comunicacao visualidades e diversidades na amazonia

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Organizadores: Netília Silva dos Anjos Seixas, Alda Cristina Costa, Luciana Miranda Costa. – Belém : FADESP, 2013

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  • COMUNICAO:visualidades e diversidades na amaznia

  • COMUNICAO:visualidades e diversidades na amaznia

    Netlia Silva dos Anjos Seixas

    Alda Cristina Costa

    Luciana Miranda CostaOrganizadoras

  • C741 Comunicao : visualidades e diversidades na Amaznia / Organiza-dores Netlia Silva dos Anjos Seixas, Alda Cristina Costa, Luciana Miranda Costa. Belm : FADESP, 2013.

    324 p. : il. (Comunicao, cultura e Amaznia ; v. 6)

    ISBN 978-85-62888-09-0

    1. Comunicao Amaznia. 2. Comunicao e cultura Amaznia. 3. Comunicao Pesquisa Amaznia. I. SEIXAS, Netlia Silva dos Anjos, org. II. COSTA, Alda Cristina, org. III. COSTA, Luciana Miranda, org. IV. Srie.

    CDD 23. ed. 302.23

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • Sumrio

    7 Apresentao da srie

    9 Apresentao do livro

    17 Comunicao da ecologia ou ecologia da comunicao?Adriano Duarte Rodrigues27 Crio de Nazar: celebraes, divergncias e rupturasAntonio Fausto Neto51 A travessia do Sair: uma perspectiva ecossistmica e semiticaNair Santos Lima

    Itala Clay de Oliveira Freitas

    73 Imagem e sociedade na AmazniaFbio Fonseca de CastroMarina Ramos Neves de Castro

    97 Pelas ruas de Belm: a srie fotogrfica Corte Seco, de Alberto BitarAna Shirley Penaforte CardosoIvnia dos Santos Neves

    123 Cincia e mdia na regio Norte brasileira: um estudo sobre trs jornais paraenses em 130 anosLuisa MassaraniVanessa Brasil de CarvalhoNetlia Silva dos Anjos Seixas

  • 147 Paradigmas cientficos para o estudo dos ecossistemas comunicacionaisSusy Elaine da Costa FreitasMirna Feitoza Pereira

    175 A comunicao e a diversidade cultural: desafios para uma proposta de ao no Estado do AcreJos Mrcio BarrosGiselle Xavier Lucena

    199 Entre o ambiental e o poltico: o discurso jornalstico sobre o novo e polmico Cdigo Florestal BrasileiroLuciana Miranda Costa

    223 A atualizao de uma relao colonial: desconstruindo valores na disputa jornalstica pela Amaznia Ada Cristina Machado SilveiraTabita Strassburger

    247 Um estudo da Amaznia do Globo ReprterJuliana VicentiniAntonio Almeida

    269 Pesquisa em jornalismo na e sobre a Amaznia: promoo e qualificao do debate acerca da questo ambientalAllan S. B. Rodrigues

    293 Marcas do discurso polmico no artigo O rei da quitanda, de Lcio Flvio PintoDaniella Rubbo RondelliMaria do Socorro Furtado Veloso

    Sobre os autores

  • Esta edio, Comunicao: visualidades e diversidade na Amaznia, significa a continuidade da srie Comunicao, Cultura e Amaznia, projeto pensado em 2005 pelos professores da Faculdade de Comunicao (FACOM)

    da Universidade Federal do Par (UFPA) e materializado cinco anos

    depois com a publicao do primeiro volume. No momento inicial, o

    projeto foi coordenado pela professora Regina Lcia Alves de Lima e,

    depois, continuado pela professora Maria Ataide Malcher. A primeira

    edio, com o tema Pesquisa em Comunicao na Amaznia, reuniu pro-dues de diferentes pesquisadores dedicados a compreender a com-plexidade que envolve as questes comunicacionais nesta regio e teve

    um carter endgeno.

    J a segunda edio, em 2011, com o tema Comunicao midiatizada na e da Amaznia, teve chamada aberta para todo o Brasil e a participao de pesquisadores de vrios estados do pas, sinalizando para o ama-durecimento da proposta. J nessa edio, todos os textos submeti-dos foram avaliados pelo conselho editorial da coleo, composto por

    respeitados pesquisadores da rea, em sistema duplo cego, de acordo

    com as diretrizes divulgadas na chamada nacional para composio da

    publicao.

    A partir desse momento, houve parceria com o Programa de Ps--Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do

    Amazonas (UFAM) e as edies passaram a ser feitas conjuntamente,

    ora organizadas por um programa, ora por outro, nos perodos seguin-

    Apresentaoda srie

  • tes, at esta edio. Foram organizados pela UFAM os livros Estudos e perspectivas dos ecossis-temas na Comunicao e Processos comunicacionais: tempo, espao e tecnologia, ambos em 2012. Para a publicao de 2013, o conselho editorial foi acrescido e a avaliao dos textos submetidos

    seguiu o mesmo processo adotado desde o volume dois.

    Com este volume, temos elementos que nos permitem afirmar que a srie Comunicao, Cultura e Amaznia est se estabelecendo como espao para os estudiosos do campo da comunicao que escolheram centrar seus esforos investigativos na Amaznia, o que

    espervamos quando do lanamento do ttulo inicial. O que aqui relatamos parte dos

    esforos dos dois programas para a consolidao da pesquisa e o fortalecimento do campo

    da comunicao em nossa regio.

    Regina Lcia Alves de Lima

    Maria Ataide Malcher

    Itala Clay de Oliveira Freitas

    Maria Emlia de Oliveira Pereira Abbud

    Editoras

  • Apresentaodo livro

    Comunicao: visualidades e diversidades na Amaznia o ttulo deste volume, publi-cado pelo Programa de Ps-Graduao Comunicao, Cultura e Amaznia da Universidade Federal do Par e pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas. A obra faz parte da srie Comunicao, Cultura e Amaznia, iniciada em 2010 com a publicao de produes de professores da Faculdade de Comunicao da UFPA. Mas a ideia no era se limitar a uma publicao endgena e, a partir do segundo volume, com chama-das abertas para todo o Brasil, as edies seguintes tiveram captulos de autoria de pesquisadores de vrios estados do pas, sempre conectando comunicao e Amaznia na abordagem, a partir de uma temtica determinada para o volume. O mesmo se d nesta edio, que rene treze trabalhos de autores de oito estados brasileiros Acre, Amazonas, Minas Gerais, Par, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e So Paulo - e de Portugal.

    Nesta obra, o leitor encontrar captulos que buscam seguir uma sequncia te-mtica, passando de abordagens mais amplas a abordagens mais especficas de

    questes pertencentes realidade da regio.

    No captulo um, Comunicao da ecologia ou ecologia da comunicao?, Adriano Duarte Rodrigues, da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, buscou contribuir para a delimitao dos contornos dos dois entendimentos nos estudos de comunicao a respeito da problemtica ecolgica, nos quais v um equ-voco. Rodrigues percebe dois entendimentos entre os autores, um envolvendo a definio de estratgias comunicacionais, principalmente miditicas, que con-tribuem para a tomada de decises e a adoo de comportamentos ambientais

  • sustentveis, e outro voltado para o estudo da prpria natureza ecolgica dos processos comunicacionais. De forma sucinta e clara, o autor aborda, ento, os dois entendimentos, sem tomar partido por um ou outro.

    No captulo dois, Crio de Nazar: celebraes, divergncias e rupturas, Anto-nio Fausto Neto discorre sobre um fenmeno caro aos habitantes da capital pa-raense: o Crio de Nazar, cuja procisso religiosa catlica principal ocorre no se-gundo domingo de outubro de cada ano, envolvendo uma mdia de dois milhes de fiis e turistas. Na elaborao do seu texto, o autor contou com a vivncia que

    teve do Crio, a ltima vez, em 2013, quando o evento foi realizado pela 221 vez. Da, discutiu os processos de midiatizao do Crio e como os novos e velhos meios atuaram na transformao de uma festa devocional-religiosa em um macroacontecimento [aspas do autor], seguindo lgicas miditicas. Fausto Neto analisou tambm as estratgias comunicacionais materializadas pela circula-o segundo discursividades sociais que fazem do Crio de Nazar uma fonte de complexas operaes de sentidos.

    No captulo trs, A travessia do Sair: uma perspectiva ecossistmica e semi-tica, Nair Santos Lima e tala Clay de Oliveira Freitas fazem uma apresentao dos resultados de pesquisa desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao na Universidade Federal do Amazonas a respeito do Festival Sair, ocorrido em Alter do Cho (Par), em 2012. O Festival ocorre h aproximadamente 350 anos, como resultado do encontro entre indgenas e euro-peus no perodo das misses na Amaznia. Sob uma perspectiva comunicacional, ecossistmica e semitica, as autoras classificaram o fenmeno cultural como um

  • sistema complexo e aberto, no qual os processos comunicacionais constituem-se em prticas de vinculao, em suas aes sociais, construes polticas, arranjos econmicos e propostas de linguagem.

    No captulo quatro, Imagem e sociedade na Amaznia, os autores Fbio Fon-seca de Castro e Marina Ramos Neves de Castro tratam de um saber visual sobre a Amaznia, constitudo historicamente em Belm. Para isso, recorrem sociolo-gia fenomenolgica, a fim de observar como se forma um olhar amaznico nos

    produtores de objetos informativos, miditicos e artsticos que se voltam para o espao regional. A anlise resultado de um estudo de dois anos.

    O captulo cinco, Pelas ruas de Belm: a srie fotogrfica Corte seco, de Alber-to Bitar, de Ana Shirley Penaforte Cardoso e Ivnia dos Santos Neves, transita pela visualidade fotogrfica. Com base nos estudos de linha francesa, as autoras

    lanam-se a dois desafios: analisar imagens e compreender como a fotografia

    paraense produz diferentes sentidos sobre memrias visuais relacionadas vio-lncia urbana. A srie Corte Seco, de Alberto Bitar, foi produzida durante a realizao de pautas para o caderno de polcia de um jornal local na Regio Metropolitana de Belm e formada por imagens de corpos vitimados nas ruas e caladas da cidade. As cores fortes e as cenas borradas pelo uso da baixa velo-cidade do obturador so dispositivos tcnicos que produzem novos sentidos e marcam a singularidade do fotgrafo paraense.

    O captulo seis, Cincia e mdia na regio Norte brasileira: um estudo sobre trs jornais paraenses durante 130 anos, de Luisa Massarani, Vanessa Brasil de Carvalho e Netlia Silva dos Anjos Seixas, entra no universo da divulgao cien-

  • tfica na imprensa paraense em uma perspectiva histrica. As autoras apresentam os resultados de um estudo exploratrio feito no Programa de Ps-Graduao

    Comunicao, Cultura e Amaznia da Universidade Federal do Par sobre a co-bertura de temas cientficos relacionados regio Norte, realizada pelos dirios

    paraenses A Provncia do Par (1876-2002), Folha do Norte (1896-1974) e O Liberal (1946-atual). Usando como mtodo a anlise de contedo, o estudo constatou que os temas relacionados pesquisa em sade predominaram. Houve tambm a presena de questes agrrias e ambientais, evidenciando aspectos naturais e exticos da Amaznia, e o incentivo pesquisa na regio foi ressaltado, assim

    como as novidades da cincia. Os cientistas foram as principais fontes consulta-das, evidenciando a legitimidade dada a esse ator social.

    No captulo sete, Paradigmas cientficos para o estudo da crtica cinematogr-fica na web em uma viso ecossistmica da comunicao, Susy Elaine da Costa

    Freitas e Mirna Feitoza Pereira abordam os subsdios tericos da perspectiva ecossistmica para os estudos da comunicao. Olhando os estudos que tm contribudo para a pesquisa dos ecossistemas comunicacionais na Amaznia, dis-cutem a mudana de paradigma da cincia na contemporaneidade e identificam

    contextos e fundamentos que apoiam a pesquisa do fenmeno comunicacional

    como um objeto complexo de relaes em rede.

    O captulo oito, A comunicao e a diversidade cultural: desafios para uma pro-posta de ao no Estado do Acre, de Jos Mrcio Barros e Giselle Xavier Luce-na, resultado de pesquisas preliminares para a construo de um programa pilo-to para o Estado do Acre, o Comunica Diversidade, com base no Plano Nacional

  • de Cultura, em uma parceria entre os governos federal e estadual. No texto, os

    autores refletem sobre as polticas pblicas para comunicao e cultura adotadas

    pelo Governo Federal e pelo Governo do Acre, apresentando propostas prticas de comunicao para a diversidade cultural na regio, voltadas para a promoo dos processos de produo, veiculao e distribuio de bens e contedos cultu-rais por vias tecnolgicas, como os acervos digitais, e pelos meios presenciais e analgicos existentes.

    No captulo nove, Entre o ambiental e o poltico: o discurso jornalstico sobre o

    novo e polmico Cdigo Florestal Brasileiro, Luciana Miranda Costa apresenta as principais concluses de uma pesquisa de ps-doutoramento, na qual obser-vou o papel da mdia na questo ambiental registrada no Brasil. Neste captulo, a anlise ocorreu sobre as edies da revista Carta Capital de 2010 e 2011, referen-tes ao debate e votao do projeto do Cdigo pelo Congresso Nacional, a partir da semiologia dos discursos sociais e da anlise de discurso de vertente francesa. A premissa que as relaes de comunicao, observadas por meio do discurso jornalstico, so relaes de poder que dependem do capital simblico dos agen-tes e instituies envolvidos. A autora fez um levantamento da imagem dos sujei-tos enunciadores presentes nas edies da revista, de forma positiva e negativa.

    O captulo dez, A atualizao de uma relao colonial: desconstruindo a disputa jornalstica pela Amaznia, de Ada Cristina Machado Silveira e Tabita Strassbur-ger, traz uma abordagem da cobertura jornalstica sobre a diversidade de interes-ses conflitivos na Amaznia. Tendo como mtodo a anlise de contedo, sobre

    as matrias das revistas poca e Isto no ano de 2008 envolvendo as fronteiras

  • brasileiras, o estudo fez um levantamento dos argumentos discursivos e das cate-gorias implicadas e constatou como as abordagens jornalsticas so construdas de modo similar.

    No captulo onze, Um estudo da Amaznia do Globo Reprter, Juliana Vi-centini e Antonio Almeida voltam a ateno para a mdia e o ambiente, tomando como centro a televiso e, mais especificamente, o programa Globo Reprter,

    veiculado semanalmente pela Rede Globo de Televiso. Os autores destacam o papel da televiso como fonte de informaes para o cidado e tambm que a Amaznia tem ganhado projeo internacional pela sua importncia para o fu-turo ambiental da Terra, o que explorado pela mdia. No estudo, o programa

    Globo Reprter considerado como um dos popularizadores de imagens sobre o ambiente, o que motivou a anlise das exibies feitas sobre a Amaznia, em

    2010, por meio da anlise de contedo e da anlise crtica do discurso. Os autores perceberam que a Amaznia foi mostrada como um smbolo da natureza, asso-ciada a um lugar paradisaco.

    No captulo doze, Jornalismo e questo ambiental na Amaznia, de Allan S. B. Rodrigues, a discusso envolve jornalismo e meio ambiente. Para isso, o autor considera que o meio ambiente entrou na agenda dos governos e da socieda-de civil organizada e que h necessidade de posicionar-se de forma esclarecida diante dos desafios impostos humanidade pelas consequncias dos problemas

    ambientais. Assim, a proposta foi discutir o papel do jornalismo praticado na e sobre a Amaznia brasileira sobre essas questes e a contribuio que a pesquisa cientfica pode dar para a qualificao da atividade jornalstica na regio.

  • No captulo treze, Marcas do discurso polmico no artigo O rei da quitanda,

    de Lcio Flvio Pinto, Daniella Rubbo Rondelli e Maria do Socorro Furtado Veloso se propem a explicitar como o jornalista paraense Lcio Flvio Pinto,

    editor do Jornal Pessoal, questiona o papel da maior empresa de comunicao do Norte do Brasil, as Organizaes Romulo Maiorana, a partir do artigo citado, pu-blicado em janeiro de 2005. O Jornal Pessoal publicado desde 1987 em Belm,

    quinzenalmente, em formato A4, sem qualquer tipo de publicidade e com uma tiragem de dois mil exemplares. Segundo as autoras, a publicao do artigo moti-vou agresso fsica, processos judiciais e a condenao do jornalista pelo Tribunal de Justia do Par. A partir da anlise francesa do discurso, o estudo buscou iden-tificar as polmicas explcitas e tambm questes implcitas, como a posio do

    jornalista diante do cenrio que descreve em seu veculo, especialmente no que se refere s relaes de poder entre as elites locais.

    Temos aqui textos com abordagens tericas e temticas diversas, que, esperamos,

    possam interessar ao leitor. Nossa busca caminha no sentido de ter cada vez mais a participao de autores de todo o pas na construo deste projeto editorial, pois, s assim, conseguiremos fortalec-lo, como a Amaznia e a rea da Comu-nicao precisam e merecem.

    Netlia Silva dos Anjos Seixas

    Alda Cristina CostaLuciana Miranda Costa

    Organizadoras

  • Comunicao da ecologia ou ecologia da comunicao?

    Adriano Duarte RODRIGUES

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    Adriano Duarte RODRIGUES

    Comunicao da ecologia ou ecologia da comunicao?

    INTRODUOCom este texto pretendo contribuir para o esclarecimento de um dos equvocos frequentes nos trabalhos na rea dos estudos da comunicao que tm vindo a ser realizados, sobretu-do nos ltimos dez anos, em torno da problemtica ecolgica. O equvoco tem a ver com o entendimento que se tem da relao entre a problemtica comunicacional e a problemtica ecolgica. De fato, enquanto, para alguns autores, o que est em jogo a definio de estra-tgias comunicacionais, sobretudo mediticas, que contribuam para a tomada de decises e a adoo de comportamentos ambientais sustentveis, para outros autores o que est em jogo o estudo da prpria natureza ecolgica dos processos comunicacionais. No minha inteno tomar aqui partido por uma destas perspectivas, mas, mais modestamente, contribuir para a delimitao dos seus contornos.

    A COMUNICAO DA ECOLOGIAOs autores que propem a promoo de uma comunicao da ecologia partem de uma leitura pessimista das transformaes ocorridas nos ltimos cem anos, decorrentes do processo de industrializao, transformaes que levaram a profundas alteraes que pa-rece porem em risco ou ameaarem a sobrevivncia dos habitats de muitas espcies. O que est, por conseguinte, em jogo para estes autores, a descoberta de estratgias mediticas promocionais de polticas ambientais sustentveis que contrariem o suposto processo de degradao destes habitats e favoream a biodiversidade.

    Do ponto de vista das teorias da comunicao, podemos dizer que esta perspectiva se insere na continuidade dos chamados paradigmas dos efeitos que tiveram o seu auge entre

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    os anos 30 e 50 do sculo passado. A questo que esta perspectiva procura equacionar e a que pretende responder a de saber se os dispositivos mediticos podem contribuir para mudanas das mentalidades e para a aprendizagem de comportamentos individuais e cole-tivos que contrariem os efeitos negativos induzidos pelas estratgias industriais predatrias dos recursos ambientais disponveis. O que estes autores por vezes esquecem que nunca foi possvel provar que as mensagens veiculadas pelos dispositivos mediticos tm efeitos diretos sobre os comportamentos individuais e coletivos e que, para as transformaes das atitudes e dos comportamentos dos seres humanos, em virtude de serem dotados de livre arbtrio e de nem sempre adotarem os comportamentos mais favorveis sua espcie, contribuem processos particularmente complexos que nunca foi possvel definir. Por isso,

    os autores que continuam a trabalhar a partir da teoria dos efeitos falam hoje de efeitos indiretos e a longo prazo, contando mais com mecanismos de elaborao de condies culturais, mais propcias a mudanas ao nvel das vises do mundo do que propriamente inculcao de normas de comportamento. Como estamos a ver, os autores que seguem esta perspectiva encaram a comunicao sobretudo como estratgia de propaganda, visan-do o acondicionamento dos comportamentos por meio de processos retricos de injuno de normas e de modelos.

    Como estamos vendo, para esta perspectiva, so as noes de poltica ambiental, de in-fluncia, de eficcia e de estratgia mediticas que so importantes.

    A ECOLOGIA DA COMUNICAOPor seu lado, os autores que propem uma abordagem ecolgica da comunicao propem

    entender os processos comunicacionais no quadro de uma viso antropolgica que privi-legia aquilo que designo por lgica interacional. uma perspectiva que retoma a herana de Charles Darwin, em particular da obra sobre a expresso das emoes (DARWIN, 1872), herana que seria depois aprofundada e ampliada pelos trabalhos realizados por bilogos, etlogos e arquelogos. Como vemos, h uma relao estreita entre a ecologia e a etologia da comunicao, como se pode observar nas excelentes obras de sntese de TOMASELLO (2003) e de HAUSER (1997). Entre os trabalhos que, na rea da comu-nicao, propuseram esta perspectiva, podemos evidentemente citar os autores da Escola

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    Adriano Duarte RODRIGUES

    de Chicago e do chamado Colgio Invisvel, tambm conhecido por Escola de Palo Alto

    (RODRIGUES, 2011).

    Os autores que adotam esta perspectiva no negam, evidentemente, os problemas am-bientais do nosso tempo, mas privilegiam o estudo das relaes entre os membros de uma mesma espcie e entre as diferentes espcies que partilham o mesmo territrio. A comu-nicao , assim, encarada como processo de trocas que ocorrem entre as espcies vivas e entre os indivduos de uma mesma espcie, trocas de que depende a sobrevivncia dos indivduos e das espcies que partilham entre si os recursos, sempre relativamente escas-sos, do territrio comum.

    Nesta perspectiva, os estudos da comunicao procuram entender a especificidade das

    relaes que os indivduos da nossa espcie estabelecem, com os outros seres vivos e entre si, de modo a procurar entender, no s como as pessoas gerenciam a partilha dos recursos disponveis, mas tambm como projetam os seus inventos tcnicos, as suas intervenes e as suas atividades.

    Como vemos, a preocupao desta perspectiva no propriamente a avaliao da eficcia

    dos dispositivos mediticos para a causa ambiental, mas a compreenso dos mecanismos que constituem a comunidade dos seres vivos e dos processos que so desencadeados por cada uma das espcies, em geral, e dos seres humanos, em particular, para resolver a partilha dos recursos disponveis no territrio que partilham. Para esta perspectiva, so as

    noes de territrio, de interao, de comunidade, de ritualizao que se tornam funda-mentais.

    Nesta perspectiva, os dispositivos mediticos so encarados no como instrumentos desti-nados a veicularem mensagens, mas como objetos tcnicos que constituem ambientes ou territrios artificiais. para a discusso da natureza dos territrios constitudos pelas redes

    cibernticas que alguns autores (BRAGA, 2007) retomam hoje as intuies que levaram MC LUHAN a formular o aforismo o medium a mensagem.

    A este propsito gostaria agora de recordar que os arquelogos puseram nossa disposi-o dados incontroversos que nos levam a reequacionar a problemtica meditica, pensan-do-a no quadro da experincia tcnica e a ultrapassar as duas atitudes de sinal contrrio que

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    SIMONDON (1989) caracteriza como posies xenfobas acerca da tcnica, as posies tecnofbica e tecnoltrica, que dividem muitas vezes a comunidade dos estudos da comu-nicao sobre os media.

    O primeiro fato incontroverso que as pesquisas arqueolgicas mostram o de, por mais que recuemos no tempo, no encontrarmos at agora nenhum vestgio de seres humanos que no dependam da inveno de objetos tcnicos (LEROI-GOURHAN, 1964-1965). Os mais antigos vestgios da nossa espcie so, curiosamente, sepulturas onde podemos encontrar objetos tcnicos colocados, aparentemente de maneira intencional, junto das os-sadas. Este fato sugere que, desde muito cedo, a nossa espcie estabeleceu uma ntima re-lao com os seus artefatos. Por mais que recuemos no tempo, no encontramos vestgios

    de seres humanos inseridos apenas num meio ambiente ou dependentes apenas das trocas dos recursos disponveis no territrio que partilham entre si e com as outras espcies.

    Deste primeiro fato decorre um segundo incontroverso, o da dependncia dos seres hu-manos em relao ao mundo que eles prprios criam, como j sublinhavam Husserl (1989) e Schutz (1967), ao postularem que os seres humanos vivem, no num Umwelt (meio am-biente), mas num Welt (mundo).

    O terceiro fato incontroverso que no podemos ignorar quando pretendemos equacionar a problemtica da ecologia da comunicao tem a ver com o fato de o Welt, que os seres humanos constituem e em que vivem, no ser o territrio em que as outras espcies habi-tam, mas artificial, isto , depender da inveno e da ativao de dispositivos incorporados

    na prpria experincia subjetiva.

    Gostaria ainda de lembrar, por ltimo, um quarto fato incontroverso: o de o mundo que os seres humanos constituem com a inveno de dispositivos tcnicos no ser formado pela realidade, mas ser formado por objetos simblicos que so ativados no quadro das relaes intersubjetivas que as pessoas estabelecem umas com as outras e com as outras espcies. Deste fato decorre a inevitvel inscrio da experincia humana no medium lingua-gem, da qual decorre para os seres humanos a incontornvel natureza discursiva daquilo que para os seres humanos a realidade, o conjunto das componentes simblicas do mun-do que constituem.

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    Adriano Duarte RODRIGUES

    Como no pode ignorar estes fatos incontroversos, a elaborao de uma ecologia da co-municao no pode deixar de procurar compreender a emergncia dos seres humanos, enquanto espcie dotada de um mundo constitudo pela experincia simblica que ela prpria transpira, no quadro das interaes discursivas, para retomar aqui a sugestiva e muito oportuna metfora da transpirao ou da exsudao. por que a realidade inevi-tavelmente sempre o mundo constitudo simbolicamente que a floresta nunca , para os

    seres humanos, um objeto do mundo natural, mas um objeto em que as pessoas encarnam uma multiplicidade de perspectivas: fonte de madeira para o lenhador, de inspirao para o poeta, de refgio para o criminoso perseguido pela justia, de pesadelos para o sonhador, de vagabundagem aprazvel para o veraneante. A gua que, no laboratrio, composto qumico, tambm para o homem recurso para matar a sede, para se banhar, para cozinhar os alimentos, para iniciao sagrada, elemento potico em que o enamorado mergulha para evocar e expressar as suas emoes.

    Os dispositivos mediticos, a esta luz, passam a ser encarados como os testemunhos do processo histrico coletivo de constituio do mundo que as sucessivas geraes criam, herdam, transmitem e habitam. evidente que, como histrico, este processo aleatrio e contingente. No ser o melhor dos mundos possveis; construdo em cima de sofrimen-tos, de injustias, de catstrofes, mas o nico mundo que recebemos, que temos o privi-lgio, mas tambm a obrigao de receber, de melhorar e complementar. Por isso, a lgica

    que preside a este processo no a lgica binria do mercado, mas a lgica ambivalente da ddiva que regula as interaes sociais, a lgica que nos obriga livremente a fazer circular entre ns a nossa herana comum e que, deste modo, nos constitui como parceiros de um mundo simblico comum ou, como prefiro dizer, de uma comunidade de fala.

    REFERNCIAS BRAGA, Adriana. Comunicao on-line: uma perspectiva ecolgica. Revista de Economa Pol-tica de las Tecnologas de la Informacin y Comunicacin, v. 9, n. 3, Sep./Dec. 2007. Dispo-nvel em: . Acesso em: 4 out. 2013.

    DARWIN, Charles. The expression of the emotions in man and animals. London: J. Murray, 1872.

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    HAUSER, Marc. The evolution of communication. Cambridge: Mass; London: The MIT Press, 1997.

    HUSSERL, Edmund. La crise des sciences europennes et la phnomnologie transcendan-tale. Paris: Gallimard, 1989.

    LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra. Lisboa: Ed. 70, 1964-1965. 2 v.

    RODRIGUES, Adriano Duarte. O paradigma comunicacional: histria e teorias. Lisboa: Fun-dao C. Gulbenkian, 2011.

    SCHUTZ, Alfred. The phenomenology of the social world. [Evanston]: Northwestern Univer-sity Press, 1967.

    SIMONDON, Gilbert. Du mode dexistence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989.

    TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisio do conhecimento humano. So Pau-lo: Martins Fontes, 2003.

  • Crio de Nazar: celebraes, divergncias e rupturas

    Antnio FAUSTO NETO

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    Antnio FAUSTO NETO

    Crio de Nazar:1 celebraes, divergncias e rupturas

    INTRODUOEste texto nasce de uma demanda, a de escrever um artigo para uma obra que tem como seu ngulo principal Comunicao: visualidades e diversidades na Amaznia. Em funo da natureza deste recorte, buscamos questes que pudessem convergir com a proposta do livro. Como primeira tentativa, elegemos, como alternativa, desenvolver uma reflexo mais

    de ordem terica sobre questes que envolvessem fenmenos da midiatizao, como o da circulao, mbito no qual se manifestaria a materializao dos sentidos (VERN, 2013). Mas, o fato da publicao do livro ocorrer aps as celebraes da 261 edio do Crio de Nazar reavivou em ns um desejo de retornar a temtica sobre a qual havamos escrito h dez anos e na qual refletamos sobre a importncia dos ngulos comunicacionais sobre

    os quais esta manifestao se engendraria (FAUSTO NETO, 2001). Naquele momento, situvamos o Crio de Nazar como manifestao no rol de estudos sobre produo de acontecimentos, enfatizando que sua construo se fazia por injunes cleres proceden-tes do campo miditico sobre o religioso. Ao lado de outros estudos relevantes sobre o tema (ALVES, 2012; SOUSA, 2013), nossas angulaes destacavam o papel das relaes entre campos sociais chamando ateno sobre referncias de gramticas miditicas so-bre a organizao contempornea desta manifestao devocional que, em 2013, realiza a sua 261 celebrao. A presena de diferentes campos sociais na realizao do Crio de Nazar continua, em 2013, como uma questo relevante, na medida em que esta promo-o religiosa-miditica envolve a intensificao de instituies de vrios campos sociais,

    por meio de 12 grandes patrocinadores e 28 apoiadores que aparecem como instituies

    1 Diferentes ngulos histricos sobre o Crio de Nazar esto reunidos em boa documentao apresentada no site oficial: www.ciriodenazare.com.br

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    cogestoras, alm de uma estrutura de realizao que envolve o trabalho de quase 30 mil pessoas, muitos servios de comunicao, especialmente, o de uma agncia especializada que projeta a existncia do Crio de Nazar para o mundo da comunicao digital.

    Nosso retorno ao tema, uma dcada aps aqueles escritos, fruto de um desencadeamento de uma complexa paisagem que repercute sobre nossa compreenso do Crio, hoje, cujos processos de observao e de interpretao exigem avanos nas formulaes de ordem terica. Sabe-se que, ao longo destes anos, os processos de midiatizao intensificaram suas

    manifestaes sobre diferentes prticas sociais, como as do campo religioso, mas, tambm, junto aos prprios protocolos de pesquisas. Desta feita, o Crio de Nazar complexifica-se

    como objeto de pesquisa na medida em que se torna um macroacontecimento que se edifica por meio de lgicas comunicacionais, mas segundo dinmicas que apontam seu

    deslocamento das estruturas dos campos sociais para uma outra plataforma de natureza circulatria, em termos tcnico-simblicos. Por meio da materializao de lgicas religio-sas-miditicas gera-se uma nova realidade; se h uma dcada o Crio era visto por meio da multiplicidade de estratgias e lgicas de determinados campos sociais, hoje muitas outras lgicas ingressam e afetam a sua realizao, produzindo aderncias e efeitos mais comple-xos. Sua ida para a rua digital amplia o seu modo de existncia, ensejando-lhe novas pr-ticas interacionais. Tal deslocamento por rua afora tambm o converte em uma gigantesca e diversa apropriao do espao pblico, arrastando e sendo arrastado por multides, dando origem a diversidades de prticas simblicas, em torno de lutas e disputas de sentidos.

    Celebra-se o Crio segundo convergncia fundada na lgica devocional, de acordo com carter histrico-religioso. Mas, tambm, nela se praticam outras operaes de sentidos que escapam s lgicas do ritual oficial. Pode-se mesmo dizer que tal disjuno exem-plificada pelo corte da corda antes do momento programado, fato dentre outros que

    nos leva a nomear o Crio de Nazar como um macroacontecimento e que se edifica

    a partir da complexificao de suas operaes materiais e imateriais, particularmente do

    que se passa na esfera da circulao, enquanto mobilidade. Esta se amplia em termos de espacialidade, na medida em que as vrias celebraes penetram no corpo do ciclo de procisses e de romarias como efeito do movimento de multides. Geram-se vrios mi-crorrituais que fazem com que o Crio venha a ser permeado pela diversidade de outras elaboraes simblicas. A natureza desta nova mobilidade se enseja por aderncias, mas

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    Antnio FAUSTO NETO

    tambm por bifurcaes, o que implica reconhecer que o seu funcionamento em termos simblico-comunicacional escapa de uma lgica, enquanto matriz de completudes.

    Ressonncias de acontecimentos outros pertencem enquanto semiosis ao processo de construo deste texto: em primeiro lugar, o fato do Crio de 2013 se constituir no pri-meiro macroevento de rua aps os acontecimentos que brotaram pelo Brasil em junho e julho.2 Em segundo lugar, as reflexes e debates que se registraram no contexto do Pen-tlogo IV CISECO, em Japaratinga (Alagoas), que, profeticamente, elegeu como tema do seu encontro anual A rua no sculo XXI: materialidade urbana e virtualidade cibern-tica.3 Estes registros tm muitas ressonncias do que aqui se prope como reflexo. Ao lado destes elementos, o objeto vem tambm da singularidade de formas comunicacionais, pois nos permite pensar que o Crio de Nazar, alm de um fenmeno situado no mbito de determinada espacialidade a da festa e das celebraes monitoradas pelo discurso religioso e miditico avana para ambincias que extrapolam a dimenso estritamente religiosa. A plataforma circulatria na qual a multido pe o Crio numa dinmica de ir adiante ganha, a nosso ver, um novo status. Aglomeraes se deslocam nas ruas fsicas e digitais levadas pela imagem-cone, mas, tambm, impondo-lhe o seu ritmo. Fazem emergir, quem sabe, uma nova problemtica comunicacional que sintomatizada pelo ritual posto em ato o da multido em deslocamento.

    A natureza desta intensa mobilidade nos move tambm, literalmente, para o mbito deste novo espao-temporalidade, e a construo do presente artigo implicaria a nossa ade-so, ainda na condio de observador, ao prprio circuito do acontecimento. Uma per-manncia em Belm, durante o auge dos festejos, foi fundamental para refinar nossas

    impresses, ao associ-las com momentos anteriores, mas, deixando-nos tambm invadir por novas impresses que somente a observao presencial seria possvel de ensejar. Vem assim, do objeto, indcios que desafiam nossas preocupaes no sentido de articular as

    impresses dali vindas, com possveis respostas que possam vir tambm do mbito teri-

    2 Nos meses de junho e julho de 2013, manifestaes de rua foram desencadeadas em vrias cidades do pas geradas por protestos contra aumento de transportes coletivos aos quais se associaram outras manifestaes em torno de questes como habitao, sade, segurana, Copa das Confederaes, etc.3 No Albacora Praia Hotel, de 23 a 27 de setembro de 2013.

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    co-metodolgico. As reflexes aqui apresentadas procuram, assim, escrever algumas ope-raes discursivas deste novo cenrio sobre manifestao to complexa e, crescentemente, diversa. Se a convergncia (devocional) gera adeses e aderncias, tambm atravessada por registros que apontam a constituio de focos de divergncia. Estes so geradores de novas manifestaes de sentidos que so materializadas no prprio processo da circu-lao, conforme veremos ao tentar explicar o episdio da ruptura da corda. Procurare-mos descrever alguns fenmenos que tm a ver com a circulao como um processo de aderncia, mas tambm de rupturas e de desencadeamentos de novos sentidos. O processo comunicacional seria um operador de religncias, enquanto possibilidade de unir os atores em torno de mensagens, mas tambm de desligncias, enquanto efeito de outras mensagens que seriam geradoras de gramticas e de outras dinmicas, como operaes de significao (BOLLE DE BALL, 2000).

    CIRCULAO DA MOBILIDADE, CIRCUITO QUE NO SE FECHANossa hiptese prope que no intenso processo de circulao fsica e simblica , em que se estrutura a festa do Crio de Nazar, que se d a possibilidade de dinamizao do objeto imediato em objeto dinmico (PEIRCE, 1972, 2003). Sentidos sobre o aconteci-mento se engendraro na medida em que a imagem de Nossa Senhora de Nazar envolta em um complexo cortejo d o sentido da partida da celebrao, mas vai tambm sendo deslocada pelas lgicas do processo de circulao. Nessa dinmica vo se constituindo circuitos que se bifurcam, gerando sentidos que no podem ser conhecidos. O trabalho da circulao tem como primeira referncia uma dimenso de espao-temporalidade que organiza as regras de funcionamento da procisso (como, por exemplo, metas de partida e de chegada, bem como o territrio do seu desenrolar). Mas, no pode prever as estratgias que nela se produziro para o seu desenrolar. H uma topografia na qual o acontecimento

    materializa sua ocorrncia. Multides fazem um priplo em torno da imagem-cone. So agrupamentos mais amplos e outros mais restritos, que se deslocam por terra e por gua, se apropriando e rompendo fronteiras de extenses, mudando rotinas de ruas e, mesmo, de cidades, mobilizando, alm de suas prprias lgicas (a de fiis-promesseiros), tambm

    outras de vrios campos sociais (RODRIGUES, 2000) (segurana, transportes, comuni-caes, sade, etc.). Como expresso de tal espao-temporalidade, em 2013, segundo

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    dados oficiais, foi realizada mais de uma dezena de procisses, tendo sido percorridos

    mais de 131 quilmetros por terra e gua, durante mais de 40 horas. Somente as grandes romarias a de Belm para Ananindeua/Marituba; a Trasladao de Vspera; e a Procisso do Crio, no dia 13 reuniram mais de cinco milhes de pessoas. Superaram o nmero daqueles que foram s ruas do Rio de Janeiro para receber o Papa Francisco, bem como os das vrias manifestaes de ruas que ocorreram pelo Brasil em junho e julho de 2013. Numa associao de aglomerao e de deslocamentos gigantescos, as atividades envol-vendo esses imensos coletivos geraram efeitos no universo de diversas prticas do sistema social local, especialmente as de carter econmico, com a arrecadao de fundos, gerao de empregos, alm de outros produtos de natureza cultural.

    Alm das presenas de grandes coletivos nas ruas, o espao privado tambm foi afetado pelo Crio e sua mobilidade: residncias se transformaram em pousadas e centros de aco-lhimento, equipamentos domiciliares e comerciais foram ornamentados para comemorar o ciclo de festas, homenagear os promesseiros e reverenciar a Imagem Peregrina. Mi-croeventos realizaram-se no corpo das procisses, mas tambm em outras instncias do mundo privado, explicitando lgicas outras de comemorao, ao lado do ritual oficial.

    Muitas instituies miditicas, bancrias, comerciais, etc. prestam homenagens ima-gem-cone por meio da queima de fogos ou pela ornamentao das fachadas de suas instalaes, com mensagens de saudao e outros enfeites. O deslocamento das multides materializa as presenas de vrios campos sociais, por meio dos servios prestados, como aqueles relativos s reas de sade, segurana, transporte, trnsito e outros, que, a seu turno, vo sendo levados adiante, pelas romarias. O acontecimento j no se mantm nas estruturas (redacionais) dos campos sociais e ganha corpo na circulao, a esta se impondo com as equipes volantes de emissoras de rdio e de televiso que fazem a transmisso do desenrolar das romarias, com operaes televisivas, radiofnicas e fotogrficas.

    Na esfera digital o twitter segue as multides e tambm seguido por estas, como efeito de operaes enunciativas feitas por um duplo segue-me. Ele funciona atualizando a mis-so de uma espcie de reprter-volante, realizando servio de monitorao do processo de deslocamento, dando ao acontecimento um modo de existncia especfico. Segue o

    passo a passo dos romeiros e os momentos nos quais a berlinda, conduzindo a pequena imagem, faz paradas em vrios lugares para ser homenageada.

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    Diferentemente das grandes manifestaes, como as dos protestos que aconteceram no pas em junho e julho passados sob as expensas de movimentos sociais , a marcha dos promesseiros depende de uma complexa estrutura que a pe em circulao e que apresenta uma hierarquia concebida pelos organizadores do Crio. A berlinda a instncia central junto a quem as duas pontas da corda so atreladas, criando-se um espao em cujo inte-rior os promesseiros se distribuem em torno de estaes para, ento, pr a procisso em movimento. Porm, tal estrutura no estaria subordinada a lugares considerados como condutores fortes que funcionariam como mediadores entre os fiis e a berlinda, dando

    procisso uma direo prevista por uma instncia de comando. No lugar disso, devemos admitir a existncia de uma espcie de um outro tipo de comando, que emanaria de um acordo tcito de carter imaginrio-simblico que os fiis fariam com a berlinda,

    enquanto lugar do sagrado, no qual a imagem de Nossa Senhora, ali instalada, imporia ao deslocamento uma racionalidade central. Talvez, o no reconhecimento de um mediador, como lugar de organizador da procisso, facilite a emergncia de estratgias desviantes, por parte dos promesseiros, hiptese que poderia ser perseguida por um outro trabalho de pesquisa. Mas, podemos supor que o corte da corda simboliza, em ltima anlise, a partilha de um bem mediante uma ao que no estaria concebida na economia simblica da ma-nifestao. Ou seja, entre regras e estratgias, um imenso intervalo de imprevistos e de surpresas que se fazem pela fora de lgicas outras. Esta ao emanaria, assim, de uma outra relao entre os fiis e o sagrado.

    Se o Crio de Nazar realiza-se ao longo de um calendrio sobre cujos preparativos se de-bruam muitos atores, a procisso do segundo domingo de outubro materializa, em termos espaciais, energia que foi armazenada durante meses. Num ciclo de aproximadamente seis horas, altera-se a dinmica do fluxo espacial da cidade de Belm para que, ao longo

    de pouco menos de quatro quilmetros, uma multido superior a dois milhes de pessoas realize uma das ltimas etapas desse ritual que envolve mobilidade, aderncias e desdobra-mentos. Tal celebrao implica na sua aderncia s estruturas citadinas, pois o evento se instala tambm em um universo geotopogrfico como praas, igrejas, capelas, instituies,

    cidades, etc. Mas, tambm, em circunstncias de deslocamentos, via fluxos grandes e pe-quenos ao longo de ruas, estradas, rios e avenidas. H quase meio sculo, essa imagem do Crio como um evento-circulao j era captada por seus estudiosos, quando afirmavam:

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    O Crio o clmax de uma migrao peridica de fundo religioso, envolvendo uma fase de peregrinao com romeiros interioranos a caminho da cidade, e outras litr-gicas ou procissionais, j no mbito urbano [...]. No se trata de um deslocamento em termos de fluncia, mas de um rush inslito que culmina no dia da procisso

    como preamar humana dominando a paisagem com a sua intensa movimentao (MOREIRA, 1971, p. 5-6).

    Ao longo do tempo incorpora-se a tal movimentao o trabalho de midiatizao do Crio e que se faz tcnica-discursivamente pela convergncia/diversidade de velhas e novas tecnologias convertidas em meios, conforme se descreve a seguir.

    CRIO, OBJETO DA CIRCULAO MIDITICASe a festa do Crio se caracterizava, nas primeiras dcadas deste sculo, pela transao de atividades dos campos sociais acionando cerimoniais e estratgias de natureza miditicas, conforme descrevamos, aponta-se sobre a sua verso atual, pelo menos, trs mecanismos de natureza comunicacional: a intensificao dos processos de midiatizao sobre a orga-nizao social, gerando uma nova ambincia interacional de fundo miditico; a afetao de todas as prticas de diferentes campos sociais, por parte de lgicas miditicas; e arti-culaes de velhos e novos meios em torno das quais os processos de semantizao e de produo de sentidos foram sendo construdos. Muitos desses mecanismos se mantiveram restritos ao corpo da atividade miditica convencional, propriamente dita. Mas outros se expandiram pelo corpo das artrias fsicas da cidade e de suas ruas, escoando-se para o corpo dos prprios romeiros, e foram tomando forma, enquanto um novo corpo de pro-duo de sentidos, pela rede de dispositivos tecnodigitais, muitos dos quais apropriados e, postos em cena, pelas prprias instituies, como as do campo religioso.

    Em termos de velhas mdias, observou-se que as agendas miditicas elegeram o Crio como o ncleo de suas coberturas. Estas geraram matrias jornalsticas e publicitrias como cadernos especiais que se espalharam pelo corpo das edies de jornais,4 emis-

    4 Sobre esse tema, ver FERNANDES, Phillippe Sendas de Paula. Em Belm, o vai e vem da f: jornais, memria e Crio de Nazar. 2013. 101 f. Trabalho de Concluso de Curso (Graduao) - Faculdade de Comunicao, Universidade Federal do Par, Belm, 2013.

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    ses televisivas e radiofnicas. Ao lado delas, muitas outras de carter autorreferencial, lembrando a presena de agentes desse campo como cooperador do processo de produ-o do Crio como um macroacontecimento. Para tanto, anncios sobre as equipes de profissionais que fariam a cobertura da procisso a partir das varandas, espaos trreos

    de edifcios residenciais ou institucionais, localizados na rua por onde ela passaria e se-riam transformados em estdios mveis rdio-tele-jornalsticos, ao lado de outros tantos que foram adaptados para se constituir tambm nos camarotes de celebridades. Muitas personalidades de vrios setores do mundo miditico (jornalstico, entretenimento, publi-citrio, artstico), alm dos campos poltico e religioso, foram convidadas para atuar como comentadores ou mesmo como observadores da festa, na qualidade de formadores de opinio. Jornalistas, radialistas e fotgrafos tambm se destacaram por suas presenas em um trabalho de campo cujos produtos circularam nas emisses radiotelevisivas e edies locais, alm de outros circuitos de informao nacional e, mesmo, internacional. A esse nicho comunicacional se agrega a figura do eu-reprter, fiis-romeiros que empunhando

    parafernlia digital faziam, segundo sua prpria testemunhalidade, a produo do aconte-cimento e sua migrao para redes sociais.

    A mobilidade da festa transforma tambm a paisagem da edificao urbana, com a sua

    privatizao pela insero de mensagens comerciais e outras que, sob pretexto de seus anunciantes explicitarem seus vnculos com a festa, divulgavam os prprios produtos co-merciais. Trava-se uma luta renhida pelo espao pblico. Alm das fachadas de edifcios, postes de iluminao, fachadas de residncias, estabelecimento comerciais e a prpria via pblica so disputados para a circulao de panfletos e outras mdias, de carter comer-cial. Esse material se constituiria em um excelente corpus para um trabalho de anlise sobre, por exemplo, as relaes das instituies com a festa, especialmente sua dimenso religiosa, e tambm a festa como um espao de oferta de servios. Diga-se de passagem, os mais heterodoxos possveis. Uma observao que vem tona numa primeira leitura desse corpus o fato de que suas mensagens se apoiam discursivamente no universo de signos de fundo religioso, envolvendo a imagem de Nossa Senhora de Nazar. Poder-se-ia dizer que esse corpus se constituiria num exemplo didtico dos processos semiticos ope-rando a transformao da festa, enquanto objeto imediato de carter religioso, em objeto dinamizado por discursividades de vrias naturezas. Sobre tais transformaes, reservamos

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    Antnio FAUSTO NETO

    pginas adiante, para descrever aspectos do processo de midiatizao de operaes semi-ticas desenvolvidas por atores das mdias convencionais, outras pelos atores sociais, como o caso do corte da corda. A seguir, descrevemos alguns aspectos sobre a performance do ambiente digital na constituio do que se alcunhou como Crio Digital.

    O EFEITO DIGITAL, O CRIO VIRTUAL[...] Compartilhe a f conosco. No esquea de utilizar a hashtag #Crio2013, no Facebook ou Twitter. Tal qual as romarias do crio so marcadas pela presena de milhares de pessoas, a romaria virtual composta por pessoas. Na romaria virtual possvel encontrar pessoas que esto em diversos lugares do mundo, acompanhando o Crio de Nazar. Voc pode colaborar com a romaria virtual enviando fotos ou informaes das procisses para [email protected]. E mais suas publicaes para @CirioOficial

    com a hashtag #Crio2013 pra que possamos compartilhar com outros fiis. Assim poderemos deixar o

    crio mais prximo das pessoas que esto distantes [...]

    [...] Voc pode celebrar com a romaria virtual, enviando fotos ou informaes de procisses para fotos do crio @gmail.com.

    [...] Obrigado @CirioOficial por me deixar mais perto de minha mezinha. Estou aqui na Noruega mas

    meu corao est em Belm (twitado pelo Crio de Nazar.)

    [...] Ps e mos inchadas, hematomas espalhados pelo corpo todo, dor no peito... Tudo isso passa, mas ningum tira esta sensao do dever cumprido [...] Ir na corda at o final para poucos. Obrigado por esse

    momento Nossa Senhora de Nazar. #Crio. (Depoimento de Romeiro).

    [...] A Imagem Peregrina segue a Romaria pela BR-116. A procisso segue e se aproxima do retorno para seguir na BR. Neste momento a imagem est parada, recebendo homenagens debaixo de chuva [...] o

    trajeto segue. J no sentido Marituba-Ananindeua a procisso do traslado segue. A romaria se aproxima

    da igreja matriz. Em poucos momentos a imagem chegar na Matriz de Ananindeua. Imagem segue na

    primeira das quatro romarias que acontece no sbado. A romaria tem o segundo maior trajeto das 11

    procisses oficiais do Crio. A imagem peregrina recebe homenagens em frente ao estdio Mangueiro onde

    ocorre queima de fogos.// A imagem peregrina j se encontra no distrito de Icoaraci. A imagem chega ao

    trapiche.// Neste momento a Imagem est a bordo da embarcao Garnier Sampaio.// Est saindo o Crio fluvial da orla de Icoaraci [...] com velocidade nutica de 10 milhas o que equivale a 18,5 quilme-

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    tros. Segue o crio fluvial a caminho das docas.// A Rainha da Amaznia acaba de aportar na escadinha

    do cais do porto e foi recebida com honras de chefe de Estado. Depois de abenoar nossas guas// comea agora a Moto Romaria.// Cortejo da motoromaria est encerrado com a chegada ao colgio Gentil, de onde a imagem sair mais tarde no traslado. Nossa senhora est mais perto do povo. Comea a descida da imagem original encontrada pelo caboclo Plcido// A berlinda j aguarda para receber a imagem

    Peregrina de Nossa Senhora para ser iniciado o traslado. Neste momento a imagem Peregrina j est na berlinda.// A trasladao ser iniciada neste momento. A Berlinda j se aproxima da Tv Liberal.//

    J chegou a 1,3 km percorrendo um pouco mais de 2h30ms. Neste momento a imagem recebe homenagem do hotel Hilton./ Recebe homenagens do BASA./ Passa em frente aos Correios/... recebe homenagens

    do Banpar./ A cantora Faf de Belm presta homenagem neste momento, cantando na estao das

    Docas.../ Neste momento, a cantora est cantando Vois sois o Lirio Mimoso./ Segue a romaria. J na

    rua da Igreja da S, a procisso segue em ritmo de efervescncia. So os ltimos momentos dessa romaria. A Imagem acaba de chegar na Igreja da

    S.// A missa j est no final e em pouco

    tempo comea a grande procisso do crio. A berlinda j est sendo levada at para

    frente da catedral onde ir aguardar a imagem peregrina. A sada da imagem j

    est sendo organizada./ Neste momento a imagem j est na berlinda. Centenas de milhares de pessoas j acompanham o in-cio da procisso./ A berlinda passa pelo

    Mercado de Ferro. Est se aproximando

    do local onde a corda ser atrelada./ A

    corda j foi atrelada, se aproxima do gal-

    po das Docas. Neste momento acontece a homenagem patrocinada pelos estivado-res, com duas horas de procisso. Grande procisso j se aproxima do ponto crucial,

    a curva de subida da avenida Presidente Vargas. Para fiis que vo acompanhar a

    missa do crio, os portes do santurio j

    Imagem 1 Fiel documenta promesseira.

    Fonte: Retirado do perfil oficial do Crio de Nazar no Twitter (@CirioOficial)

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    Antnio FAUSTO NETO

    foram abertos. Muito emocionada com a f da promesseira que caminha de joelhos, a fiel Walcimeira Costa

    enviou por email esta foto) [...] 5

    / Agora com duas estaes de corda, a procisso flui rapidamente e a Belinda segue pela av. Nazar, se

    aproximando da TV./ A Berlinda segue outro ritmo, est passando pelo Clube do Remo./ A berlinda,

    conforme a previso da diretoria da festa, chegou s 12h39 terminado o trajeto total. Foram 6 horas de

    procisso com mais de 2,1 milhes de pessoas e 3,47 km percorridos. A partir de amanh comea o tero

    da Alvorada [...].6

    Os fragmentos acima recuperados chamam ateno para o papel de dispositivos digitais na montagem e funcionamento de uma plataforma circulatria na qual se desenvolve uma ao comunicacional, em torno da qual se estruturam novas prticas interacionais envol-vendo instituies religiosas e os atores-fiis. Enfatizam um modelo de prtica devocional

    que cultiva o crio digital por meio de circuitos enunciativos restritos, segundo novas modalidades de estratgias discursivas. Surgem como novos gestores do acontecimento mediante dispositivos que ultrapassam as fronteiras de tecnologias e procedimentos de prticas comunicacionais mais antigas. Para tanto, se valem das potencialidades do paradig-ma digital e a sua converso em prticas de comunicao. Funcionam na espinha dor-sal do Crio, ao operar o processo de circulao das procisses e de romaria, bem como de outros eventos, priorizando tambm, alm da monitorao do deslocamento e dos seus fluxos, novas discursividades que envolvem a presena do dispositivo em produo (o site do crio oficial). Este oferece acesso e regula as possibilidades de manifestao dos fiis,

    alm de se constituir no ator-enunciativo que transmite em tempo real pelo twitter pro-cisses e romarias. Tambm os fiis se manifestam com o envio de mensagens (via redes

    sociais e celulares) contendo informaes, relatos e testemunhos dos que participam das procisses. Essa nova articulao de dispositivo tcnico e de enunciaes enseja a conver-gncia de dois acontecimentos: a procisso propriamente dita e o seu desdobrar em um formato virtual, dando ao acontecimento uma nova forma, como ritual.

    5 Os textos transcritos acima foram retirados do perfil do Twitter @CirioOficial, veiculado pelo site www.ciriodenazare.com.br.6 Ver site do Crio de Nazar: www.ciriodenazare.com.br

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    Na medida em que prticas de comunicao so acionadas por atores em produo e em recepo, mediante circuitos digitais, monitora-se o passo a passo das procisses. Um sis-tema volante de informaes no s organiza, mas orienta em tempo real a mobilidade do Crio de Nazar no mbito das ruas. Tal estratgia se realiza segundo duas operaes semioenunciativas: o anncio do desenrolar dos cortejos e, como efeito, a prpria consti-tuio do Crio, como manifestao. por um trabalho de enunciao que esse dispositivo faz a nomeao de cada ao que estaria se passando no andar das multides. preciso capt-las para que elas tenham existncia. As aes so anunciadas aqui e agora, se-gundo marcadores verbais e adverbiais formulados no prprio instante em que os fatos se desenrolam. A nosso ver, nesse instante que linguagem e circulao se articulam, na medida em que os entrelaamentos de suas operaes se tornam vitais para a gerao e materializao de sentidos (FAUSTO NETO, 2013). Esse trabalho e as mensagens que dele resultam, alm de orientar o passo a passo, servem de script para instituir e pr em ao o ritual. nessa complexidade, via envios e reenvios de mensagens, que se d ao Crio de Nazar uma textura propriamente dita de natureza comunicacional. Quando falamos de textura, chamamos ateno para um conjunto de operaes enunciativas que materializam e desencadeiam mltiplos sentidos. Sejam aqueles relacionados com as lgicas dos promo-tores da celebrao, seja tambm uma imensidade de outros que tenham origem no mbito de outras operaes, margem daquelas engendradas pelo ritual oficial. Na circulao se

    edifica a nova fisionomia do Crio, mas esta se torna tambm um campo de disputas de es-tratgias de sentidos, algo que teremos ocasio de refletir ao descrever, a seguir, o episdio

    de midiatizao do corte antecipado da corda.

    O CORTE ANTECIPADO DA CORDAa) MESMO COM A CAMPANHA De novo, a corda foi cortada antes [...] Corte antecipado provocou pequeno tumulto entre promesseiros, mas que foi logo contido (DE NOVO..., 2013, p. 11).

    b) Corda do Crio cortada antes da hora. Polmica. Pedido do arcebispo no foi obedecido mais uma vez no crio (CORDA..., 2013, no paginado).

    c) Primeira estao que puxa a corda do Crio cortada antes do fim do trajeto (PRIMEIRA..., 2013, no paginado).

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    Os trs registros acima so ttulos de mdias (locais e nacionais) impressas e digitais anun-ciando fato no totalmente estranho ao contexto da realizao do Crio. Historicamente, a presena da Corda no contexto da procisso remonta a momentos que envolvem lutas e disputas simblicas entre diferentes campos sociais. Ela foi introduzida em 1855 na pro-cisso como um recurso identificado por fiis para tirar a berlinda de atoleiros produzidos

    por chuvas. Posteriormente, ela foi oficializada, mas, anos depois, em 1926, foi suprimida

    pela autoridade religiosa que alegava ser a corda um instrumento estranho devoo do ato religioso. Porm, cinco anos aps, por determinao de ato do Governador do Estado, a corda foi reintroduzida. O corte, que tambm no um fato novo, passa a ser aceito sob certas condies por parte da igreja catlica. Ele poderia ocorrer, desde que efetuado no final da procisso para que seus pedaos pudessem receber a beno da autoridade reli-giosa. Dessa feita, a ruptura da corda durante a procisso do dia 13 de outubro de 2013, por parte dos romeiros e promesseiros, se deu antes do local e momentos previstos pelos organizadores da procisso. As mdias jornalsticas paraenses aludem nos seus ttulos e subttulos questo de que o corte ocorrera revelia de uma campanha, desencadeada j em 2011, cujo apelo insistia para que a corda somente viesse a ser cortada conforme a orientao e regras dos organizadores da procisso. Notcias reiteram, explicitamente, que o corte contraria pedido de autoridade religiosa e que no foi obedecido mais uma vez neste Crio. O corte da corda se transforma em uma matria especfica, e o prprio

    enunciado acima funciona como um operador de referenciao para identificar o aconte-cimento, no contexto local. Diferentemente desta angulao, o registro da mdia nacional chama ateno para uma ruptura que teria havido com uma primeira estao (e que por ela entendida como um dos agrupamentos de pessoas que puxa a corda), como o ncleo do fato. Tal construo somente esclarecida no mbito de um dos subttulos, quando se indica que fiis cortaram a corda. Uma das abordagens enfatiza a ruptura a partir da

    designao da corda com uma outra nomeao significante: O cordo-umbilical que liga

    a Berlinda aos fiis foi rompido por volta das 11 horas de ontem, faltando ainda cerca de

    1,6 quilmetros para o final da procisso (DE NOVO..., 2013, p. 11). Diferente ngulo

    destaca outras causas como o descumprimento do ritual:

    A corda do Crio 2013 foi cortada pelos fiis antes do planejado. [...] Mesmo com

    os apelos do prprio arcebispo [...], com a campanha No corte da Corda todas as cinco estaes chegaram isoladas no Colgio Santa Catarina, local onde estava

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    programado o corte e o desatrelamento das estaes. [...] Membros da diretoria do Crio 2013 garantiram [...] que o corte no foi ordenado por ningum. Por volta das 11 horas, dois pedaos da corda de menos de dez metros foram levados por pro-messeiros. [...] O desmantelamento do corte causou tristeza em alguns promesseiros. Bem prximos [...] aps o trmino da procisso, outros romeiros disputam pedaos de fio aos puxes e empurres. [...] Apesar dos infortnios, milhares de promesseiros

    fizeram questo de receber a beno de dom Alberto Taveira [...] para assim encerrar

    mais um Crio de promessa (CORDA..., 2013, no paginado).

    O G1, portal de notcias da Rede Globo, atribui, em matria de sua edio digital, o corte da corda a uma autoria indefinida: A Estao do Ncleo da Cabea da corda do Crio, a

    primeira puxada por um grupo de promesseiros de Nossa Senhora de Nazar, foi cortada por um grupo de fiis (PRIMEIRA..., 2013, no paginado). Dentre as explicaes, um rol

    de possibilidade: No h explicao lgica capaz de justificar o mistrio da Corda (DE

    NOVO..., 2013, p. 11). Tambm so destacadas as razes utilitrias: Pedaos da corda so muito valorizados pelos romeiros de Nazar, que utilizam o cone como um talism (DEVOTOS..., 2013, no paginado). Fatores de ordem psicolgica so tambm razes: A ansiedade desnecessria de um grupo de fiis tambm nomeado de uma pequena minoria

    (DE NOVO..., 2013, p. 11). Mas, o noticirio tambm encontra maneiras de racionalizar as causas do corte: Como no Crio e na corda os excessos so perdoados, todo sonho permitido (DE NOVO..., 2013, p. 11). Os especialistas televisivos em suas especialidades, nos gabinetes de transmisso instalados ao longo da avenida, enfatizaram a quebra da corda como ruptura. Destacaram certa frustrao, pois todos esperavam que o corte se daria com a beno do arcebispo, logo aps a chegada do cortejo. Entretanto, os materiais jornalsticos no destacaram uma outra quebra no protocolo: a bno do arcebispo foi antecedida por uma outra, proferida pelo Padre Fabio de Melo que, instalado em um cama-rote especial na Avenida Nazar e tendo mo um celular, registrava o momento em que ele mesmo proferia uma bno, mensagem esta que foi, certamente, levada adiante para as redes sociais. A quebra do ritual foi interpretada pelos comentrios televisivos como uma desobedincia que teve efeitos sobre o seu funcionamento, desacelerando o seu ritmo, seu horrio de chegada, alm de prejuzos esttica da festa. Se a mdia televisiva deu n-fase ao mal-estar o fato da corda ser cortada, apesar da campanha , o site oficial do Crio de Nazar omite o episdio do corte, pelo menos em suas operaes de twittagem. No lugar

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    Antnio FAUSTO NETO

    do registro, pede para que fiis enviem suas mensagens, como os de natureza fotogrfica,

    para que sejam postados de acordo com os enquadramentos do trabalho de midiatizao do acontecimento, como o caso da Imagem 1, exibida em pgina anterior. Entretanto, no so feitos registros sobre o corte da corda, conforme as imagens 2, 3, 4, 5 e 6, que aparecem a seguir, trazendo diferentes ngulos nos quais apresentam-se os trabalhos de ruptura, bem como a transformao da corda em relquias entre os promesseiros. Se o processo de midiatizao enuncia o tom celebrativo da procisso, no mostra, contudo, uma espcie de celebrao particular, que a dos promesseiros exibindo, como num gesto de triunfo, os pedaos da corda.7

    Imagem 2 Capturas e funcionamento da circulao Imagem 3 Desfiando a corda

    Fonte: Manuel Dutra (2013) Fonte: Manuel Dutra (2013)

    verdade tambm que mensagem emitida pelo twitter do site oficial do Crio de Nazar omite o momento em que essa ruptura se produziu, mas deixa entender que alguma coisa ali se passara no percurso da procisso, e que registrada em uma das mensagens enviadas via twitter: Agora com duas estaes da corda, a procisso flui rapidamente e a berlinda segue pela Avenida Nazar, se aproximando da TV [...]. H uma omisso, ainda que invo-luntria, mas registros radiofnicos, televisivos e digitais alm de imagens capturadas por fiis que ali se faziam presentes sustentam a ocorrncia de um fato havido que se mani-

    7 As imagens em sequncia foram gentilmente cedidas pelo professor Manuel Dutra, da Universidade Federal do Par (UFPA).

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    festara fora da performance do ritual... Vale destacar que em nenhum momento as diferentes coberturas miditicas do voz aos romeiros, promesseiros e s pequenas minorias, cujos relatos poderiam apontar as causas explicativas do corte da corda, e que foram apenas inferidas, conforme acima relatado, pelas matrias jornalsticas.

    Imagem 4 Partilhando a corda Imagem 5 A corda em novos circuitos

    Fonte: Manuel Dutra (2013) Fonte: Manuel Dutra (2013)

    Imagem 6 Levando a corda adiante

    Fonte: Manuel Dutra (2013)

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    Antnio FAUSTO NETO

    RUPTURAS?A mobilidade da festa, que se fez no corpo das ruas, mas tambm nos corpos dos ato-res sociais, engendra muitas operaes de sentidos, e expressiva parte destas resulta de estratgias margem da arquitetura do ritual oficial. Sob inspirao de vrias lgicas e

    discursividades, promesseiros so transformados em atores e coadjuvantes de estratgias discursivas. Em algumas delas, de carter devocional, os fiis so incorporados ao dcor das gramticas miditicas. Seus relatos, como testemunhas, imagens e outras marcas de sua devocionalidade so incorporados ao relato das mdias. Mas, outras operaes discursivas so tambm semantizadas pelas leituras miditicas, que as interpretam como tumultos, aes imprevistas e mistrios. Dar-se-ia uma dupla ascenso das turbas irracionais ao plano dos discursos sociais que se enunciam no Crio. De um lado, como uma per-sonagem, enquanto fonte preciosa, para irrigar os sentidos do ritual em ato, segundo as gramticas em produo. Mas, de outro, como uma personagem operadora de complexas estratgias de sentidos que so lidas, apenas, como atos que descumprem as expectativas das lgicas previstas ou incomodam suas performances. Tais incompletudes so vistas, por-tanto, como algo que no estava no script, conforme planejado...

    Lendo os textos digitais jornalsticos, reescutando os de carter radiofnicos e revendo as imagens, nos veio mente a hiptese de que o Crio, como toda manifestao coletiva, uma fonte de tenso simblico-discursiva. Ainda que pilotada pela fora de um ritual complexo constitudo pela transao de uma multiplicidade de discursos, a lgica celebra-tiva dominante permeada tambm por uma pulso que transforma o coletivo de fiis

    em uma massa potencial, circunstncia na qual o acontecimento transcende, em termos de matria significante, s prprias fronteiras do territrio do seu nicho produtivo. Se o

    signo da pequena Imagem Peregrina se constitui no principal cone dessa complexa festa, a corda tambm dinamiza o objeto, colocando o cortejo adiante. Alm de abrigar o ncleo significante da festa, a corda ativa fluxos de sua passagem, mas tambm fonte e objeto

    (de produo) de um outro acontecimento. Muito mais do que rupturas, no sentido do no cumprimento do programado, o corte da corda o momento no qual as turbas se apropriam da festa, lanando mo dos seus dividendos e segundo suas lgicas.

    O Crio um ato de muitos momentos e movimentos constitudos pela diversidade de lgicas e de prticas sociais. tal complexidade que permitiria compreender a ruptura da

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    corda em estilhaos, mas tambm como um ato de celebrao regido por outros rituais. O discurso da midiatizao exps, segundo sua racionalidade, razes sobre a ruptura do corte da corda. Mas indica tambm significantes ansiedade, mistrio, sonho, talism perten-centes a outras gramticas. Quando lidas por outros ofcios interpretativos, poderiam fazer emergir cadeias simblicas que no estavam catalogadas nos discursos do ritual oficial. O

    Crio e sua midiatizao enquanto prtica discursiva oferecem nos seus microaconte-cimentos excelentes pistas para revermos fundamentos de algumas convices comunica-cionais. O Crio no uma manifestao de convergncia, talvez mais de descontinuidades e de bifurcaes. Tempos do ritual que impulsionam o andar da corda. Tempos do corte que introduzem rearticulaes no ritual, bem como a produo de microrituais (como o da partilha dos pedaos da corda), produzindo religncias e pondo o cortejo adiante.

    NOTAS EM CONCLUSODois motivos nos levaram a atualizar uma reflexo sobre o Crio de Nazar como objeto

    de leitura. Em primeiro lugar, a sua singularidade como fenmeno comunicacional, no contexto amaznico, para o que contribuem, particularmente, as transformaes que tm ocorrido no seu processo de engendramento, pela presena e complexificao de tec-nologias de comunicao que, alm de serem convertidas em meio, passam a constituir uma nova ambincia, sobre a qual se ampara, em larga escala, um cerimonial, at ento, apenas religioso. Em segundo lugar, refletir sobre algumas categorias tericas como a da

    circulao e de seus processos no sentido de suscitar pistas que possam vir a ser teis para exerccios interpretativos que buscam compreender a natureza desse acontecimento. Prioriza-se, aqui, proposio segundo a qual acontecimentos como o Crio passam a ser engendrados por meio de complexas transaes (polticas, culturais, religiosas, econmi-cas, discursivas), mas tambm pelos processos emergentes de circulao e de mobilidade, os quais dependem menos do ritual religioso em si e mais da dinmica da midiatizao e de operadores tecno-simblicos por ela dinamizados.

    Sabemos ainda que, de modo diverso, todas as prticas dos diferentes campos sociais so hoje afetadas intensamente pelas operaes e dinmicas da midiatizao. So envoltas em dispositivos, lgicas, operaes, bem como de processos tecno-simblicos sobre os quais

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    Antnio FAUSTO NETO

    se estruturam e se desenvolvem vnculos entre instituies e atores sociais. Destaca-se no presente texto uma preocupao emprico-analtica sobre a complexificao do Crio, de

    fundo religioso, mas com imensas interfaces com outras interdiscursividades e, pontual-mente, as de natureza digital e aquelas que emanam na vida dos atores sociais.

    Vocacionada a gerar novas potencialidades de busca a do outro e a de dados a internet apropriada pelas prticas sociais, as quais, a partir de suas diferentes lgicas, a transfor-mam em um mltiplo territrio, complexo, diverso. Para ela deslocam-se os campos sociais via processos e circuitos, instituindo-a como o territrio de produo de sentidos. Tam-bm para l afloram as discursividades dos coletivos de atores sociais. Evidentemente, no

    se trata de uma adequao automtica internet por parte de lgicas de campos, e as dos atores s lgicas digitais. na busca de articulao entre umas e outras que se constituem os desenhos de prticas de interao, cujas manifestaes trazem consigo marcas e traos de suas idealidades, ticas e interesses. A principal mudana provocada nessa paisagem o fato da atividade comunicacional de fundo institucional religioso deslocar-se para novas paisagens. Mas isso no significa dizer que tal deslocamento faa desaparecer as especifi-cidades de outras lgicas, postulados e prticas de sentidos sobre os quais o fenmeno re-ligioso tecido. Resulta um acontecimento semantizado por heterogeneidades discursivas e de sentidos. Muitas prticas continuam sendo organizadas segundo posies distintas de sistemas de produo e de recepo, cuja atividade de intercmbio, alm de sofrer as injun-es das especificidades de suas lgicas, tem como espectro a circulao, cujo trabalho de

    materializao de sentidos mostra, mais do que nunca, que a circulao no uma zona morta.

    Os processos de midiatizao de acontecimentos, como o Crio, realizam-se segundo com-plexos mecanismos de intercmbios, para alm de uma noo do trabalho comunicacional de carter linear, instituindo processos de assimetria, os quais, diga-se de passagem, j se fazem presentes desde a atividade da comunicao face a face at aquele de natureza ins-titucional. O intercmbio interacional suscitado em meio de processos de desajustes, pois, como dizem os bons princpios semiticos, da atividade de produo/recepo de discursos gera-se sempre a diferena, em termos de sentidos. A circulao desponta como novo cenrio para o estudo dessas problemticas. Dissensos e mal entendidos resul-tantes de tentativos processos de intercmbio de mensagens somente podem ser captu-

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    rados nas marcas de diferenas, sendo que algumas delas deixam-se mostrar no trabalho de empiria conceitualizante no cenrio da circulao. na circulao que tambm avana o processo analtico. para ela que convergem tecnologias, protocolos, estratgias, atores, enunciados, gerando um novo complexo de intercmbios de discursos. Tal mbito aquele que alguns denominam como um novo campo de disputa em termos, dentre outras coisas, de produo de sentido. Os campos sociais so deslocados por foras de processos, circui-tos e fluxos para a produo de uma nova tessitura discursiva que se realiza em um novo

    mbito de espao-temporalidade, que o da circulao.

    Se os acontecimentos so, por natureza, engendrados em meio a complexidades, um dos elementos que incide sobre tal processo de produo a nova plataforma circulatria de produo de sentidos. Ou seja, a circulao, em seu trabalho de articulao e acoplamentos tecno-discursivos, rene algumas pistas sobre as quais repousam possveis inteligibilidades sobre fenmenos culturais e religiosos, como o complexo cerimonial religioso, que o C-rio. Ao destacar a fora da circulao como um conceito, seria possvel dizer que estamos apenas no limiar de uma problemtica. Especialmente, se levarmos em conta o desafio que

    representa estudar a complexidade de acontecimentos que renem multiplicidades de lgi-cas: desde questes que envolvem os mistrios do divino ao esforo tentativo em curso, h muitas dcadas para dar conta das motivaes das multides.

    REFERNCIASALVES, Regina. Este (C)rio minha rua: expanso e sobrevivncias numa festa popular no sculo XXI. In: COLQUIO SEMITICA DAS MDIAS, 2., 2013, Japaratinga. Resumo... Alagoas: CISECO, 2013.

    ______. O manto, a mitra e o microfone: a midiatizao do Crio de Nazar em Belm do Par. 2012. 164 f. Tese (Doutorado) - Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Instituto de Fi-losofia e Cincias Humanas, Universidade Federal do Par, Belm, 2012.

    BOLLE DE BALL, Marcel. Voyages au coer des sciences humaines: de la reliance. Paris: LHarmattan, 2000.

    CORDA do Crio cortada antes da hora. O Liberal, Belm, 14 out. 2013. Disponvel em: . Acesso

    em: 12 nov. 2013.

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    Antnio FAUSTO NETO

    DE NOVO a corda foi cortada antes. Dirio do Par, Belm, p. 11, 14 out. 2013.

    DEVOTOS desmaiam e so pisoteados durante tumulto no Crio. G1: o portal de notcias da Rede Globo, So Paulo, 13 out. 2013. Disponvel em: . Acesso em: 25 nov. 2013.

    FAUSTO NETO, Antonio. As bordas da circulao... Alceu, Rio de Janeiro, v. 10, n. 20, p. 55-68, jan./jun. 2010.

    ______. O Crio em disputa: sentidos da f e/ou sentidos da mdia. Movendo Ideias, Belm, v. 6, n. 10, p. 38-47, 2001.

    ______. Como linguagens afetam e so afetadas pela circulao? In: BRAGA, Jos Luiz et al. (Org.). 10 perguntas para a produo de conhecimento em comunicao. So Leopoldo: Ed. Unisi-nos, 2013. p. 43-64.

    MOREIRA, Eidorte. Viso geo-social do Crio. Belm: Imprensa Universitria, 1971.

    PEIRCE, Charles Sanders. Semitica e filosofia. So Paulo: Cultrix, 1972.

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    PRIMEIRA estao que puxa a corda do Crio cortada antes do fim do trajeto. G1: o portal de notcias da Rede Globo, So Paulo, 13 out. 2013. Disponvel em: . Acesso em: 2 nov. 2013.

    RODRIGUES, Adriano Duarte. A emergncia dos campos sociais In: SANTANA, R.N. Monteiro de (Org.). Reflexes sobre o mundo contemporneo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Piau: Revan, 2000. p. 169-215.

    SOUSA, Thamiris Magalhes de. Devoo em caracteres: a Igreja catlica no mundo digital: as tenses entre discursos e prtica da Igreja na era da internet e as redes de relacionamento do Crio de Nazar, em Belm do Par, como fenmeno de midiatizao religiosa. 2013. 188 f. Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao, Centro de Cincias da Comunicao, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, So Leopoldo, 2013.

    VERN, Eliseo. Semiose social: ideias, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paids, 2013. v. 2.

  • A travessia do Sair: uma perspectiva ecossistmica e semitica

    Nair Santos LIMAItala Clay de Oliveira FREITAS

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    Nair Santos LIMAItala Clay de Oliveira FREITAS

    A travessia do Sair: uma perspectiva ecossistmica e semitica

    O festival Sair ocorre h cerca de 350 anos na Amaznia e resulta do encontro entre indgenas e europeus no perodo das misses na regio. Diversos estudos sobre essa mani-festao j foram produzidos, sobretudo, quanto ao aspecto descritivo da festa, no entanto, a proposta deste captulo tem por objetivo apresentar o festival sob a perspectiva comu-nicacional, ecossistmica e semitica, considerando sua complexidade como fenmeno cultural. Dois momentos demarcam essa trajetria: o Sair como ritual e festa em seus primrdios, no sculo XVII, e o Sair atual composto da retomada, em 1973, e da insero da lenda do boto, a partir de 1997, momento em que ressurge como produto miditico, do turismo e do folclore e, com isso, passa a ter data especfica no calendrio de eventos de

    Alter do Cho e de Santarm (PA).

    Ao contemplar a diversidade cultural que permeia o evento nos dias atuais, pode-se dizer que o Sair se compe no apenas dos resduos do tempo passado, mas das demandas do tempo presente. Nesses termos, passado e presente so tecidos conjuntamente, em um esforo de aes, hbitos, costumes, festa, alegria, formando um denso tecido cultural. Desse modo, para entender o festival Sair, considerando sua totalidade e complexidade, recorreu-se Teoria Geral dos Sistemas, por meio dos parmetros sistmicos - ferramenta terica adequada anlise de fenmenos da natureza do complexo.

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    O FESTIVAL SAIR SOB UMA PERSPECTIVA SISTMICANeste estudo, o festival apresenta-se como um sistema, cuja definio abrange um conjun-to de relaes1 entre os elementos2 de um agregado de tal forma que venham a partilhar propriedades.3 Essa definio possibilita uma leitura direta sobre a noo de sistema por meio da ideia de composio, visto que implica naquilo (agregado) que formar o sistema e que prope, portanto, pensar a respeito de sistemas menores ou subsistemas.

    Torna-se relevante ainda pensar que sistemas [...] so sempre abertos em algum nvel, o que implica que sejam envolvidos por algum outro sistema, que em teoria de sistemas o ambiente (VIEIRA, 2008, p. 31). Desse modo, prope-se descrever o Sair considerando seu ambiente, ou seja, os limites que determinam quais (sub)sistemas esto sob o mesmo domnio.

    Esquema 1 Representao do sistema Sair

    Sistema Sair

    e Subsistemas

    Social Poltico

    Religioso Cultural

    Semitico

    Econmico

    Fonte: Resultado da pesquisa

    1 Vnculos que se estabelecem entre os elementos (do sistema) e que permitem que estes se mantenham unidos e formem o sistema. Assim, num sistema dado, no interessam todos os vnculos, mas aqueles que respondam ao objeto de estudo (VARELA, 2007).2 So as partes que compem o sistema. So ilimitadas na sua variedade: tomos, peas de viatura ou mquina, pessoas, departamentos, corrente, variveis matemticas, etc. Definem-se em funo dos objetos de

    estudo (VARELA, 2007).3 Diz respeito ao objetivo comum.

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    Nair Santos LIMAItala Clay de Oliveira FREITAS

    Esquema 2 Representao dos subsistemas do Sair

    Fonte: Resultado da pesquisa

    OS PARMETROS SISTMICOS Denominam-se parmetros sistmicos os traos comuns entre todos os sistemas, inde-pendentemente da natureza particular de cada um, ou seja, traos que encontraramos tan-to em uma galxia quanto em uma sinfonia, por exemplo, (VIEIRA, 2008, p. 32). Neste estudo, seguiremos a proposta de Vieira (2008), com base nas duas categorias apresenta-das: os bsicos ou fundamentais e os evolutivos. Os bsicos so aqueles apresentados por todos os sistemas, independentemente de processos evolutivos. Os evolutivos so aqueles que surgem ao longo da evoluo. So encontrados, no obrigatoriamente, em todos os sistemas, mas podem estar presentes em um e no em outro, assim como podem emergir em um determinado sistema, futuramente (VIEIRA, 2008).

    PARMETROS SISTMICOS BSICOSDe natureza ontolgica e cosmolgica, a permanncia dos sistemas uma soluo encon-trada pelo universo para, por sua vez, durar no tempo (VIEIRA, 1998). O cerne da questo inerente a todos os seres e coisas que, a partir de sua existncia, buscam estabelecer-se ou manter-se em um conceito similar ao de sobrevivncia, aplicado na biologia. Embora a manifestao Sair no tenha um registro histrico preciso quanto a sua origem, sabe-se que ela existe e tem resistido ao longo do tempo. Segundo os moradores mais antigos e

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    pesquisadores, a condio de permanncia se deu por conta da oralidade como veculo de informaes da festa, da dana e da histria.

    Todo o processo de permanncia conduzido pela oralidade insere-se no ambiente que, por sua vez, envolve o sistema, influenciando-o por meio das entradas, as quais fornecem ao sistema o material, a informao e a energia para a operao do processo, e das sadas, resultado do processo de transformao do material (entrada). No contexto do festival Sair, o ambiente seria a profuso de ocorrncias internas e externas prprias ou pertinen-tes cultura local de Alter do Cho, em toda sua dimenso, em todos os seus aspectos, sejam sociais, polticos, culturais, econmicos, religiosos e semiticos. E isso se observa na pescaria, na fabricao artesanal de produtos, na coleta do que se extrai da roa e da mata, no turismo que avana, no religioso que resiste, no poltico que administra e organiza, nas representaes e em muitas outras atividades.

    Essa vinculao do sistema com o ambiente no qual se encontra chamada de autonomia, que obtida a partir da memria do estoque, do conhecimento que permite a sobre-vivncia. A funo memria do Sair se constitui, sobremodo, do rito e das danas e por meio da oralidade as informaes foram sendo repassadas aos mais jovens com base na memria dos mais velhos, tal qual ocorreu quando da reconstruo do evento, em 1973.

    PARMETROS SISTMICOS EVOLUTIVOSOs parmetros evolutivos so aqueles necessrios sobrevivncia do sistema e exprimem temporalidade. Surgem como consequncia evolutiva dos parmetros bsicos e sempre que houver condies favorveis do ambiente. Os parmetros evolutivos distribuem-se em: composio; conectividade; estrutura; integralidade; funcionalidade; organizao e complexidade, sendo que este ltimo surge desde a permanncia e acompanha toda a evoluo do sistema (VIEIRA, 2008).

    A composio consiste naquilo que forma o sistema, como pessoas e instituies, cuja heterogeneidade gera estratgias mais complexas de permanncia. , em outras palavras, um parmetro associativo, visto que agrega alguns aspectos, como quantidade, diversida-de, informao e entropia. Nesse parmetro, quanto maior a diversidade de quantidade e

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    Nair Santos LIMAItala Clay de Oliveira FREITAS

    tipos dos agregados do sistema, maior ser a complexidade (VIEIRA, 2008). A insero da lenda do boto na programao da festa trouxe dinamicidade ao evento e projeo de permanncia ao Sair. Essa ideia intencional e estrategicamente planejada, por parte da comisso organizadora, objetivava o lucro.

    Outra caracterstica dos parmetros evolutivos reside na conectividade. Em sistemas psi-cossociais esse parmetro equivale ao modo como as pessoas se ligam umas s outras. A fora dessa conexo determina a coeso interna de um sistema. Na realidade, o que sus-tenta o sistema, tal como as tramas de um tecido, e lhe d estrutura a capacidade que tm os indivduos de estabelecer relaes, conexes ou laos entre si. a vinculao que une os filhos terra natal e, quando em atividades externas, muitos retornam no perodo da

    festa para o reencontro, para brindar a alegria no Sair.

    Esse movimento implica na evoluo do sistema sem prejuzo de sua integralidade e con-figura-se na capacidade em desenvolver subsistemas.4 Consiste ainda na estrutura e coeso, na unidade do grupo em prol da obteno e consecuo dos objetivos. Em 1997, a comis-so de coordenao do Sair elegeu algumas prioridades para o evento visando qualidade do folclore local, tal como um espao maior para as danas. O crescimento da festa cor-responde s aes internas no mbito do sistema e, consequentemente, ao surgimento de novos subsistemas.

    Tais aes remetem funcionalidade do sistema como um todo, a partir dos subsistemas. No festival dos botos, o enredo determina o desenvolvimento da apresentao, alm de conter toda a temtica por noite, em estreita relao com as lendas, costumes e crenas dos povos da Amaznia. Tanto no caf comunitrio quanto na cecuiara (almoo de confrater-nizao), percebe-se que as aes desenvolvidas funcionam como elementos e consolida-o dos valores da comunidade.

    De outro modo, essa evoluo da festa decorre da organizao, uma vez que envolve todos os parmetros anteriores e pressupe um modo hierrquico em crescente complexidade, o que denota que no h como defini-lo de modo preciso. Nesse sentido, considera-se desde

    a origem do ritual, com as misses religiosas, at os dias atuais, com o festival dos botos.

    4 O nmero de subsistemas arbitrrio e depende do ponto de vista de cada pessoa ou de seu objetivo.

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    So diversos elementos que se constroem ao longo de vrias geraes e confluem para sua

    organizao em dois subsistemas: o religioso e o profano.

    Subsistemas tambm so sistemas, posto que agregam elementos inter-relacionados com um objetivo comum. Esse nmero de relaes estabelecidas compe a estrutura, que, por sua vez, integra e une as partes e imprime certa unio e integridade ao sistema. o modo especfico de interao e interconexo dos componentes. A estrutura faz referncia com-plexidade fsica do sistema; o esqueleto e, muitas vezes, confundido com organizao. Nesse contexto, inserem-se o modus vivendi da populao, hbitos e costumes, os ciclos econmicos, enfim, a cultura local. Nesse parmetro, a comunidade se insere e apreende a

    importncia do evento.

    De modo geral, um sistema formado por uma multiplicidade de objetos, pessoas, msica, lenda, signos de natureza complexo. No festival Sair, a complexidade atua em todos os parmetros anteriormente vistos, de duas maneiras: a ontolgica, que alude complexida-de contida nos subsistemas, e a semitica, que se refere complexidade existente nas coi-sas que so representadas. Os objetos, as cores das vestimentas ou, ainda, as personagens saraipora, juiz, rainha do artesanato e