comunicaÇÃo polÍtica eleições 2.0 e o Ódio nas … · sociedades primitivas compartilhavam...

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1 COMUNICAÇÃO POLÍTICA Coordenação: Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt ([email protected]) Eleições 2.0 e o Ódio nas redes: uma análise sobre a disputa pela Presidência em 2014 1 Angelo Carnieletto Müller 2 Orientador: Jacques A. Wainberg [email protected] Resumo A eleição de 2014 repetiu pela sexta vez consecutiva o confronto direto entre PT e PSDB pela presidência da República no Brasil. A campanha foi marcada pela militância nas redes sociais, que ofereceu o processo eleitoral como pauta do dia e possibilitou, de um lado a democratização da discussão política, e de outro, a exacerbação das diferenças ideológicas na forma de discurso do ódio. Neste trabalho, apresentamos uma metodologia que verifica o potencial ofensivo dos discursos através da análise qualitativa e quantitativa e, a partir desta análise, verificamos o sentimento de propagação do ódio e do clima de ruptura social a partir das curtidas e compartilhamentos dos programas eleitorais realizados para a televisão e publicados na rede Facebook de cada candidato. Palavras-chave: Comunicação Social; Discurso do Ódio; Política; Clivagem; Mídias Sociais. Justificativa: O discurso do ódio, como estratégia de comunicação, tem a natureza de um argumento retórico. Ele até pode estar banalizado na cultura de uma sociedade e não se fazer percebido em todas as suas formas, mas ainda assim, tem um poder, pois é discurso, e quando direcionado sobre questões políticas, atua no sentido de reforçar ou até mesmo criar novas crenças a respeito de determinados grupos sociais, étnicos, políticos e religiosos. Enquanto estratégia de um discurso retórico, ele pôde ser percebido nos pronunciamentos em tempos de guerra, da mesma forma que em jogos de futebol, entre torcedores rivais e, naturalmente, em campanhas eleitorais. Confrontos, rivalidade, antagonismos, inimigos, oponentes. Estes são alguns dos conceitos, que fazem parte do léxico que envolve o Discurso do Ódio e a natureza dos sentimentos que são reforçados através do seu uso. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Comunicação Política do XIII Seminário Internacional de Comunicação da PUC RS. 2 Bacharel em Comunicação Social Jornalismo pela PUCRS (2003); Mestre em Comunicação pela PUCRS (2014) e Doutorando do PPPGCOM da PUCRS. Bolsista do Capes.

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Page 1: COMUNICAÇÃO POLÍTICA Eleições 2.0 e o Ódio nas … · sociedades primitivas compartilhavam valores diferentes. O que em parte é verdade. O compartilhamento destes valores significava,

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COMUNICAÇÃO POLÍTICA Coordenação: Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt ([email protected])

Eleições 2.0 e o Ódio nas redes: uma análise sobre a disputa pela

Presidência em 20141

Angelo Carnieletto Müller2

Orientador: Jacques A. Wainberg

[email protected]

Resumo

A eleição de 2014 repetiu pela sexta vez consecutiva o confronto direto entre PT e

PSDB pela presidência da República no Brasil. A campanha foi marcada pela militância

nas redes sociais, que ofereceu o processo eleitoral como pauta do dia e possibilitou, de

um lado a democratização da discussão política, e de outro, a exacerbação das

diferenças ideológicas na forma de discurso do ódio. Neste trabalho, apresentamos uma

metodologia que verifica o potencial ofensivo dos discursos através da análise

qualitativa e quantitativa e, a partir desta análise, verificamos o sentimento de

propagação do ódio e do clima de ruptura social a partir das curtidas e

compartilhamentos dos programas eleitorais realizados para a televisão e publicados na

rede Facebook de cada candidato.

Palavras-chave: Comunicação Social; Discurso do Ódio; Política; Clivagem; Mídias

Sociais.

Justificativa:

O discurso do ódio, como estratégia de comunicação, tem a natureza de um

argumento retórico. Ele até pode estar banalizado na cultura de uma sociedade e não se

fazer percebido em todas as suas formas, mas ainda assim, tem um poder, pois é

discurso, e quando direcionado sobre questões políticas, atua no sentido de reforçar ou

até mesmo criar novas crenças a respeito de determinados grupos sociais, étnicos,

políticos e religiosos. Enquanto estratégia de um discurso retórico, ele pôde ser

percebido nos pronunciamentos em tempos de guerra, da mesma forma que em jogos de

futebol, entre torcedores rivais e, naturalmente, em campanhas eleitorais. Confrontos,

rivalidade, antagonismos, inimigos, oponentes. Estes são alguns dos conceitos, que

fazem parte do léxico que envolve o Discurso do Ódio e a natureza dos sentimentos que

são reforçados através do seu uso.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Comunicação Política do XIII Seminário Internacional de

Comunicação da PUC RS. 2 Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela PUCRS (2003); Mestre em Comunicação pela

PUCRS (2014) e Doutorando do PPPGCOM da PUCRS. Bolsista do Capes.

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De fato, ele vem sendo utilizado ao longo dos anos para fortalecer lideranças,

ideologias, governos, e regimes ocidentais e antiocidentais em quase toda a sociedade

europeia e latino-americana. Ao longo do tempo, estes discursos, foram perdendo o

caráter de novidade e constituindo um lugar-comum, foram estabelecendo uma tradição

de simbologia e interpretação que se transformou numa epistemologia do entendimento

sociopolítico universal, baseada no ódio. Um ódio que, da mesma forma como acontece

com as tecnologias como nos lembrou Mark Weiser (1991), apresenta todo o seu poder,

especialmente quando sua presença deixa de ser percebida.

Mesmo como um mero argumento, este tipo de discurso tem acompanhado as

narrativas sociopolíticas ao longo da história. E tem transformado gradativamente o

arcabouço conceitual que envolve personagens e personificações políticas em todo o

mundo, recaindo tanto sobre conservadores como liberais, ou até mesmo sobre os

símbolos do ocidente e do oriente. Podemos dizer, portanto, que a recorrência destes

discursos também contribuiu para definir o imaginário sociopolítico mundial. E

passamos a reconhecer, tanto as grandes correntes ideológicas, como as minorias e

maiorias culturais e religiosas, justamente a partir daqueles valores com os quais menos

nos identificamos pessoalmente.

Isso resultou em sociedades altamente divididas. Mas a ruptura de que tratamos

neste trabalho, apesar de não ser de ordem religiosa, como percebemos na convivência

entre muçulmanos e católicos na Europa; nem cultural, como percebemos entre orientais

e ocidentais; é a ruptura possível de ser percebida entre os simpatizantes das diferentes

correntes políticas que protagonizaram, ao longo dos últimos 20 anos, a disputa pela

presidência da República no Brasil. Uma ruptura que, apesar de se dar em camadas

diferentes daquelas culturais e religiosas, está enraizada em valores profundos para boa

parte dos envolvidos nesta disputa. Desta forma, sobretudo quando tratamos de

sociedades onde as divisões já são bastante pronunciadas por fatores econômicos,

culturais ou religiosos, tais rupturas começam a se mostrar propícias a gerar

desencadeamentos radicais e de ordem violenta, a partir da mesma lógica que justifica o

fato de que uma política governamental de apoio ao ocidente contra o Estado Islâmico

aliada ao problema social dos argelinos na França, teve parte nos atentados que

acompanhamos tomados de horror em novembro de 2015 na capital francesa.

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Sobre o ódio

Para definirmos o discurso do ódio, devemos partir do princípio que ele é uma

manifestação externalizada na forma de discurso de uma discriminação, onde o agente

emissor deste discurso se considera superior ao individuo ou grupo ao qual o discurso

pretende atingir (Silva, 2011).

Desde os primeiros agrupamentos sociais, os seres humanos têm aprendido a

conviver com o elemento da diferença. Seja ela física, sexual ou racial, o fenômeno é

apontado pela psicologia como o desencadeador de atitudes originadas da estranheza, ou

seja, da postura de não reconhecer o que é externo ao ser como comum ou aceitável; e

do egocentrismo, resultando em pensamentos ou comportamentos que podem ser

eventualmente enquadrados em uma definição, ao menos superficial, daquilo que

conhecemos pelos sentimentos associados ao ódio.

Com o passar dos anos, o processo civilizatório foi responsável por tornar os

homens e as sociedades mais tolerantes. Esse processo demorado sempre esteve

agregado ao pensamento progressista, e envolveu não apenas a reunião de indivíduos

em comunidades, mas o desenvolvimento da ciência, da educação, até chegarmos no

período vitoriano, quando a revolução industrial e a corrida pela mecanização se

encarregou de acelerar ainda mais o potencial tecnológico e a própria historia humana.

De acordo com Samuel Huntington (2010), o conceito de civilização teria surgido no

século XVIII, justamente para que fosse feita a oposição entre aquelas sociedades que

viviam em um estado considerado avançado e os povos bárbaros. “A sociedade

civilizada diferia da sociedade primitiva porque era estabelecida, urbana e alfabetizada”.

(2010:54).

Da mesma forma como acontece hoje, naquela época, pressupunha-se que as

sociedades primitivas compartilhavam valores diferentes. O que em parte é verdade. O

compartilhamento destes valores significava, para a sociedade ocidental, a primeira a

experimentar a força da industrialização e a vida em grandes centros organizados pela

rotina do trabalho industrial, uma desvalia. Era uma desvalia em escala, pois estava no

habitante de cidades como Paris em relação ao habitante de Vichi, e deste em relação a

Giverny, mas que assim por diante, aumentava em grau na medida em que a sociedade

em questão ia se afastando dos centros e perdendo traços de sua identidade urbana. Mas

a este sentimento de desvalia, no entanto, não parece que podemos associar o de ódio,

quando consideramos o pensamento do homem urbano em relação ao homem habitante

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dos pequenos centros, mesmo que ambos os sentimentos estejam fundamentados na

diferença.

Esta questão se mostra especialmente importante, a da diferença, quando se

buscam as razões psicológicas ou psicanalíticas para o desenvolvimento do sentimento

de ódio. Sabemos que, para que ocorresse a vida em comunidade, primeiramente, se

exigiu do homem um gradativo controle de seus impulsos, um abandono do estado

natural de que fala John Locke ([1690] 2006), e a assunção de princípios pacíficos em

nome da vida, da propriedade e do bem comum. A sociedade decorrente desse contrato,

só foi possível porque limitou, ainda que razoavelmente, a execução das vontades

humanas, em um trabalho que passou a ser completado através da educação (Postman,

2005). Desta forma, nas sociedades civilizadas e desenvolvidas, o ódio gradativamente

foi perdendo o lugar legítimo entre os atos humanos, passando a ser um inquilino

habitante dos discursos.

Fato é que os seres humanos têm aprendido a conviver com o elemento da

diferença. Seja ela física, sexual ou racial, o fenômeno tem sido apontado pela

psicologia como o desencadeador de atitudes originadas da estranheza, ou seja, da

postura de não reconhecer o que é externo ao ser como comum ou aceitável; e do

egocentrismo, resultando em pensamentos ou comportamentos que podem ser

eventualmente enquadrados em uma definição, ao menos superficial, daquilo que

conhecemos pelos sentimentos associados ao ódio.

Para que seja aceito esse argumento, porém, é necessário admitir que exista no

ser humano, além da natural propensão para o amor, uma natural propensão para o ódio.

Afirmação controversa, ao extremo debatida, de Aristóteles e Platão a Locke e

Rousseau, e que gerou, no campo da psicanálise, uma teoria sobre a dualidade proposta

por Sigmund Freud (1930), traduzida, basicamente na forma de duas pulsões, a da vida

e a da morte, que seriam responsáveis por guiar nossas atitudes diante das situações

proporcionadas especialmente pelo convívio social. À primeira, o psicanalista

relacionou a construção dos laços, segurança, associações, as trocas que aproximam os

seres. Enquanto que a pulsão da morte seria o resultado das frustrações dos desejos, das

insatisfações, da insegurança, do medo daquilo que foge ao controle, ou seja, o que é

externo ao homem. É por essa razão que a psicanálise freudiana admite a presença da

pulsão de morte até mesmo nas relações mais vitais, como a do amor. Ou seja, não há

um julgamento desse princípio, que não seja o da naturalidade.

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O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar,

é que o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que

no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele

deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte

quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o

próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto

sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à

agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele

se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu

patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para tortura-lo e

matá-lo. (FREUD, 1935, p.49)

Partindo da proposta de Freud, podemos imaginar que a medida em que a

sociedade foi tronando-se mais complexa, a partir da admissão em sua constituição de

cada vez mais indivíduos, esta conformação foi responsável por inserir nos

agrupamentos sociais maiores níveis de diferenças. Por essa razão, o que chamamos de

mundo civilizado também poderia ser definido como o agrupamento das sociedades

onde os indivíduos aprenderam a controlar, a suprimir sentimentos violentos, entre eles

o do ódio. Isso feito em nome de uma pretensa maior segurança que conferia ao

indivíduo a sensação da vida em grupo.

De acordo com Freud, o problema da supressão da Pulsão de morte, e não por

outro motivo o nome dado ao instinto agressivo é “Pulsão”, é que ao mesmo tempo em

que possibilita a vida em sociedade, ela represa em determinados indivíduos uma

agressividade latente. Deste modo, a pulsão nunca se afasta, se consome, desaparece

verdadeira e totalmente do indivíduo.

Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à

gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao

fazê-lo. Não é de menosprezar a vantagem que tem um

grupamento cultural menor, de permitir ao instinto um escape,

através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é

possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que

restem outras para que se exteriorize a agressividade. [...]

(FREUD, 1935, p.51)

Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” as animosidades entre

comunidades vizinhas, como portugueses e espanhóis, ingleses e escoceses. O psicólogo

explica que através dessa característica, há uma “cômoda e relativamente inócua

satisfação da agressividade” (1935:52) de maneira que a união entre os membros de

uma comunidade é facilitada.

O autor acredita que o homem aos poucos vai moldando e estado da civilização

de maneira a satisfazer melhor as suas necessidades. Também acredita, por outro lado,

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que o homem possa familiarizar-se com os empecilhos inerentes à cultura, e a partir daí

se sentir mais confortável com alguns deles. Mas alerta para um outro perigo, que ele

chama de “miséria psicológica da massa” (1930:53).

Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade, mas

também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor

por que para ele é difícil ser feliz nela. De fato, o homem

primitivo estava em situação melhor, pois não conhecia restrições

ao instinto. Em compensação, era mínima a segurança de

desfrutar essa felicidade por muito tempo. O homem civilizado

trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança. Mas não

esqueçamos que na família primitiva somente o chefe gozava

dessa liberdade instintual; os outros viviam em submissão

escrava. (FREUD, 1930, p. 52)

Carl Jung (2006), em seus escritos sobre o imaginário coletivo, discutiu também

a questão da dualidade analisando o caráter da “anima”, ou alma, espírito. A alma em

Jung seria, portanto, a experiência dos lados bom e mau do homem, ambos em

constante busca de realização, satisfação e vida. E aqui há uma chave em nossa

pesquisa, que trata da compreensão da vida humana a partir da alma, do espírito

humano, que para Jung significa os lados bom e mau em busca de realização. E do que

se trata a busca da realização para bem, para a construção, é aquilo que normalmente

debatemos. Mas o entendimento de que há um lado oposto a esse, que também vive e

busca realização, e que deve ser suprimido em nome da vida em sociedade, esta é uma

discussão difícil de se realizar.

Assim como Freud, Jung, que desenvolveu sua própria abordagem psicanalítica -

a partir de Freud, mas de maneira independente e original – atribui sobretudo aos fatores

externos, estranhamento e frustração, as causalidades das reações que entendemos como

carregadas do elemento do ódio. Para Jung (2006), “A agressividade advém desta

percepção de que o Outro é falho...” [...] (2006:22). Esta é também, de certa forma, a

mesma problemática encontrada por Merleau-Ponty quando o autor aborda a

singularidade da interpretação dos fenômenos:

[...] Como a coisa, como o outro, o verdadeiro cintila através de

uma experiência emocional e quase carnal, onde as “ideias” – as

de outrem como as nossas – são antes traços de sua fisionomia e

da nossa, e são menos compreendidas do que acolhidas ou

repelidas no amor ou no ódio. [...] (MERELAU-PONTY, 2014, p.

24).

O que esse trecho de Merleau-Ponty aponta é que parece não haver a

necessidade de uma compreensão exata dos fenômenos, das ideias que compõe o

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imaginário do outro. Seus traços, suas nuances, são suficientemente capazes de

determinar que tipo de emoções teremos, de que forma reagiremos ao que nos é

proposto, se com amor, através do acolhimento, se com ódio, através da repulsão.

O Ódio na política e no imaginário ideológico do brasileiro

No Brasil, tratar do ódio entre as pessoas é matéria geradora de grande

controvérsia. Ela se estabelece quando o assunto envolve o mito de que o brasileiro é

um ser pacífico, acostumado às diferenças, receptivo e alegre. De acordo com o

historiador Leandro Karnal (2012)3 esse mito tem origem no início do século XX,

através das ideias de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior,

que estimularam por meio de suas publicações, um pensamento sobre um Brasil cortês,

onde convive um povo pacífico. Ao menos em parte, toda essa construção simbólica

sobre o brasileiro também é herdada da Igreja Católica, que teve na ira – ou no ódio –

um dos seus sete pecados capitais. Para o catolicismo, o pacífico e aquele que perdoa,

este sim, é digno herdeiro do Reino de Deus. Essas características, segundo o

historiador, teriam sido profundamente assimiladas pela cultura nacional e explicariam

o porquê de a população brasileira, quando em face à violência e ao ódio, viva em um

constante estado de espanto e, mais, que tenda a endereçar essas manifestações aos

outros, seja um outro país, uma outra cidade, outra torcida ou outro partido.

Este é o argumento que levanta Karnal (2012), que cita a série de guerras civis

pelas quais passou nosso país, algumas extremamente violentas como os eventos em

Canudos e no Contestado, que não interferiram na construção desse imaginário social

do brasileiro. Nem mesmo de Guerras Civis estes eventos foram chamados. O ódio no

Brasil trata-se, segundo o historiador, de uma realidade histórica que envolve desde os

maus-tratos aos escravos e as repressões aos eventos emancipatórios, nos primeiros

séculos de nossa história, e que se faz presente, sobretudo hoje, na relação entre

moradores das grandes cidade e favelas ou periferias, entre habitantes das regiões do

sudeste, sul e norte e nordeste, mas que também mostra sua face obscura na disputa

política pelo poder entre diferentes facções ideológicas.

3 Programa Café com Filosofia, Rede Cultura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iG-OGc1bufs.

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Foi isso que esteve tão claro durante a eleição de 2014 no Brasil, e que deixou

marcado o problema da convivência com a diferença no nível político-ideológico.

Alimentada pelas diferenças de opiniões e pela tradição de disputa entre dois partidos -

o PT e o PSDB - mas principalmente, pela exacerbação do uso do discurso do ódio, a

ruptura que foi disseminada e propagada nas redes sempre fez parte do jogo político. Os

conflitos ideológicos estão presentes antes mesmo do esclarecimento do conceito de

ideologia, e sempre foram determinados, de acordo com Giovanni Sartori (1961), pela

relação que existe entre os diferentes sistemas de crenças. O autor italiano sugere que

estes sistemas apresentam elementos que podem ser comuns ou distintos em relação aos

sistemas de outros indivíduos, e a intensidade com que se acredita em cada um seria

aquilo que dá a medida do afastamento ideológico. Para Sartori (1961), quando os

elementos distintos são acreditados de maneira flexível e aberta, é possível esperar de

um choque entre dois sistemas de crenças alguns ajustamentos comportamentais,

enquanto no caso de os elementos distintos são fixos, fechados e imutáveis, o que

resulta é a completa incompatibilidade. Foi o que vimos ns discursos da militância de

PT e PSDB nas eleições de 2014, que apontaram justamente para esta relação de

incompatibilidade e exclusão.

[...] De um lado, se os elementos distintivos não são apenas

fechados, mas apaixonadamente mantidos, nós podemos ter a

“guerra ideológica”, a relação de incompatibilidade e o conflito

fora de controle. [...] (SARTORI, 1969, p.409)

O uso, portanto, dos sistemas de crenças – ou das ideologias – para motivar

eleitores a, além do voto, promover e defender determinado partido político, tornou-se o

problema central de nossa análise. Isto porque o resultado dessa estratégia extrapolou o

âmbito da cidadania e resultou em uma guerra ideológica que ficou registrada através de

seus discursos nas redes sociais. Essa relação está desenvolvida no pensamento de

Mullins (1972) que afirma que o conflito entre dois sistemas de crenças incompatíveis

se dá na medida que a ideologia passa a agir através do seu “poder de comunicar

cognições, avaliações, ideais e propostas entre membros de grupos” (1972:509).

Portanto, é natural que os discursos de dois partidos em conflito ideológico tendam a ser

carregados de elementos que, para além de justificarem suas próprias escolhas

ideológicas, intencionem atingir de alguma maneira os seus oponentes. E é presumível

que essas mensagens atendam a uma lógica semelhante à da publicidade.

Os procedimentos para fabricar os problemas que apaixonam a

opinião e a vontade popular sobre estes problemas são similares

exatamente aos que se empregam na propaganda comercial. Neles

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encontramos os mesmos esforços para chegar a um contato com o

subconsciente. Encontramos a mesma técnica de criar associações

favoráveis e desfavoráveis, que são mais eficazes quanto menos

racionais sejam. [...] (SCHUMPETER, 1961, p.336).

Shcumpeter (1961), assim como Mullins (1972), também está atento a esse

caráter publicitário da mensagem política, uma maneira de atuar que pouparia ao

receptor o trabalho do escrutínio da verdade, na medida que apresenta raciocínios

prontos, e que visa a produção de vontades, enquanto atua como instrumento ideológico

(SCHUMPETER, 1961). Daí que a divulgação de mensagens políticas começa a

exercer sobre a sociedade um poder que a atinge como uma reação em cadeia, que

começa em alguns membros do corpo social e se propaga através da comunicação, e até

mesmo através do comportamento de grupos situados dentro da estrutura social,

carregando mensagens que podem conter elementos profundamente preconceituosos,

promotores da segregação e do ódio, mascarados sob o manto da ideologia, de dogmas

ou de pressupostos de sistemas de crença, que deixam de ser analisados pelo público

uma vez que são apresentados já na forma de uma cognição, ou seja, ao invés da

operação do raciocínio, o resultado pronto. E estes grupos acabam propagando os

efeitos da mensagem política, como nos alerta dessa vez Philip Converse (1964),

provocando as mesmas reações, independentes de verificação, ou nas palavras do autor,

que ligam o comportamento “a certos canais bastante independentes de cognições

específicas e percepções dos próprios atores” (CONVERSE, 1964, 231). A importância

da análise destes elementos está no poder que os discursos dos líderes políticos têm de

gerar polarização e estimular o conflito dentro do eleitorado (JOST, FEDERICO E

NAPIER, 2009), e no papel “decisivo” da ideologia para a mobilização e manipulação

das massas (SARTORI, 1969, 409).

[…]Os leitores de periódicos, os rádio escutas, os membros de

um partido, ainda quando não estejam reunidos fisicamente, têm

uma enorme facilidade para transformarem-se em uma multidão

psicológica e para chegar a esta situação de frenesi em que uma

intencionalidade de argumentação não faz mais do que despertar

os espíritos animais. (SCHUMPETER, 1961, p.330-331).

Eleições 2.0

Hanna Arendt, naquele que talvez tenha sido seu trabalho mais filosófico4,

elabora sobre a natureza da ação e do discurso a qualidade de existirem em uma espécie

de simbiose, onde um existe na dependência do outro de modo seja possível algum tipo

4 A Condição Humana, 1958.

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de significação social. É o que ela deixa claro ao sentenciar que através da ação e da

fala “[...] os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais

únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano [...]” (Arendt, 2014, p.222).

Seguindo seu raciocínio, Arendt posiciona ação e discurso significantes, mesmo

em suas manifestações mais objetivas, em um domínio comum, um espaço-entre

(p.226) habitado por sujeitos e significações prévias, que por sua vez faz parte um

espaço ainda mais amplo, de mesma natureza, constituído pelos atos e palavras

originados do agir e falar dos homens uns com os outros. É nesse espaço maior, ou

meta-espaço5, que a autora chamara de “teia” de relações humanas e que nós temos nos

acostumado a chamar redes, que estão em convivência simbiótica os atos e discursos

que constituem o ambiente onde se percebe a opinião pública. Um lugar onde

“[...] os homens se desvelam como sujeitos, como pessoas

distintas e singulares, mesmo quando inteiramente concentrados

na obtenção de um objeto completamente material e mundano.

[...] (ARENDT, 2014, p. 226)

Essa característica da teia de relacionamentos elaborada por Arendt, da

desvelação do homem como sujeito, aponta para um campo que é legítimo, apropriado,

autorizado a receber este desvelamento. A autora parte do princípio que o discurso e a

ação estão inseridos numa rede já existente, e que o princípio de um ou outro nesta rede

significa necessariamente uma afetação de todos os discursos e ações em andamento.

Não há referência a qualquer habilidade, talento ou sentimentos necessários para que se

manifestem o discurso e a ação, mas o seu contrário, ou seja, o não-discurso e a não-

ação seriam, de acordo com Arendt, um constrangimento relacionado com o choque a

um sistema relativamente estável6. “[...] É em virtude dessa teia preexistente de relações

humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca

atinge seu objetivo [...]” (Arendt, 2014, p.228).

Podemos a partir daí, estabelecer uma relação entre o ambiente físico das redes

de relacionamento, dotado das características levantadas por Arendt, ao ambiente virtual

das redes sociais. Ao contrário da rede física, onde as vontades e intenções conflitantes

têm um peso determinante para o discurso e a ação, as redes sociais, com suas

características de velocidade, alcance, fluidez, aceleração ou efemeridade, ou talvez

liquidez, como prefere Zygmunt Bauman (2001), mas acima de tudo, com a segurança

que oferecem ao indivíduo em relação ao ambiente físico, são propícias para a

5 Superestrutura, de acordo com a terminologia marxiana. 6 Espiral do silêncio

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ocorrência e intensidade dos conflitos verificados no espaço virtual, pois eles decorrem

justamente do encontro registrado de um grande número de vontades e intenções

conflitantes, o que desorganiza e tira o foco do indivíduo único, aliados à sensação de

segurança que o ambiente virtual oferece, ambos experimentados num ambiente onde os

laços são tantos que, se estabelece um paradoxo onde ao mesmo tempo, este grande

número de relações fornece mais garantia para o sucesso do discurso e da ação, pois

“[...] Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. [...]” (Arendt, 2014, p.233), e

ao mesmo tempo essas relações se tornam menos importantes porque são mais

rapidamente substituíveis.

É principalmente a partir dos anos 2000 que a presença de um novo fenômeno

na comunicação, a internet, começa a modificar os paradigmas da vida em sociedade e,

particularmente, da participação política. A internet e a Web 2.0 colocaram em prática a

interação nas formas de produção, participação e compartilhamento de informação,

estendendo o poder do usuário sobre os canais informativos. Se para além dos exemplos

encontrados ao redor do mundo, que nos mostravam uma sociedade organizada em

redes, que havia se levantado contra regimes opressores, ditatoriais e tirânicos, Manuel

Castells (2013) referiu-se às redes como o local onde as sociedades se engajariam nos

conflitos que devem ajudar a determinar os rumos destas mesmas sociedades no futuro,

a constatação de um ambiente de profunda ruptura social como o verificado em 2014

nas redes durante a campanha eleitoral no Brasil, traz à tona a pertinência dessa questão.

A ideia de que a internet passaria a exercer um papel cada vez mais fundamental

no comportamento individual e dos grupos, inclusive na participação política, ganhou

força e concretizou-se durante os últimos anos do século XX. Partindo de uma relativa

liberdade dos discursos na internet, mais precisamente nas redes sociais, é possível

reconhecer a vantagem de que o pensamento livre é possível e até certo ponto

livremente manifestado. É possível transmitir uma mensagem para um grande número

de indivíduos independentemente dos gatekeepers ou de quaisquer guardiões do acesso

aos tradicionais e caros canais que monopolizavam o trânsito informacional até bem

pouco tempo.

Esse fenômeno tornou possível o livro de Manuel Castells (2013) Redes de

Indignação e Esperança, onde o autor trata das redes estabelecidas entre os usuários da

internet como uma espécie de organização e empoderamento da sociedade desvinculado

dos grandes grupos de poder e que ocorreria a partir da sociabilização das demandas,

dos anseios políticos, e do compartilhamento de informação por intermédio, sobretudo,

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das redes sociais. Dos Estados Unidos ao mundo Árabe, passando pela Europa, o autor

se utiliza de exemplos de grandes movimentos que desafiaram o status quo

governamental e exigiram mudanças de acordo com a vontade daquelas massas sociais

organizadas.

Ainda antes de Castells, ao observar o desenvolvimento e popularização do

ambiente midiático a partir das novas formas de interação entre produtores e

consumidores, Henry Jenkins (2006) já apontava para o surgimento de uma nova

cultura, caracterizada pelo domínio e uso de mídias - como o telefone celular, e

especialmente, o computador e seus programas de produção, edição, distribuição e

acesso à informação. Essa cultura, popularizada pelo uso constante de ferramentas que

se encontravam cada vez mais acessíveis à boa parte da população mundial, se

manifesta hoje em sua grandeza avassaladora, através do uso social, organizado, político

ou cultural, da competência no domínio das novas tecnologias de comunicação.

A extensão do poder da sociedade a partir do domínio de novas mídias, todavia,

pressupõe a sua utilização democratizada e em grande escala. Em termos de

participação política, é possível verificar este pressuposto em alguns marcos históricos,

notadamente quando há um deslocamento do eixo de poder, antes exclusivo dos meios

de comunicação tradicionais, em direção à sociedade usuária das novas mídias. Um

destes primeiros marcos históricos foi o episódio ocorrido na Espanha em 2004, quando

às vésperas da eleição presidencial, o atentado terrorista ao metrô de Madrid mobilizou

a população espanhola através de uma corrente de mensagens via SMS contra a

liderança do então presidente, José Maria Aznár e o Partido Popular (PP). Em três dias,

a vitória certa do candidato do PP transformou-se em uma surpreendente virada e na

eleição de José Luiz Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista Operário Espanhol

(ABELAN, 2005).

Outro marco histórico na participação política através do uso de novas

tecnologias aconteceu no mesmo ano, durante a corrida presidencial norte-americana.

Através do domínio de programas como Photoshop, editores de vídeos e a publicação e

distribuição deste material na rede, transformados em conhecimento comum para uma

substancial parcela da população dos Estados Unidos, a internet serve pela primeira vez

como canal de participação massiva no jogo político (JENKINS, 2006). O exemplo

clássico desta produção alternativa de conteúdo político foi o vídeo que satirizava a

candidatura do candidato republicano George W. Bush, onde imagens de noticiários

foram editadas junto às do reality show “The Aprendice”, mostrando um momento

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fictício onde o candidato era demitido pelo apresentador do programa por

incompetência, Donald Trump, aos gritos do jargão característico, you’re fired!7

O uso e o domínio sobre estas novas ferramentas têm como característica

principal o seu público ser sobretudo jovem, um público que até pouco tempo

geralmente demonstrava pouco ou nenhum interesse pelo jogo político. Com a

possibilidade do uso destas ferramentas, tanto surge uma nova forma de abordagem

política, mais lúdica e interessante ao contingente juvenil eleitoral, como há uma

consequente adesão substancial de parte deste público ao debate político e o

consequente crescimento do interesse do jovem sobre os partidos, as propostas, o

histórico e as consequências da política.

No brasil, durante a campanha pela presidência da república em 2010, aconteceu

o primeiro debate presidencial com transmissão exclusiva pela internet. E enquanto

portais de notícias, páginas institucionais e blogs já vinham sendo utilizados como

canais de manifestação política, o fenômeno das redes sociais, muito populares no país,

ensaiava formas de engajamento e disseminação de informação que seriam utilizadas a

plena potência nas manifestações de 2013 e nas eleições de 2014. Com a popularização

das redes sociais, novos espaços de entendimento e participação política surgiram e, não

apenas influenciaram para sempre o modo como as campanhas passariam a endereçar

mensagens a seus eleitores, mas moldaram a forma como o público passaria a reagir aos

discursos políticos (JENKINS, 2006).

A eficácia destas redes sociais no campo político foi amplamente verificada e

estudada na campanha vencedora de Barack Obama para a presidência dos Estados

Unidos em 2008 (KREISS, 2012). As declarações do candidato democrata através de

sua conta na rede social Twitter, foram compartilhadas entre milhares de usuários,

repercutindo significativamente na captação de novos simpatizantes até mesmo entre

republicanos. Estes eleitores que vivenciaram e promoveram a campanha de Obama

através da rede social se tornaram fundamentais para a construção de um momento

eleitoral positivo e da consequente vitória dos democratas sobre o republicano John

McCain (SAMS & RICE, 2009).

Porém, a internet não traz apenas contribuições positivas para o ambiente

político. É certo que ela oferece uma liberdade sem precedentes para qualquer tipo de

publicação e pouquíssimas barreiras para que se acessasse ideias inovadoras ou

7 “Você está demitido”, é o jargão do apresentador do programa que tem versão brasileira na Rede Record desde 2004.

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revolucionárias. Porém, a necessidade de se fazer ouvir, especialmente entre aqueles

que estiveram alijados do processo comunicativo dominado pela mídia tradicional, fez

com que surgisse uma nova classe de emissores, que reúne tanto aqueles interessados no

debate democrático e na construção de conhecimento, como pessoas que exacerbam

preconceitos, xenofobia, traumas e desequilíbrios em seus discursos.

[...] Os que são silenciados pelas mídias corporativas têm sido os

primeiros a transformar o computador em uma gráfica. Essa

oportunidade tem beneficiado outros, sejam revolucionários,

reacionários ou racistas. [...] (JENKINS, 2008, p.290).

Assim, a internet coloca em contato diferentes grupos de interesses e seus

discursos, inicialmente, através dos Blogs, mais tarde, das redes sociais. Ao contrário da

relativa organização – evidentemente perpassada pela ideologia e pelo interesse

corporativo – da mídia tradicional, o conteúdo encontrado na internet e caótico e quando

muito anárquico. Isso faz com que o indivíduo que acessa este conteúdo necessite atuar

como seu próprio gatekepper. Além disso, a narrativa das redes sociais mimetiza a

narrativa jornalística, fornecendo notícias – na forma de estímulos textuais ou visuais –

que tendem a atingir o público indiscriminadamente, não importando o seu conteúdo

nem tampouco sua origem. Isso age, por um lado, dando um certo caráter de

credibilidade – herdado das publicações impressas ou veiculadas via TV ou rádio – e

por outro, permitindo com que determinadas ideias sejam estimuladas e retransmitidas a

partir de um conjunto de fatos verdadeiros e/ou falsos, manipulados por interessados

que podem ser diretos ou indiretos, mas que têm por objetivo, ao final do processo,

gerar uma mudança de comportamento, e que consiste num processo parecido com o de

uma campanha de marketing digital e do que convencionou-se chamar de groundswell

(LI; BERNHOFF, 2008), ou seja, uma informação ou tendência que se espalharia via

rede através dos próprios usuários, sem a necessidade de publicidade direta, e portanto,

sem parecer ser propaganda.

Ao proporcionar estas novas formas de campanha propagandística, a internet e

as redes sociais se tornam ainda mais interessantes para o jogo político. Por outro lado,

o contraste entre o virtual contato com um universo de milhares de usuários, e o exílio

físico proporcionado pela atuação via computador, possibilitou que os discursos

eventualmente se desprendessem de algumas características da comunicação tradicional,

entre elas o constrangimento e o medo da reação imediata. A falta destes elementos

seria apenas um dos fatores que nos ajudaria a justificar o alto grau de animosidades

presente entre os eleitores de PT e PSDB nas eleições presidenciais de 2014.

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Uma tradição de disputa

A tradição de disputa entre os dois partidos (Müller, 2015), que remonta há mais

de 20 anos, além da contextualização dos seus surgimentos na esteira da abertura

política e da redemocratização após o período de ditadura militar, são todos fatores que

ajudaram a fortalecer as crenças de seus membros e simpatizantes e criar entre eles e

seus adversários suas representações.

Embora adversários, PT e PSDB são partidos que surgiram na esquerda do

espectro ideológico, ambos fundados sob princípios socialistas, mesmo que o primeiro

estivesse em sua origem bem mais afastado do centro que o segundo. Inicialmente, estes

partidos nem ao menos foram adversários. Fernando Henrique Cardoso teve o apoio de

Luís Inácio Lula da Silva quando foi candidato a Senador pelo Estado de São Paulo, no

início dos anos 80 e os dois estiveram juntos durante boa parte desse período de

transição democrática.

Portanto, o que parece ter sido mais significativo realmente nessa construção

simbólica foi o viés dos discursos adotados por direita e esquerda, que buscaram

imprimir no imaginário do eleitorado brasileiro visões ideologizadas sobre cada partido

e seus candidatos. Convém lembrar que, quando falamos em esquerda e direita, há de se

garantir ao leitor que entenda bem o que estas palavras pretendem dizer: a direita que

conduziu a construção simbólica do Partido dos Trabalhadores não teve por pelo menos

dez anos, ligação alguma com o PSDB, até porque este partido nem ao menos havia

sido fundado quando o PT surgiu no cenário nacional e, mais uma vez, tratava de um

partido fundado na ideologia da socialdemocracia.

Inicialmente, a direita conservadora brasileira, desejosa da abertura democrática,

relacionava o projeto petista a uma certa identidade com o bloco comunista, composto

por China, Cuba, Alemanha Oriental e, especialmente, União Soviética (URSS), em um

mundo ainda dividido e sob o terror da Guerra Fria e a ameaça nuclear.

De fato, o Partido dos Trabalhadores era o que mais radicalmente defendia

mudanças na estrutura política e econômica do Brasil, e a agenda apresentada pelas

propostas do PT realmente poderiam ser comparadas aquela dos países socialistas

aliados à URSS. Lech Walessa e o Solidariedade chegavam ao poder na Polônia e

inspiravam o projeto petista de um governo dos trabalhadores, dando gás para contra-

ataques veementes e discussões acaloradas. Rapidamente, os discursos de revolta contra

um sistema de governo baseado na economia capitalista e uma sociedade nem um pouco

igualitária, se tornaram a marca da política petista.

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Em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, a bancada petista na

Câmara Federal se recusou a assinar o documento, sob a liderança do Deputado Federal

mais votado na história, Luís Inácio da Silva. No mesmo ano, era fundado o Partido da

Social Democracia Brasileira, liderado entre outros por Mário Covas, Fernando

Henrique Cardoso e José Serra. O partido lançaria o ex-governador do Estado de São

Paulo, Mário Covas, na campanha presidencial de 1989. Covas chegaria em quarto

lugar, atrás de Brizola (PDT) e Lula, que foi ao segundo turno contra Fernando Collor

de Mello (PRN).

O distanciamento entre Fernando Henrique Cardoso e Lula tem um ponto

importante nesta campanha, uma vez que o apoio do PSDB a Lula só foi aberto após

longas discussões, em parte porque Fernando Henrique Cardoso não apoiava a proposta

do PT. Ao fim e ao cabo, Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique subiram no

palanque ao lado de Lula no segundo turno da campanha de 1989.

Em 1994 tinha início uma sequência ininterrupta de disputas entre PT e PSDB

pela presidência da República no Brasil que já dura mais de 20 anos e completou seis

eleições. Naquele ano de 1994, Fernando Henrique Cardoso (FHC), o idealizador do

Plano Real, era o candidato do PSDB aliado ao Partido da Frente Liberal (PFL),

representado pelo candidato a vice, Marco Maciel. Enquanto o PT reforçava seu

posicionamento à esquerda, coligando-se com PPS, PSB, PCdoB e PV8, e mais uma vez

apresentando Lula como candidato, sob o ponto de vista ideológico, conforme vimos

em Guerring (1997) e Knight (2006), a socialdemocracia defendida pelo PSDB se

fragilizava ao aliar-se ao conservadorismo do PFL. E enquanto o PT se afirmava

mantendo-se coerente à sua ideologia, o PSDB dava os primeiros passos em direção a

uma identificação com a direita.

Os discursos do horário eleitoral gratuito apresentaram os dois partidos como

representantes dos interesses de uma parcela da população desfavorecida

economicamente. PT e PSDB focam nas questões sociais, como a fome, o combate à

pobreza e a educação. Ambos se preocupam com o rumo da agricultura. Enquanto o PT

tem uma visão pessimista do Brasil e critica diretamente Fernando Henrique em todos

os programas analisados, o PSDB apresenta uma visão nacionalista, sem fazer nenhuma

referência direta ao candidato do PT. Nas referências à FHC, o discurso do PT utiliza

expressões como a falta de “respeito aos cabelos brancos” dos aposentados; o “país das

8 Partido Popular Socialista, Partido Socialista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil e Partido Verde.

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injustiças governado pelos aliados de Fernando Henrique Cardoso”; ou “O governo do

qual Fernando Henrique era ministro da fazenda mandou comida estragada para os

pobres”. Em um programa, o narrador chega a comparar Fernando Henrique ao

personagem Ali Babá: “Dizem que Ali Babá não era um mau sujeito, estudioso... o

problema é que andava com os quarenta ladrões”. Já o PSDB ataca Lula de maneira

indireta, normalmente comparando os dois candidatos através de características que

supostamente existiriam em FHC e inexistiriam em Lula. Referências à diferença de

educação dos dois candidatos está, por exemplo na expressão “foi professor”; ou ainda,

à inexperiência de Lula como gestor, quando o discurso de que FHC é “experiente” por

ter sido Ministro das Relações Exteriores e Ministro da Fazenda de Itamar Franco; e em

relação à retórica de Lula, revolucionária e ainda conflitante, o discurso dos programas

do PSDB diz que FHC é “equilibrado”. Fernando Henrique Cardoso atingiu 54% dos

votos válidos para vencer os 27% do candidato do PT no primeiro turno9.

O primeiro governo de FHC teve como uma de suas principais marcas as

políticas de direita associadas à “diminuição” do Estado. As quebras do monopólio

estatal nas áreas dos combustíveis e telecomunicações e a privatização de empresas

como a Vale do Rio Doce fizeram parte da estratégia do PSDB e foram fortemente

criticadas pela candidatura do PT durante a campanha de 199810. Com isso, apesar do

lançamento de programas sociais, das reformas no ensino fundamental e na previdência,

e da ampliação do seguro desemprego (Draibe, 2003), o primeiro mandato de FHC foi

vinculado à imagem de um governo de direita. Ao mesmo tempo, a aliança que

enfrentou a reeleição congregava os principais partidos de esquerda no Brasil, PT, PDT,

PCdoB, PCB e PSB. A união destas siglas em torno de uma nova candidatura de Lula

“fechava o grupo” e legitimava o campo ideológico da esquerda, atraindo para si a

propriedade sobre os discursos que envolvessem temas como a responsabilidade do

Estado, a divisão dos lucros e a injustiça social.

No horário político, o discurso do PT contra Fernando Henrique Cardoso passa a

apostar no humor e na ironia. Na área social, o partido critica duramente os planos do

governo tucano dizendo que seria possível fazer mais. Já o PSDB se refere aos

programas pelo viés do avanço que representam e pela possibilidade de ampliação em

caso de uma reeleição de Fernando Henrique. Na questão agrícola, o PT direciona o

9 Fonte: TSE: <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=1994> 10Em 1998, uma alteração na norma eleitoral passou a permitir a reeleição dos ocupantes de cargos do executivo em

todo o país.

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discurso para a distribuição de terras e critica os planos do governo para o

financiamento agrícola. O PSDB, aponta a safra recorde daquele ano e fala em ser

possível produzir ainda mais. Na questão econômica, entra em cena a crise financeira e

o PT critica as estratégias do governo tucano de buscar apoio no Fundo Monetário

Internacional e elevar a taxa de juros para conter a inflação. Os ataques diretos à FHC,

trazem expressões como a “monstruosidade” de um pacote financeiro que o governo

estaria elaborando para conter a inflação. Já o PSDB sustenta nos seus discursos que é

graças ao Plano Real que o Brasil estava sendo capaz de enfrentar o período econômico

turbulento que o mundo atravessava naquele momento. Mesmo assim, a confiança nas

propostas de governo tucanas foi novamente vencedora no primeiro turno, atingindo

53% dos votos válidos contra 31% de Lula11.

Em 2002, o PT apresenta a “Carta ao Povo brasileiro” onde, sem deixar de

criticar os oito anos de governo do PSDB, esclarecia um novo posicionamento petista,

que levava em consideração a estabilidade econômica em consonância com as

realizações na área social. A mudança com estabilidade representa a proposta do PT. A

figura de Lula representa essa transformação: o candidato aparece sorridente, tranquilo e

extremamente confiante. Pelo PSDB, o candidato é José Serra, ex-Ministro do

Planejamento e da Saúde do governo FHC, que apostava na continuidade dos programas

de governo tucanos e trazia algumas propostas de mudanças, especialmente na educação

e na segurança.

No horário eleitoral gratuito, o PT apresenta seu o candidato e sua equipe de

governo. As críticas ao candidato do PSDB aparecem agora apenas de maneira indireta,

e se resumem a raros momentos, como quando se fala no “ultrapassado modelo

econômico”, ou no país passar a ser “o país da produção e não o país da exploração”. Os

nomes de FHC e José Serra nem mesmo são citados nos programas analisados. A ideia

de confrontação ainda perdura, mesmo com a diminuição das críticas. O referencial

extremista está na fala de Lula, quando diz que o Brasil “não será o país dos

exploradores, dos agiotas e dos sonegadores que sugam a economia do nosso país”. Já

o programa do PSDB segue a estratégia de não fazer referência direta ao candidato do

PT. A maior parte do tempo é gasto apresentando a biografia de José Serra, vinculando-

o à classe trabalhadora. Apenas em alguns momentos, há um apontamento para a

candidatura de Lula em expressões como “enquanto os outros candidatos falam em

11 Fonte: TSE <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=1998>.

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mudança” e “tem candidato que fala economês”. A ironia destas expressões aponta para

a mudança do perfil da candidatura de Lula, que agora estava relacionada com antigos

inimigos como bancos e empresários, mas também faz referência à uma suposta falta de

propriedade, conhecimento e profundidade no discurso sobre economia do candidato do

PT. Um ponto do discurso que relaciona o PSDB mais à direita do que nas outras

campanhas é a proposta para a segurança pública de endurecimento do papel do Estado

e a responsabilidade dividida entre governos estadual e federal. O resultado da eleição

deixou claro que o país queria mudanças mais profundas do que as conquistadas com o

governo FHC. No primeiro turno, o PSDB obteve a pior votação desde 1989 e Serra

atingiu apenas 23% dos votos válidos contra 46% de Lula. Embalado pela certeza na

vitória, Lula superou em quase 20 milhões a votação de Serra no segundo turno,

perdendo para o candidato tucano apenas no Estado de Alagoas12.

Na campanha de 2006, o Brasil vivia a sombra escândalo do Mensalão. As

investigações revigoraram a oposição e o PSDB lançou como candidato o ex-

Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alkmin para concorrer à presidência. O

país vivia um período de crescimento econômico e, durante o primeiro mandato, Lula

havia ampliado e criado novas políticas sociais.

No horário eleitoral do PSDB começavam a aparecer as referências diretas ao

adversário, na forma de críticas ao governo PT vinculadas especialmente ao Mensalão.

As críticas também recaem sobre programas de governo como à lentidão nas obras de

infraestrutura. Em um dos programas, o narrador diz que Lula “abandonou os

mineiros”, ao não repassar verbas federais. O minuto final é totalmente dedicado à

investigação do escândalo do Mensalão, apresentando manchetes de jornais que ligam

os envolvidos diretamente ao então presidente da República. Pelo PT, novamente, não

há referências diretas ao candidato do PSDB. Porém iniciam-se as comparações entre o

Brasil governado pelos tucanos e o governado por Lula a todo o momento. Frases como

“um presidente pode ficar conhecido por grandes obras”, “pelo trabalho social” e “pelo

desempenho do seu governo na área econômica” atuam como resposta ao vínculo com o

Mensalão. O primeiro turno encerrou com Lula obtendo 46,6 milhões de votos contra

39,9 milhões de Alkmin e o segundo turno apresentou um surpreendente recuo na

votação do candidato do PSDB. A vitória de Lula veio com a maior vantagem da

história desde 1989, mais de 20 milhões de votos. Mesmo com esses números, a divisão

12 Fonte: TSE <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=2002>.

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no eleitorado entre PT e PSDB começaria a ser percebida territorialmente. Se em 2002,

Serra havia vencido apenas em Alagoas, em 2006 o PSDB de Alckmin foi superior em

sete Estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (Região Sul); São Paulo,

Mato Grosso do Sul e Mato Grosso (Região Sudeste); e Roraima (Região Norte)13.

Na eleição de 2010 o PT lança a ex-ministra chefe da Casa Civil, Dilma

Rousseff, para substituir Lula na presidência da República. Os atributos como gestora

do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a larga experiência no setor

energético apontavam para o talento administrativo da candidata petista. Apostando na

força retórica da mulher, mãe e gestora, Dilma enfrentava a José Serra, o líder das

pesquisas no início do ano, impulsionado ainda pelo processo contra os envolvidos no

escândalo do Mensalão.

Os discursos da candidatura do PSDB no horário eleitoral traziam ainda mais

referências diretas aos adversários petistas. Os ataques estavam nas críticas ao Programa

de Aceleração do Crescimento, na alegada ausência de biografia de Dilma Rousseff em

comparação à de Serra, além de fazer constantes referências ao envolvimento dos

petistas nos escândalos e em “armações”, como uma violação de arquivos da receita

federal para a criação de um dossiê contra os tucanos. O narrador do programa atribui a

culpa indiretamente ao PT: “a quem interessaria mais essa armação contra José Serra”?

Já a programação de TV da candidatura de Dilma mais uma vez não apresenta

referências diretas ao adversário José Serra nos programas analisados. A aposta da

candidatura de Dilma é na continuidade das ações do governo Lula. A imagem da

candidata é ligada à do presidente e os oito anos de governo do PT continuam sendo

constantemente comparados aos oito anos de governo tucano”. A eleição foi mais uma

vez para o segundo turno. Dilma venceu por 55,7 milhões (56%) contra 43,7 milhões

(43,9%) de Serra. A diferença de votos entre as duas legendas caiu para 12 milhões, e o

número de Estados da Federação com vitória do PSDB aumentou para 11 somando, aos

sete de 2006, Acre, Rondônia, Goiás e Espírito Santo14.

Em 2014, Dilma Rousseff disputou a reeleição enfrentando, além do PSDB, que

desta vez trazia Aécio Neves como candidato, uma chapa encabeçada pelo ex-

governador do Estado de Pernambuco, Eduardo Campos, do Partido Socialista

Brasileiro (PSB). Campos tinha como vice a terceira colocada na corrida presidencial de

13 Fonte: TSE <http://www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=2006>. 14 Fonte: TSE <www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2010/estatisticas>.

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2010, Marina Silva15. A menos de dois meses da eleição, um acidente aéreo vitimou

fatalmente o candidato do PSB e Marina assumiu a candidatura. A partir do acidente, as

pesquisas passaram a apontar Marina Silva no segundo turno contra Dilma Rousseff e

esse cenário somente se modificaria nos últimos cinco dias que antecederam a votação.

O resultado das urnas levou Dilma com 43,2 milhões de votos (41,5%) e Aécio Neves

com 34,8 milhões (33,5%) para o segundo turno, contra 22,1 milhões de votos (21,3%)

para Marina Silva.

Metodologia e Análise: A medição do Potencial Ofensivo dos discursos

O artigo teve por objetivo comparar os programas eleitorais de PT e PSDB,

veiculados durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2014, procurando por

aqueles que apresentassem discursos compatíveis com a ideia de discurso do ódio para,

a partir daí, verificar sua relação com o número de compartilhamentos e de curtidas

registrados nas páginas oficiais da rede social Facebook dos candidatos.

A hipótese que norteou a pesquisa trazia em conta a ideia de que o ódio seria um

elemento gerador de coesão no eleitorado digital, e que aqueles programas que

estivessem mais carregados de ódio, seriam os mais curtidos e compartilhados nas

páginas dos candidatos. E para realizar a pesquisa, escolhemos como objeto de análise

três programas de cada candidato, veiculados nos mesmos dias e horários da

programação eleitoral gratuita de televisão. Foram assim selecionados os programas das

quintas-feiras à noite, dos dias 09, 16 e 23 de outubro.

O maior desafio metodológico deste trabalho surgiu diante da necessidade de

verificarmos e quantificarmos a presença de discurso do ódio nos programas dos

candidatos. A partir desse dilema, desenvolvemos uma metodologia que, após os

primeiros testes e adaptações, se mostrou capaz de dar conta deste problema, a qual

explicamos a seguir.

O método inicia com a divisão dos vídeos da programação eleitoral em cortes de

dez segundos, que serão analisados individualmente. Num primeiro momento, é

realizada a medição do Potencial Ofensivo Específico dos discursos, onde são avaliados

os termos, a ênfase, a sonoridade, a imagem e os todos os demais elementos que

compõem o quadro retórico do corte em análise. O segundo momento é a contagem do

tempo dentro deste intervalo de dez segundos de discurso.

15 A candidata concorreu em 2010 pelo Partido Verde (PV) e atingiu quase 20% dos votos válidos.

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Como normalmente estes programas são divididos em quadros - como

entrevistas, discursos dos candidatos, discursos de apoiadores, imagens de campanha e

outros - consideramos estes quadros como as referências principais na contagem do

tempo, ou seja, os cortes de dez segundos são realizados dentro de cada quadro

específico e, assim, os quadros apresentam a somatória dos resultados que lhes confere

seu próprio Potencial Ofensivo Relativo. E uma vez que todos os quadros de um

programa estiverem avaliados, teremos condições de somar seus resultados e atribuir ao

programa um Potencial Ofensivo Geral.

A medição do Potencial Ofensivo Específico é feita com base em uma tabela que

atribui três conceitos para os discursos dos candidatos em relação à proposta

concorrente, ou o que chamamos de o “Outro Antagonista”. Discursos com Potencial

Ofensivo Leve seriam aqueles que, apesar de fazerem referência ao outro antagonista,

não chegam a projetar sentimentos de ruptura. Já os discursos com Potencial Ofensivo

Moderado, são aqueles que projetam o sentimento de ruptura, e podem conter acusações

explícitas ou implícitas ao “outro antagonista”. Os discursos com Potencial Ofensivo

Alto, são aqueles que projetam sentimentos de ruptura, contêm acusações explícitas ou

implícitas, utilizam símbolos de caráter pejorativo e figuras de linguagem para atribuir

sentido negativo ao outro antagonista. Uma vez enquadrado em um destes conceitos,

Leve, Moderado ou Alto, a avaliação do Potencial Ofensivo do Discurso recebe uma

pontuação com base na tabela 1:

Potencial Ofensivo Específico

(Tipos de discurso)

Elementos Grau

Potencial Ofensivo Leve Não projeta sentimento de ruptura. 0 - 3

Potencial Ofensivo Moderado

Acusações implícitas ou explícitas. Projeta

sentimento de ruptura. 3,1 - 6

Potencial Ofensivo Alto

Acusações implícitas ou explícitas. Projeta

sentimento de ruptura. Uso de símbolos

pejorativos ou figuras de linguagem. 6,1 a 10 Tabela 1: Medição do potencial ofensivo dos discursos

Após a identificação do Potencial Ofensivo Específico, observa-se o Tempo

Relativo do discurso ofensivo dentro de cada corte de dez segundos. Atribui-se

inicialmente um conceito entre Leve, Moderado e Alto para o uso do tempo e, por fim,

um grau que seguirá a mesma lógica da escala do Potencial Ofensivo, e receberá uma

avaliação entre zero e dez.

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Tendo medidos o Potencial Ofensivo Específico e o Tempo Relativo de cada

corte de dez segundos, somamos os resultados obtidos e chegamos no Potencial

Ofensivo Relativo. O cálculo do Potencial Ofensivo Relativo pode ser aplicado

separadamente, sobre cada fala, discurso, entrevista, ou ainda, como foi feito neste

trabalho, sobre cada quadro do programa, para depois se chegar, com a soma de todos

os elementos de um objeto, neste caso, o programa veiculado no horário eleitoral

gratuito de televisão e publicado no Facebook, ao resultado final do Potencial Ofensivo

Relativo.

A partir deste ponto, passamos a cruzar os dados obtidos sobre cada programa de

cada candidato com os dados sobre visualizações, curtidas e compartilhamentos

registrados nas páginas oficiais mantidas durante a campanha no Facebook, ao que

chegamos nos seguintes resultados:

Gráfico 1: Potencial Ofensivo de Aécio Neves

Os programas analisados do candidato do PSDB, Aécio Neves, apresentaram

uma variação significativa em termos de uso de Potencial Ofensivo. Os discursos

enquadrados na categoria de Potencial Ofensivo Leve aqueles que apontavam para a

recuperação da esperança, o novo jeito de governar, e a ideia de que o Brasil precisava

mudar. Em relação aos de Potencial Ofensivo Moderado, os elementos davam conta de

ideias como a população sentir-se enganada, o adversário não assumir os erros

cometidos e não ter limites quando estaria “em jogo o seu projeto de poder”. Já os

discursos com Potencial Ofensivo Alto foram aqueles que trouxeram ideias sobre o

governo do adversário não ter decência, não ter valores, recessão financeira, escândalos

políticos, corrupção na Petrobrás, Brasil “no fundo do poço”, estatais serem “a galinha

dos ovos de ouro” e sobre o Brasil não merecer este governo.

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Gráfico 1: Potencial Ofensivo Relativo de Aécio Neves

Gráfico 2: Potencial Ofensivo de Dilma Rousseff

Os programas analisados da candidata do PT à reeleição, Dilma Rousseff,

apresentaram menor variação no Potencial Ofensivo Geral. Entre os discursos

considerados de Potencial Ofensivo Leve, encontramos elementos como referência à

vitória nas urnas no Estado natal do candidato Aécio Neves, sobre a candidata saber o

que o povo pensa e garantir os resultados. Entre os discursos considerados de Potencial

Ofensivo Moderado, os elementos davam conta de ideias como o seu governo não olhar

para os números, mas para as pessoas, sobre estar em jogo um modelo de país, sobre o

país não poder voltar atrás nas conquistas. E os discursos de Potencial Ofensivo Alto,

traziam elementos como o candidato adversário representar o modelo que “quebrou o

país três vezes”, abafou escândalos, privatizou empresas “a preço de banana”, causou

desemprego e recessão, “se curvou ao FMI”, “varreu a corrupção para baixo do tapete”,

e focava na figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ter chamado

aposentados de “vagabundos”, ter dito que os “pobres votam em Dilma porque são mal

informados” e que então, ele teria dito na verdade que os eleitores de Dilma são

“ignorantes”, que os trabalhadores em seu governo eram jogados no desalento, e que o

remédio que o PSDB dizia que tinha para o país, na verdade teria o “gosto amargo do

desemprego”.

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Gráfico 2: Potencial Ofensivo Relativo de Dilma Rousseff.

Além destes gráficos, foram gerados gráficos comparativos e relacionados com o

desempenho dos programas em relação ao Potencial Ofensivo.

Gráfico 3: Comparativo do Potencial Ofensivo Relativo entre os programas dos

candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves

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Gráfico 4: Comparativo de compartilhamento obtido por seguidores nos perfis

dos candidatos na rede Facebook.

Gráfico 5: Percentual de compartilhamentos por número de visualizações

Considerações Finais

Este trabalho procurou encontrar uma relação entre o discurso do ódio presente

nos dois principais partidos políticos do Brasil, o Partido dos Trabalhadores e o Partido

da Social Democracia Brasileira, e o clima de opinião pública que se revelou na rede

social Facebook, durante a eleição de 2014 para Presidente da República, disputada no

segundo turno entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves.

A hipótese que norteou este trabalho supunha que o ódio seria um elemento

gerador de engajamento e que, os programas que apresentassem um maior potencial

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ofensivo seriam aqueles que se revelariam os mais populares na rede, popularidade

medida em número de curtidas e, principalmente, de compartilhamentos. Esta

expectativa não foi plenamente atingida na análise dos três programas selecionados por

parte de cada candidato.

O programa que revelou o menor Potencial Ofensivo Relativo por parte do

candidato Aécio Neves, do PSDB, do dia 09 de outubro de 2015, atingindo apenas 75

pontos na escala de Potencial Ofensivo Relativo, foi o mais visualizado, atingindo quase

350 mil visualizações. Também foi o programa que obteve o maior número de

compartilhamentos, de percentual de compartilhamento por seguidores (0,79%) e por

visualizações (5,60%).

Da parte da candidata Dilma Rousseff, da mesma forma, se observou que o

programa com menor Potencial Ofensivo Relativo, o que foi ao ar no dia 16 de outubro

de 2015, foi o que obteve o maior número de compartilhamentos. No entanto esse

também foi o programa com o maior número de visualizações, mais de 500 mil, o que

refletiu neste resultado e garantiu um número também maior no percentual de

compartilhamentos por seguidores (0,98%).

No entanto, nossa hipótese se confirma para os seguidores do Facebook de

Dilma Rousseff através do percentual de compartilhamento por número de

visualizações, que se revelou maior para o programa que obteve o maior Potencial

Ofensivo Relativo, 236 pontos, e que foi ao ar no dia 09 de outubro. Este programa teve

20.105 compartilhamentos para 381.207 visualizações, o que representa que 5,27% dos

que assistiram ao programa compartilharam o arquivo em suas redes pessoais ou

privadas.

Estes resultados não representam o quadro geral do segundo turno. Eles levam

em consideração apenas os programas veiculados à noite e, nas quintas-feiras de

programação eleitoral gratuita na televisão. Portanto, para dizer que o público que

seguia a candidata Dilma Rousseff estava mais propenso a compartilhar conteúdo

contendo discurso do ódio, deve-se levar em consideração que a amostragem dos

programas analisados representa pouco mais de 17% do total.

Da mesma forma, ao analisar os três programas de cada candidato utilizando a

medição do Potencial Ofensivo Relativo, chegamos a números totais que demonstram

uma marcada diferença entre os Potenciais Ofensivos de Aécio Neves e Dilma

Rousseff. A programação da candidata do PT atinge 602 pontos, enquanto a

programação do candidato do PSDB atinge 317 pontos.

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Gráfico 6: Potencial Ofensivo Relativo Total Dilma x Aécio

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As eleições presidenciais de 2014 e o escândalo midiático da Petrobras

Lívia Borges Pádua

Resumo:

Este paper foi dedicado a esclarecer quais foram as estratégias adotadas por Dilma

Rousseff (PT), então presidente e candidata à reeleição, em função do escândalo da

Petrobras, que se desenrolou concomitantemente à disputa eleitoral de 2014. Para isso,

analisou-se um dos episódios mais marcantes do referido escândalo: a denúncia

publicada pela revista Veja, segundo a qual Dilma e o ex-presidente Lula (PT) estavam

cientes do esquema de corrupção na estatal. Essa denúncia se destacou dentre as demais

por envolver, pela primeira vez, Dilma diretamente ao esquema de corrupção e por ter

sido divulgada no dia 24 de outubro de 2014, data em que findava o prazo de veiculação

das propagandas eleitorais e do último debate entre os candidatos. Assim, elegeu-se

como objeto de estudo os programas do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral

(HGPE) de Dima, exibidos na televisão, no dia 24 de outubro, e as partes do debate

promovido pela Rede Globo, neste mesmo dia, que se referiam ao escândalo em

questão. Além disso, a analisou-se a comunicação oficial da candidata e de seu partido

na internet e as manifestações mais ecoantes das militâncias nas redes sociais, que

permitiram inferir sobre a estratégia de defesa da petista.

Palavras-chave: Escândalo Político, Estratégias de Campanha, Petrobras.

Introdução

Este trabalho debruça-se sobre as estratégias de comunicação adotadas por

Dilma Rousseff (PT) – na acosião, presidente da República do Brasil e candidata a

reeleição no pleito de 2014 – em virtude do escândalo político midiático da Petrobras,

deflagrado em março de 2014, devido à divulgação das investigações empreendidas pela

Política Federal, em uma operação denominada Lava a Jato, que investiga o esquema de

lavagem e desvio de dinheiro articulado por funcionários da Petrobras, políticos e

empreiteiros.

Esse escândalo recebeu ampla cobertura midiática desde sua eclosão, em março

de 2014 e perdura até os dias atuais (novembro de 2015). Naturalmente, ele feriu a

candidatura de Dilma. Mas, como nenhuma denúncia havia a ligado diretamente ao

esquema, ela seguiu se esquivando. Contudo, no dia 24 de outubro de 2014, a revista

Veja publicou uma matéria que a incriminava. Segundo Veja, Dilma e o ex-presidente

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Lula (PT) estavam cientes do esquema de corrupção na estatal e, portanto, haviam sido

coniventes com ele.

Essa matéria destaca-se, dentre as demais notícias divulgadas pela imprensa

sobre o escândalo, por ter sido divulgada na data em que findava o prazo de veiculação

das propagandas eleitorais gratuitas e do último debate entre os candidatos, o que tornou

ainda mais urgente à tomada de posição dos concorrentes ao Palácio do Planalto. Nesse

contexto, buscou-se analisar as estratégias adotadas por Dilma, em razão do escândalo,

a fim de esclarecer como sua campanha se apropriou da acusação feita pela Veja e

(re)construiu um discurso a seu favor.

Para viabilizar esta pesquisa elegeu-se como objeto de estudo os programas do

Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) de Dilma, exibidos na televisão, as

partes do debate promovido pela Rede Globo que se referiam ao escândalo em questão.

Além disso, foram analisados os posicionamentos de Dilma e do PT na internet e as

manifestações mais ecoantes das militâncias nas redes sociais. Já a sustentação teórica

da discussão proposta baseou-se, principalmente, no trabalho de Thompson (2002,

2008) a respeito da dinâmica dos escândalos.

Escândalo político midiático: ameaças e oportunidades no âmbito das eleições

Um escândalo eclode quando um ato de transgressão se torna conhecido de

pessoas que se sentem impelidas a manifestar publicamente sua reprovação, de modo

que tais práticas sejam interrompidas e gerem um discurso “infamante” sobre os sujeitos

transgressores. Entende-se que o discurso moralizador seja aquele “que censura e

reprova, repreende e condena, que expressa a desaprovação das ações e dos indivíduos”

(THOMPSON, 2002, p. 48). Assim, pode-se inferir que as transgressões precisam

tornar-se visíveis para transformarem-se em um escândalo.

Já os escândalos qualificados como midiáticos distinguem-se por terem sua

estrutura temporal e sequencial definida pela cobertura dos fatos relacionados a eles.

Desse modo, os escândalos desse tipo são constituídos à medida que a imprensa realiza

a cobertura do processo instigado pelas revelações de contravenção – desdobramentos

legais, depoimentos dado por pessoas ligadas ao caso, descoberta de novas evidências

etc. – e abre espaço para discuti-las publicamente, construindo um “discurso infamante”

sobre os sujeitos e entidades enredadas no caso. (THOMPSON, 2002).

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Como os escândalos midiáticos usufruem de uma publicidade midiática,

evidentemente, parte das narrativas sobre eles é revelada por meio de formas midiáticas

de comunicação, tal qual a desaprovação causada por eles. Por conseguinte, “as ações

ou acontecimentos que estão no centro dos escândalos midiáticos se tornam visíveis aos

outros que não estão presentes no tempo e no local de sua ocorrência, podendo estar

localizados em lugares espacialmente distantes”, amplificando a visibilidade e

maculando a imagem pública dos infratores. (THOMPSON, 2002, p. 92).

Diante desse tipo de escândalo os acusados costumam assumir, negar a culpa ou

se recusar a prestar declarações sobre os casos, sendo que na maioria das vezes o

objetivo é fazer com que o escândalo desprovido de novas revelações morra aos poucos

e deixe de atrair a atenção do público. Contudo, quando a versão do acusado é

invalidada por novas revelações, que rescindem suas versões dos acontecimentos, o

escândalo de primeira ordem pode tornar-se de segunda ordem, pois a ofensa inicial dá

lugar à discussão sobre os novos fatos acrescidos a trama. (THOMPSON, 2002).

Ainda sobre os escândalos midiáticos, Luhmann (2005, p. 63) acrescenta que a

maneira como as transgressões são enquadradas pela imprensa podem gerar novos

escândalos, que podem produzir um sentimento geral de que todos foram atingidos e se

sentem indignados. Ademais, a mídia pode edificar um discurso que contribui para a

manutenção e reprodução da moral, ao apresentar os “patifes, vítimas e heróis que

realizam aquilo que estava além do exigível”. No entanto, Thompson (2002) pondera

que a desaprovação da mídia, não necessariamente, corresponde à opinião pública.

Os escândalos políticos midiáticos, por sua vez, caracterizam-se pelo fato de os

sujeitos transgressores serem líderes ou figuras políticas – um líder, ou aspirante à líder,

um funcionário eleito ou designado etc. Contudo, tais transgressões não precisam ser

apenas de ordem política para desencadearem um escândalo dessa natureza. Casos

relacionados a questões sexuais ou financeiras também podem provocar escândalos

políticos, porque o determinante para isso não é o tipo da transgressão, mas, o status dos

personagens que protagonizaram tais acontecimentos públicos. (THOMPSON, 2002).

Os escândalos político de ordem financeira, segundo Guareschi (2002), são mais

comuns por aqui. Eles caracterizam-se pela revelação ou suspeita de ligações secretas

entre sujeitos ligados ao poder político – figuras ou funcionários públicos – e sujeitos

ligados ao poder econômico, que implicam na violação das normas que regulamentam a

aquisição e o uso do dinheiro e recursos financeiros. Por configurar-se pela transgressão

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de normas legais, é comum que as descobertas de contravenções financeiras resultem na

abertura de investigações e processos contra os infratores e na emersão de escândalos.

Os escândalos político-financeiro costumam estar ligados a outro tipo de

escândalo: o escândalo de Poder. Pois, as transações ilícitas, podem ser realizadas por

sujeitos que possuem acesso ao poder político e o utilizam de modo ilegal, contrariando

as normas que regem a conduta dos ocupantes dos cargos públicos. Segundo Thompson

(2002, p. 240), esse tipo de escândalo é edificado quando ocorre a “revelação das

formas ocultas do poder e os abusos de poder reais ou supostos que tinham, até então,

sido ocultados por detrás dos ambientes públicos em que o poder é exercido”.

Diante disso, pode-se inferir que o caso da Petrobras configura-se como um

escândalo político midiático financeiro e de poder. Porque, pelo que se sabe, o esquema

de corrupção na estatal envolveu funcionários públicos e líderes políticos, que fizeram

uso de seus cargos para obter recursos monetários de modo ilícito, nas negociações

estabelecidas com empreiteiras (setor da economia privada), infringindo as regras que

regem tanto os processos de licitação para prestação de serviços a órgãos públicos,

quanto as que norteiam a gestão de tais órgãos, subtraindo bilhões dos cofres da nação.

Análise das estratégias adotadas as véspera da eleição por Dilma Rousseff

O último dia de uma campanha eleitoral costuma ser intenso. Afinal, nessa data,

em que se encerram as chances dos candidatos se apresentarem a maior parte do

público, com o intuito de conquistar sua preferência, finaliza, também, o prazo para os

competidores tentarem enfraquecer seus adversários, sendo este momento oportuno para

tal fim, já que a pressão do tempo pode impedir a reversão, até o dia da eleição, de uma

opinião pública desfavorável sobre determinado concorrente. Por isso, caso surjam

boatos ou acusações nessa ocasião, torna-se necessário à tomada de medidas urgentes.

O término do segundo turno, da campanha eleitoral de 2014, no Brasil,

aconteceu à meia-noite, do dia 24 de outubro de 2014 (sexta-feira), 32 horas antes da

votação. Segundo determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesse dia findava

o prazo para os candidatos à presidência divulgarem suas propagandas e programas

eleitorais. Essa era a data limite, também, para os veículos de comunicação promoverem

debates entre os candidatos. Nessa sexta-feira, praticamente às vésperas das eleições a

revista Veja publicou a referida denúncia que agitou a corrida ao Palácio do Planalto.

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Para tentar conter os prejuízos causados por Veja à candidatura de Dilma, seus

consultores providenciaram alterações em seu programa eleitoral16. Além disso, eles

realizaram uma campanha na internet. Nesse momento, Dilma e seu partido

posicionaram-se de forma contundente, desqualificando a revista, a acusação e negando

a culpa imputada a Dilma pela Revista. Ao agir dessa forma, reconhece-se que as

denúncias poderiam prejudicar sua eleição e, também, a inegável capacidade da Veja

provocar um processo de accountability e atuar como um ator político de fato.

Em linhas gerais, a estratégia do PT consistiu em dar visibilidade à denúncia,

tida como absurda, para invalidá-la. Como se o fato da própria candidata ter tomado a

iniciativa de expô-la, abonasse sua culpa. Afinal, como diz um provérbio: “quem não

deve não teme”. Ao se posicionar, rapidamente, diante da crise, Dilma busca emplacar

sua versão do episódio: como sempre, Veja tentou deflagrar um escândalo, para impedir

a vitória petista. Assim, ao manifestar que a Revista teria intensões políticas escusas,

colocava-se em suspeição a veracidade dos acontecimentos narrados.

Na TV, os programas diurnos e noturnos17 foram iniciados com a fala do

apresentador, que atacou a credibilidade da revista Veja, sublinhando que o

comportamento dela era previsível, já que todas as vezes que as pesquisas indicam o

êxito do PT, a Revista divulga denúncias “supostamente bombásticas” para tentar

interferir no resultado eleitoral. Depois disso, o apresentador cita outras ocasiões em que

Veja utilizou esse mesmo artificio. Enquanto as imagens das publicações mencionadas

por ele se sucedem e se avolumam, uma em cima da outra na tela.

Após questionar o papel da Revista Veja, Dilma entra em cena, enquadrada em

close, e passa a protestar contra a acusação, negando, veementemente, que tenha

compactuado com a corrupção na Petrobras. A candidata diz que não pode se calar

diante do que chama de “ato de terrorismo eleitoral”, empreendido pela Revista e seus

“parceiros ocultos” e argumenta que Veja a acusa sem apresentar provas, baseando-se

no suposto depoimento de pessoas do “submundo do crime”. Dilma considera que

apesar da Veja promover uma campanha contra ela e Lula há anos, dessa vez ela

cometeu um crime para reverter o resultado das eleições.

16 No último programa Dilma utilizou metade de seu tempo para tratar da denúncia da revista Veja. 17 É importante ressaltar que no dia 23 de outubro de 2014, na noite anterior a chegada da Veja às Bancas,

foi publicado um teaser, no site da Revista, que adiantava as denúncias feitas contra Dilma. Acredita-se

que nesse momento a equipe do PT já iniciou a elaboração de um plano de gestão de crise, que contou

com a formulação, produção e edição de um novo programa eleitoral, que foi ao ar no HGPE exibido às

13 horas, do dia 24 de outubro de 2014. O PSDB foi menos eficaz nesse sentido, porque o programa de

Aécio com um parecer sobre o caso em questão, só foi exibido na noite da sexta-feira.

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A estratégia do PT na internet alinhou-se a adotada no HGPE. Na página do

Facebook de Dilma18 foram feitas publicações para tentar anular a crise. A primeira

delas foi composta pelo trecho do programa em que a candidata responde às acusações

da Revista19. Foi postado um link para um artigo publicado no site do PT, sobre os

memes20 criados por internautas e uma imagem (Figura 2) que dizia que a Justiça

rotulou a Revista como panfletária. Dilma ainda postou 16 mensagens no Twitter, sobre

o assunto, em algumas usou a hashtag “desesperodaveja”.

Figura 2

Justiça diz que Veja é panfletária

Fonte: Dilma Rousseff, 2014

Já na página do PT21, foram feitos três posts sobre as decisões jurídicas tomadas

pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – proibição do uso da capa em propagandas e da

divulgação da matéria pela Editora Abril; multa de 500 mil reais por hora que a revista

descumprir o direito de resposta concedido à Dilma. Dentre as postagens, chamou a

atenção uma imagem compartilhada do Facebook de Dilma, que mostrava o resultado

das pesquisas eleitorais com o título: “A verdade vai vencer a mentira”, evidenciando o

uso político da crise e a inversão do ônus da denúncia.

18 Endereço da página do Facebook de Dilma Rousseff:

https://www.facebook.com/SiteDilmaRousseff?fref=ts 19 Essa publicação recebeu 10.117 curtidas, 15.641 compartilhamentos, 2.272 comentários e o vídeo foi

visualizado 214.461 vezes. 20 O conceito de meme está relacionado a um conceito genético desenvolvido por Dawkins, em 1976, no

livro “O gene egoísta”. Para Dawkins as ideias funcionariam como os genes que se perpetuam, por meio

da replicação de si mesmos. Assim, segundo Recuero (2011), “memes seriam pedacinhos de informações,

ideias, que são passadas a diante”. 21 Endereço da página do Facebook do PT: https://www.facebook.com/pt.brasil

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Além disso, foram postados no Facebook do PT links que direcionavam para o

site do partido, onde foram publicados três artigos sobre o tema em questão. O primeiro,

relata que Lula não quis dar declarações sobre as acusações, por não dar importância a

elas. No segundo22, dissertou-se sobre as decisões do TSE. O terceiro, intitulado

“Fracassa nova tentativa de golpe da revista Veja23”, conclui que a iniciativa da Revista

de ‘disparar uma bala de prata’ contra o PT, foi uma forma da Revista tentar evitar a

reeleição de Dilma.

O contra ataque a Veja também se deu por meio da adoção de uma estratégia não

oficial24. O fato é que, no dia 24 de outubro, foram divulgadas, no Tumblr, Twitter e

Facebook, montagens da capa da Revista (Figura 3), com potencial de se tornar um

meme25. A paródia consistiu na criação de manchetes fictícias, sobre situações absurdas,

cuja culpa era imputada sempre à Dilma, a Lula e ao PT. As montagens eram

acompanhadas da hashtag “desesperodaveja”, que dialoga com a estratégia oficial de

anular o sentido da denúncia.

FIGURA 3

Paródia de capas da Revista Veja

Fonte: Tumblr (http://desesperodaveja.tumblr.com/)

22 UMPIERRE, Flávia. PT vai à Justiça contra “Veja” por reportagem caluniosa e difamatória. PT. 24

out. 2014. Disponível em: <http://www.pt.org.br/pt-vai-a-justica-contra-veja-por-reportagem-caluniosa-e-

difamatoria/> Acesso em: 02 jul. 2015. 23 ZOCOLLI, Mariana. Fracassa nova tentativa de golpe midiático da revista “Veja”. PT. 24 out. 2014.

Disponível em: <http://www.pt.org.br/fracassa-nova-tentativa-de-golpe-midiatico-da-revista-veja/>

Acesso em: 02 jul. 2015. 24 Não se pode afirmar com certeza que esta ação nasceu dentro da campanha do PT, porque não se tem

notícia de quem seja o seu idealizador. 25 O conceito de meme está relacionado a um conceito genético desenvolvido por Dawkins, em 1976, no

livro “O gene egoísta”. Para Dawkins as ideias funcionariam como os genes que se perpetuam, por meio

da replicação de si mesmos.

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Não foi possível descobrir o número de vezes que a hashtag foi utilizada, nem

quantas montagens foram criadas, tão pouco quantas pessoas as compartilharam.

Todavia, é patente que a paródia tornou-se um meme e viralizou. Sabe-se que a hashtag

“desesperodaveja” figurou, naquele dia, o Trending Topic26 global, no Twitter. Além

disso, pode-se afirmar que a campanha de desmoralização da Revista se fez presente

durante todo o dia no Facebook. Com isso, os petistas conseguiram, em alguma medida,

desacreditar a denúncia feita contra eles.

Considerações Finais

Como era de se esperar as eleições de 2014 ocorreram sob o pano de fundo de

um escândalo político midiático. Afinal, por aqui a ocorrência desse tipo de fato é

frequente. Mas, apesar do escândalo da Petrobras ter sido pautado pela imprensa durante

toda eleição, provocando até uma onda de notícias sobre ele (PÁDUA, 2015),

consolidando-se como um fato verídico, os petistas parecem ter conseguido gerir a crise

que emergiu as vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, colocando em

xeque a veracidade das acusações publicadas pela Veja.

Pode-se dizer que a implementação rápida e organizada de ações tanto no campo

jurídico, quanto no da comunicação garantiu, ao menos, colocar em dúvida as denúncias

publicadas por Veja, que ganharam notoriedade, parte das vezes, pelas próprias

iniciativas do PT, que agendou sua versão dos fatos na imprensa, que noticiou, ao longo

do dia 24 de outubro, os desdobramentos legais da denúncia, favoráveis ao PT. Além

disso, nas redes sociais uma “avalanche” de posts, acompanhados da hashtag

“desesperodaveja”, contribuiu para a consolidação da versão de Dilma.

Há de se considerar que a negativa de Dilma sobre as acusações poderia ser um

blefe. Mas, mesmo assim, sua estratégia pode ser considerada astuta – apesar de não

ética. Pois, provavelmente, não seria possível que as investigações desenrolassem de

forma a fazer cair por terra às suas explicações até a data das eleições, desencadeando

um escândalo de segunda ordem.

26 O termo Trending Topics (TTs), que pode ser traduzido como assunto do momento, refere-se a uma

lista formada em tempo real pelas palavras ou frases mais publicadas no Twitter de todo o mundo,

acompanhadas de uma hashtag (#). Existem listas nacionais e uma global.

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Referencias bibliográficas

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escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis/RJ: Editora Vozes,

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Biblioteca Tempo Universitário, 2003.

MAIA, Rousiley Cely Moreira. Visibilidade e "accountability": o evento do ônibus

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PÁDUA, Lívia Borges. A midiatização da política: notas sobre as congruências entre as

agendas apresentadas por Aécio Neves no HGPE e pelo JN. In: 39o Encontro anual da

Anpocs, 2015, Caxambu/MG, 2015.

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Mesa C: COMUNICAÇÃO POLÍTICA INSTITUCIONAL

RELAÇÕES DE PODER E COMUNICAÇÃO EM UMA

SECRETARIA DE ESTADO DO

RIO GRANDE DO SUL

Liege Heck da Silva

Graduada em Comunicação Social – Relações Públicas

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

[email protected]

Ana Karin Nunes

Doutora em Educação pela UFRGS, Mestre em Comunicação pela PUCRS

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

[email protected]

RESUMO

O estudo teve como objetivo identificar como operam as relações de poder, no contexto

da função organizacional política de Relações Públicas, em uma Secretaria de Estado do

Rio Grande do Sul. Analisa como as relações de poder moldam as rotinas de

comunicação entre os funcionários da organização. Os resultados apontam que o

sistema de política partidária determina o sistema político e a Assessoria de

Comunicação da Secretaria, por questões estruturais do Estado, não prioriza a

comunicação interna.

Palavras-chave: Comunicação. Relações de poder. Organizações públicas.

1. Introdução

O artigo apresenta os resultados de um estudo realizado em uma organização

pública, uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa acadêmica teve por

objetivo analisar como as relações de poder influenciam nas rotinas de comunicação e

nos resultados de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul. O desenvolvimento

do estudo foi realizado entre agosto e outubro do ano de 2014, período que coincidiu

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com as eleições para deputados estaduais, deputados federais, senador, governador do

estado e presidente da república, no Brasil. Em razão das incertezas no cenário político,

da espera pelos resultados das eleições para governador e de suas consequências, existe

a probabilidade de alguma interferência desse aspecto nas entrevistas.

Devido ao caráter fortemente burocrático e à política partidária que se faz

presente em muitas das organizações públicas, ficam mais evidentes as mudanças

estruturais e a diversidade organizacional a serem geridas em suas relações. A

coexistência de diferentes posições partidárias entre os próprios servidores e a

convivência profissional junto aos Cargos em Comissão (CCs) da gestão governamental

evidenciam as relações de poder.

As sucessões governamentais geram um cenário no qual não há como manter

permanente a equipe de trabalho e o foco nas mesmas políticas de governo. Isso

significa que os servidores do quadro precisam, de tempos em tempos, se adaptar à

gestão da mudança organizacional, desde compreender a ideologia partidária até aceitar

alterações na estrutura da organização. Essa dinâmica é permeada por relações de poder,

que se manifestam inclusive na linha de atuação da Assessoria de Comunicação,

vinculada ao Gabinete do Secretário, em todas as Secretarias de Estado.

Nesse ambiente, é normal que surjam conflitos de interesses, fazendo-se

necessário um intermédio diplomático a fim de propiciar o alcance da missão

organizacional. Considerando que a comunicação em si é um ato político, a gestão das

relações de poder nas organizações faz parte da função política da atividade de Relações

Públicas e do papel da Assessoria de Comunicação como um todo.

Frente a isso, identifica-se como operam as relações de poder, no contexto da

função organizacional política de Relações Públicas, em uma Secretaria de Estado do

Rio Grande do Sul, e analisa-se como as relações de poder moldam as rotinas de

comunicação entre os funcionários da organização.

2. O poder e a função organizacional política

Ao se estudar política, a palavra pode ser pensada no sentido de política

governamental, ou no sentido de espaço de interação e convivência. A política é, para

Arendt (2007), fundamentada na pluralidade dos homens; a política é algo que surge

entre os homens e encarrega-se da convivência entre eles. Por sua vez, Mintzberg

(1992) trata a política como um subconjunto do poder, tida como um poder informal, de

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natureza não legítima (quando se trata de autoridades é que o poder torna-se legítimo,

formal, oriundo de um cargo).

A política está relacionada ao fenômeno do poder, assim como o Estado.

Bobbio (1987) estabelece uma vinculação das formas de governo com referência ao

poder: democracia, oligarquia, monarquia, aristocracia, etc. Qualquer teoria política

acaba por partir de alguma forma e definição de poder. A própria Teoria do Estado é

ramificada na teoria dos três poderes e suas relações: o legislativo, o executivo e o

judiciário, e “se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria

política, a teoria política pode ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do

poder” (BOBBIO, 1987, p. 77).

A ciência política, para Simões (2001, p. 70), é passível de ser dividida em dois

ramos, que são a macropolítica e a micropolítica. Ambas estudam a prática do exercício

do poder, a política como característica das relações entre semelhantes e que resultam

no poder. A macropolítica ocupa-se das relações de poder na sociedade, inclusive no

âmbito dos governos, com seus grandes agregados e estatísticas. Procura ajustar a

cooperação entre as partes para que atinjam sua missão, embora os interesses e valores

sejam conflitantes. Já a micropolítica se dá em espaços restritos, como nas

organizações, sejam elas públicas, privadas ou de terceiro setor. Na micropolítica

encontram-se os princípios do relacionamento público, o estudo das relações de poder

em espaços circunscritos. Segundo Simões (2001, p. 70), a micropolítica “trata da

relação de poder em espaços mais restritos como nas organizações, nas famílias e nos

grupos”.

No estudo da política em seu contexto micro, Mintzberg (1992) define poder

como a capacidade de influenciar, de afetar o comportamento nas organizações. Trata a

influência como sinônimo de poder. O autor lembra que a própria terminologia “poder”

carrega a denotação “ser capaz de” tanto no substantivo quanto no verbo. “Tener poder

es tener la capacidad de conseguir que determinadas cosas se hagan, de causar efecto

sobre las acciones y decisiones que se toman” (MINTZBERG, 1992, p. 5).

Nas organizações há três fontes primordiais de poder, de acordo com Mintzberg

(1992): o controle de um recurso; o controle de uma habilidade técnica; e o controle de

um corpo de conhecimento de considerável importância para a organização. Para que

representem uma fonte de poder, esses tipos de controle devem ser de áreas essenciais

para o funcionamento da organização. Devem estar concentrados, constituindo recurso

escasso, pertencentes à condição de insubstituíveis, nas mãos de indivíduos que

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cooperem até certo ponto. Esses controles geram dependência, visto que a organização

necessita de algo que só pode ser alcançado mediante as poucas pessoas que possuem o

poder.

O acesso ao poder também se dá pelas trocas de favores: “amigos y compañeros

se garantizan uns a otros influência sobre sus respectivas actividdades. En este caso el

poder no procede de la dependência, sino de La reciprocidad, ganar poder en una esfera

a cambio de concederlo en outra” (MINTZBERG, 1992, p. 27). O jogo de poder nas

organizações não se restringe a relações de dependência, mas também de reciprocidade.

Nas organizações públicas, isso é visualizado em épocas de campanha eleitoral, quando

um grupo apoia outro a partir de interesses partidários ou pessoais; ou na transição

governamental, quando a nova gestão começa a se estabelecer na organização e os

servidores tentam se aproximar e melhorar de posição ou assumir cargo de chefia.

Frente a esse cenário, a área de Relações Públicas na organização deve fazer o

intermédio na conciliação de interesses e gerir o ambiente político. A atividade busca,

por meio da comunicação, gerir informações que contribuam para um clima de

cooperação. Ou seja, Relações Públicas trata da função organizacional política, como

propõe Simões (2001), tendo como ciência a micropolítica, as relações de poder em

espaços restritos. No fazer da atividade encontram-se os projetos, as ações de

informação, persuasão ou diálogo, com o objetivo de privilegiar a negociação, o espaço

democrático, uma proposição intrínseca e primordial à profissão.

O sentido do termo “função” da atividade social de Relações Públicas é descrito

por Simões (1992, p. 102) como um processo organização-público em que: “as políticas

e ações componentes das Relações Públicas repercutem necessariamente nos resultados

da organização que, por sua vez, desestabiliza ou reequilibra o sistema organização-

público e vice-versa”. A função da organização é destinada à manutenção do sistema

social no qual se insere. A relação organização-públicos envolve a bipolaridade

cooperação/conflito, que é um processo de interação dividido nas seguintes etapas:

satisfação, insatisfação, boato, coligações, pressão, conflito, crise, arbitragem e

convulsão social.

3. Organizações públicas e comunicação

O funcionamento das organizações públicas implica limitação orçamentária e

dependência da decisão política e da situação econômica do Estado. Segundo Dussault

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(apud Pires e Macêdo, 2006), as organizações públicas são mais dependentes do

ambiente sociopolítico em relação às organizações privadas. Embora possam ter

autonomia em sua direção, são geridas pelo poder público, são vulneráveis à

intervenção do poder político, seu mandato vem do governo e seu funcionamento é

regulado externamente. Pires e Macêdo (2006, p. 96) atribuem especificidades às

organizações públicas como: “apego às regras e rotinas, supervalorização da hierarquia,

paternalismo nas relações, apego ao poder, entre outras”. Além disso, característica

fundamental, como já mencionado, é a diversidade organizacional:

[...] a presença de dois corpos funcionais com características nitidamente

distintas: um permanente e outro não permanente. O corpo permanente é

formado pelos trabalhadores de carreira, cujos objetivos e cultura foram

formados no seio da organização, e o não permanente é composto por

administradores políticos que seguem objetivos externos e mais amplos aos

da organização. O conflito entre eles é acentuado pela substituição dos

trabalhadores não permanentes, que mudam a cada novo mandato (PIRES;

MACÊDO, 2006, p. 97).

As organizações públicas são burocráticas, porém descentralizadas no quesito

trabalho. Mintzberg (2008) descreve essa configuração estrutural como burocracia

profissional, configuração em que há padronização das habilidades e em que os próprios

funcionários controlam seu trabalho. No ambiente da burocracia profissional não há

muito espaço para estratégia, pois é difícil trabalhar metas. O que pode acontecer é que

cada profissional individualmente tenha suas estratégias, mesmo que limitados pelos

padrões profissionais e habilidades adquiridas.

As peculiaridades da burocracia profissional e a realização do trabalho como

uma responsabilidade individual formam um sistema de poder complexo. As rotinas e

decisões organizacionais são entremeadas por grupos de pessoas (jogadores) que

exercem influência na organização, constituindo assim, de acordo com Mintzberg

(1992), um campo de forças e influências. O autor define dois grupos de influência: a

coalizão externa e a coalizão interna. Na coalizão externa os agentes com influência

pertencem ao entorno da organização, estabelecendo relação com ela. A coalizão

externa corresponde ao que Simões (2001) denomina macropolítica. Já a coalizão

interna, corresponde à micropolítica e às consequentes relações de poder entre os

diversos grupos. O campo de força localiza-se nos públicos internos, nos funcionários e

em toda a cadeia hierárquica. Nos dois tipos de coalizão, há de se considerar o poder de

influência e os respectivos jogos de interesses. No sistema de poder político emergem as

etapas de cooperação/conflito descritas por Simões (2001).

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O sistema de política caracteriza-se como uma massa de grupos de poder,

normalmente de diferentes níveis hierárquicos, competindo entre si. Esse sistema

viabiliza trocas relevantes para a organização, estimulando mudanças. No sistema de

política, há de se considerar que os agentes possuem suas necessidades particulares. Os

agentes internos, por exemplo, possuem suas necessidades de crescimento, necessidades

pessoais, lutam para obter poder, podem ter rivalidades pessoais ou até rancor contra a

organização.

A comunicação, assim como a ciência política, também está relacionada a poder

e isso se expressa em suas variadas formas de influenciar, de afetar o comportamento.

Ou seja, a comunicação abriga em si relações de poder ao confirmar o que alegam

Bobbio (1987) e Mintzberg (1992) sobre o poder como capacidade de influência.

Comunicação, na perspectiva de Pimenta (2002), está vinculada à sinergia. Um dos

desafios da comunicação estratégica é despertar sinergia no público interno através de

campanhas, ações e peças de publicidade.

A estrutura tradicional das organizações, descrita por Pimenta (2002) como

racional e normativa, é acentuada nas organizações públicas, as quais operam

alicerçadas em uma estrutura burocrática que visa estabelecer controle, ordem e

centralização de poder. A burocracia costuma ser alvo de críticas por, de certa forma,

impedir que os trâmites ocorram de forma facilitada ou ágil. Em seu sentido tradicional,

a burocracia profissional e a coalizão interna definem como a comunicação é constituída

em uma organização pública, quais são suas dificuldades em tentar atingir as metas

organizacionais, em gerir as relações de poder e conciliar interesses. Diante das

condições das relações de poder, da força da burocracia – condições intrínsecas ao

ambiente, do poder informal do sistema político, e das características da burocracia

profissional, somadas às diferenças de posição partidária, a comunicação fica

impossibilitada de trabalhar as informações e ações de maneira que atenda todos os

grupos. Assim, de forma democrática, a atividade de Relações Públicas em ambiente

público deve cumprir sua função política, prestando atenção ao processo

cooperação/conflito.

4. O caso de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul

As Secretarias de Estado, no Rio Grande do Sul, devido à estrutura

governamental, possuem uma Assessoria de Comunicação vinculada ao Gabinete do

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Secretário. Nessa perspectiva, as atividades são desenvolvidas em função das demandas

do Secretário, visto que a coordenação da Assessoria se dá por alguém indicado por ele.

Em razão dessa prioridade de atendimento ao Gabinete, não é habitual o

desenvolvimento de comunicação interna pela Assessoria de Comunicação, ou seja, de

um conjunto de ações e estratégias específicas para a coalizão interna. Isso ocorre tanto

em função do foco na agenda do Secretário, como em função do quadro reduzido de

funcionários, pois as equipes de comunicação do governo costumam ser pequenas.

Com o objetivo de analisar como as relações de poder influenciam nas rotinas de

comunicação e nos resultados de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul, tendo

como base a teoria da função organizacional política de Relações Públicas (SIMÕES,

1992), procedeu-se à análise das diferentes percepções e realidades da organização. O

estudo foi feito durante o segundo semestre do ano de 2014, precisamente entre os

meses de agosto e outubro, período de eleições no Brasil. Em razão das incertezas no

cenário político, da espera pelos resultados das eleições para governador, estando todos

os funcionários CCs à mercê da decisão, existe a probabilidade de alguma interferência

desse fator nas entrevistas.

Do ponto de vista metodológico, foram utilizados como métodos a revisão

bibliográfica e o estudo de caso. Ainda como técnicas para viabilização do estudo de

caso foram realizadas a observação individual, a pesquisa documental e entrevistas

semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas com 12 pessoas (6 servidores do

quadro permanente e 6 CCs), todas de diferentes níveis hierárquicos dentro da

Secretaria de Estado. Optou-se por resguardar o nome da Secretaria, bem como a

identidade dos sujeitos, a fim de preservar os servidores que contribuíram como

entrevistados.

De acordo com os relatos obtidos, os principais problemas da relação entre os

funcionários e a Assessoria de Comunicação estão relacionados à estrutura

governamental. A ausência de interação, relatada pelos servidores, tende a ser um fator

arraigado nos diversos setores do governo, visto que todas as assessorias são vinculadas

aos gabinetes. O que interfere com mais intensidade nas rotinas de comunicação e nos

resultados concentra-se na política partidária, pois é o que define a linha de atuação da

assessoria de comunicação, o nível de engajamento (a depender do projeto político e das

posições partidárias), e a circulação de informações sobre a Secretaria.

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As relações de poder na Secretaria, de acordo com as etapas de

cooperação/conflito postas por Simões (2001), encontram-se na fase da insatisfação.

Estão no nível do descontentamento relacionado a fatores mais estruturais do que

localizados na organização. Tais fatores de insatisfação são, principalmente, problemas

relacionados à autonomia da burocracia profissional, atraso regulamentar, resistência a

mudanças, equipe reduzida, falta de interação interdepartamental, falta de planejamento,

gestão baseada em processos e não em pessoas, entre outros.

As relações de poder estão vinculadas, também, à ocupação de cargos de chefia

por CCs, na distorção da realidade oriunda do sistema de política e sua comunicação

informal, e à falta de visão estratégica na Secretaria, em termos de posicionamento.

Esses elementos reforçam o quanto a política partidária, mesmo que não tenha sido

citada diretamente pelos entrevistados, define as relações e seus desdobramentos.

Diante desse contexto e das particularidades inerentes à estrutura da organização

estudada, conclui-se que o direcionamento das atividades ao cunho institucional

independe da voluntariedade da Assessoria de Comunicação, por ser composta

predominantemente por CCs, trabalhando para um projeto de governo. Imersa em

períodos de intensa demanda política, a equipe não dispõe de condições adequadas para

atender às necessidades institucionais. No entanto, para o caso de se atingir uma

mobilização ou equipe adequada, que possam proporcionar o desejável nível

informacional dentro da organização, algumas estratégias comunicacionais podem

amenizar a relação de insatisfação dos servidores com a Secretaria. Os primeiros passos

consistem em uma apresentação das competências da Assessoria de Comunicação, uma

apresentação dos servidores, CCs e suas respectivas atividades, além de um instrumento

(boletim informativo, por exemplo) que institucionalize a circulação de informações

concernentes à organização. A necessidade principal da Secretaria de Estado, portanto,

está relacionada ao gerenciamento da informação. Os servidores não se sentem

informados no seu cotidiano, seja no nível macro dos acontecimentos da organização ou

no nível micro do desempenho das rotinas departamentais. Mesmo considerada um

problema comum no serviço público, de estrutura governamental, a falta de informação

interfere no trabalho dos servidores e foi mencionada com recorrência nas entrevistas.

Trata-se, portanto, de um problema na gestão da função organizacional política da

Secretaria, cuja essência está na informação.

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Considerações finais

As organizações públicas, de acordo com a abordagem teórica e as entrevistas

realizadas, de fato constituem um universo peculiar nas relações de poder no trabalho,

decorrente das características da burocracia profissional, da coalização dominante

interna e da política partidária. A comunicação formal nas organizações públicas

apresenta um perfil mais complexo e de difícil gestão, estando submetida às relações de

força do ambiente em que opera, e que não permitem que a comunicação interna seja

trabalhada formalmente, tendo a política do Governo do Estado como foco central. Suas

modificações dependem da iniciativa individual de profissionais do setor de

comunicação, de acordo com o habitual na burocracia profissional, onde não há

estímulo vindo da estrutura, apenas motivações individuais e pessoais.

O público interno sente-se insatisfeito em decorrência dos desdobramentos,

principalmente, do serviço público em si. Casos relacionados à lotação não vinculada à

formação, até o escasso estímulo por parte da organização nos quesitos mudança e

inovação, acabam partindo de iniciativas individuais. Foi possível constatar, também,

que o problema da Assessoria de Comunicação, ao não atender adequadamente os

interesses da Secretaria, por ser vinculada ao Gabinete do Secretario, reside

principalmente na estrutura governamental do Estado.

A atividade profissional de Relações Públicas deve representar a gestão e o

suporte para que se torne possível a harmonia de interesses, por meio da gestão das

informações organizacionais. Esse papel é ainda mais relevante em ambientes

complexos nos quais se encontram componentes como a política partidária e as

peculiaridades estruturais.

Referências

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PIMENTA, Maria Alzira. Comunicação Empresarial: conceitos e técnicas para

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PIRES, José Calixto de Souza; MACÊDO, Kátia Barbosa. Cultura organizacional em

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Práticas infocomunicacionais “sincronizadas” entre jornalistas e

políticos

Paula de Souza Paes

O trabalho dos chamados “comunicadores” (diretores de comunicação de

Ministérios, especialistas de sondagens, consultores de comunicação, etc.) tem afetado a

maneira pela qual os jornalistas trabalham e a sua legitimidade na produção de

informações (DE SOUZA PAES, 2014). As estratégias de comunicação do Estado e das

municipalidades francesas são cada vez mais eficientes (MIEGE, 1997). A partir do

final dos anos 60, como afirma Caroline OLLIVIER-YANIV (2000), ações de

comunicação emergem e se desenvolvem no seio das organizações públicas na França.

Apresentada “como uma resposta a um imperativo de publicidade e de proximidade, ou

mesmo de transparência, da parte das instituições públicas27” (OLLIVIER-YANIV,

2006, p.97), a comunicação do Estado se desenvolve com o objetivo de contribuir para

o debate democrático sobre questões de interesse público. Como os responsáveis

políticos, os jornalistas afirmam ter a preocupação de proximidade em relação aos

indivíduos e de difundir informações sobre temas reconhecidos socialmente como de

interesse público, uma vez que os fundamentos do jornalismo se repousam sobre ideais

democráticos (RUELLAN, 1997).

Entretanto, pesquisas na área das ciências da comunicação sobre comunicação

pública salientam que ela se apresenta como uma ferramenta de gestão social e de

regulação da esfera pública (OLLIVIER-YANIV, 2009). Ao mesmo tempo, trabalhos

sobre o exercício do jornalismo dão conta da influência da lógica econômica no setor

midiático e as limitações que pesam no trabalho dos jornalistas (NEVEU, 2009;

LEMIEUX, 2000). Esse artigo tem por objetivo articular essas diferentes práticas

infocomunicacionais desconstruindo a visão normativa que as atravessam.

A chegada desses novos atores, os chamados “comunicadores”, contribui para a

emergência de uma concorrência entre eles e jornalistas franceses principalmente entre

os anos 80 e 90. A partir de então, os jornalistas se dão conta de que eles não são os

únicos a produzirem mensagens e tentam diferenciar o seu papel. É nesse contexto que

lógicas profissionais se reforçam e o diploma se torna um pré-requisito fundamental

27 « Comme une réponse à un impératif de publicité et de proximité, voire de transparence, de la part des institutions

publiques ».

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para entrar no setor midiático, como salienta o jornalista David Dieudonné, da AFP

(Agence France-Presse):

Os jornalistas são cada vez mais confrontados com pessoas que

são muito qualificadas, portanto, eles precisam estar armados

para responder intelectualmente aos argumentos um tanto

complicados, e o fato de que eles tenham uma forte arquitetura

intelectual é muito útil28.

Se os jornalistas se consideram melhor “armados” para conduzir

questionamentos sobre as ações das autoridades públicas, muitas pesquisas mostram, no

entanto, que elas são cada vez mais eficientes na implementação de ações de

comunicação. Como, por exemplo, a pesquisa de Erik NEVEU (2003) sobre a “nova”

rede de interdependência que configura as autoridades políticas e os jornalistas. Essa

configuração, entendida aqui no sentido proposto por Norbert ELIAS29, se alimenta da

crença no “poder” da comunicação e seu impacto no comportamento dos indivíduos

(NEVEU, 1995), o que se reforça diante de mudanças, tais como o desinteresse dos

cidadãos pela política, a falta de confiança da sociedade no Estado, a baixa audiência de

programas televisivos políticos (NEVEU,1995) etc. Essas transformações são

compreendidas pelos responsáveis políticos como o resultado de uma falta de

comunicação, suscitando dessa forma estratégias de interdependências com o campo

jornalístico. Essa tendência suscita comportamentos de antecipação da parte de

autoridades públicas (como, por exemplo, aparecer nos jornais na televisão ou fazer

anúncios em conferências de imprensa) e remodelam o métier político. É o que

demonstra o sociólogo Eliséo VERON (1995) que salienta que, nos anos 80, se acelera

a midiatização da política na França e durante esse período a crise da legitimidade

política emerge e se agrava no começo dos anos 90.

Os responsáveis políticos tendem a acreditar nos efeitos produzidos pelas

mensagens nos destinatários, postulando a potência das mídias. Essas crenças são

compartilhadas por alguns jornalistas. Sob esse aspecto, a pesquisa realizada por

Jérémie NOLLET (2014) é significativa. Examinando a crise da “vaca louca”, ele

28 « Les journalistes sont de plus en plus face à des gens qui sont très très qualifiés donc il faut qu’ils soient armés

intellectuellement pour réponde à des arguments un peu compliqués, et le fait qu’ils aient une architecture intellectuel

forte, c’est très utile ». 29 A estreita relação com os jornalistas e seus interlocutores diz respeito a um jogo de relações dinâmico, uma

“interdependência dos jogadores”, segundo uma expressão de Norbert Elias (1991, p. 157). De acordo com o

sociólogo alemão, todas as relações humanas são caracterizadas por um equilíbrio de forças e um conjunto de tensões

que ligam os indivíduos em configuração (s). Quando ele fala da interdependência de jogadores, ele quer dizer uma

interdependência “enquanto aliados, mas também enquanto adversários” (ELIAS, 1991, p.157). Nós retomamos aqui

essa reflexão. As relações entre jornalistas e seus interlocutores revelam essa dinâmica que pode, em um determinado

momento, colocá-los em sintonia e, em outro, colocá-los em uma situação de conflito.

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demonstra a submissão das decisões político-administrativas aos enquadramentos

midiáticos em razão da constituição de uma configuração que relaciona jornalistas,

agentes políticos e burocráticos, institutos de pesquisa e comunicadores. O estudo de

Jean-Baptiste COMBY (2009)30 também demonstra a submissão da informação pública

às lógicas dominantes do campo jornalístico sobre questões apresentadas como de

interesse público pelos responsáveis políticos. Tudo indica a “cumplicidade” que se

instala entre atores políticos e os jornalistas: de um lado, na elaboração de artigos

jornalísticos de acordo com a construção do Estado de um problema público. De outro

lado, “cumplicidade” na orientação das decisões públicas de acordo com as limitações

do campo jornalístico, como a pressão pela rapidez ao relatar um fato. Tendo em vista

essas observações, abordaremos em seguida o tratamento midiático dos incidentes da

Villeneuve e suas implicações para a reflexão sobre a emergência de uma configuração

entre jornalistas e responsáveis políticos.

Produção de informação sobre os incidentes na periferia de Grenoble:

predominância das reações dos responsáveis políticos

Durante o verão do ano de 2010, particularmente no mês de julho, a área

residencial chamada Villeneuve, situada na cidade de Grenoble (França), chama a

atenção da mídia e dos responsáveis políticos, em razão dos atos de violência ali

cometidos. No dia 16 de julho, Karim Boudouda, morador da Villeneuve, foi

assassinado pela polícia depois de cometer um assalto de um cassino localizado na

cidade de Uriage-les-bains (cidade situada próxima à cidade de Grenoble). Houve uma

perseguição e de trocas de tiros com a polícia. Alguns moradores da Villeneuve,

insatisfeitos com a morte do jovem adulto descendente de imigrantes31, incendiam

carros e lixeiras e jogam pedras contra os policiais. Houve também trocas de tiros com a

polícia. Esses incidentes repercutiram nacionalmente e internacionalmente e geraram

debates públicos sobre o fluxo migratório no país. Principalmente porque, em uma

conferência de imprensa realizada após os incidentes, o Presidente as República,

30 As pesquisas de Jean-Baptiste COMBY dizem respeito à emergência do problema climático nos anos 2000

enquanto problema público e a constituição de um grupo de jornalistas especialistas do meio-ambiente nas mídias.

Segundo o pesquisador, essa dinâmica, favorece um tratamento desconflitualizado das questões climáticas. 31 O termo « descendente de imigrante » não é definido oficialmente. Nós fazemos referência à definição utilizada

pelo Insee: “ é descendante de imigrante toda pessoa nascida na França tendo ao menos o pai ou a mãe imigrante”.

BREEM, Yves. Les descendants d’immigrés. Info migrations, n°15, juillet 2010. O jovem adulto, Karim Boudouda,

que tinha 27 anos, era filho de pais argelinos. Dessa forma, seu caso corresponde à definição.

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Nicolas Sarkozy, associa diretamente os problemas relacionados à periferia francesa

(tais como a insegurança e a violência) com a história da imigração na França. O

fenômeno migratório aparece no seu discurso como a principal causa desses problemas

(Le discours de Grenoble de Nicolas Sarkozy. Le Figaro, 30 de julho de 2010, artigo

atualizado no dia 31 março de 2014). Nesse sentido, a reação do Estado contribui para a

estigmatização do imigrante e dos descendentes de imigrantes e para a regulação da

esfera pública. Além disso, exclui toda a marginalidade que existe na França e a

desigualdades observadas na Villeneuve e na cidade de Grenoble.

Nossa análise32 da imprensa francesa revela principalmente dois aspectos que

nos ajudam a entender a relação entre jornalistas e políticos através do tratamento

público da imigração: a informação política focaliza-se no discurso político (nos

anúncios e declarações de responsáveis políticos em outros meios de comunicação ou

nos comunicados de imprensa) e, portanto, ela corresponde menos a uma informação

sobre a política do que sobre as diferentes reações dos “adversários” políticos de

“direita” e de “esquerda”. Os jornalistas acabam ecoando cada declaração ou anúncio de

responsáveis políticos. Os modos de coleta de informações demonstram essa

observação: as informações políticas se focalizam nas mensagens destinadas para a

mídia (conferências de imprensa, notas difundidas pelos assessores). Algumas vezes, o

assunto relatado resume-se ao anúncio de um porta-voz. Qualquer declaração da classe

política sobre os incidentes causa um forte eco na imprensa, através da solicitação de

diversos agentes para comentar e criticá-la. No entanto, a ênfase dada pela imprensa é

menos sobre o fundamento dos propósitos dos políticos que sobre as próprias

declarações e reações “calorosas” dos partidos políticos. As desigualdades sociais nas

periferias e na cidade de Grenoble, por exemplo, não são tratadas. Dessa maneira, a

informação política “despolitiza” os reais problemas encontrados pelos moradores de

periferia e também pelos descendentes de imigrantes33. Esse termo é entendido aqui no

sentido de uma “desconflitualização” ou “neutralização34”. A maneira como os

incidentes aparecem na imprensa revela a procura por responsáveis do que por

32 A análise de jornais foi realizada durante 1 ano (julho de 2010 - julho 2011). Os jornais analisados foram: Le

Monde, Le Figaro, Libération, Le Nouvel Observateur e Le Dauphiné Libéré. No total, foram analisados 208 artigos.

Além disso, entrevistamos 18 jornalistas nacionais e locais. A análise e as entrevistas são fruto de uma investigação

realizada durante doutoramento em ciências da comunicação pela autora, defendida em 2014. 33 Sobre a despolitização da informação política, fazemos referência ao trabalho de Saitta Eugénie, « Les journalistes

politiques et leurs sources. D’une rhétorique de l’expertise critique à une rhétorique du « cynisme », Mots, n°87,

2008, p. 113-128. 34 Como referência do trabalho de jornalistas na neutralização de temas, citamos Devillard Valérie et Marchetti

Dominique, « La « sécurité routière », programme sans risque. La neutralisation d'un problème politique et social à la

télévision », Réseaux, n° 147, 2008, p. 149-176.

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explicações mais estruturais do problema. A desconflitualização se manifesta também

pela ausência de perspectiva histórica sobre o fenômeno migratório na França e a

evolução da política de imigração. Essa postura acaba não contribuindo para o

questionamento do posicionamento do Presidente da República, que culpa os imigrantes

e descendentes de imigrantes pelos atos de violência.

A presença de sondagens é o segundo aspecto revelado pela análise. Diferentes

tipos de enquetes de opinião foram realizados pela imprensa durante e depois dos

incidentes na Villeneuve, como por exemplo a sondagem abaixo (Figura 1) intitulada

“Os franceses de acordo com diferentes medidas de segurança”. As perguntas são

relativas às decisões tomadas pelas autoridades logo após os atos de violência na

Villeneuve. Algumas delas não foram aprovadas pelas autoridades competentes, mas

mesmo assim fizeram objeto de uma enquete, como por exemplo a emenda sobre a

retirada da nacionalidade dos indivíduos de origem estrangeira que cometerem crimes

contra a polícia proposta pelo Presidente da República da época, Nicolas Sarkozy

(2007-2012). Em 2011, essa emenda foi reprovada pelo Senado francês.

Essa enquete (figura 1), realizada pelo jornal Le Figaro, mas publicado em

outros jornais como o Libération, demonstra que as questões de segurança são

apresentadas no mesmo nível, mesmo se elas dizem respeito a temáticas diferentes:

como o controle de delinquentes com o uso de bracelete eletrônico; ou a emenda ao

projeto de lei sobre a imigração que prevê a retirada da nacionalidade dos franceses de

origem estrangeira que cometerem crimes contra a polícia; ou ainda sobre o aumento do

número de câmeras de segurança nas ruas. Esses temas se apresentam juntos porque

abrangem diferentes formas de insegurança, eventuais ameaças ou eventos

espetaculares, como crimes, acidentes ou riscos. Observamos então que a questão da

imigração aparece relacionada à questão de insegurança ou de ameaça. Além disso, o

fato de perguntar as mesmas questões a um número significativo de indivíduos significa

que elas são, a priori, de interesse público, ou seja, há um consenso sobre essas

questões e que é, portanto, legítimo perguntá-las (BOURDIEU, 1984)35.

FONTE: Le Figaro, 7 de agosto de 2010.

35 Por uma crítica das enquetes de opinião, citamos: BOURDIEU, Pierre. L’opinion publique n’existe pas, p. 222-

235. IN : Questions de sociologie (1984). Paris : Les éditions de Minuit, 2002.

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Os jornalistas associam às enquetes de opinião a ideia de objetividade e a um

sentimento democrático relacionado a sua profissão: dar voz a sociedade a partir de

questões “neutras” que conduziriam a respostas também “neutras”. Entretanto, o foco

das informações políticas em relação ao tema imigração se direcionam ao imediatismo,

à uma atualidade fundada em anúncios políticos. As questões perguntadas reformulam

as declarações dos responsáveis políticos. Razão pela qual os resultados são

interpretados como o efeito das declarações.

A produção jornalística tende a se colocar em ação a partir de “faits divers”

(como os incidentes na Villeneuve) e de escândalos envolvendo políticos

(MARCHETTI, 2005). É uma maneira despolitizada que se tornou habitual de tratar os

temas políticos, no sentido de que o foco está direcionado ao comportamento dos

indivíduos e não às questões políticas de um problema que se torna público. A política

(ARENDT, 1995) desempenha um papel menos importante nas ações de comunicação

que a “relação de força” entre os responsáveis políticos.

Pesquisas relatam a perda de prestígio da informação política e o seu tratamento

“fait divers”, visando buscar o sensacional em razão do peso das lógicas comerciais -

fundadas na perda do interesse dos indivíduos pela política e pelos programas de

televisão políticos - e também das lógicas profissionais (concorrência acirrada entre os

veículos de comunicação, principalmente em uma situação de “crise”, como no caso da

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Villeneuve36). Isso vale tanto para política interna quanto externa (MARCHETTI,

2005).

Conclusão

Observamos que as práticas desses profissionais se remodelam e se convergem:

quanto mais os políticos se utilizam de ações visando a adesão dos cidadãos através dos

meios de comunicação, mais os profissionais de mídia reafirmam o seu lugar na

democracia, superestimando o seu “poder”. Entretanto, nossa análise demonstra que as

práticas dos jornalistas não são tão independentes quanto eles afirmam. Eles fazem

frequentemente um papel de “ponte” das estratégias de comunicação, acompanhando

cada passo das autoridades políticas. Uma progressiva autonomia do campo jornalístico

em relação ao campo político ocorreu na história da imprensa francesa, mas a existência

de laços muito estreitos entre eles é menos evidente, porque é dissimulada (LEMIEUX,

2000).

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36 Os jornalistas entrevistados salientam que havia uma forte pressão para dar conta de tudo o que se passava na

Villeneuve no momento dos incidentes. A produção de artigos sobre esses incidentes é submetida à “regra do não-

ultrapassagem pela concorrência” (« règle du non-dépassement par la concurrence »), como salienta Cyril

Lemieux (2000, p.427): “Embora um jornalista considere um certo fato desprovido em si mesmo de atração ou de

obrigação, ele se obriga, entretanto, a relatá-lo, para honrar a regra” (« Bien qu’un journaliste considère un certain fait

comme dépourvu en lui-même d’attraction ou d’obligation, s’auto-contraint néanmoins à en parler, pour honorer la

règle»). Dessa forma, essa regra funciona como uma limitação que pesa no exercício do jornalismo, o que leva os

jornalistas, entre outros fatores, a priorizar as mensagens produzidas pelas instituições e pelas autoridades públicas

sobre o atos de violência ocorridos. Além disso, a imprensa opta frequentemente por privilegiar enquadramentos

generalizados ou enquadramentos « menos sensíveis às diferentes formas de vida » (« moins sensibles aux différentes

formes de vie »), com o objetivo de manter seus leitores.

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TÍTULO: FALAS DO JORNAL DO BRASIL NA CONSTRUÇÃO

DO MITO DO COMUNISTA JOÃO GOULART

Ranielle Leal Moura Jornalista com MBA em Marketing pela FGV-RJ e mestrado em Comunicação pela UMESP, atualmente

Doutoranda em Comunicação pela PUC-RS. Matrícula nº 14190674-3. E-mail: [email protected].

RESUMO

O trabalho procura esclarecer a construção mitológica negativa do comunismo e do

Presidente João Goulart como comunista perante a sociedade brasileira, a partir da

adoção da Hermenêutica de Thompson, que ao lado da Semiologia analítica dos mitos

de Barthes nos permitiu analisar os editoriais do Jornal do Brasil nos meses que

antecederam ao golpe de 1964, objetivando identificar vestígios dessa construção

mitológica.

Palavras-chave: Jornal do Brasil; João Goulart; Comunismo; Hermenêutica em

Profundidade; Mito.

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade e em face dos processos de globalização e

universalização da cultura, tem surgido cada vez mais, nas mais diversas sociedades,

uma preocupação em se falar e em se procurar meios de preservação da história e da

memória, objetivando a consolidação das identidades. Nesse contexto, verificamos que

a história por seu caráter inexato e equívoco (RICOUER, 2007) e sua natureza lacunar

(VEYNE, 1995) permite que releituras e reconstruções sejam feitas objetivando uma

organização do passado em função do presente, consolidando o que Fevbre (1989)

define como função social da História. Por outro lado, a memória, Mnemosyne, a deusa

mãe de Clio, se coloca como o lugar do eterno, ao qual sempre se pode recorrer, e para

onde confluem memórias individuais localizadas em memórias coletivas.

Esse panorama em que História e Memória se encontram socialmente, vem,

desde o inicio do século XX, sendo permeado pela ação direta dos meios de

comunicação e pelo jornalismo, que juntos desempenham uma função relevante na

formação da memória das sociedades se colocando tanto como fonte, como objeto de

pesquisa.

Nesse sentido e tendo como pano de fundo o jornalismo e seu lugar na história e

memória coletiva de nosso país é que chegamos ao nosso interesse principal no presente

trabalho, qual seja: interpretar através das marcas discursivas dos textos do editorial do

Jornal do Brasil o posicionamento do jornal no contexto de ascensão dos militares ao

poder em março de 1964. E, analisar a voz favorável à subida dos militares ao poder

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em 1964, através do editorial do Jornal do Brasil. Para, assim procurar esclarecer a

construção mitológica negativa do comunismo e do Presidente João Goulart perante a

sociedade brasileira.

O Jornal do Brasil foi fundado no Rio de Janeiro em 9 de abril de 1891, por

Rodolfo de Sousa Dantas e Joaquim Nabuco. Tendo passado por diversas fases em mais

de cem anos de existência, o matutino carioca teve papel crucial na definição dos rumos

da imprensa brasileira.

O JB foi um dos veículos de comunicação que teceu críticas discretas a Jânio

Quadros. Com a renúncia do presidente, o jornal a principio defendeu a legalidade na

sucessão governamental, e no início do mandato de João Goulart mostrou-se favorável

ao novo governo, apoiando as reformas de base (mesmo sendo fundamentalmente

contrário a mudanças radicais e a expropriações) e a política externa independente

proposta pelo ministro das Relações Exteriores, Francisco de San Tiago Dantas. Por

fim, uma intervenção militar passou a ser defendida nas páginas do jornal, sob a

desculpa da continuidade democrática.

Assim, como “O Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e o

“Correio da Manhã”, o JB concordou com a intervenção dos militares. Fez o mesmo

que parcela importante da população, declarou apoio expresso aos militares.

Naquele momento, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um

outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de

sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república sindical” — e de

alguns segmentos das Forças Armadas.

O contexto sócio-político da época, era de divisão ideológica do mundo na

Guerra Fria, entre Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, e se reproduzia, em maior ou

menor medida, em cada país. No Brasil, era ampliada e aprofundada pela radicalização

de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por meio de

plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que ele, como vice,

pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros.

João Goulart obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Modificar

parcela substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição exigida

pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do trabalhismo varguista.

Naquela época, votava-se no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma

combinação ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da

UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu uma crise institucional no país.

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A situação política piorou, principalmente quando João Goulart e os militares

mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de

“base” “na lei ou na marra”. Os quartéis ficaram divididos com a luta política, à

esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros,

a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.

Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo Jornal

do Brasil durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para

manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira,

cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o

perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido,

foram mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966.

O desfeche da suposta “revolução” é conhecido. Não houve as eleições. Os

militares ficaram no poder 21 anos.

Contudo, faz-se mister interpretar e compreender como ocorreu a construção

mitológica negativa do comunismo e do Presidente João Goulart perante a sociedade

brasileira. E, saber, de que maneira o editorial do JB contribuiu no ano de 1964 para

favorecer ou não a criação de uma opinião pública favorável aos militares que

chegavam ao poder.

No que concerne aos procedimentos metodológicos trabalhamos com o modelo

metodológico proposto por Thompson (1995), a Hermenêutica de Profundidade (HP).

Considerando como as formas simbólicas estão estruturadas e as condições sócio

históricas em que estão inseridas, outros tipos de análise, além da Interpretação da doxa,

são propostas por Thompson (1995), denominadas dimensões

analíticas distintas de um processo interpretativo complexo, descritas em três fases, a

saber: _a primeira fase é a da análise sócio- histórica; a segunda fase é a da análise

formal ou discursiva. Para este trabalho, nesta fase de análise, abordamos a Semiologia,

de Barthes (1979,1993), através da Teoria dos Mitos. Na terceira fase do HP as formas

simbólicas podem ser interpretadas e compreendidas nos diversos contextos da vida

social através da interpretação/re-interpretação.

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ANÁLISE SÓCIO- HISTÓRICA

Em abril de 1960, o presidente do Brasil, Juscelino Kubitscheck (JK), inaugurou

a nova Capital do País. Após as festividades de criação de Brasília, se iniciou o processo

de eleição à sucessão presidencial. As eleições aconteceram ainda em 1960. O Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrata (PSD) repetiram a aliança

vitoriosa de 1955 e formaram chapa para concorrer à presidência e vice-presidência,

respectivamente, com o conhecido general Lott e, mais uma vez, João Goulart. O

Partido Social Progressista (PSP), fundado por Ademar de Barros, em 1946, e

dissolvido em 1965 por força do AI-2, relançou a candidatura de Ademar Pereira de

Barros, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) apoia a candidatura de Jânio da

Silva Quadros, na ocasião, governador de SP, e amparado pelo Partido Democrático

Cristão (PDC).

Jânio elegeu-se Presidente do Brasil, em 1960. Recorreu à uma intensa

campanha eleitoral, que explorou sua visão de “homem do tostão contra o milhão” e,

ainda mais, capaz de melhorar a nação.

Pela primeira vez na história, desde o suicídio de Vargas, a UDN conseguiu

vitória ao ficar do lado de um candidato de discurso populista e notoriamente moralista.

Porém, não conseguiu eleger o vice, e mais uma vez, João Goulart (PTB / PSD) venceu

as eleições. Jânio assumiu um país pleno de problemas, isto é, uma situação bem

diferente da apregoada ao povo brasileiro, com exacerbado otimismo. Segundo

Caldeiras et al. (1997), a solução que lhe restava era quitar dívidas do passado em vez

de investir.

Como alternativa viável, Jânio Quadros colocou em prática medidas urgentes e

impopulares, que geraram recessão e descontentamento generalizado.

Há poucos meses no comando da presidência, Jânio Quadros rompeu com a

UDN. Com isto, a oposição conquistou a maioria no Parlamento e, por conseguinte, o

Presidente se deparou com um quadro de política interna, mais complexo. Para levar

seus projetos adiante, precisava vencer a resistência dos membros do Congresso e

contar com sua adesão, fato praticamente inviável, porquanto o apoio a Jânio era cada

vez menor. Diante do fracasso da política interna e incapaz de dar conta dos problemas

acumulados, Jânio Quadros repentinamente renunciou.

Assumiu o poder o Vice-Presidente João Goulart, que governou por um curto

período de tão somente sete meses. Desde o princípio, Jango afrontava sérios entraves

para assumir o cargo de Presidente.

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Partidos de oposição (como a UDN) e os ministros militares a serviço do ex-

presidente Jânio delinearam uma campanha e lançaram um manifesto contra a posse de

João Goulart, visto como simpatizante do comunismo e, coincidentemente, devido à

visita oficial à China comunista. A presidência da República foi ocupada interinamente

pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli.

Nesse momento, surgiu uma crise política acentuada pela presença de dois

grupos. O primeiro agrupamento, formado pelos oposicionistas – Forças Armadas,

ministros militares de Jânio e UDN, representados pela figura impactante do governador

do RJ, Carlos Lacerda – reivindicavam que o Congresso aprovasse a manutenção do

Presidente interino Ranieri Mazzilli no cargo até haver novas eleições presidenciais,

para evitar a posse de Jango. O Congresso se opôs ao pedido dos oposicionistas e sua

reação piorou a crise.

O segundo grupo, que era favorável à posse de João Goulart, foi representado

pelo próprio Congresso Nacional, aliado aos sindicatos, às organizações estudantis, à

aliança PTB / PSD, à significativa parte da imprensa e a um considerável segmento da

cúpula militar (III Exército do RS). A figura mais ferrenha entre os defensores era o

cunhado de Jango e, então, governador do RS, Leonel de Moura Brizola.

Diante da crise crescente e da perspectiva de muitos outros conflitos, Brasil

afora, o Congresso Nacional desempenhou papel fundamental. Adotou uma solução de

compromisso e modificou o sistema governamental, que passou de presidencialista a

parlamentarista. A decisão do Congresso conseguiu boa receptividade por parte dos dois

blocos. Os militares viam com relutância a posse de João Belchior Marques Goulart.

Mesmo com poder diminuído, este aceitou o parlamentarismo e assumiu a presidência,

em 7 de setembro de 1961. É quando a nação vivenciou um frágil Regime Parlamentar,

que vai de setembro de 1961 a janeiro de 1963. Nesse período, ocorreram rápidas

sucessões, como por exemplo, a de três primeiros-ministros – Tancredo de Almeida

Neves (PSD), Francisco de Paula Brochado da Rocha (também do PSD) e Hermes

Lima, do Partido Social Brasileiro (PSB).

Jango iniciou sua administração sob a orientação de uma política econômica

conservadora. Reduziu a participação de empresas estrangeiras em setores estratégicos

da economia. Estabeleceu limite para remessa de lucros das corporações internacionais

além de ter seguido, criteriosamente, as orientações do FMI. Nada disto, porém, evitou

que os tempos ficassem mais e mais conturbados, quase impossibilitando a continuidade

administrativa e agravando os problemas econômicos.

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De acordo com o ato constitucional que impõe o parlamentarismo, o sistema

entrou em vigor em caráter experimental. Havia a chance de plebiscito, em 1965,

justamente ao final da gestão de Goulart, para confirmar o parlamentarismo ou

recomendar a adoção de um novo sistema. Contudo, foi notório o fracasso do regime

em vigor. Por isto, o plebiscito foi antecipado em dois anos e o presidencialismo

recebeu a maioria de votos como melhor regime para o País. Findo o parlamentarismo,

restava ao Presidente ainda três anos no poder. João Goulart investiu em medidas

inovadoras visando ao progresso do Brasil. Junto com os Ministros Francisco

Clementino de San Tiago Dantas (Fazenda) e Celso Monteiro Furtado (Reforma

Administrativa) elaborou, em 1963, o Plano Trienal, com vistas a combater a inflação e

lançar as bases para a retomada do crescimento econômico. Para Furtado (2007), o

Plano devia ser escoltado por reformas estruturais mais profundas, as chamadas

Reformas de Base, que incluem as categorias: agrária, tributária, financeira e

administrativa. Jango acreditava que somente com tais reformas, a economia poderia

retomar seu crescimento e abrandar as desigualdades sociais.

No entanto, o referido Plano Trienal, teoricamente, viável para solucionar

questões brasileiras, na prática, apresentou obstáculos insuperáveis.

Independentemente de mais este malogro, em 1963, João Goulart insistiu em

implantar novas medidas de caráter nacionalista: limitou a remessa de capital para o

exterior; nacionalizou empresas de comunicação e decidiu rever as concessões para

exploração de minérios. As retaliações estrangeiras foram rápidas: Governo e empresas

privadas norte-americanas cortaram o crédito para o Brasil e interromperam a

negociação da dívida externa. A essa altura, paralelamente, a situação política se

agravou.

No início de 1964, João Goulart, contando com os grupos a ele vinculados,

pretendeu realizar por decreto as Reformas de Base. Para conseguir contornar a

oposição, pensou em mostrar o poder do Governo recorrendo à reunião de grandes

massas numa série de atos com o propósito de anunciar as reformas. O primeiro

comício, no dia 13 de março, no RJ, agregou cerca de 150 mil pessoas. Sob a proteção

de tropas do I Exército, a multidão ouviu as palavras de Jango e de Brizola (FAUSTO,

2010). O anúncio das reformas incrementou a oposição e pôs em evidência a

polarização da sociedade brasileira. O Presidente perdeu, rapidamente, suas bases na

burguesia.

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A classe média assustada passou a apoiar os militares, o que acelerou a

conspiração que idealizava derrubar Goulart do poder. Alguns dias depois do comício,

saiu a Marcha da família com Deus pela liberdade, com a pretensão de dar força aos

golpistas.

Por fim, em 31 de março de 1964, os militares se reuniram. Com intensa

participação civil e com o apoio dos EUA, iniciaram um verdadeiro movimento visando

o Golpe Militar. Diante da situação, Jango não conseguiu organizar qualquer reação.

O Governo de Goulart permaneceu na história do Brasil como momento

marcado pelo agravamento da crise econômica e por intensa vida política, bem como

por conflitos sociais e políticos. E era sob o argumento de combater a subversão e

assegurar a ordem democrática, que os militares tomaram o poder em 1964,

transformando, de forma radical, as estruturas do País durante os anos seguintes.

A Ditadura Militar, instaurada em 1964, estendeu-se por longos 21 anos, nos

quais a Presidência da República foi ocupada por militares. A época caracterizou-se por

total falta de democracia, censura aos veículos de imprensa, suspensão dos direitos

constitucionais, perseguição política e repressão a todos que se opõem ao Regime

Militar.

ANÁLISE DISCURSIVA

Diante desse contexto exposto na Análise Histórica, à mídia nacional de

referência, representante de uma classe econômica dominante passou a trabalhar a

construção mitológica de um governo comunista prejudicial ao Brasil e aos brasileiros.

Assim é que diante do referencial teórico já explanado e com o objetivo de

apresentarmos um pouco desse processo construtivo é realizamos a seguir uma análise

dos editoriais do Jornal do Brasil nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1964.

Escolhemos como dito anteriormente, como referencial teórico metodológico os

procedimentos retóricos utilizados na construção dos mitos de direita conforme Barthes

(1993), que para efeito de processo analítico serão aqui, equiparados a categorias

analíticas. Assim analisaremos os editoriais do JB escolhidos para a amostra tendo

como base as noções de: Vacina37, Omissão da História38, Identificação39, Tautologia40,

Ninismo41, Quantificação da Qualidade42 e Constatação43.

37 Consiste em confessar um mal acidental para melhor camuflar o mal indispensável. 38 Consiste no esvaziamento histórico do objeto mitológico.

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Para constituição da amostra44 escolhemos os editoriais dos dias 03 de janeiro,

01 de fevereiro e 02 de março, todos do ano de 1964, disponíveis no arquivo digital do

JB45.

Durante o processo analítico pudemos então constatar a presença das figuras

retóricas Vacina, Omissão Histórica, Ninismo, Identificação e Constatação todas como

constituintes influentes da figura mitológica do Presidente João Goulart como um

comunista impregnado de todo o mal que a ideologia de esquerda poderia trazer ao

país, como podemos verificar nos enunciados detalhados abaixo. Vale destacar que a

Vacina e a Constatação são as mais recorrentes no discurso dos editoriais do JB.

O enunciado 01 retrata o aparecimento da figura Vacina na construção do

discurso mitológico de João Goulart como um comunista e situado no lugar do mal, a

partir de uma concepção maniqueísta do mundo.

Enunciado 01

“A qualquer preço e contra qualquer obstáculo, a Nação será

atendida nos seus inadiáveis reclamos de desenvolvimento e de

Justiça Social”, esta é a resposta do Presidente ao apelo de

Governo feito pelo País e pelas classes produtoras, em termos

leais: um programa de reformas democráticas em troca de um

mínimo de Governo, de um programa de Governo democrático.

Diante da resposta, temos a declarar neste inicio de ano: assim

não vai. Às caneladas e na base de ameaças, com apelo a militares

e sindicatos, só se pode querer instalar no País, uma ditadura

estilo estadonovista, onde soçobraram liberdades e dignidades. O

programa de reformas será o resultado de um diálogo

democrático. A ditadura estadonovista esteve no poder por oito

longos anos e não nos deu nenhuma reforma progressista.

Com esse tom o Presidente não intimida ninguém habituado a

viver de viseira erguida no dialogo democrático.

Dito isto e tendo as palavras do General Décio Escobar- a

Constituição só pode ser reformada conforme os processos nela

previstos- é possível comentar analítica a Mensagem de final de

39 Incapacidade de ver o Outro. Construção de um alteridade que se reduz ao mesmo. Condenação e

censura do Outro. 40 Consiste em definir o mesmo pelo mesmo. 41 Consiste na rejeição simultânea de dois opostos. O ninismo baseia-se na tese e na antítese. Por esta

figura o real dos objetos escolhidos para a balança é reduzido a analogias, para, em segundo momento,

serem igualados e esvaziados, e, portanto, negados. 42 Reduz toda qualidade a uma quantidade.

43 Consiste numa metalinguagem burguesa que equivale a uma contra explicação, fundamentada numa

verdade parcial, onde quem a profere é quem decide o relado a ser apresentado. 44 Para constituição da amostra optamos pelo método da amostra aleatória simples e por sorteio, em que

os membros de uma população possuem igual chance de ser escolhidos para composição da amostra

analítica. 45 Disponíveis em: http://www.jb.com.br/paginas/news-archive/. Acesso em: 02 e 03 de julho de 2014.

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ano, para destacar nela pontos positivos e negativos (Jornal do

Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).

Nesse editorial do Jornal do Brasil se analisa a mensagem de final de ano do

Presidente João Goulart tendo como premissa o limite da verdade aceitável, a de que o

país não iria aceitar que o chefe do executivo descumprisse a constituição com a

intenção de se perpetuar no poder ou realizar algumas das reformar anunciadas, dentre

elas, a de dar aos analfabetos o direito de votar. A Vacina surge como uma preocupação

com o surgimento de uma nova ditadura nos moldes do getulismo, através do seu antigo

correligionário, João Goulart. O mal acidental vem pelas palavras do General Décio

Escobar ao afirmar que a Constituição era intocável e que não seria reformada sem um

diálogo democrático. A defesa da democracia frente à ameaça comunista que se

esboçava constitui a vacina contra o que estava por vir.

No que concerne a figura retórica da Omissão Histórica esta pode ser

visualizada com nitidez no enunciado de número 02.

Enunciado 02

Comunismo e corrupção atuam juntos, por motivos que

dispensam maiores explicações ( Jornal do Brasil, ano LXXIII,

nº27, 01 fev.1964, p.6).

A Omissão da História é visível. Iguala-se o Comunismo como ideologia

socioeconômica que pretende estabelecer uma sociedade sem classes a partir do

pensamento Marxista à prática da corrupção que lesiona o tecido social e acarreta em

grandes problemas. Nega-se a história do Comunismo e o nivela a história da prática

corruptiva no mundo.

Já o Ninismo pode ser visto no enunciado número 03 em que, ainda no processo

analítico da mensagem de João Goulart se procura negar as causas dos problemas

econômicos do país.

Enunciado 03

Em quarto lugar a taxa, a queda da taxa de crescimento que em

1964 significará a estagnação de nossa renda per capita, não

pode ser atribuída por uma teoria esdruxula a falta de reformas

de base. Há dois anos_ há apenas dois anos! _, em 1961,

tínhamos uma das taxas mais elevadas de crescimento do

mundo. As estruturas não poderiam ter envelhecido tão

rapidamente, e esse envelhecimento não poderia determinar tão

violenta redução da expansão da economia nacional, em apenas

dois anos. As causas concorrentes para a queda podem ser

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encontradas na lei de remessa de lucros, na inquietação política

gerada pela pregação revolucionária do reformismo, no

tratamento dúbio e vacilante das concessionárias de serviços

público, e na política salarial de inspiração demagógica e

transformada em instrumento progressivo de nacionalização de

importantes setores da economia nacional (Jornal do

Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).

Nesse enunciado o Ninismo se estabelece ao se negar que o problema econômico

foi causado pela ausência de reformas de base ou por problemas estruturais como atesta

o governo de João Goulart que imputa os problemas econômicos às grandes

disparidades sociais do Brasil. Sabe-se que por esta figura barthesiana, o real dos

objetos escolhidos para a balança é reduzido a analogias, para, em um segundo

momento, serem igualados e esvaziados, e, portanto, negados. Como se pode ver, os

problemas econômicos são atribuídos à política de Goulart que segundo o editorial,

demagogicamente tentava manipular a Nação. Nega-se quaisquer outras causas

anteriores ou estruturais, tais como o grande nível de endividamento do país adquirido

pelos governos que o antecederam.

No enunciado 04 localizado no editorial do dia 03 de janeiro de 1964

encontramos ainda a Identificação proposta por Barthes (1993).

Enunciado 04

Em quinto lugar o Presidente confessa que existem no Brasil 30

milhões de adultos sem direito ao voto por serem analfabetos, e

sua confissão de fins político-constitucionais (reforma da

Constituição) não é acompanhada de alguma notícia de uma

campanha federal séria e responsável de alfabetização em massa.

O caminho mais fácil pode ser o de dar voto aos analfabetos. Mas

o correto é o da alfabetização. Só a alfabetização eleva

socialmente o cidadão: dá-lhe cidadania política e ao mesmo

tempo transforma-o em agente do desenvolvimento econômico

(Jornal do Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).

Nesse enunciado percebemos a dificuldade do enunciador em ver o Outro que é

condenado sem nenhuma pena a uma condição de inferior em que os direitos e deveres

de cidadania não são devidos. Vale ressaltar, no entanto, que a Identificação de Barthes

se concretiza não só por situar os analfabetos como não cidadãos e à margem da

sociedade, como também, por colocar a intenção de Goulart como sendo uma intenção

comunista de dar direitos iguais a quem de fato não era considerado um igual.

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Ainda no processo de análise dos três editorais do JB escolhidos para o presente

trabalho localizamos com certa frequência a figura da Constatação, como veremos a

seguir no enunciados 05.

Enunciado 05

A resposta que o Presidente deu ao País, merece outra resposta do

País. Já que o Presidente se revela incompetente para nos

proporcionar um bom Governo democrático, provem os partidos,

os líderes de opinião, os candidatos, que são capazes de formular

e realizar a votação de um bom programa de reformas ( Jornal do

Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).

Ao final do editorial do dia 03 de janeiro de 1964 verificamos a Constatação

através de uma verdade proferida pelo JB como uma contra explicação aos atos e

pretensões do Presidente João Goulart, pois na visão do jornal em análise, somente o

diálogo democrático poderia levar o país a uma saída viável, visto que o Presidente não

era competente para tanto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

(INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO)

Ao final do processo analítico aqui empreendido concluímos que a construção

mitológica de João Goulart e do Partido Trabalhista Brasileiro como comunistas e,

sobretudo, como portadores de ideologias e práticas políticas que pretendiam prejudicar

a sociedade brasileira atingindo diretamente os direitos já adquiridos, assim como, a

propriedade e a família; passou por um processo de adesão dos meios de comunicação

de massa a partir da orquestração de institutos como o IPES-Instituto de Pesquisa e

Estudos Sociais e do IBAD-Instituto Brasileiro da Ação Democrática.

Os editoriais analisados pela perspectiva barthesiana proporcionaram uma visão

parcial de como se deu o processo constitutivo de um discurso mitológico que nasce na

direita e que transforma um personagem da esquerda em um anti-herói em um grande

vilão brasileiro, que deveria ser combatido pelas famílias de bem.

REFERÊNCIAS

A RESPOSTA. Jornal do Brasil, ano LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1979.

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993

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CONSPIRAÇÃO SUBVERSIVA. Jornal do Brasil, ano LXXIII, nº27, 01 fev.1964,

p.6).

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: USP, 2010.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das

Letras, 2007.

LAVILLE, Christian; DIONE, Jean. A construção do saber. Belo Horizonte: UFMG;

Porto Alegre: Artmed, 1999.

O NOVO FEDERALISMO. Jornal do Brasil, ano LXXIII, nº50, 02 de março de 1964,

p. 06).

RAMOS, José Roberto. Roland Barthes: a semiologia da dialética. Conexão –

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RÊGO, Ana Regina. Jornalismo, Cultura e Poder. Teresina: EDUFPI, 2007.

RICOUER, Paul. A Memória, a História e o Esquecimento. Campinas, SP: Ed.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos

meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.