, já que se fazia necessário um instrumento

harmônico no grupo da Igreja. Pude, então, desenvolver minha percepção

harmônica, melódica e rítmica através dessa prática, já que me adeqüei a algumas

circunstâncias: acompanhava os cantores em diferentes tonalidades, buscava

preencher a sonoridade que a falta de instrumentos graves fazia e, também, me

adaptar às diferentes configurações possíveis, ora com guitarra, baixo e bateria, ora

com bateria ou violão, somente; era necessário, também, me adaptar aos diferentes

níveis de aprendizado musical de todos os integrantes.

A esta altura já migrara para o estudo de piano erudito que por vezes tinha

alguma inclinação ao repertório popular, sugerido por mim, durante o processo. Sem

intencionalidade, aplicava as técnicas das aulas na procura de uma sonoridade

satisfatória e criativa nas práticas da Igreja. Começaram, então, a surgir

oportunidades de performance remunerada em formaturas, apresentações de pré-

escola, ambientação em diferentes estabelecimentos, casamentos e,

posteriormente, em bandas do gênero pop, sertanejo, baile, entre outros. Deslumbrei

então da possibilidade de exercer a atividade musical como carreira. Com o apoio de

minha família, embarquei cada vez mais nesse ramo e o ápice de tal perspectiva

culminou na escolha de cursar uma graduação em música.

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Nesse período de apresentações e oportunidades de performance, tive a

chance de ser encarregado pela execução de música ambiente em um

estabelecimento comercial que me foi importante. De início, ao piano, executava um

repertório mais intimista (se é que posso dizer assim) composto, principalmente, dos

gêneros Bossa nova e jazz. A resposta do público e também da gerência foi

negativa. Não havia uma identificação com tal sonoridade. Fui orientado, então, a

tocar músicas veiculadas pela mídia, independentemente se eram específicas para

meu instrumento ou não. Música sertaneja no piano? Axé? Pop? Reggae?

A partir desse desafio passei a experimentar diferentes sonoridades com o

objetivo de criar adaptações convincentes. A rítmica de determinada música era

distribuída nas funções das duas mãos, o grave do baixo era reproduzido por notas

oitavadas na mão esquerda e a melodia reproduzia fielmente a voz do cantor (a). O

parâmetro de qualidade musical eram os feedbacks dos ouvintes. Uma das ocasiões

mais marcantes foi quando ao tocar “Saudade da minha Terra”, uma obra tradicional

do chamado sertanejo de raiz, um senhor se aproximou do piano após alguns

minutos de fruição e disse: “É a primeira vez que esse instrumento fala comigo”. Tal

repertório motivava o público que freqüentava aquele local.

Alguns anos se passaram e veio a experiência enquanto bolsista do projeto

PIBID já na condição de aluno de graduação, em sala de aula, que também rendeu

resultados semelhantes ao anterior. FUNK, POP e RAP. Esses gêneros musicais

aparentemente distintos foram a base para a estruturação de letras que tinham

como conteúdo histórias e relatos de experiências cotidianas de alunos de uma 7ª

série de uma Escola estadual.

A cada conteúdo da disciplina de História, o grupo de bolsistas tinha como

função explorar o contexto sócio-cultural e musical correspondente; a abordagem

permeou a música barroca, canções africanas e gêneros contemporâneos atrelados

a símbolos de resistência (RAP, Canção de Protesto e Punk). O direcionamento dos

bolsistas propunha a análise desses diferentes estilos levando em consideração seu

contexto social, político e econômico, bem como as circunstâncias inerentes ao

autor que se valeu de determinado estilo literário, melodia, sonoridade e

instrumentos. A idéia de a música ser o produto de manifestações de sentimentos

subjetivos como ódio, amor, dor, raiva ou expressões de manifestação, como

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protesto e crítica política foi tomando corpo durante as aulas assim como os pontos

em comum de determinados contextos histórico-sociais com o cenário

contemporâneo. Após um trabalho de meses, o clímax foi a seguinte proposta aos

alunos: em diferentes épocas, com diferentes recursos, diferentes músicas foram

produzidas por pessoas de classes sociais distintas, refletindo algo delas mesmas.

Então, o que os alunos da 7ª “B” têm para expressar através da linguagem musical?

O FUNK retratou a identidade de um grupo de meninas da turma destacando

sua determinação e coragem; o POP foi uma homenagem de um aluno a sua mãe,

onde provas de demonstração de carinho eram a temática; o RAP descreveu a

desconfiança para com alguns policiais que incriminam pessoas. Tal experiência

ocorreu na família do aluno que foi autor da música. O registro dessas composições

foi feito na Rádio da Universidade. Nessa ocasião, lembro-me do quanto estava

ansioso e satisfeito olhando para aqueles alunos que foram mais resistentes à nossa

atuação esperando com silêncio e atenção ao sinal positivo que daria início à

gravação. Observei a identificação daquele grupo com o repertório. Nesse turbilhão

de acontecimentos e sensações, algumas indagações me vinham à mente.

Como eu, um estudante de um curso de música de uma universidade, pude

ensinar, valorizar e divulgar um RAP? E um FUNK então? Mais além, toquei hits da

rádio no piano. Era permitido? A receptividade que tais práticas tiveram era legítima,

de fato? Tais experiências somadas à observação me levaram à construção de

reflexões acerca do discurso da qualidade em música. O RAP seria pior do que a

música de concerto que, por sua vez, seria melhor que o chamado sertanejo

universitário, que seria melhor que o funk, axé e todos esses, por não possuírem a

complexidade harmônica do jazz, seriam, então, inferiores? A partir destas questões,

emerge a questão norteadora deste trabalho, propositalmente desafiadora: afinal,

existe música boa?

Na tentativa de responder a essas questões, este trabalho tem como

objetivo geral investigar as implicações do discurso da qualidade musical no ensino

de música. Como objetivos específicos, pretendemos: descrever as concepções

sobre qualidade em música de diferentes atores envolvidos no processo de ensino e

aprendizagem; e apontar as implicações desse discurso no contexto da educação

escolar básica.

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Este trabalho se justifica a partir da aprovação da lei que torna obrigatório o

conteúdo de música nas escolas públicas e privadas do sistema escolar brasileiro.

Um dos desdobramentos da aprovação da referida lei é a efervescência de

discussões e reflexões acerca de como se dará esse (re)ingresso entre educadores

musicais do país. Um dos pontos discutidos é: que música deve ser ensinada nas

escolas? Este trabalho, tendo como objetivo investigar as implicações do discurso

da qualidade musical no ensino de música, pode contribuir para estas discussões e

até mesmo para futuras pesquisas que buscam entender as relações que os alunos

constroem com as diferentes mídias e as músicas veiculadas por estas.

A função da área de educação musical assume assim um caráter complexo,

pois, além de ter que driblar as problemáticas inerentes do contexto escolar, se vê

diante da responsabilidade de estruturar sua ação de maneira a não prejudicar o

aprendizado de conteúdos musicais nesse ambiente que não se encontra preparado

para tal. A partir disso, ao dar voz a diferentes atores envolvidos no ensino de

música nas escolas de educação básica, esse estudo torna-se relevante.

Por fim, além de se deparar com esses desafios, o educador musical pode

assistir ao fracasso das suas tentativas pelo simples fato do desinteresse dos

alunos. Mas, desinteresse a que ponto? Este é o foco do presente trabalho: refletir

sobre a discrepância que há entre a música que se ensina e a música que se ouve,

através da análise do discurso da qualidade musical de gestores e educadores

musicais atuantes em sala de aula e na parte administrativa da secretaria municipal

de educação de São Carlos, possibilitando, assim, reflexões para se construir uma

concepção de ensino de música que leve em consideração a produção musical

contemporânea como um todo, inclusive aquela oriunda da indústria cultural.

Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira parte compreende os

capítulos 1 e 2 do trabalho, dentre os quais são explicados os princípios teórico-

metodológicos que guiaram essa pesquisa e o processo de delimitação do tema,

além de explicitados seus objetivos, justificativas e metodologia.

A segunda parte compreende os capítulos 3, 4 e 5, que trazem os resultados

alcançados através da pesquisa, a análise e discussão dos dados recolhidos e as

considerações finais do trabalho. O capítulo 3 tem como título “o ensino de música

na rede municipal de São Carlos. Já o capítulo 4, intitulado “o discurso da qualidade

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em música”, é subdividido em dois itens, a saber, “analisando os discursos” e

“possíveis implicações no ensino de música”. Para finalizar, o capítulo 5 é destinado

às considerações finais.

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PARTE I – Princípios Teórico-Metodológicos

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CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO E DELIMITAÇÃO DO TEMA

A educação musical, enquanto área de conhecimento é bem servida em

discussões sobre diversos aspectos relacionados aos processos de ensino e

aprendizagem em música. Alguns deles se referem a possibilidades de diferentes

abordagens metodológicas, outros à produção de material didático e ainda os que se

referem ao ensino de música em diferentes contextos (projetos sócio-culturais,

educação escolar básica, conservatórios, universidades, entre outros), além de

muitas outras contribuições que a comunidade acadêmica de educadores musicais

vem legando ao Brasil. Contudo, apesar de já existir uma produção considerável que

analisa a relação dos alunos com a música midiática e a importância desta ser

levada em consideração no ensino de música, pode-se argumentar que a área ainda

apresenta certa carência de trabalhos sobre seu possível papel no ensino de música

nas escolas e qual seria a legitimidade dessa prática.

Partindo das experiências descritas acima, onde a música destinada às

massas era um fim em si mesmo e das vivências significativas que desencadeou,

nota-se uma discrepância existente entre a música que se ouve e a música que se

ensina. Aquela é encarada apenas como objeto de análise em pesquisas, não sendo

considerada suficiente em si mesma. Conforme Lazzarin (2004 apud GALIZIA, 2009,

p. 77):

Pode-se notar a tensão entre os elementos musicais, com a qual a EM [educação musical] lida, no estabelecimento do que é considerado música “séria”. Um é a reserva e a desconfiança da sensualidade dos tons e dos ritmos, considerados perigosos e subversivos. Outro, a preferência pela música simétrica, ordenada, que tem seu reflexo na relação dos modos com o caráter, sendo poderoso instrumento de educação moral.

É necessária, de acordo com RAMOS (2009 apud SOUZA 2009), uma visão

mais ampla dessa realidade. Segundo a autora: “não basta apenas discutir suas

preferências e gostos musicais. Classificar o repertório eleito por nossos alunos em

música boa e música ruim ou afirmar que não tem qualidade musical seria uma visão

simplista demais” (id., p. 93-94). Galizia (2009) afirma ainda que a utilização dos

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gêneros musicais eleito pelos alunos, mesmo que midiáticos, no ensino de música,

só tem a contribuir no processo de aprendizagem musical:

Axé, techno brega, funk, rap, enfim, todos os estilos que nossos alunos vivenciam em seu dia-a-dia poderiam estar em sala de aula para se trabalharem conteúdos técnico-musicais, ou senso crítico, ou ainda como elemento motivador. Dessa forma, o ensino de música nas escolas passaria a ter um sentido concreto nas vidas dos alunos, aproximando-se de seu cotidiano (GALIZIA, 2009, p. 78).

Tendo em vista esse contexto, pretende-se, nesse trabalho, tecer algumas

reflexões sobre o discurso de qualidade em música, comumente defendido por

muitos profissionais da área de música, valendo-se das contribuições que a área da

sociologia oferece. Para o embasamento teórico no tema, os pensamentos de Pierre

Bourdieu e Theodor Adorno relacionados à temática da cultura serão revisados e

aplicados ao campo musical, além de autores específicos da área.

Partindo das contribuições de Bourdieu (1983), o conceito de qualidade

atribuído a qualquer prática ou bem está mais relacionado, dentre outras coisas,

com a tentativa de manutenção de uma determinada posição social do que

propriamente com as características em si de tais objetos e práticas. Para o autor,

que argumenta sobre aspectos gerais de condições de vida, existem mais variáveis

envolvidas nas preferências e gosto de um indivíduo do que se verifica, comumente:

Às diferentes posições no espaço social correspondem estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência. As práticas e as propriedades constituem uma expressão sistemática das condições de existência (BOURDIEU, 1983, p. 82).

O autor desenvolve diversas temáticas distintas dentro da ideia de luta de

classes sociais. As relações de sobreposição de poder que se observa entre elas

constituem-se como fundamento do processo de distinção que ocorre nas mesmas.

O conceito de distinção é concebido, por Bourdieu (1983), como diferença

hierarquizada. Ou seja, na tentativa de destacar a identidade de determinado grupo

e ao mesmo tempo diferenciar-se de outros, a escolha de determinadas práticas e

propriedades é influenciada, com efeito, por sua conotação social.

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Esse processo implica em esforços para a demarcação dos limites que

polarizam os dominadores (possuidores dos meios de produção) dos dominados,

perpassando por suas práticas e propriedades pertencentes aos campos objetivo

(material) e subjetivo (simbólico). “Os grupos se investem inteiramente, com tudo o

que os opõem aos outros grupos, nas palavras comuns onde se exprime sua

identidade, quer dizer, sua diferença (BOURDIEU, 1983. p. 86).

Tratando de automóveis e residências ou de cinema e música, por exemplo,

o princípio se aplica. Possuir o último modelo de carro disponível no mercado ou

ainda uma casa na praia, ambos reconhecidos como bem de alto valor econômico,

implica na ocorrência, no campo simbólico, das diferenças concretas de classe.

Conforme Bourdieu (1983), “as oposições entre as classes se exprimem tanto no

uso da fotografia ou na quantidade e qualidade das bebidas consumidas quanto na

preferência em matéria de pintura ou de música” (p. 84). Do mesmo modo, consumir

filmes Cult ou alternativos representa uma demarcação simbólica, propriamente, dos

limites inerentes a uma classe.

No que se refere à música, pertencer ao público que se identifica e consome

os lançamentos do selo Biscoito Fino, por exemplo, marca o estilo de vida de uma

classe econômica ou cultural específica que corresponde à uma suposta cultura

legítima; por outro lado, os que se interessam por funk, rap ou sertanejo, se

enquadram no grupo que marca sua diferenciação via manifestações artísticas

oriundas de uma cultura não considerada legítima para a parcela da sociedade

detentora dos meios de produção. Isso sem levar em consideração as vertentes

existentes nesses próprios gêneros. Sendo assim, os pertencentes à chamada

cultura legítima não consideram a sua importância e negam qualquer aspecto de

relevância seja como cultura, arte, música ou manifestação e expressão de

determinado grupo. Identifica-se aí a distinção simbólica.

É imprescindível, porém, considerar os desdobramentos que as ações das

estruturas de difusão cultural, atualmente consolidadas, causam na sociedade,

sendo oportuno, também, analisar como se dá a relação dos indivíduos com a

produção musical de massa e como se configura o jogo de distinções no cenário

tecnológico atual. Diante de uma possível desconsideração - principalmente por

parte de educadores musicais e profissionais da música - sobre as ações da

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indústria cultural e sua produção, torna-se necessário se debruçar sobre sua lógica

de funcionamento com o intuito de compreendê-la, já que os fundamentos dessas

críticas, muitas vezes, demonstram estar mais relacionados à reprodução de

conceitos culturais cristalizados do que propriamente a uma análise do assunto.

Para entender o surgimento da cultura de massa é importante compreender

o processo de implantação das estruturas de difusão de massa, que estão

provavelmente relacionadas ao surgimento dessa cultura (MOLLIER, 1998). A

repulsa em relação à indústria cultural percebida enquanto tal, principalmente pelo

tom apocalíptico que lhe serve como ponto de partida, é mais uma tentativa de

resistência à consolidação do seu modo de produção do que propriamente uma

busca pela pureza da arte, uma vez que a lógica de homogeneização e

categorização de produtos para diferentes grupos já existia, inclusive nos espaços

de educação escolar.

Embora seja uma instituição burguesa consolidada e não tenha sua

estrutura nem seus interesses colocados à prova, a escola tem como objetivo

proporcionar a todos os cidadãos o acesso a conhecimentos gerais básicos,

alcançando, desse modo, um nivelamento. E, indo mais além, o valor pejorativo

sobre a produção musical de mídia é um valor oriundo da classe social dominadora,

a elite. Sendo assim, o próprio conceito de produção para as “massas” assume um

tom pejorativo, uma vez que esta é entendida como indivíduos de uma classe social

inferior e sem acesso ao capital cultural legítimo.

Configura-se, assim, uma tentativa de manutenção de poder. Pode-se dizer,

a partir disso, que a negação de uma classe inferior no aspecto econômico,

principalmente, se dá através da negação da cultura, gostos e costume da mesma.

Nesse sentido, o olhar e a reflexão sobre as origens de todo o processo permitem a

construção de uma visão mais complexa a respeito da música midiática. Contribui,

também, para a desvinculação de alguns preconceitos herdados. Na frança do

século XIX, as políticas educacionais estimularam a produção e distribuição de livros

didáticos com vistas à estruturação do modelo educacional escolar. O resultado foi a

construção de um padrão de conhecimento comum aos indivíduos de idade escolar,

a massificação de uma cultura. Desse modo, Mollier (1998) ao escrever sobre a

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origem das estruturas de difusão cultural argumenta as conseqüências destas nos

indivíduos:

A revolução cultural produzida entre 1890 e 1914 transformou as estruturas mentais, fazendo emergir um indivíduo mais homogêneo e socializado, que partilha com seus contemporâneos, mesmo com aqueles mais distantes, um horizonte de expectativas relativamente semelhantes (MOLLIER, 1998, p.134).

Portanto, não é possível se pensar em indústria cultural sem, primeiramente,

compreender que os princípios que a norteiam já se faziam presentes antes de ser

denominada como tal. Pensar que a indústria cultural é fruto da efervescência das

tecnologias digitais surgidas no século XX é um conceito equivocado, segundo

Mollier (1998). Seria o mesmo que afirmar que o sistema econômico capitalista é

uma invenção recente, contemporânea, posto que seu embrião já estava em

processo de desenvolvimento há alguns séculos. Adorno e Horkheimer (1985)

reiteram essa idéia ao dizer que a indústria cultural apenas adaptou os conceitos já

existentes às novas tecnologias:

O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em principio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.126).

Como se vê, a tentativa de padronização de comportamentos de grande

parte da população não é uma invenção recente de determinada empresa de

comunicação ou gravadora. Ou seja, categorizar a produção da indústria cultural

como alienante, sem conteúdos relevantes, pode ser entendida como uma prática de

distinção. Um das maiores críticas a essa indústria é que a disseminação de

conceitos básicos comuns acarreta a diluição de regionalismos e particularidades, e

para alimentar o ciclo da produção e do consumo, a indústria cultural aposta em

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padrões e fórmulas não ousadas que lhe dá uma garantia mínima de consumo.

Nesse sentido, não arrisca em algo novo ou que não se tenha uma garantia mínima,

por isso é interessante manter a forma das canções pop, pois a combinação do tipo

de instrumentação utilizado, os riffs e um caminho melódico previsível são a certeza

de que o produto vai encontrar receptividade no mercado e garantir o lucro. Nas

palavras de Adorno e Horkheimer (1985):

A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que já determina o consumo ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco. É com desconfiança que os cineastas consideram todo manuscrito que não se baseie, para tranqüilidade sua, em um Best-seller. (...) O menor acréscimo ao inventário cultural comprovado é um risco excessivo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 126).

Um dos problemas apontados que é oriundo deste cenário seria a “mesmice”

(entendida como uma padronização das músicas) a que o público é exposto. Pelo

caráter objetivo e orientado das músicas midiáticas, a imaginação e a

espontaneidade do ouvinte são paralisadas, não extraindo deste uma atividade

intelectual elaborada. Adorno & Horkheimer (1985) relata tal idéia tendo como

exemplo o cinema:

Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119).

No entanto, para a educação musical e para a realidade aluno-professor,

pode não ser pertinente nos questionarmos sobre a validade de diversas discussões

e formulações a respeito de uma dada estética musical que é difundida

massivamente. Nem tampouco buscar, embasado em diferentes áreas de

conhecimento, a comprovação de que o Funk é inferior ao Rock, por exemplo. A

partir dos textos lidos, podemos justificar esta posição, primeiramente, porque a

partir do momento em que há uma comparação com uma referência determinada, tal

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análise não é imparcial; segundo, que o próprio conceito de música tonal é por si só,

uma convenção construída culturalmente.

O fato é que a mídia existe e figura cada vez mais como referência cultural

para as gerações desse contexto. A produção musical ocorre em larga escala e,

quando o educador musical entra em contato com seu aluno, pode constatar o nível

de influência que tal conteúdo exerce sobre a juventude e como seus hábitos e tipos

de relação social são construídos a partir desse referencial. A questão é: por que

insistir em não dar atenção aos elementos dessa cultura, em especial a música, que

fazem parte de um contexto social emergente? De acordo com Green e Bigun (apud

SILVA e SOARES, 2003):

[...] tais jovens parecem apresentar novas necessidades e capacidades. São jovens que, entre outras coisas, cresceram imersos numa cultura de mídia. São jovens que parecem produzir, nas escolas, uma incomunicabilidade entre eles/as e seus professores/as (id., p. 83).

A escola, muitas vezes, não reconhece essa “nova cultura”, na qual o aluno

constrói seus valores e que influencia até o seu comportamento. Ainda de acordo

com Green (1987 apud SILVA, 2009, p.50), “a escola cada vez menos tem em vista

dar acesso a uma „cultura industrializada‟ pelo fato de que ela somente legitima a

ideologia dominante e seus valores culturais”. Essa “insistência” em não dar atenção

a esses novos elementos possui duas razões, segundo Neto (2011): resistência às

novas tecnologias (à nova maneira de pensar e produzir música) e falta de cursos de

formação específicos, conforme também afirma Galizia (2009). Nas palavras de Neto

(2011):

Este efeito é provocado, por um lado, em função de uma desconfiança quanto à substituição do labor docente pelos equipamentos técnicos da revolução da informação; por outro, pela falta de formação continuada que possibilite ampliar os conhecimentos pedagógicos e, sobretudo, a falta de capacidade crítico-argumentativa diante de um conhecimento inovador à disposição da educação: a cibercultura (id., 2011, p.8).

Essas novas necessidades e capacidades a que as autoras se referem não

encontram respaldo no ambiente onde esses jovens estão inseridos a maior parte de

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seu tempo: a escola. Esta, por sua vez, tem dificuldades de se adequar à chamada

cibercultura. Nas palavras de Bonilla (2009 apud Neto, 2011):

Os referenciais da escola atual estão embasados na racionalidade que surgiu com a Escrita, a qual tem como base o princípio da formação científica, a existência de um conhecimento „verdadeiro‟ que deve ser transmitido ao aluno, sendo o professor o detentor e controlador dessa verdade. Assim, como não conseguiu abranger a racionalidade própria da oralidade, uma racionalidade que acompanha o ser humano ao longo de toda a vida, em todas as sociedades, esse modelo de escola também não consegue abranger a complexidade do mundo atual e incorporar as novas formas de organização, pensamento e construção do conhecimento que estão emergindo com as TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação] (BONILLA, 2009, p. 33 apud NETO, 2011, p.7).

Após argumentar sobre a “não-atualização” da escola, o autor afirma com

veemência a importância da instituição escolar dialogar com esse novo universo

tecnológico:

[...] é de fundamental importância se argumentar dialogicamente sobre o novo paradigma pedagógico emergente sobre o sentido de formação da cibercultura, a fim de que se possa ressignificar, reinventar e recriar o espaço e tempo escolar, apontando-se uma nova didática para a escola da atualidade [...] (NETO, 2011, p.9).

Em se tratando de música nas escolas ocorre o mesmo, pois a formação dos

educadores musicais, de maneira geral, é deficitária quando se trata de olhar para o

contexto extra-escolar. Souza (2004) afirma que as mudanças sociais e tecnológicas

trouxeram mudanças nas experiências musicais, contribuindo para outros modos de

percepção e apreensão da realidade e os próprios modelos de formação musical.

Para reiterar tal argumento, ainda nas palavras da autora:

A compreensão das práticas sociais dos alunos e suas interações com a cidade, o lugar como espaço do viver, habitar, do uso, do consumo e do lazer, enquanto situações vividas, são importantes referências para analisar como vivenciam, experimentam e assimilam a música e a compreendem de algum modo (SOUZA, 2004, p.10).

A partir destas discussões, este trabalho tem a finalidade de refletir sobre as

concepções de educadores musicais que atuam nas escolas de educação básica e

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de diferentes atores envolvidos na educação musical escolar sobre a música que os

alunos consomem e qual seu papel (se houver) nas atividades em sala de aula.

Nossa hipótese é que existe um preconceito estético e social em relação às músicas

veiculadas para as massas e aquelas que fazem parte da cultura dos alunos. O

preconceito, neste trabalho, é entendido como um “conceito ou opinião formados

antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos” (CUNHA,

1998 apud MACHADO, 2010, p. 84). Ainda no caso específico desta pesquisa, este

conceito antecipado possuiria um valor pejorativo agregado a ele.

Nossa hipótese inclui ainda a ideia de que seria possível (e desejável) que

esses educadores olhassem para a produção midiática com uma visão mais

imparcial, já que os preconceitos presentes nesta não apresentam, por vezes, uma

argumentação sólida e estão mais relacionados à reprodução de valores culturais

herdados. Ainda de acordo com Souza, “é preciso tratar o diferente com

compreensão e não apenas com tolerância” (Souza, 2007, p. 19 apud RIBEIRO

2008, p. 132). Acreditamos que, dessa forma, os educadores musicais possam

adquirir mais ferramentas e possibilidades para a prática docente e enriquecer sua

concepção sobre música e sua prática pedagógico-musical.

Partindo então desses tópicos, embasados em diferentes autores, é que

descreverei com detalhes minha metodologia de pesquisa e todo o processo de

coleta de dados no capítulo 2.

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CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA DA PESQUISA

2.1. Método

Como pretendo investigar um fenômeno social que envolve muitas variáveis,

a saber, contexto cultural, crenças e valores individuais dos atores envolvidos no

processo, bem como os desdobramentos de resoluções políticas específicas sobre a

atuação dos mesmos, identifiquei no estudo de caso características suficientemente

convincentes que justificam seu uso no desenvolvimento deste trabalho, uma vez

que esse método “permite uma investigação para se preservar as características

holísticas e significativas dos acontecimentos da vida real” (YIN, 2002, p.20). Vale

ressaltar que será realizado um recorte da realidade da rede municipal de ensino de

São Carlos e, portanto, tal método se adéqua.

Tal fundamento vem de encontro à perspectiva de pesquisa adotada, uma

vez que não vislumbro interferir na realidade posta, mas sim, observá-la, coletar

dados para, apenas em um segundo momento, confrontar as possíveis constatações

com minha hipótese teórica. “Os estudos de caso, em geral, não devem ser

utilizados para avaliar a incidência dos fenômenos” (YIN, 2005, p.71). E esse

processo pode me levar a algumas considerações (sejam elas otimistas ou não).

O estudo de caso também proporciona o aprofundamento de um contexto

específico, ou seja, a meta não é coletar dados simplesmente para desenvolver

estatísticas, e sim, para poder generalizar algumas considerações a partir de um

recorte menor de uma realidade. No caso específico deste projeto de pesquisa, será

utilizada uma variante do método: estudo de casos múltiplos, pois uma das suas

vantagens é que as evidências resultantes de casos múltiplos são consideradas

mais convincentes, e o estudo global é visto, por conseguinte, como algo mais

robusto (HERRIOT; FRESTONE, 1983 apud YIN, 2005, 68). É por meio da aplicação

deste método que pretendo alcançar os objetivos estabelecidos.

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2.2. Técnica de Coleta de Dados

A entrevista semi-estruturada foi escolhida como instrumento de coleta para

este projeto de pesquisa, uma vez que, segundo Triviños (1987, p.145-146), é um

dos principais meios que tem o investigador para realizar a coleta de dados. Essa

modalidade de entrevista permite ao informante maior flexibilidade no discurso, já

que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que

interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas,

fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas

do informante (TRIVIÑOS, 1987, p.146). Tal característica garante maiores

possibilidades do relato ser o mais fidedigno possível à realidade.

Além de semi-estruturada, a entrevista terá caráter reflexivo. Segundo

Banister [et al.] (apud Szymanski, Almeida e Prandini 2004, p.10), esse instrumento

tem sido empregado em pesquisas qualitativas como uma solução para o estudo de

significados subjetivos e de tópicos complexos demais para serem investigados por

instrumentos fechados num formato padronizado.

O sentido do termo “reflexiva” refere-se à possibilidade da criação de uma

condição de horizontalidade entre entrevistador e entrevistado; também significa

refletir a fala de quem foi entrevistado, expressando a compreensão da mesma pelo

entrevistador e submeter tal compreensão ao próprio entrevistado, que é uma forma

de aprimorar a fidedignidade (SZYMANSKI; ALMEIDA; BRANDINI, 2004, p.15).

Desse modo, acredito estar instrumentalizado para o processo de coleta de dados.

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2.3. Instrumento de Coleta de Dados

Após a decisão de se utilizar da Entrevista Semi-Estruturada como técnica

de coleta de dados, o próximo passo foi a construção de meu roteiro. Este roteiro foi

estruturado em 11 itens que, por sua vez, são baseados nos objetivos específicos

(APÊNDICE A). Quando da realização das entrevistas, não me pareceu pertinente e

nem funcional perguntar item por item, uma vez que, depois de ficar à vontade, os

entrevistados responderam com naturalidade sobre vários assuntos em uma fala

apenas. Considerei este fato aceitável posto que a técnica de coleta de dados

utilizada foi a entrevista semi-estruturada.

Algumas questões, ainda, foram elaboradas a partir de informações que eles

me forneceram, não estando previamente no roteiro. Além do roteiro, foi

confeccionado também um termo de consentimento que garante ao entrevistado,

formalmente, o direito de preservar sua identidade (APÊNDICE B). Dos três

entrevistados, porém, apenas um manifestou desejo em utilizar pseudônimo.

Uma vez com esses dois documentos estruturados, passei à fase de coleta

de dados. Entrevistei três pessoas envolvidas no ensino de música nas escolas

municipais da cidade. São elas: Lourdes de Souza Moraes, bibliotecária de

formação e atual secretária de educação do município e é, portanto, responsável por

toda a rede de ensino municipal; Patrícia, que é educadora musical e participa da

equipe administrativa da secretaria municipal de educação; e Mateus Ferreira, que é

educador musical atuante nas escolas municipais, sendo responsável por todas as

turmas de uma escola da rede.

Na primeira entrevista fiquei apreensivo com o tempo e em fazer todas as

perguntas pré-elaboradas. Conforme fui me sentindo à vontade, pude questionar

meu entrevistado sobre diferentes questões que fazem parte do tema. O roteiro me

serviu de guia para provocar respostas cada vez mais interessantes e relevantes

para a pesquisa.

Já na segunda entrevista fiquei mais relaxado. Tinha percebido que sua

duração girava em torno de trinta minutos e o que realmente importava era extrair do

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entrevistado idéias-chave para minha posterior análise. No entanto, em ambas fiz

praticamente todas as questões pré-elaboradas. Apenas a questão de número “5”

não foi realizada. Pareceu-me fora de contexto e sem relevância para o que

buscava, pois explora um aspecto pessoal e subjetivo que foge do alcance de

classificação dos entrevistados.

Para a terceira entrevista tive problemas relativos à sua execução. Duas

pessoas haviam se comprometido a participar da pesquisa, mas, quando da

marcação, tiveram que cancelar sua participação. Sendo assim, tive que buscar uma

terceira pessoa em caráter imediato, pois tinha prazos a cumprir. De qualquer forma,

esta terceira entrevista, dada a maior experiência do pesquisador, pareceu-me a

mais bem direcionada, acredito que por já ter compreendido como estimular o

entrevistado a me dar o maior número de informações possível e também como

focar tais informações para o trabalho. Foi a mais longa, em termos de duração, e

também a que apresentou maior coerência de idéias.

Antes de identificar o possível discurso da qualidade na fala dos

entrevistados, faz-se necessário entender o contexto no qual estes atuam, a saber, a

rede de ensino da prefeitura municipal de São Carlos.

Com a finalidade de se obter uma melhor organização dos resultados e da

análise dos dados optamos, na parte II do trabalho, em separar um capítulo para

detalhar como ocorre a educação musical na rede municipal de São Carlos,

oferecendo maior detalhamento em alguns pontos que são considerados

importantes para o trabalho e que merecem minúcia. Todas as considerações

contidas nos próximos capítulos são fundamentadas nas entrevistas e as citações

são dados das mesmas.

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PARTE II – Resultados e discussão

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CAPÍTULO 3 – O ENSINO DE MÚSICA NA REDE MUNICIPAL DE SÃO CARLOS

Primeiramente, analisando a questão de infra-estrutura e estrutura a partir dos

dados coletados, percebe-se que a prefeitura de São Carlos está empenhada na

implantação do ensino de música, promovendo, por exemplo, a contratação de

profissionais com formação específica na área, o que sugere perspectivas positivas

para os próximos anos quanto à educação musical na cidade.

Segundo Patrícia, envolvida diretamente nesse processo, o município atua na

criação de um Plano Municipal de Educação que, daqui a alguns anos, beneficiará

diretamente as unidades escolares da rede. Dessa forma, o ensino de música tende

a continuar e a ser ampliado:

(...) acho que daqui a dez anos, ainda mais que a gente está trabalhando no plano municipal de educação, acho que daqui a dez anos a gente vai ter salas ambiente e o aluno vai passar pela sala e aí vai ter uma sala de música e aí vai facilitar seu trabalho. E as salas vão ser mais reduzidas (Patrícia, entrevista concedida, s/p.).

Outro destaque possibilitado via Secretaria da Educação é a previsão do

recebimento de materiais. Segundo Mateus Ferreira, educador musical concursado

pela prefeitura:

(...) está para chegar material, acho que isso São Carlos também está um passo a frente. A gente fez o pedido de compra, chegaram os instrumentos. Eu acho que nós demos um salto a frente de muitas outras cidades e governos com isso (id., entrevista concedida, s/p.).

Em relação à sistemática de atuação dos educadores musicais, atualmente

existe uma equipe de sete pessoas. Devido a esse período de adequação da

máquina pública para a implantação da nova lei, não existe o número de

profissionais ideal para todas as escolas. Segundo a Secretária municipal de

Educação, Lourdes Moraes “(...) se não tivesse o problema da folha de pagamento,

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a gente teria contratado muitos professores de música. É que a gente vai ter que ir

devagar (...) [teremos que ir] aos pouquinhos!” (id., entrevista concedida, s/p.).

Além da questão da folha de pagamento, um ponto interessante levantado

pela secretária é a falta de profissionais com habilitação específica:

Nem tem [educadores musicais formados em número suficiente], na prática, se você quer saber. Nós prestamos, fizemos concursos e já chamamos todo mundo. Não tem mais ninguém (id., entrevista

concedida, s/p.).

Diante dessa realidade, os sete profissionais atuam de uma forma que

permita a atender a todas as escolas municipais da cidade. Segundo Mateus

Ferreira, os sete profissionais estão atuando nas escolas de educação básica, as

chamadas EMEBs (Escolas Municipais de educação Básica). Patrícia relata como se

deu o primeiro contato entre a rede municipal de ensino e a música, partindo da

perspectiva de otimizar a atuação de poucos profissionais:

A gente acabou conseguindo formar uma equipe de sete pessoas e aí chegamos a propor no começo do ano para as diretoras, fazer um curso de formação para os professores para nossa atuação ser essa. [...] A gente fez essa proposta de sensiblização, de mostrar para o professor o que era educação musical, porque a gente ouviu várias concepções do que eles achavam. (Patrícia, entrevista concedida, s/p.).

Já em relação à postura, concepção e forma de atuação dessa equipe,

Mateus Ferreira relata:

A gente está atendendo só as escolas que são as EMEBs, que são escolas de educação básica [...]. A gente está experimentando muita coisa [...]. Nós temos uma linha de pensamento muito próxima. A maioria veio da UFSCar e a gente vai trabalhar em cima do que a gente já conhece (id., entrevista concedida, s/p.).

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Pelo fato de todos os sete profissionais serem formados pela mesma

Universidade, a UFSCar, há uma facilidade de elaborar estratégias e objetivos,

segundo o relato acima. Parece que de maneira sólida ou não, a idéia da educação

musical não focada em um instrumento específico, presente no curso de

Licenciatura em Música desta Universidade, aparece de forma recorrente nas três

instâncias aqui estudadas. Nas palavras de Patrícia:

E a gente tentou levar essa proposta de educação musical que não precisa ser necessariamente o ensino de um instrumento; a gente pode trabalhar muito com a escuta, trabalhar com a escuta de música instrumental porque na escola você trabalha geralmente canção e a professora está focada na letra da música (id., entrevista

concedida, s/p.).

Segundo ainda o pensamento da Secretária de Educação:

A música deve fazer parte não da grade curricular, como apenas uma disciplina que o professor entra na sala e busca ensinar teorias ou música e depois sai. Na verdade, o que a gente imagina hoje da música na escola é que ela possa estar presente em todas as disciplinas, em todos os temas, de forma muito mais interativa, lúdica e prazerosa do que um ensino de música mais formal como existia antigamente (Lourdes, entrevista concedida, s/p.).

Percebe-se, pela fala acima, que a visão de educação musical manifestada

pela secretária transcende o componente curricular obrigatório ARTE, presente nos

currículos das escolas de educação básica brasileiras. Essa visão pode ser vista de

duas formas: sob a ótica da interdisciplinaridade, onde se busca que as disciplinas

interajam entre si, mudando a visão do professor isolado em sala de aula

ministrando apenas o seu conteúdo; ou ainda sob a ótica da postura contextualista

de ensino de arte, onde se busca “[...] em primeiro plano a formação global do

indivíduo, voltando-se para aspectos psicológicos ou sociais” (PENNA, 2006, p. 37

apud BRONZATTI, PAGLIACCI e GALIZIA, 2011, p. 1750). Já a postura

essencialista “consiste no ensino da música ou da arte como finalidade e não como

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um meio de ensino de Arte” (BRONZATTI, PAGLIACCI e GALIZIA, 2011, p.1750). A

música é, portanto, utilizada para melhorar a atenção dos alunos, auxiliar em uma

disciplina, melhorar comportamento etc. e não como um fim em si mesma.

Em uma fala posterior, ainda mantém-se a dúvida sobre a concepção de

ensino de música presente na fala da secretária, aparentando que este discurso

oscila entre as posturas contextualista e essencialista. Ou seja, os conteúdos

musicais, a performance, composição e improvisação tem seu valor, independente

se servirão de apoio a uma aula de inglês, por exemplo, ou não.

Eu acho que a música é um instrumento de buscar outros conhecimentos, é através da música que você pode ensinar um monte de coisas prazerosas [...] Agora, eu também acho que a música, ela por si só, o ensino de música por si só, ele é extremamente importante. Importante por quê? Porque faz com

que o aluno perceba coisas que no dia a dia ele não percebe: os sons. A educação musical com essa proposta, ela pode transformar muitas escolas [...] mas o canto orfeônico era perfeito. Não tinha uma notinha fora do lugar. Hoje não precisa tanto assim, né?

Essa proposta, isso aqui é muito bom (LOURDES, entrevista concedida, s/p. – grifos nossos).

Apesar d/esse fato, é possível constatar no discurso de Patrícia o enfoque na

postura essencialista, além da preocupação com a formação musical do profissional

e com o resultado musical que ele deve buscar com seu grupo de alunos:

Conteúdo [musical] eu acho importante [...] tem que existir! [...] O professor tem que saber o conteúdo, tem que ter embasamento. De preferência que ele toque um instrumento harmônico [...] que não seja um professor qualquer que dá aula de música [...]. Então a gente espera que tenha formação em música e que essa formação não seja só em música, mas que ele tenha esse preparo pra chegar na escola e saber o que se espera [...] (Patrícia, entrevista concedida, s/p.).

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Mateus, que atua diretamente na sala de aula, tenta alcançar um equilíbrio

entre as posturas essencialista e contextualista, como advogam Bronzatti, Pagliacci

e Galizia (2011). Segundo o entrevistado:

A educação musical tem o lado humanizador e tem o lado do aluno entender uma pauta, entender uma partitura, entender uma escala. Eu acho que cabe a nós encontrar essa união, essa ponte [...] Em que momento você vai passar só do lúdico pra leitura musical? Em que momento você vai fazer a ponte da batida do pulso pra escrita da semínima, das figuras musicais. (Mateus, entrevista concedida, s/p.).

Portanto, podemos pressupor que os profissionais com formação na área de

educação musical tendem a buscar um ensino essencialista ou misto, enquanto que

os profissionais de fora da área possuem ainda uma visão mais idealizada do ensino

de música, no sentido de supervalorizar elementos que fogem da alçada da

educação musical. Para tanto, baseiam-se em princípios do chamado

contextualismo. Não que esses elementos não sejam importantes, mas Essa

conclusão necessita de maiores estudos e foge do escopo desta pesquisa, mas se

faz importante porque, dependendo do embasamento dos discursos (contextualista,

essencialista, interdisciplinar etc.) o ensino de música nas EMEBs ocorrerá de uma

maneira totalmente diferente.

Uma vez colocado como se dá o ensino de música na rede municipal de

ensino de São Carlos, senti a necessidade de discorrer sobre a importância do

ensino de música na escola na visão dos entrevistados. Analisando os diferentes

discursos, percebe-se que todos consideram o ensino de música como algo

importante. Nas palavras de Lourdes, “eu acho que [o ensino de música nas EMEBs]

é fundamental” (id., entrevista concedida, s/p.). Já Patrícia diz que o ensino de

música é um conteúdo obrigatório para formar o cidadão e não é focado apenas em

aspectos técnicos. No entanto, os conteúdos específicos estão presentes:

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É importante [...] quando a gente fala de educação básica a gente está falando na educação que é oferecida para as pessoas obrigatoriamente [...] E, dentro do currículo da educação básica, você tem um monte de temas agora que são obrigatórios. [...] eu acho que a música é um desses conteúdos que servem pra formar o cidadão. A educação básica dá uma base pra pessoa transformar-se num cidadão. Por isso que é básica. [...] Mas quando que eu formo o cidadão? Quando eu ensino pra ele conteúdos específicos de todas as disciplinas, pra ele entender matemática, pra ele entender música. [...] a gente não pensa que a aula de música é uma lousa e você escreve pautas e a criança vai ficar cantando (Patricia, entrevista concedida, s/p.).

Mateus, na mesma linha de pensamento, afirma:

(...) acho que todo o ser humano tem o direito de aprender música e fazer música (...) eu acho que quando você tira a oportunidade de a pessoa aprender música, é um universo que você está negando pra essa pessoa, você está deixando de oferecer (...) (id., entrevista concedida, s/p.).

Portanto, todos os entrevistados consideram o ensino de música como algo

extremamente importante de ocorrer na escola pública. Essa opinião se reflete,

diretamente e, com efeito, nas ações da secretaria municipal de educação como, por

exemplo, a contratação de professores com formação específica na área, a criação

de uma equipe de trabalho inteiramente voltada para o ensino das artes nas EMEBs,

dentre outras. A partir disso, no capítulo seguinte abordarei o discurso da qualidade

musical propriamente dito.

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CAPÍTULO 4: O DISCURSO DA QUALIDADE EM MÚSICA

4.1: ANALISANDO OS DISCURSOS

Para facilitar a análise referente a um possível discurso da qualidade, serão

detalhadas as diferentes visões partindo da esfera política para a pedagógica, ou

seja, das palavras da secretária municipal de educação ao professor de música

inserido em sala de aula.

Lourdes afirma que a escola não é um espaço de reprodução das músicas

veiculadas pela mídia e que “a escola tem que usar esse espaço e esse tempo para

poder explorar, na verdade, outros conhecimentos, outras culturas” (id., entrevista

concedida, s/p.). Sem cair no mérito de classificá-las como boas ou ruins, percebe-

se que a entrevistada possui um discurso da qualidade quando diz que a escola tem

a função de ensinar a apreciar uma “boa música”:

Não estou dizendo que elas são boas ou são ruins, eu estou dizendo é que a escola não é espaço pra você, na verdade, ensinar música sertaneja. Isso a criança ouve na escola, na casa, na rua, no carro e uma série de coisas [...] aqui também a gente precisa ensinar a criança a ser um bom apreciador da boa música, né? [...] (id.,

entrevista concedida, s/p. – grifos nossos).

Analisando sua fala, é possível perceber uma tentativa de flexibilizar sua

opinião acerca da música midiática, sem aparentar uma postura conservadora,

desatualizada. Torna-se evidente tal aspecto quando afirma que, na literatura,

ensinaria Paulo Coelho, mas com o objetivo de, um dia, chegar a Machado de Assis:

Assim como na literatura a gente lê Paulo Coelho. Lê Paulo coelho, mas não pode ficar aí. O segredo da coisa não é ficar no Luan Santana, não é verdade? Você põe Luan Santana todo mundo toca, todo mundo... mas aí você pula, né. O segredo está aí. [...] Mas não

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tem importância, mas um dia você chega em Machado de Assis.

(Lourdes, entrevista concedida, s/p – grifos nossos).

Tal postura aparece, também, quando afirma que o ensino de funk se justifica

desde que haja o intuito de expor seus pontos negativos:

[...] o funk, dentro da escola, se ele for orientado no sentido de, de mostrar, por exemplo, quantas músicas funk fazem apologia a coisas que não são boas, vamos dizer assim, entendeu!? ...pode até fazer [o ensino de funk nas escolas] (id., entrevista concedida, s/p.).

Por fim, a entrevistada afirma: “agora, o problema da música na escola é a

qualidade, a qualidade da música” (id., entrevista concedida, s/p.).

Já Patrícia apresenta opiniões por vezes semelhantes à de Lourdes e, em

outras, diferente. Segundo a entrevistada, o professor deve sim se aproximar da

música dos alunos e trazê-la para dentro de sala de aula, porém o professor deveria

escolher quais elementos da música midiática trabalharia em sala de aula: “Eu não

trabalharia uma letra de funk que falasse o que eu não queria falar pra criança

dentro da aula, sabe? A letra eu não trabalharia. Mas o ritmo eu acho muito legal e

eles fazem isso muito fácil.” Não que Patrícia seja contra observar e utilizar a cultura

do aluno em sala de aula. Conforme ela mesma afirma:

Eu acho interessante [conhecer os estilos musicais dos alunos] porque a educação você trabalha com pessoas, né? Você não vai lá e só fala o que vem na sua cabeça. Tem que entender as pessoas [...] Conhecer o gosto musical você conhece muito dos seus alunos [...] Vamos estudar a realidade do aluno. No começo eu achava meio besta, mas é importante [...] (Patrícia, entrevista concedida, s/p.).

Patrícia atenta para o fato de que há uma disparidade entre a tecnologia que

o aluno conhece e a que os professores dominam:

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Você vê que as crianças chegam com pendrive, mas não tem

computador na sala de aula. Chegam com rádio e o professor não sabe usar igual a ela. As crianças estão muito além [...] Eu acho que é um problema então a escola não ter esses recursos e a criança ter em casa e essa diferença de geração do aluno e professor (id., entrevista concedida, s/p.).

Essa fala de Patrícia reitera o apontado por Galizia (2009) quando afirma que

uma das possibilidades dos professores não utilizarem as músicas dos alunos em

suas aulas é o fato delas serem calcadas em novas tecnologias, não dominadas

pelos professores. Ainda segundo o autor, a ausência deste conhecimento e

habilidade pelos professores advém da ausência destes mesmos conhecimentos e

habilidades nos currículos dos cursos de licenciatura em música, enquanto

responsáveis pela formação dos educadores musicais que atuarão nas escolas.

Ainda na sua visão, Patrícia acredita que a educação musical tem a função de

mostrar caminhos para as pessoas, no sentido de possibilitar aos alunos uma

escolha consciente do que desejam ouvir:

Eu acho que [a produção midiática] tem seu valor, mas, e acho que a educação musical na escola vai fazer as pessoas poderem escolher o que ouvir, poderem buscar o que ouvir. Não que a educação musical, nossa, a educação musical vai salvar as pessoas (id., entrevista concedida, s/p.).

E, por fim, Patrícia levanta um ponto interessante: se o profissional não se

sente preparado para desenvolver, em sala de aula, uma linguagem proposta pelos

alunos, ele não deve fazê-lo:

E o repertório, é importante você pensar sobre o repertório. Mas também, além de você ter que escutar o que o aluno escuta, ou conversar com ele sobre os tipos de músicas, é importante que você trabalhe o repertório que você tenha familiaridade, também [...] O fato do profissional não trabalhar com um determinado estilo, pode ser por falta de familiaridade e não por preconceito (id.,

entrevista concedida, s/p – grifos nossos).

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Para finalizar este capítulo, serão analisadas as falas do discurso de Matheus,

que vão ao encontro com algumas idéias de Patrícia. A começar pela segurança que

o profissional deve ter para trabalhar conteúdos dos alunos em aula:

Eu acho que, acima de tudo, se o educador musical não se sente à vontade em trabalhar com isso [com a música dos alunos], ele não deve. Porque aí ele vai dar um tiro no pé. O aluno vai perceber, o aluno percebe quando o professor não está preparado e aí o aluno toma conta. E se você transparece pro aluno que você não está preparado, você corre o risco de perder aquela turma pro resto do ano. (id., entrevista concedida, s/p.).

Diferentemente de Lourdes, Mateus acredita que a escola é um espaço de

continuação da vida do aluno e, nem por isso, deixa de ter coisas interessantes a

oferecer:

A mídia está aí [...] Eu acho que não dá pra separar escola da vida. A escola faz parte da vida. O aluno chega na escola com uma carga que ele trás no dia-a-dia dele e eu acho que cabe à escola trabalhar com o que ele trás também [...] A escola não pode ser um espaço à parte da vida do aluno. Faz parte da vida do aluno. É a vida dele. Ele está lá todo o dia. [...] A escola não tem que trabalhar em função disso. A escola tem coisas pra dar também. (Mateus, entrevista concedida, s/p. – grifos nossos).

Apesar de ser um árduo fã de Beatles e “uma cria do rock”, como ele mesmo

se denomina, Mateus não deixa seu gosto pessoal interferir na sua atuação

profissional:

(...) Eu acho que o educador musical tem que procurar se abrir ao máximo. Senão ele não vai conseguir lidar com tudo o que tem dentro da escola (...) eu não vou chegar em casa e ficar ouvindo Luan Santana e falar que eu curto pra caramba, mas eu não tenho

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problema nenhum em entrar em uma sala de aula e cantar uma música dele. Eu consigo isso numa boa. Inclusive, toco em banda de baile há um bom tempo. Sempre tive que lidar com vários estilos

musicais. (id., entrevista concedida, s/p.).

Mateus ainda discorre sobre a necessidade de participar, de alguma forma,

do universo dos alunos, se aproximando da visão de Patrícia:

Eu acho que é legal em algum momento ter essa conversa com eles, entrar no universo deles. E, na verdade é um universo que eles mesmos não conhecem tanto, não é? Pra alguns eu perguntei [referindo-se à uma experiência em sala de aula]: vocês acham que funk já existia há dez anos atrás? Ah não, não existia. Eles têm 10, 11, 12 anos. Pra eles 2001 é pré-histórico. Então, eu acho que é uma maneira de eles entenderem também o que eles estão ouvindo [...] a gente tem que esclarecer pra eles o que é isso [...] e isso não exclui o fato de eu querer trabalhar com outras coisas né. Eu posso levar uma música clássica [...] acho que depende muito como você leva pra turma, como que você coloca (id., entrevista concedida, s/p.).

Percebe-se que a questão dos gostos musicais pessoais não se apresenta

como fator de influência direta e/ou indireta nas concepções de ensino de conteúdos

musicais a serem utilizados na aula de música nas EMEBs, até mesmo porque os

três entrevistados citaram música brasileira e/ou alguma vertente do rock como

gênero preferido. O que mais influencia, em nosso entender, é a formação

específica na área, pois, na coleta de dados as concepções de música dos dois

educadores musicais são semelhantes entre si e divergentes da secretária, Lourdes.

Conclui-se, a partir do estudo realizado, que o discurso da qualidade musical

está presente, de forma velada ou aparente, nas falas dos entrevistados. Em relação

aos dois entrevistados com formação específica em educação musical, percebe-se

uma postura embasada em experiências em sala de aula, tornando essa postura

mais próxima da realidade dos alunos. No entanto, percebe-se certa herança do

discurso da qualidade musical quando relatam a dificuldade inicial de suas funções

que foi relacionada, principalmente, ao repertório utilizado. Já Lourdes Moraes,

talvez por não possuir formação específica em educação musical, apresenta uma

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visão um pouco mais romântica sobre o ensino de música, e esta visão utiliza o

discurso da qualidade musical para validar suas ações pedagógicas. Porém,

ressalta-se que a entrevistada considera as possibilidades de aproximação do

repertório do aluno válidas, ao mesmo tempo em que preza pela qualidade musical

do repertório trabalhado em sala de aula.

4.2: Possíveis Implicações no Ensino de Música

A hipótese levantada neste trabalho é a de que gêneros musicais veiculados

pela mídia, comumente verificados como estilos preferidos pelos alunos, são

excluídos pelos profissionais do ensino de música devido a um preconceito estético

e social que não permite tais gêneros de serem classificados como “música boa”.

Foram entrevistados três profissionais que estão envolvidos direta e

indiretamente com o ensino de música nas escolas municipais de São Carlos: a

Secretária de Educação, uma assistente pedagógica (com formação específica em

educação musical) e um educador musical. A partir do que apresentaram nas

entrevistas, pretendemos tecer algumas considerações.

O primeiro ponto é que não é pertinente afirmar que os gêneros midiáticos rap

e funk aparecem em peso nos indivíduos de idade escolar, pois Mateus Ferreira

afirma que, em seu levantamento feito em sala de aula sobre quais as músicas

preferidas dos alunos, a categoria “música evangélica” é marcante no bairro de sua

escola. Além disso, como estagiário em uma oficina da disciplina de estágio

supervisionado, tive a experiência de generalizar previamente as preferências

musicais de meus alunos. Estava certo de que funk, rap e sertanejo universitário

seriam os de maior incidência. Ao chegar à escola, me deparei com alunos ávidos

por samba enredo e outros interessados em rock. Ou seja, cada escola tem uma

realidade. É, no mínimo, preconceituoso assumir tal postura antes de tomar

conhecimento da situação.

Outra questão levantada está relacionada à formação do professor. Tanto

Mateus quanto Patrícia afirmaram que, se o profissional não se sente à vontade para

trabalhar com funk ou rock, por exemplo, partindo do princípio que estas músicas

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não lhe sejam familiares, não deve fazê-lo. Tal afirmação coloca outra dimensão da

situação: a de que realmente há uma distinção social que gera uma distinção de

estéticas musicais entre os professores, mas esse elemento está presente antes

mesmo de se falar em sala de aula. A idéia do preconceito, da preferência de uma

estética musical a outra, verificada em muitos profissionais, só deixaria de existir,

possivelmente, se as pessoas oriundas dos universos do funk, rap, sertanejo,

pagode, rock, música eletrônica, música indígena, entre outros, tivessem acesso à

formação do ensino superior, tendo em vista que é esta quem dá à classe dos

profissionais do ensino de música, o capital cultural e intelectual e o direito a ocupar

a posição de professores da educação básica. Esta possível conclusão necessita de

mais estudos para ser referendada, fugindo do escopo e propósito deste trabalho.

Somado a isso, uma vez que esses grupos sociais não possuem acesso aos

cursos de licenciatura e, consequentemente, à posição de professor de música,

esperar do profissional inserido em sala de aula uma “polivalência” em outras

linguagens musicais que não a sua específica pode ser considerada um desperdício

do conhecimento que tal profissional possui ao mesmo tempo em que se priva o

aluno de ter acesso a essa linguagem, mesmo que esta lhe pareça distante,

elitizada.

Para justificar, então, que seria interessante a formação de profissionais

oriundos de diversas culturas e classes sociais e econômicas, a fala de Mateus

Ferreira sobre o assunto vem corroborar a idéia de que se cria uma conexão

professor-aluno com a utilização de tal repertório:

Eu usei então uma coisa que eles trouxeram e desenvolvi a aula em cima disso. O conteúdo que eu queria trabalhar que era percussão corporal, sons do corpo, com uma coisa que eles trouxeram pra mim (...) aí rolou funk, rap, sertanejo, várias coisas, música evangélica, que é muito forte na periferia também, e a gente fez um levantamento e eu falei pra eles escolherem uma música que fosse consenso da sala que todo mundo gostasse [...] E fiz isso em vários quintos anos. Eu ganhei os quintos anos desse jeito. E, não vi

problema nenhum [em trabalhar com essas músicas]. É o som que eles ouvem, que eles gostam, faz parte, não adianta querer negar. [...] o educador musical tem que levar coisas diferentes para a turma, mas você tem que falar a língua deles, senão você está perdido

[...] (id., entrevista concedida, s/p. – grifos nossos).

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Analisando a fala de Mateus, é possível perceber, no último trecho, a idéia

de se valer do repertório dos alunos para atraí-los, funcionando aquele como uma

espécie de “isca”, como já havia sinalizado Lourdes anteriormente. É uma pequena

influência do discurso da qualidade, mencionado neste trabalho, embora sua postura

seja equilibrada e sem preconceitos com determinados gêneros. Outra leitura pode

ser feita do mesmo trecho: ao falar da conexão professor-aluno que é criada a partir

do uso de um repertório midiático, Mateus reitera a importância de o educador

musical valorizar a cultura do aluno para que o trabalho seja fluente. A linha que

separa essas duas interpretações é tênue e, portanto, difícil de chegar a uma

conclusão. Em outras palavras: utilizar o discurso musical do aluno como “isca” para

o discurso musical do professor é, de fato, valorizar e legitimar a música dos alunos?

Podemos supor que, por exemplo, se o rap fosse “legitimado”,

academicamente falando, outra manifestação musical de resistência surgiria. É uma

questão que está intimamente ligada com os conflitos das classes sociais, como

afirma Bourdieu (1983). Contudo, pensando no atual cenário do reingresso da

educação musical nas escolas brasileiras, os educadores musicais, as escolas e os

próprios alunos terão a ganhar com essa escola que, segundo Mateus, “está

passando por um momento aí que acho que de redefinição. Então acho que é uma

questão: o olhar da escola também tem que mudar” (id., entrevista concedida, s/p).

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Capítulo 5: Considerações Finais

A partir do embasamento teórico construído, podemos supor que a resistência

a outro valor, a outro costume e, no caso dessa pesquisa, à outra cultura e, mais

especificamente, à outra estética musical, está mais relacionada a um conflito de

classes sociais, que se dá através da negação da cultura do outro, do que

propriamente à valores estéticos específicos, visto que estes são culturalmente

construídos.

Com esse pressuposto em mãos, levantamos a hipótese de um possível

discurso da qualidade entre os profissionais do ensino de música. Essa hipótese é

reiterada, em partes, pelos dados levantados. Digo em partes, pois os dados

sugerem que a formação específica em educação musical permite ao profissional

construir uma postura mais fundamentada em relação à produção midiática e a

legitimidade – e funcionalidade – de seu uso em situação de ensino, ao contrário do

preconceito de classes, exclusivamente.

As falas dos entrevistados apresentam pontos em comum, como, por

exemplo, a importância do ensino de música nas escolas e a necessidade de se

olhar para a cultura musical do aluno e, de alguma forma, levá-la em consideração.

No entanto, a forma como esse conteúdo deve aparecer e sua legitimidade no

ambiente escolar são os pontos divergentes entre os entrevistados, onde o discurso

da qualidade é mais visível. Há os que consideram legítima sua utilização, com

algumas restrições, e ainda os que acreditam ser importante seu uso, desde que

preservada a qualidade e o bom nível musical, já que esse seria o papel da escola.

Não há um consenso de qual música deve ser ensinada nas escolas. A partir

dos dados levantados, observo que o ponto convergente é a necessidade de utilizar

a musica do aluno e não rejeitar a cultura midiática a que, em muitas vezes, este

aluno é exposto. Tal ponto é um avanço, conforme é defendido nesse trabalho.

Acreditamos que a discrepância entre a música que se ouve e a que se ensina só

tem a contribuir para a falta de diálogo professor–aluno prejudicando, desse modo, o

ensino de música de uma maneira geral.

Contudo, é importante considerar o momento histórico por que passa as

redes públicas e privadas de educação escolar e, conseqüentemente, os

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profissionais do ensino de música do país inseridos em tal contexto. A situação é de

transição de um modelo de escola que há tempos não ouvia falar de ensino de

música para um modelo onde a chamada educação musical passa a vigorar a partir

de uma lei1.

Portanto, é totalmente compreensível tomar o conhecimento de relatos de

profissionais que ainda estão construindo uma postura de trabalho juntamente com

os gestores de educação, isso sem levar em consideração as grades curriculares

dos cursos superiores de licenciatura em música, a concepção de música adotada

nos mesmos, e qual o olhar que possuem para o efervescente mundo tecnológico.

Mais pesquisas dessa natureza são necessárias, pois a educação musical na

escola vai ensinar que conteúdos? Essa questão, a nosso ver, não pode ser

abandonada. Em relação ao preconceito de músicas de outras classes, baseado na

idéia de distinção de Bourdieu (1983), acreditamos que ele existe, mas pode não

estar presente, necessariamente, nos educadores musicais inseridos na escola, mas

sim, no próprio processo de formação de profissionais em nível superior, que pode

ser entendido como um processo que segrega e é restrito a determinadas classes

sociais. Esta hipótese, no entanto, necessita de outras pesquisas para ser

corroborada.

1 Lei 11.769, de 18 de Agosto de 2008 que torna obrigatório o conteúdo “música” no componente

curricular Arte nas escolas de educação básica.

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Referências

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APÊNDICE A - Roteiro da entrevista

1. Na sua opinião, qual é a importância de se ensinar música nas escolas

públicas de educação básica?

2. Na sua visão, como o ensino de música está ocorrendo nas escolas de

são carlos?

3. Na sua opinião, qual deve ser o papel da escola frente às novas

tecnologias em música (MP3, internet etc.)? Isso é um problema para a escola?

4. Que tipo de música você gosta de ouvir?

5. Porque você gosta desse tipo de música?

6. Na minha pesquisa, trabalho com um referencial teórico que define a

indústria cultural como sendo a "transformação da cultura em mercadoria, ou seja,

ao fato de as obras de arte passarem a ser criadas em função do lucro que geram e

não por sua qualidade estética e técnica". Na sua opinião, qual deve ser o papel da

escola frente à produção de música midiática?

7. Você conhece os estilos musicais que os alunos da escola pública ouvem

ou gostam? O que acha deles?

8. Você acha que os professores de Arte das escolas públicas deveriam

trabalhar com esses estilos musicais? Por que?

9. Se sim, de que forma?

10. Se não, com quais músicas ele deveria trabalhar e de que forma? Por

que? (explicar bem isso, justificando a escolha da pessoa).

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11. Existe mais alguma coisa que você queira comentar sobre o que

conversamos?

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APÊNDICE B – Termo de Consentimento

Eu, ________________________________________, carteira de

identidade número ______________________, declaro, para os devidos fins,

que consenti participar de seções de entrevistas, gravadas em áudio, para

pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para o curso de Licenciatura

em Educação Musical da UFSCar, desenvolvida por Matheus Felipe de Oliveira

Pagliacci, carteira de identidade número 46.233.655-4. Da mesma forma, declaro

que estou ciente dos procedimentos de coleta de dados a serem utilizados, bem

como de que, caso eu manifeste interesse, os dados obtidos estarão protegidos

por sigilo e minha identidade permanecerá no anonimato.

Data: ____/______/_______

Assinatura: __________________________________

( ) Desejo que minha identidade permaneça no anonimato e, para

utilização dos dados coletados por meio desta entrevista, seja usado o

pseudônimo:_____________________________.

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