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O encontro semanal no galpão de artes do Morro Chapéu Mangueira deu origem ao programa Versão do Passado. Muitas senhoras deixavam, naquele ambiente, his- tórias do passado da comunidade e das personalidades cruciais na formação do imaginário dos moradores...

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Editorial

O encontro semanal no galpão de artes do Morro Cha-péu Mangueira deu origem ao programa Versão do Pas-sado. Muitas senhoras deixavam, naquele ambiente, his-tórias do passado da comunidade e das personalidadescruciais na formação do imaginário dos moradores. Duassenhoras aparecem nesses relatos como representação daforça e altruísmo em prol da organização e desenvolvi-mento do lugar. São elas: Marcela, que fez parte das pri-meiras famílias de moradores do morro Chapéu Manguei-ra, e a missionária Renée de Lorme, pessoas que deixaramsuas ideologias, ética e moral imbricadas no cotidiano dacomunidade. Aparecem como as mais importantes per-sonalidades na memória dos mais velhos, como podemosconfirmar na oralidade dos moradores registrados nestaspáginas. A idéia do Versão do Passado surgiu da vontadedessas senhoras, na liderança de Maria Augusta do Nas-cimento Silva, em deixar o registro de uma oralidade quepudesse ajudar a redescobrir as pessoas, seus costumes,sua origem, seus feitos na construção do lugar e nareconstituição de suas vidas, recuperando sentidos, so-nhos, vitórias, fracassos, saudades... A oralidade do gru-po, capturada pela tecnologia do audiovisual, mediadapor universitários e professores, poderá, no futuro, ajudarna reconstrução dos princípios humanitários, e permitirájuntar os estilhaços da humanidade espalhados no pro-gresso modernista contemporâneo. O registro feito emaudiovisual já permite que jovens se reconheçam em suashistórias e admirem as personalidades do seu lugar. Osdocumentos gravados e transcritos para povoar as pági-nas da revista Comunicação & Comunidade denunciam aavareza dos poderosos, o modelo consumista, individua-lista, de privilégios dos méritos e sucessos produzidos ar-tificialmente. Crítica que aparece no abstrato do texto,no contrário das afirmações, das alegrias e na saudadefreqüente da solidariedade perdida. A oralidade desses mo-radores transcende a história narrada e lança novos desa-fios e velhas e boas reflexões. Acordou esses moradores, eseus sonhos de compartilhar o mundo foram retomados,lançando-os em novas experiências com o sentido de re-

cuperar momentos comuns em suas trajetórias de vidasna utopia comunitária.

A partir destes desafios, surgiu, dos encontros dessasjovens senhoras, a vontade por passeios em busca de áli-bis para viverem mais intensamente suas histórias, na His-tória. Assim, iniciou-se o movimento “Turismo Popular, aHistória ao alcance de todos”.

A partir da simples oralidade de suas histórias, lendase sonhos, percebemos, mais uma vez, o quanto somossemelhantes e que o humano é, por si mesmo, o domnatural que pode recuperar a comunidade perdida no seuser, independente dos fatos históricos. O humano se ali-menta da História, mas é mais do que ela (a História). Émais à medida que realiza, discretamente e em propor-ções quase invisíveis para o mundo histórico de hoje, abusca pelo espírito comum, só desejado e possível derealizar pelo ser humano. A História realimenta os sonhosem busca do paraíso perdido nos quatro cantos do mun-do, desde que o universo nos doou o dom de podermosser humanos. Claro que, nos ideais pós-modernistas, ficaa interrogação sobre a possível perda das referências, dasraízes, e, portanto, parece não haver lugar para uma idéiade comunidade. O excesso pelo virtual e hiper-real, peloátimo e o não-lugar, não favorece em nada o sonho dacomunidade fraternal e solidária, de humanos enlaçadospelo dom único de sua graça, a doação. Pois bem, o Tu-rismo Popular reacendeu os sonhos. Essas senhoras, emtempos de redes e mais redes, que aproximam as pessoas,mantendo-as cada vez mais distantes corporalmente, re-solvem se juntar para redescobrirem suas histórias e ahistória do seu lugar. Juntam-se saindo de suas casas,muitas vezes em lugares de difícil acesso nos morros ondemoram, para andar pela cidade, confrontando os seus ima-ginários com a cidade e a História. Descobrem que suashistórias e ações para melhoria de suas comunidades quan-do não havia luz, água, casa de alvenaria... são históriasde movimento participativo e que a comunidade se cons-trói com a participação de todos. Não se pode ser comu-nidade no individualismo, na fragmentação, na competi-

ExpedienteDiretorProf. Hélio Alonso

Vice-diretoraMárcia Alonso Pfisterer

Coordenador de EnsinoProf. Dráuzio Gonzaga

Secretário GeralWalmir Machado

EditoresProf. Nailton de AgostinhoMaiaProf. Ivana Gouveia

Coordenador do ERP/NECCProf. Ricardo Benevides

ProduçãoTatiane RochaWagner Brito

Secretário ExecutivoGilvan Nascimento

Revisão de TextoProf. Paulo Robertode Castro

Projeto GráficoACHA

DiagramaçãoLab.de Edit.Eletrônica- André Cunha

Foto de capaGenilson Araújo

GráficaCorbã Editorade artes graficas

Acesse nosso site:www.facha.edu.br/necc

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Acervo NECC

Prof. Nailton de Agostinho Maia apresenta alunos do programa Versão do Passado

ção desenfreada, na humilhação do outro.Talvez isso seja possível nas redesinformatizadas, mas creio que não seja co-munidade, apesar de ser a rede internet olugar (se posso chamar assim) onde existeo maior número de “comunidades”. Sou-be, outro dia, que é possível haver, nasredes “internautas”, mais “comunidades”que grupos sociais no ecúmeno. O fenô-meno é paradoxal, quanto mais grupos de-nominados comunidades, temos menoscomunidades de fato.

Percebem, em seus caminhos pela cida-de, nos pontos turísticos, parques e museusque a simplicidade de suas histórias, a reali-dade injusta em que vivem, é a mesma estampada nosquadros, livros e jornais históricos. As raízes estão fincadasna Colônia, alimentadas no Império e amadurecidas naRepública. Demonstram, com suas vontades, a sede derealidade que povoa nosso ser. A volição de reafirmar vi-das, identidades que existem e resistem, é mais que isso,é a possibilidade que mantém a comunidade próxima aoportão da ilusão perdida pela humanidade. Trabalham e,com suor e marcas do azorrague, sustentam sua carcaçae seus sonhos. Nos sonhos, na liça da vida, enfrentam osdescaminhos, as desconstruções provocadas pelamodernidade e reafirmam o sentido da comunidade, lu-gar de união, de bem, liberdade, segurança, reciprocida-de, solidariedade, lugar caloroso e desinteressado, onde aajuda não aguarda retribuição. Lugar de entendimento.Atributos compartilhados e espontâneos ocorrem no co-letivo tal como o ar está para cada ser vivo: naturalmen-te. Quando usamos artifícios para respirar, a vida correrisco. Da mesma forma, se uma comunidade precisa sercriada com artifícios, regulada com normas artificiais, ela,a comunidade, é artifício e, não, vida comum. Nesse caso,a vida comunitária corre risco, pois, se compreendo que avida humana se dá no social e o social é comunitário comos atributos que definimos acima, como ver saúde em

vidas individualizadas, onde é preciso ter cuidado e des-confiança para com o outro. Os mais velhos, amodernidade e as escolas educam para que os jovensnão se misturem, não aceitem estranhos. Ensinam a vercom os olhos dos outros, a competir em lugar de com-partilhar; em lugar de união, os contratos de separação;em lugar de contemplação desinteressada, o consumoutilitário, interessado e fútil.

A “comunidade verdadeira” é dada ao humano, éparte entranhada no ser, obrigando-o, sempre que seafasta, a recuperar a idéia do comum. Assim, o modeloprodutivista em que estamos, nos afasta do nosso na-tural, obrigando-nos sempre a “invenções solidárias efraternais” que nunca satisfazem, por serem artificiais,interessadas e, portanto, fúteis, pois são ações isoladaspara manter as “comunidades artificiais”. Não há senti-mento com o coração próprio. Esse grupo de mulheresdos morros do Rio de Janeiro permite que outros so-nhadores abram o portão e se aproximem da comunida-de perdida, contemplem os laços de sua essência e so-nhem com esse grupo vivendo com menos injustiça, nabusca do alimento para suas vidas.

Prof. Nailton de Agostinho Maia

Os vídeos resultantes das entrevistas com os moradores encontram-se à disposição para consulta naBiblioteca da FACHA e na Associação de Moradores do Chapéu Mangueira.

A Revista Comunicação & Comunidade é editada pelo Núcleo de Educação e Comunicação Comunitária (NECC), programa doEscritório de Relações Públicas (ERP) das Faculdades Integradas Hélio Alonso.

Está aberta a colaborações com a temática da educação comunitária.Os autores responsabilizam-se pelos conceitos emitidos em seus trabalhos.

Envie sua colaboração e/ou sugestão para a Revista Comunicação e Comunidade:Rua Muniz Barreto, 51 - Botafogo, Tel: 2102-3100

CEP: 21251-090 - Rio de [email protected]

ISSN: 1413-7437

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Sumário

Uma comunidade chamada Chapéu Mangueira

Conceição Ferreira da Silva

Maria Augusta do Nascimento Silva

Alfriza Rodrigues de Souza

Edna Ferreira do Nascimento

Gibeon de Brito Silva

Jorge Farias Cabral

Lúcio de Paula e Bispo

Antônia Francisca de Jesus

Natanael Silva

Isabel Vieira da Silva

Regina Maria Riboredo

Maria de Lourdes de Oliveira Lopes

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Por Pedro PioCientista Social, Jornalista e

Professor de História, Memóriae Oralidade do Projeto

Guardiões da Memória.

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 7 a 15

Uma comunidade chamada

Situado no bairro do Leme evizinho da comunidade daBabilônia, o Chapéu Manguei-ra assume certas peculiaridadesem sua história. Primeiramen-te o nome, oriundo de uma fu-são de características que erambastante típicas em seu entor-no. Segundo os veículos de in-formação locais, a escolha donome seria decorrente de umafábrica de chapéus que havia nomomento de sua formação (ter-ritório ocupado hoje pelo LemeTenis Clube) das grandes plan-

tações de mangas em seu es-paço territorial.

Vale ressaltar que esses veí-culos eram criados pelos própri-os moradores, responsáveis peloresgate de uma série de infor-mações pertinentes para histó-ria do local. Através dos regis-tros de jornais como “O Chapéu”,criado pelo Grupo Jovem, cujoobjetivo era relatar periodica-mente a vida política, social ecultural do local, além de outraspublicações relativas ao movi-mento comunitário de favela e

do movimento dos trabalhado-res, sabe-se não só a escolha donome da comunidade, como tam-bém o empenho de pessoas elideranças como ManuelChicabom, Lúcio, Lafaiete, Renèe,Marcela, Bola, Benedita da Sil-va, Coracy, Filhinha, que, atra-vés de seu empenho, consegui-ram trazer melhores condiçõespara o entorno, como água, luz,escola e escadas.

Outro dado, que os registrosaveriguam e legitimam, é a for-ma de como foi dado o

Acervo NECC

Mutirão para construção da creche.

ChapéuMangueira

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usucapião. Segundo esse jornal,tiveram de medir por sete vezesa área de cada morador, visto quemuitos não respeitaram os limi-tes estipulados pela associação.Já o funcionamento da escolaveio da construção de um sim-ples barraco de madeira, geridopor Dona Marcela e Benedita daSilva, que aí lecionaram por 13anos, tendo, anos mais tarde, oconvênio com o Município do Riode Janeiro, que forneceu profes-sores e merenda.

Os registros também confir-mam que o Grupo de Saúde, for-mado em 1983, reuniu morado-res, que sem recursos financei-ros, colocaram anúncios pedin-do doações, fizeram festas e con-seguiram recursos do exterior, demodo que dessem assistênciaaos moradores do Chapéu e daBabilônia. O Posto Médico é,hoje, mantido pelo INSS e conti-nua sob a responsabilidade doGrupo de Saúde e da Associaçãode Moradores.

Em relação à luz, houve umperíodo em que a cobrança eradiretamente ligada à Associação.Era uma comissão responsável

pela cobrança dos gastos de luzde cada morador e sóciopropietário. A Light fazia a cobran-ça através de um medidor únicopara toda a comunidade, sendoque a Associação era responsávelpelos relógios dos moradores. Sótinha relógio quem era sócio pro-prietário e só eram proprietáriosaqueles que a associação permi-tisse ou quem comprasse umaposse na comunidade.

Aliás, são as informações lo-cais que não só permitiram adescoberta do nome dessa comu-nidade, como também a organi-zação de seus moradores. Atra-vés da união destes, a associa-ção pôde ser construída e, as-sim, direitos reivindicados e obri-gações cumpridas.

Hoje, de acordo com o Rela-tório Múltiplos de Assen-tamentos do Instituto PereiraPassos, a comunidade assume asseguintes características; a datade cadastramento é de 23 dejulho de 1981; seu acesso prin-cipal é pela Rua GustavoSampaio; o nome oficial é AS-SOCIAÇÃO DE AMIGOS DO CHA-PÉU MANGUEIRA e seu endere-ço é Ladeira Ary Barroso, 66, fun-dos, Leme. O atual planejamen-to urbano foi feito pelo Progra-ma de Urbanização e Regulari-zação Bairrinho.

Gibeon, que já foi presidenteda Associação e também reali-zou trabalho acadêmico, mos-trando a função social dos ar-quivos de comunidadesfaveladas pela Escola deArquivologia da UniversidadeFederal do Estado do Rio de Ja-neiro UNI-RIO, descobriu, graçasa uma vasta pesquisa, que asprimeiras associações de mo-

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Crianças ajudam na construção do Galpão de Artes.

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radores, bem como as associa-ções de luz, advém do final dadécada de 50, de modo que es-sas se tornassem uma alterna-tiva para que a população sefixasse como posseiros.

Antes da fundação da Asso-ciação de Amigos do ChapéuMangueira, a comunidade erapraticamente administrada peloExército. Segundo os antigosmoradores, qualquer problemaque acontecia nessa área, o Co-mando do PO (Posto de Observa-ção), no alto do Morro daBabilônia, mandava uma escol-ta. Algumas construções de bar-racos eram permitidas, comotambém eram destruídas, deacordo com a sua conveniência.A Lei Leão XIII era rigorosamen-te exigida pelo Tenente, autori-dade maior do PO. Havia os par-ceiros que atuavam como pontode equilíbrio: a associação deAmigos do Leme e a Igreja, que,através da Ação SocialDominicana, assistia a Comu-nidade. Constituída de Padres daAla Progressiva da Igreja, a AçãoSocial encarregou a Sra Renèede Lòrme de ajudar na organi-zação do Chapéu Mangueira. Al-guns nomes da Igreja, porém,foram juntamente com DonaRenèe, decisivos na organizaçãoda comunidade. Alguns deles:Dom Helder Barros Câmara, FreiJoão Cherry e Frei Marcos.

No inicio da década de 60, éfundada a Federação das Asso-ciações de Favelas do Estado daGuanabara, FAFEG, hoje Federa-ção das Associações de Favelasdo Estado do Rio de Janeiro(FAFERJ). Por estímulo do Gover-no Militar, para manter os mo-radores sob controle, muitas ou-

tras associações de favelas fo-ram criadas.

Todavia, tal estímulo permitiuque essas instituições se organi-zassem cada vez mais, assumin-do sua própria identidade e logoacrescentando representatividadediante da soberania militar. Como passar do tempo, as atividadesdessas Associações foram evolu-indo e elas, em sua maioria, pas-saram a atuar, muitas vezes, nolugar do Estado. Além da funçãoinicial de organizar os morado-res pela condição de moradia, elaspassaram a tratar de educação,saúde, segurança, esporte, lazere cultura.

Assim, de acordo com os re-gistros de Gibeon, foi precisotoda uma trajetória para que asassociações se tornassem legaisde fato. Surgem os primeirosdocumentos, como as Atas deFundação, Estatuto, Livro de Atas,Livro-Caixa, Livro-Diário, Publi-cações no Diário Oficial, regis-tro das reuniões por fotografias,entre outros. Dá-se a união dosindivíduos, as parcerias, sobre-tudo com organizações não-go-vernamentais brasileiras, defini-das como “faveleiras”, além deoutras organizações estran-geiras. Há um período de maiorautonomia das comunidades,principalmente daquelas situa-das na zona sul do município doRio de Janeiro.

Assim, a documentação daComunidade do Chapéu Man-gueira começou a ser criada noinício dos anos 50, dez anos an-tes da fundação da Associaçãode Moradores. Já nesse período,essa acumulação se iniciou deuma forma centralizada, uma vezque Dona Reneé de Lòrme, que

A Ação Social

Dominicana encar-

regou a Sra Renèe

de Lòrme de ajudar

na organização do

Chapéu Mangueira.

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ocupava uma função que mis-turava assistência social e en-fermagem, de nacionalidadefrancesa, juntamente com a ASD- Ação Social Dominicana - deuinício à organização da comuni-dade, centralizando as ativida-des no Posto Médico, construídopor ela e por moradores em pro-jeto de mutirão.

Em 2002, a Associação Ami-gos do Chapéu Mangueira esta-belece parceria com IETS, Insti-tuto de Estudos do Trabalho eSociedade, na intenção de se in-serir no “Projeto ObservatórioSocial de Favelas’’, criando umvínculo com as demais comu-nidades. Assim, o ObservatórioSocial do Chapéu Mangueira/Babilônia, no prédio do PostoMédico Chapéu Mangueira, teve,como objetivo, formar atores so-ciais locais capazes de monitorar,avaliar e formular políticas so-ciais e políticas públicas parasua vizinhança.

A identidade cultural doChapéu Mangueira

De acordo com os registros edepoimentos de moradores an-tigos, constata-se que a comu-nidade do Chapéu Mangueirarecebeu influências de pessoasvindas de várias regiões do Bra-sil. Segundo as fichas de inscri-ção de sócios da Associação, con-firma-se que os primeiros a po-voarem a região, entre os anos1911 e 1912, foram famíliascujos chefes eram trabalhado-res do Forte Duque de Caxias.

Percebe-se, também, que amaioria dos moradores vinha doEstado de Minas Gerais (24.8%),sendo que 98% eram de etnianegra. Somente nos anos 30 co-

meçou a ser traçado o perfil dacomunidade, já havendo a mis-tura entre mineiros efluminenses, como também compernambucanos, paraibanos ecapixabas, que começaram a sealojar nos anos 50. As famíliasmineiras, segundo Gibeon, fo-ram consideradas como as maistradicionais, sendo que umagrande parte veio de cidadescomo Além Paraíba e Leopoldina,sendo os Ferreira, Silva,Ponciano, Souza e Santos osmais antigos, estando, em 2006,em sua quarta geração.

Nessas famílias, muitos tive-ram destaque na organização dacomunidade. No entanto, trêspersonalidades tornaram-se de-masiadamente relevantes para ahistória, diante dos trabalhos re-alizados: Maria ConceiçãoFerreira Pinto, “Dona Filhinha”,Marcilia Ferreira da Silva, “DonaMarcela”, e Benedita da Silva.

Os cearenses são os segundoem relação à ocupação do Cha-péu Mangueira, representando18% dos moradores. Dessepercentual, 90% foram clas-sificados como brancos e 10%pardos, de origem branca ou in-dígena. De acordo com o traba-lho de Gibeon, muitos chegaramnos anos 50, provenientes dascidades de Cariré, Sobral,Reriutaba, Guaraciaba e SantaQuitéria. Entretanto, a imigra-ção não obedecia ao mesmo me-canismo que o dos mineiros.

Primeiro vinha o chefe de fa-mília, praticamente empregadopor parentes nas atividades decozinha, restaurantes, hotéis eobras. Após conseguir certa esta-bilidade, eles traziam suas fa-mílias: os Souza, Brito,

Constata-se que a

comunidade do

Chapéu Mangueira

recebeu influências

de pessoas vindas

de várias regiões

do Brasil.

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Rodrigues, Costa, Mesquita,Ferreira, Silva, Carneiro e Cosia.

Um dado que difere oscearenses dos demais está naunião entre os conterrâneos.Sua união não se limitava so-mente no emprego, mas tam-bém no lazer e na hora de mis-turar suas famílias. Sua loco-moção também era dada comfacilidade, assim que melhora-vam suas condições de vida.

Assim, segundo Gibeon, a fi-delidade e a determinação docearense com o que se propu-nha fazer foi muito importantepara o desenvolvimento da fa-vela, ou melhor, “das favelas”.Dentre eles, podem-se destacaros Srs. Joaquim Alves Carneiro,Macário da Silva, VicenteBonfim, Francisco Rodrigues,Francisco Martins de Lira e a Sra.Antônia Rodrigues de Lira.

Já os F luminenses , com16,6%, começaram a chegarnos anos 30 de Campos ,Macuco e Santa Mar iaMadalena. Essas grandes fa-mílias foram bastante impor-tantes na formação da comu-nidade, principalmente as fa-mílias Medina, Oliveira e Pe-reira. Algumas dessas famíli-as também ocupam a quartageração, assim como os tradi-cionais mineiros.

Os cariocas, de acordo com apesquisa levantada por Gibeon,assumiram inicialmente umcomportamento destoante dosdemais. A característica maisimportante é que os primeiros,que chegaram nos anos 30, sóse relacionavam entre eles e comos fluminenses, havendo umanítida relação de preconceito, maismarcada com os nordestinos.

De acordo com os dados his-tóricos, os primeiros cariocas vi-eram de favelas como Rocinha,Cantagalo, Cabritos e a vizinhaBabilônia, sendo que muitos nãopossuíam o mesmo comprome-timento que os demais possuí-am com a comunidade. Logo, naculinária e na música, os cario-cas juntamente com os minei-ros, predominavam. ‘’O feijão erao preto, o peixe era o frito. Osamba, o chorinho e o jongoeram o que se ouvia. Futebole natação eram os esportespraticados. Dessas famílias,podemos destacar : André ,Te ixe i ra , Samuel , Santos eSouza e os Muniz”.

Ainda assim, a participaçãode nomes cariocas na formaçãoda comunidade foi pouca. Da-queles que participaram, desta-cam-se a Sra. Regina Riboredo,que é descendente da FamíliaFerreira de Além Paraíba, Minas,foi Chefe do Grupo de Lobinhose duas vezes presidente da As-sociação, e Jaime Muniz, cuja fa-mília se implantou na comuni-dade em 1945, ainda que só te-nha vindo morar no Chapéu

Acervo NECC

Terreno em que hoje estão localizadas a Associação de Moradores e a creche. Fotografia de 1982.

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Acervo NECC

Construção do Posto Médico, meados da década de 1960.

Mangueira nos anos 80, jáparticipando como diretor daFAFERJ e da Associação e sendopresidente desta de 1992 a 1995.

Outros estados do nordestebrasileiro contribuíram para aformação do perfil cultural doChapéu Mangueira. Após oscearenses, foram os paraibanosque tiveram uma maior percen-tagem: 5% entre os nordesti-nos; seguido de Pernambuco,com 2,8%; Alagoas, com 2.4%;Bahia com 1% e Maranhão,Amazonas e Sergipe, com 0,35%.

Os capixabas também tive-ram sua contribuição. Umaquantidade considerável de fa-mílias veio do Estado do Espíri-to Santo, 4,7%. Sua participa-ção foi tímida, tanto que o úni-co destaque é o fato da forma-ção da família Jesus com a fa-mília fluminense dos Medina.

Em relação à constituiçãoétnica da comunidade, 31,7%da população são declaradoscomo pardos, tendo percentualigual para negros, e 36,6% parabrancos. Sobre os esportes pra-ticados, as fichas da associação

confirmam a prática de futebol,sinalizado apenas para os ho-mens, da natação, do boxe e dojudô. Entretanto, é desconheci-do se evangélicos praticavam ounão esportes.

Nos registros iniciais da co-munidade, confirma-se que areligião era dividida da seguinteforma: 91,17% de católicos e2,83% de evangélicos. Porém,vale ressaltar que, pelo fato dea Igreja Católica ter uma parti-cipação forte na organização dacomunidade e de os líderes dafavela terem uma forte relaçãocom essa igreja, alguns evangé-licos se declaravam católicospara evitar a repreensão por cau-sa do preconceito existente.

Quem foi o primeiro moradordo Chapéu Mangueira?

Não se sabe ao certo sobre adata exata da ocupação da áreaque hoje compete ao ChapéuMangueira. Entretanto, regis-tros indicam que, no ano de1911, morava o cidadão JoséTeixeira, pai do Sr. José CarlosTeixeira (que foi um dos dire-tores da Associação de Morado-res) e que sempre morou na RuaDoutor Vitoríno. Tais registrospodem confirmar não só as da-tas, como também as práticasculturais e os ritmos musicaisouvidos na época. Bolero,chorinho, sambas, partido alto,jongo, folia de reis, coco, ciran-das, pontos de macumba, entreoutros. Segundo Gibeon, gran-de parte dos moradores antigosdo Chapéu sentem saudades doconjunto de chorinho do “TioNatalino” e do “Tio Mário”, dosirmãos André, das Folias de Reisdo seu Gerson, irmão de dona

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Marcela, das macumbas no ter-reiro do ‘’Tio Laninho”.

Hoje, o Chapéu Mangueiratem aproximadamente 1200habitantes e 235 imóveis, sen-do 7 públicos: o Centro Sócio-Cultural-Esportivo Chapéu Man-gueira, o Posto Médico, o Galpãode Artes e a Creche, administra-dos pela Associação; a escolainfantil, administrada pela Pre-feitura; a capela, administradapelo Grupo das Carismáticas daComunidade e a Congregação daAssembléia de Deus, administra-da pelo Pastor da Igreja Assem-bléia de Deus do Leblon. Algu-mas das 228 casas foramdesmembradas: algumas paracomportar a família que cresceue outras para o aluguel de cô-modos, com objetivo de aumen-tar a renda familiar. Essas 228casas, mais os imóveis públicos,estão distribuídos em 24 ruas(veja mapa nas páginas 14 e 15),com nomes das pessoas consi-deradas como Benfeitores daComunidade. Em princípio, todosos donos de posses, e chefes defamília são sócios-proprietários,e os sócios sem posses são con-tribuintes. Todos os imóveis têmágua, luz e esgoto.

·

Pedro Pio é graduado em jor-nalismo pelas Faculdades Inte-gradas Hélio Alonso.

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Associação de Moradores vista de cima do Galpão de Artes. Fotografia do início da década de 1990.

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Dona Conceição, antes devir para o Rio de Janeiro, mo-rou em Minas Gerais, no AlémParaíba, onde trabalhou muitodesde sua infância. “Quantassacas de café já apanhei, meuDeus, lá em Minas? A gentetrabalhava satisfeita. Depois, agente fazia aqueles terrenosgrandes pra despejar aquelesbalaios de café. Eu ganhei mui-to dinheiro assim”.

Prestava serviços relaciona-dos ao café e arroz para um fa-zendeiro, porém sua família

possuía um terreno própriopara cultivar o que lhes fossenecessário. Quando menina, jácapinava, plantava milho, ar-roz e feijão; “a gente só brin-cava dia de domingo, porquenão trabalhava”.

Era filha de dona Ana, tinha15 irmãos, mas todas as mais no-vas já faleceram. Sua família ti-nha o hábito de se reunir aosdomingos em sua casa, que erapequena, porém com um quin-tal muito espaçoso.

Chegando ao Leme, ficou

admirada quando viu pela pri-meira vez o mar, “de ver tantaágua”, e ficava observando asondas “que, quando estavamenfezadas, batiam aqui emcima do muro e atravessavam arua. Era muito bom!” Ao chegarao Chapéu Mangueira, depa-rou-se com muito mato e casasde sapê, que ainda eram feitastodas unidas,”tudo barraco jun-to, feito de zinco. A gente viviatodo mundo no meio do mato”,em caminhos estabelecidos portrilhas precárias.

ConceiçãoFerreira

da Silva

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem dezembro de 2003

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 16 a 18

Acervo NECC

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Seus irmãos são

fundadores do

Aventureiros do

Leme, enquanto

suas irmãs e ela

saíam todas de

baiana no bloco.

Nessa época, trabalhava em“casa de madames” como do-méstica. Chegava em casa só às10 e meia da noite em meio àescuridão e aproveitava as obrasdos edifícios no bairro para pe-gar água e lenha para cozinhar.Buscava tudo que lhe era ne-cessário na rua Princesa Isabele admite que, mesmo com to-das as dificuldades de antiga-mente, “a verdade é que, ape-sar de todo sacrifício, era me-lhor do que hoje”.

Muitas pessoas que ela viucolaborando na formação da co-munidade já morreram, mas nãodeixou de demonstrar sua admi-ração pela irmã, dona Marcela,que junto a dona Renée, umafrancesa que trabalhava na igre-ja do Leme, se destacou no pro-cesso urbanístico e principal-mente social do local.

Sua irmã ajudou muito naconstrução da creche que hojetem seu nome em homenagem.Foi professora da escolinha que,atualmente, se encontra fecha-da. Antes das grandes constru-ções, já lecionava em pequenosbarracos; “alfabetizou muitagente no morro”. Foi fundamen-tal sua participação na criaçãodo posto de saúde. Ela e a donaRenée “não deixavam ninguémdentro de casa, botavam todomundo para trabalhar”. As duascuidavam e levavam remédios àspessoas, fizeram diversos partos,além de muitas outras contri-buições no convívio do morro.

Conceição gostava muito,“gostava não, eu gosto ainda,estou viva!” de dançar e ir àgafieira, onde, com seus parcei-ros, se divertia ao som do bolero,tango, salsa e samba. Curtia bai-

les em Vila Isabel, Salgueiro,Lapa e adorava a gafieira na Ruada Santana, à qual ia com suasamigas da Barata Ribeiro, ondetrabalhava, e voltava quatro damanhã de ônibus ou nos bondesque as deixavam no canto doLeme. Dançava de tudo e sem-pre tinha um par a sua espera.

As festas na casa de sua mãeeram freqüentes, principalmen-te no Carnaval. O pessoal todose arrumava para desfilar nasescolas de samba: “a gente searrumava, fazia as baianas to-das para ir para a escola de sam-ba, e a festa era tudo na casa daminha mãe”. Ela e os irmãos, to-dos fantasiados, iam muito àIpanema brincar nessa época.Seus irmãos são fundadores doAventureiros do Leme: um erabaliza e outro colaborava na ba-teria, enquanto suas irmãs e elasaíam todas de baiana no bloco.

Desde sua chegada ao morroaté os dias de hoje, muitas pes-soas que ajudaram na constru-ção da comunidade já morreram.Existia muitos mineiros residin-do no local no momento em quechegou, e restaram-lhe apenasalgumas em sua memória, comoa Elza, Beni e Aparecida, que,apesar de estarem doentes atu-almente, são pessoas muito que-ridas dela.

Gostava muito do Presiden-te Getúlio Vargas, que ajudoumuito a comunidade há anos,principalmente nas vésperas doNatal, pois, quando os morado-res iam ao palácio, voltavamcom muitas roupas e comidasque lhes eram doadas. Sua irmã,dona Marcela, trabalhou comocozinheira para ele no Palácioda República e em sua casa;

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Ana e Conceição na gravação da entrevista.

dona Conceição teve a oportu-nidade de conhecê-lo pessoal-mente e considerava-o umapessoa muito boa.

Sempre foi uma mulher quegostava muito de trabalhar. Setivesse condições, trabalhariaaté hoje. Sempre que trabalha-va nas casas das senhoras, faziade tudo, “adorava ficar trepadanas janelas nesses apartamen-tos aí”, mas agora não é maispossível devido à sua saúde.

Até o dia da entrevista, donaConceição já estava há um anomais ou menos sem sair da co-munidade e nos contou suacrendice em Jesus, apesar denão se envolver. É espírita e umadas “rezadeiras” do morro, eexpôs-nos sua fé em Nossa Se-nhora das Graças, que lhe agra-da junto com Nossa Senhorada Conceição.

Eis o retrato de uma guerrei-ra, de uma história de lutas edesafios, que nos deixou um pou-co de sua memória. Esperamosque tenha realizado a sua von-tade de reencontrar-se com seusfamiliares onde está agora. DonaConceição faleceu no dia 3 dejunho de 2004.

·

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Maria Augustado NascimentoSilva

Maria Augusta do Nascimen-to Silva nasceu em João Pessoa,Paraíba, em 1937. A artesã che-gou ao Rio de Janeiro para cui-dar da sobrinha, em 1955, eacabou por construir sua pró-pria família. Casada com Coracir,a líder comunitária se fez pre-sente em momentos importan-tes do desenvolvimento do Cha-péu Mangueira.

Quais as lembranças vêm asua mente antes da vinda para oRio de Janeiro?

Eu morava no interior deJoão Pessoa, na Paraíba, numpequeno lugarejo chamado En-genho Novo. Nasci lá e lembroque ninguém era registrado,mas eu fui batizada. Às vezes,me vejo aquela menina de ves-tido comprido, descalça e cabe-lo despenteado. Me lembro daminha mãe saindo para traba-lhar na roça, enquanto ficavamem casa quatro crianças peque-nas. A minha mãe chegava can-sada com sua enxada na mão esentava sob a luz do lampião

para fazer bonequinhas de panoe de barro também. Todas asmeninas do interior tinhamcontato com barro, pois não ti-nha muito brinquedo. A gentebrincava de cavalo-de–pau e defazer comidinha. A minha mãematava galinha, e a gente fica-va com a tripa, cozinhando na-quelas panelinhas. Foi uma in-fância triste, de rotina, mas ti-nha coisas alegres.

Por que a senhora veio para oRio de Janeiro?

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 19 a 23

Acervo NECC

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem novembro de 2004

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Augustinha, Efigênia e arquitetas do Parque Lage trabalham na construção do forno do Galpão de Artes.

Vim para tomar conta da mi-nha sobrinha, pois meu irmão eminha cunhada trabalhavam enão tinham com quem deixar amenina. Meu irmão foi me buscare foi muito interessante porqueeu vim de avião. Na época, a co-mida do avião era fria, e eu vomi-tei ao comer galinha fria. Aindame lembro do saquinho do avião.

Tinha um mínimo de pessoasmorando aqui. As casas eram demadeira ou pau-a-pique e muitodistantes uma das outras. Os ca-minhos não existiam, era trilhae uma pedra por cima da outra.Era mato e não tinha luz tam-bém. A luz era lamparina, lam-pião. Me lembro que a convivên-cia era muito boa, todo mundose respeitava, porque tudo o quese tinha era igual, ninguém ti-nha mais que ninguém.

Eu vim para cá pouco antesde fazer dezoito anos, mas mui-to, muito inocente. Quando medisseram que tinha beijo naboca, por exemplo, eu não acre-ditei. Minha mãe ficou viúva

muito nova, então a gente nãotinha assim... na roça é muitodifícil. Não tinha uma re-ferência. Aliás, eu tinha umairmã que namorava, mas ela fi-cava conversando normalmente,e eu nunca vi um negócio debeijo. Eu duvidei que tivesse es-sas coisas, mas, depois, a gentevai aprendendo. Me lembro da pri-meira vez. Levou mais ou menosdois meses até o Coracir me pedirum beijo. Foi uma emoção muitogrande que eu tive. Na época, eulia revistas, mas eu não via esselado de beijo, de abraço. Eu acha-va aquela história bonita, mas nãoprestava atenção nisso.

Galpão de ArtesEu só me descobri nos anos

80. Foi aí que eu descobri o queera lazer e o que era viver. Eudescobri que eu tinha valoratravés da Celeida Tostes. Co-mecei fazendo meus trabalhosde argila, timidamente, em cimada minha cama, a Celeida viu evalorizou o meu trabalho. Euacho que eu comecei a viver apartir dali mesmo, porque, an-tes de eu conhecer o que euconheci neste trabalho, eu nãovivia. A gente viver em grupo émuito bom. O artesanato, o ar-tesão tem que lutar muito paravalorizar ele e a sua profissão.Eu qualifico meu ofício comoprofissão, mas não é uma pro-fissão valorizada. Participei demuitas exposições, expus emlugares nobres, mas, depois quea Celeida faleceu, já não houvemais o mesmo contato.

Em dezembro de 79, a Celeidaveio a pedido de um sambistadaqui para ensinar a fazer bo-neco de papel marché. Estava

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A artista plástica Celeida Tostes orienta as crianças na oficina de artes em 1982.

chovendo, e ela escorregou nobarro. Veio a cabeça dela que agente poderia ter uma reuniãode mulheres para fazer traba-lhos com esse barro. Em janeirode 80, começamos as primeirasreuniões, e os primeiros traba-lhos foram feitos com o barrodaqui. Depois, Celeida começoua comprar o barro já pronto, masa gente não tinha lugar paraqueimar nossos trabalhos até ogalpão ficar pronto.

Nós fizemos um grupo como nome de Grupo da Memória.Esse nome tem muito valor paramim, porque a Celeida nos fezver que a gente tinha uma me-mória, só que estava adormeci-da. Tinha que ter alguém igual aCeleida Tostes para fazer cadaum descobrir a memória. Minhamãe, quando ia tirar o leite davaca, botava farinha dentro davasilhinha e a gente comia. En-tão, comecei a fazer aquelasvasilhinhas de barro em que eucomia naquela época. É a me-mória. A construção do Galpãocomeçou em 80, mas só em 83ficou pronto.

O que o Galpão de Artes sig-nifica na vida da comunidade?

Há uma comunidade melhor.Uma vez, eu fiquei muito felizcom a Benedita, que era depu-tada na época: ela trouxe o côn-sul da Venezuela e disse que oGalpão de Artes era o cartão-postal do Chapéu Mangueira. Eufiquei muito feliz porque ogalpão foi a minha descoberta.A mulher nordestina, na época,era criada para reproduzir, cozi-nhar, costurar, bordar. Isso tudoé bom, mas a vida vai muitoalém disto tudo.

Chapéu Mangueira hojeTodos nós vivemos num mo-

mento de medo. Graças a Deus,aqui é um lugar bom. Antiga-mente, ninguém andava commedo de andar nas propriedades.Aqui era tudo mato, mas nin-guém tinha medo de andar. Hojese anda com medo, mas eu nãotenho medo porque eu vivo averdade. Me lembro de quandome perguntavam se eu entrariamesmo como vice-presidente eeu respondia que sim porquenão iria fazer nada demais, euiria seguir a minha vida e aju-dar dentro do meu limite. Euentrei como vice-presidente doEdson. Não tenho medo, masantes a gente andava nos cami-nhos mais tranqüila; hoje, a gen-te anda um pouco assustada.

Uma coisa que eu acho mui-to diferente de vinte anos atrásé que hoje não se tem mais res-peito por ninguém. Ninguém res-peita ninguém. Antigamente, osadultos não podiam falar pala-vrão na frente das crianças; hoje,a criança fala palavrão. As cri-

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Augusta, Prof. Nailton de Agostinho e Ana na gravação da entrevista.

anças não respeitam mais oadulto: elas crescem e, depoisque elas crescem, não te vêemmais, não te enxergam.

É a sua própria desvalo-rização. Quando a gente não sevaloriza, não vai valorizar o ou-tro. A gente só respeita o outrose ele se respeitar também. Umadas coisas por que eu luto é pelacompreensão. Se a gente com-preende a gente, então compre-ende o outro.

A senhora lembra de algummomento em que precisou serajudada pela comunidade?

Eu tenho um fato muito for-te, e eu fui ajudada. É que meubarraco de madeira caiu. Era umbarraco de terra e pau e tinhamquatorze pessoas dentro dessacasa. A gente estava em famí-lia, e o barraco caiu com todomundo e eu. A minha preocu-pação toda era meu sobrinhoque estava dentro da casa, maso berço caiu, ele ficou embaixodo colchão e o berço o protegeude tudo quanto foi madeira quecaiu. Ele não sofreu um arra-

nhão. Era um domingo à tarde,e eu fui parar no hospital por-que fiquei agitada por causa dobebê. Eu estava com medo demexer nele, e ele é hoje ummontão de gente.

Todo mundo foi lá e arrastou.Quem não tinha casa foi para acasa de parentes, de amigos. Agente recebeu muita ajuda.

A senhora tem interesse em ler?Agora não estou lendo, mas

depende da coisa de que se gosta.Eu gosto mais de ouvir repórter.

O estudo é como a vida. Se agente gosta da vida, tem que seesforçar para gostar de estudar,porque, sem estudo, a gente nãoé nada. Com estudo, está difícil;sem estudo, é muito pior.

Um momento tristeFoi quando o meu filho mor-

reu. Foi muito doloroso para mim.O primeiro filho a gente sonhamuito, né? Deus me deu umacoragem muito grande, porqueeu vesti ele e eu só não boteidentro do caixão porque era umcorpinho muito frágil, entendeu?Foi um momento muito, muitotriste. Vamos parar.

De um ponto a outro. Ummomento feliz.

Foi quando eu ganhei o meuprimeiro filho. Foi um momentomuito legal, mágico. O interes-sante é que eu tinha pavor deter um filho homem e, naquelaépoca, não tinha aquele negó-cio de ultra-sonografia. Quandoeu ganhei ele, eu não sabia seera homem ou mulher. Quandome disseram que era homem, euesqueci que eu tinha pensadonaquilo. Então foi um momentomuito legal.

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Acervo NECC

O casamento da minha filhatambém foi uma coisa muito bo-nita. Se eu pudesse ver e fazerde novo, eu faria. Hoje, a minhaneta não quer casar como a mi-nha filha casou... de véu e gri-nalda, aquela coisa de tradição.

A senhora tem fé?A gente sem fé, sem confiar

em Deus, não é nada, porque,se você confia, se tem esperan-ça de que tudo vai dar certomesmo nos sofrimentos, vocêsabe que um dia vai vencer. Senão vencer aqui, tem outra vida,pois esta é muito difícil. Semesse Deus, não somos nada. É afalta de Deus na vida do mun-do que faz acontecer isso tudo.Se eu tenho Deus na minhavida, jamais vou querer pisar noteu pé, porque eu sei que vaidoer igual ao meu. Falar de Deuse não viver Deus também nãoadianta, pois é uma coisa quevocê fala da boca para fora, masnão vive. Essa vivência comDeus está no nosso dia-a-dia,no nosso Sol, na nossa árvore,no nosso vento, no nosso tudo!Deus está em toda parte, e agente tem que deixar Ele en-trar na nossa vida. Mesmo cho-rando, a gente pode sorrir paraos nossos irmãos. Mesmo nãotendo muito o que comer, a gen-te pode oferecer para a nossairmã. Se a gente descobre esseDeus e leva Ele para a nossavida, tudo vai ser diferente.

Quando eu vim para cá, eudeixei a minha mãezinha e, umasemana antes, eu comecei a cho-rar. Mesmo depois, quando eu iavisitá-la e tinha que voltar, umasemana antes eu já começava achorar. Depois que a minha mãe

faleceu, eu fui uma vez lá e nãovoltei mais. As passagens enca-receram muito e eu não fui. Ago-ra eu só tenho três irmãos lá.Quando eu consigo uma linha detelefone, que é muito difícil, eufalo com meu irmão, minha irmãe uma sobrinha também.

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Alfriza é moradora da comu-nidade há mais de quarenta anos.Veio do Ceará em um pau-de-ara-ra, com dois filhos pequenos.

A ViagemEu passei nove dias e nove

noites andando no pau-de-ara-ra, dentro do mato. Era horrívelque era proibido, não é? Naque-la época, prendiam com essenegócio de trazer gente em ca-minhão, não é? Para passarnuma cidadezinha, tinha queabaixar a lona e todo mundo co-

AlfrizaRodrigues

de Souza

berto. É triste! Meus filhosagüentaram. Eu arrastei elespara cá porque eu não tinhacondições de ficar lá com eles.Isso foi em 1960.

Eu cheguei vindo de lá, meumarido já tinha feito uma cartadizendo que vinha... Aí, ele res-pondeu dizendo que não viésse-mos não, porque ele estava de-sempregado, mas eu não recebia carta. Meti todos eles dentrodo caminhão, sem dinheiro, semnada. Só paguei a passagem eme mandei. Sol, que era... para

lá não tem muita chuva e, nes-sa época, piora. Aí, enfrentei...Quando cheguei aqui, ele tomouum choque. Eu disse: “Toma queo filho é teu”. Ele disse: “Ah, euestou desempregado!”. Eu disse:“Então, meu filho, se é para mor-rer de fome, eu vou morrer aquijunto contigo e teus filhos”. Por-que lá se passa... Agora não, asituação lá está melhor, maspassava fome.

Quando eu vim de lá, eu trou-xe uma muda de roupa, o restoera tudo roupinha remen-

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 24 a 30

Acervo NECC

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem novembro de 2005

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dadinha. Hoje, eu digo à minhaneta: “Vocês querem roupa demarca, na minha época não ti-nha isso”. Cheguei ao Rio comroupa remendadinha, esti-cadinha. Quando eu cheguei emCaxias, para poder deixar o ca-minhão lá, porque ele não en-trava dentro da cidade, foi queeu fui trocar aquela roupinha.

Depois a minha mãe veio. Aminha família está toda aqui.Veio todo mundo.

Ele arrumou um emprego efoi trabalhar, porque eu tinhatrazido os filhos. Arrumei colé-gio, enfrentei... arrumei o colé-gio, botei meus filhos para es-tudar. Nunca me separei deles.Eu nunca tive uma falta numareunião de um filho meu.

Como é que era o Chapéu nes-sa época?

Era mato. Tinha uma casa...ali perto daquela outra, assimembaixo. Nessa época, só tinhamato, eram poucas casas. Nãotinha escada, eram só as pedri-nhas, você andando por aquelaspedrinhas. Para descer, não ti-nha a descida. Não existia. Ah,minha filha, todo mundo andan-do de pedrinha em pedrinha.

Minha casa era de estuque.Eu não tinha luz. Eu não tinhafogão. Eu cozinhava numfogãozinho de querosene, ilumi-nava com lamparina ou com vela.Depois, arrumaram uma luz aí,mas passava um dia com luz etrês sem, que era do falecidoLafaiete. E foi assim. Não tinhaágua encanada... A gente bebiaaquela água lá do Bicão. Vocêsviram uma agüinha pingando lána rua? Lavava roupa. Dentrodesse muro aí tem um poço. Do

prédio. É, para lavar roupa. Paracozinhar, era lá no Bicão. Parabeber, era lá do Bicão.

Na época desse negócio decasa de estuque... Ali tem aChacrinha. Vocês conhecem,não é? Ladeira do Leme. Lá eraproibido, o tenente não deixavaninguém fazer casa de tijolinho.Tijolo, de lajota nem botar laje,nem nada! Todas as que faziam,ele vinha e derrubava. Aí, quan-do eu comecei a minha, eu fizde tijolo... Aquela casa que euestou morando hoje fiz de tijo-lo, mas eles vieram umas seisvezes botar abaixo. Só não boteilaje... era de telha, mas vieramumas seis vezes botar abaixo.Nessa época, o Lúcio era presi-dente, Renée trabalhava aqui. OLúcio me deu um papel para eufazer, como se fosse uma ordempara eu fazer. Permissão. Quan-do foi uma das últimas vezes queeles vieram botar abaixo, eu játinha feito a parte da frente eestava fazendo a cozinha. Elesvieram botar abaixo. Nessa épo-ca, eu não sei se tinha oito ousete filhos... Eu disse: “Vocês vãobotar, mas, antes, os cabras devocês vão entrar e fazer as trou-xas das minhas coisas, que osenhor vai descer comigo maisos sete filhos para morar comvocê, porque eu não tenho ondemorar. Eu não vou levar nem sol,nem chuva com os meus filhos”.Aí, desceu doido e falou: “Essamulher é o diacho! Eu não ve-nho mais aqui, não.” Eu disse:“Amém! Pode seguir”.

Nesse dia, quando eles pega-ram o papel, eles levaram o Lú-cio preso. Foi para o Ministério,lá na Cidade. Ministério do Exér-cito, lá na Central. Aí, eu corri e

Eu não tinha fogão.

Eu cozinhava num

fogãozinho de

querosene, ilumina-

va com lamparina

ou com vela.

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mandei chamar a Renée. Eu dis-se: “Pelo amor de Deus, donaRenée, acode! Chama os homensaí que têm poder para tirar oLúcio, porque ele foi preso porminha causa.”

Dona RenéeMuito amiga! Amiga demais,

demais. Era uma pessoa... eratudo... para todo mundo! Hoje, sónão fala bem dela se você nãoreconhece aquilo que ela fez. Elafez tudo pelo povo do ChapéuMangueira, tudo! O que não ti-vesse ao alcance dela, ela ia pro-curar. Isto aqui, minha filha, sevocê entrar neste posto, era decima até embaixo só de remédioque ela arrumava. Hoje, vocêentra e não acha um comprimi-do para dor de cabeça. As crian-ças iam nascendo... Ela pesava ascrianças, dava enxoval para ascrianças, porque ela arrumava láfora também. Hoje, tem aquelefrio que deu aí e não apareceuum cobertor. Se ela estivesse aí,todo mundo tinha cobertor parase embrulhar. Ninguém faz con-ta mais de nada, ninguém ligapara nada. Você bate: “Estou comdor de cabeça, tem um remédio?”Respondem: “Não”.

Meus filhos foram tratados,porque tinha médico pediatra,tinha médico de criança. Ti-nham dois pediatras que eram:o Dr. Nelson, médico de adultoe criança e o Dr. Vitorino, queera pediatra. Vinham às quin-tas-feiras... Quarta, tinha o Dr.Silvio, que era médico de ges-tante. Até isso tinha!

Todo mundo adorava a Renée,porque tudo quanto estava aoalcance dela ela resolvia. Ela vi-nha ao médico, ela passava re-

médio, ela passava remédio paraas crianças também. Se ela vis-se que não dava jeito, ela man-dava procurar um médico parti-cular. Ela fez parto... Ah, umamaravilha! Uma maravilha! Elaera quase doutora. Ela terminouos dias dela junto com os índios.Não faz muito tempo que elamorreu. Ela trazia índio para cápara tratar...

Olha, eu vou te dizer que eutinha o livro da Renée. Ela es-creveu um livro, mas você sabeque eu perdi esse livro? Já andeipedindo a muita gente para dara vocês esse livro, mas não en-contrei quem tivesse. No livro,tem até o retratinho dela. Já per-guntei ao Lúcio se ele tem, por-que essas pessoas antigas com-pravam aquele livro dela paraajudar o posto. Ela não ganhavanada, ela trabalhava de graça.Hoje, o povo trabalha aí e ganhadinheiro. Ela trabalhava de gra-ça, podia ser madrugada, podia,ser a hora que fosse, que ela saíacom a luzinha acesa, velinhaacesa nas casas socorrendo do-ente. Eu lembro de tudo quantoela fez de bom aqui.

Ela não tirava nada para daraos outros, está entendendo?Defendia os outros para ajudar.Na época em que eu tive doisgêmeos, era no tempo dela. Aí,quando ela percebeu junto comos médicos que eram gêmeos...ela já tinha percebido, ela e essemédico, o Dr. Silvio. Eu me lem-bro que ali, naquela subidinha,tinha uma pedrinha, antes desubir para a mais alta tinha umapedrinha. Eu pisava naquela pe-dra, porque minha barriga esta-va muito grande. Eu pisava naoutra, e ela ficava da janela me

Meus filhos foram

tratados, porque

tinha médico pe-

diatra, tinha médico

de criança. Tinham

dois pediatras.

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pastorando. Aí, ela dizia: “Olha,ela vai ter duas crianças. Dr. Sil-vio, eu falo?” E o Dr. Silvio: “Não,não fala, não. Deixa ser umasurpresa. Está tudo bem com ela,ela está agindo direitinho”. Elefez isso.

Quando os meninos nas-ceram, eu tinha sete fraldas depano. Quando fez, assim, unsdias, tinha mais de trezentasfraldas. Ela pediu a doação. Veioa americana e deixou, mandoudeixar no posto um enxoval quesó você vendo! Aí, eu trouxe osmeninos, porque eu trazia parapesar todas as quintas-feiras, eela foi à dona Anita (não sei sevocês conhecem, que é assisten-te social da Igreja Nossa Senho-ra da Paz, em Ipanema). Ela fa-lou com a dona Anita: “Essamãe está precisando de ajuda,suas crianças não têm leite, elanão pode dar de mamar para ascrianças”. A Anita disse: “A gen-te vai ajeitar leite”. O leite vi-nha para o posto. Todas às quin-tas-feiras, ela mandava aquelaquantidade que dava para osbebês se alimentarem. Não davamuito, não, para não estragar.Ela avisava para os outros queestavam na fila esperando con-sulta: “Olha, não sou eu que es-tou dando, não. Eu só estou en-tregando”. É, porque o povo fa-lava demais! Porque em todaparte que tem a pessoa que aju-da, o povo fala mesmo, não é sóaqui no morro, não. É em qual-quer lugar. Ela ficou me dandoesse leite, esta ajuda, até osmeninos ficarem grandes. Tinhaesse médico, o Dr. Vitorino, queé o padrinho de um. Esse médi-co morreu novinho, ele teve trêsderrames. Ele vinha, consultava

os meninos e descia com um so-brinho meu para trazer os remé-dios, para subir com o remédio.Agora, não tem nada. Mudou.

“Meu filho, eu conheço issodaqui não é de hoje. Eu vi comoera isso aqui, e eu me sinto tris-te de ver um negócio desse” Unsquerem mandar mais do queoutros. Ninguém manda nada,ninguém manda na creche, nin-guém manda no posto, ninguémmanda na associação, aquilo alié do povo, dos moradores. Foramos moradores que fizeram. Opovo se unia, se comunicava;hoje, não.

MarcelaCada qual tem a sua opinião,

não é? Às vezes, a pessoa nãopode falar pelo outro, não é? Euadmirei até deles terem coloca-do o nome da creche com o nomeda comadre Marcela. Foi a donaRenée e a dona Marcela que tra-balharam juntas. Não sei se vocêchegou a conhecer a comadreMarcela... Ah, minha filha, eratão pretinha, mas tão... Ah, meuamor por ela!

A comadre Marcela foi umapessoa também muito impor-tante, porque ela caminhava tam-bém junto com Renée. Ela traba-lhou muito junto, era professoradesse jardim. Quem passava porela no jardim aqui, quando che-gava lá em baixo não precisava irpara o C.A, porque ela já ensina-va... a criança sabia ler!

Comadre Marcela é minhacomadre, é madrinha de batis-mo de um dos meus filhos, umdos gêmeos. Tinha o frei Marcosque chamava nós duas de a casae o botão. Para todos os efeitos,nós estávamos juntas e eu senti

Meu filho, eu

conheço isso daqui

não é de hoje. Eu vi

como era isso aqui e

eu me sinto triste

de ver um negócio

desse.

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demais. Ainda hoje, eu sinto sau-dades, falo da época em que agente vivia juntas.

FilhosSão mais de dez filhos. Você ia

para maternidade andando e iapegar o ônibus lá em baixo. Paravoltar, chegava lá em baixo e dei-xava, porque não tinha... Tinhaladeira. Nessa época, tinha a la-deira do Ari Barroso! Aí, deixavaali e a gente vinha andando.

Mora todo mundo aqui! Por-que faleceu um, não é? Porquemeu marido é falecido também...faz três anos.

Agora, são nove. Meu filhoadoeceu da cabeça e começou afazer besteira na rua. Botaramele lá no hospital de Bangu e lámataram ele. Eu estava muitodoente e não pude agir. Horrí-vel. No laudo do Souza Aguiar...porque chegaram a trazer parao médico... estava que tinha sidoespancamento. Aí, já viu! Vocêsozinha para resolver tudo, por-que meu marido era um homemtrabalhador, muito bom, masnão resolvia nada. Quem resol-via tudo era eu. Tudo, tudo, tudo,para os filhos... para tudo.

Saudades do PassadoTenho saudade das pessoas

se entenderem, porque, agora,ninguém se entende mais, nin-guém tem mais tranqüilidade.Você dormia de porta aberta.Hoje, você não pode mais. Vocêconversava ali até de madruga-da. Eu cansei de ganhar bebê.Meu marido trabalhava à noite,eu saía sozinha com a bolsinhado lado, ia para a maternidadelá em baixo e arrumava quemme levasse. Hoje, você não pode,

não pode, não tem tranqüilida-de e é isso que a pessoa precisa,não é? Não existe!

LazerEu vejo televisão. Só novela.

Tem esse negócio aí. Me perguntaquando é que começa e quandoé que termina, que eu não sei...Esses negócios de festa, pagode,baile. Nunca fui em nenhum!Nem olhar porque eu não gosto.Eu nunca dancei na vida, nempara diante, nem para trás. Eunão escuto música nenhuma,não. A luta é tão grande... Quan-do eu termino, minha filha, euestou tão cansada, que dou “Gra-ças a Deus”...

Netos e estudoCrio duas netas. Uma é a que

estava aqui,... a Mariana. Temuma de dez e uma de quatorze etambém é assim... dentro decasa! A mais velha não vai aopagode, não vai ao baile. Ela nãoquer, não é? É muito difícil elair. A mais nova é mais arteira,mas tudo bem. Estudam. Todomundo! É o mais importante, nãoé, minha filha, porque a pessoajá não tem nada... se não estudao que é que vai ter na vida? Nãosei ler, nem escrever. Só sei as-sinar meu nome. E brigo bem!Resolvo as minha coisas melhordo que se eu soubesse muito. Euentendo tudo e todo mundo meentende... é juiz, é tudo! Vou tedizer. Eu aposentei meu filho, oque tem problema. Ele teve me-ningite, não é? Ele não fala, elenão come com a mão dele. Ago-ra, há pouco tempo, cortou aperninha aqui e a outra aqui. Euaposentei ele, passei três anoslutando, com advogado, no

A comadre Marcela

foi uma pessoa

também muito

importante, porque

ela caminhava

também junto

com Renée.

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fórum. Teve um dia que eu leveium tombo no fórum, mas eu dis-se: “Eu vou me levantar e vouconseguir porque o direito édele”. No dia em que eu recebi asentença, eu fiquei sem voz por-que eu não tinha talento de fa-lar. Eu já estava tão fraca, quenão agüentava mais. Sem comeraté tarde! Naquele dia em queele me deu a sentença... ele dis-se: “Não precisa a senhora, asenhora manda uma pessoa apa-nhar”, mas eu mesma apanhei.Eu disse: “Eu mesma vou “.Quando eu recebi, eu disse:“Meu filho, me dá aqui, é meu eele tem direito!”... Fui eu quemaposentei meu marido, ele foi lásó assinar. Resolvo tudo! Tenhouma filha que vai ao banco co-migo no dia de receber o paga-mento... Mas para fazer compra...Quando é um coisa que só euposso fazer, como o cheque ci-dadão, porque eu recebo chequecidadão, fazer compras com ocheque, eu não posso mandarninguém... Só eu e minha car-teira. Eu gosto de fazer minhascoisas, eu trabalho às seis horasda manhã. Minhas netas entramno colégio às 7:15h, 6h eu es-tou de pé.

FéSem Ele ninguém vive. Eu vou

te contar, por exemplo, a histó-ria dessas fraldas descartáveis.Naquele dia em que a Tati trou-xe as fraldas... as primeiras queela trouxe não eram fraldaseram forro e eles não servempara ele. Eu não sei se ela faloucom vocês. Aquela não servepara ele, porque não tem com oque segure.

Eu tinha uma fralda naquele

dia, mas, como era forro, eu man-dei pedir emprestado na vizinhapara usar nele. Eu já usei no meufilho saco de plástico, de com-pra, fazendo de calça de plásti-co. Colocava um pano, porque eunão tenho. Ele ganha é o saláriomínimo, mas só as fraldas temdia de ele usar três porque elenão tem noção. Quando ele seacha mijado, ele tira o short ejoga fora, não fica mijado. E temo remédio dele. Agora mesmo, diaonze, era dia do médico dele. Eumandei a minha neta ir lá nomédico dele porque o médicoatende sem ele ir, porque ele ficamuito agitado. Ele disse: “ Eu vouacreditar na senhora”. Eu man-dei ela no meu lugar, porque eunão estava agüentando ir. Ela foi,ele passou três receitas e cadareceita que ele passa são trêscaixas de remédio. Ele passounove caixas de remédio e daque-les ali não se acha amostra grá-tis. É remédio controlado, sócompra com a carteira de iden-tidade. Aí você calcula... trêscomprimidos por dia. Quando formarcar, já não tem mais receita,

Acervo NECC

Alfriza, Prof. Nailton de Agostinho e alunos da FACHA na gravação

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tem que ir lá e eles dão a recei-ta para comprar.

Ah, Deus? Pois é, eu estouconversando aí com outra coi-sa... Se você não tiver fé em Deusnada dá certo para você, nada.Eu pedi para uma neta comprarum pacote de fralda: - “Compraum pacote de fralda para mim.”Ela disse: “Ah, eu vou ver”. Nãocomprou. Eu não ganho um pa-cote de fralda de ninguém aqui.A igreja... porque eu já pedi muitadoação, não vou mentir... já pedia Igreja, já pedi... Como eu te-nho muita fé em Deus, eu rece-bi um telefonema ontem dizen-do que eu fosse à igreja, que ti-nha uns pacotes de fralda. Aquiloveio...sei lá. Eu falei para o meusobrinho: “Olha como Deus éabençoado.” Eu sempre ensino aeles. Ele são adultos, mas talvezeles não entendam como a gen-te entende o que é que é Deus.Eu disse: “Olha como Deus ébom!”. Eu estava sem dinheiropara comprar as fraldas do me-nino, olha, vê se não é a voz deleé que iluminou a cabeça deles”.Eu ia perder o “Cheque Cidadão”.Mandaram me avisar que eu vouperder, porque as duas netasque eu crio, eu não tenho possedelas, a mãe delas tem outrosfilhos e ela está recebendo “Che-que Cidadão”. Quando disseramque eu ia perder para passar paraa menina, eu fui lá na Tutelar,ali perto da praça General Osório,não... das Laranjeiras. Eu fui pa-rar lá. Quando cheguei lá, ele dis-se que não podia, porque a mãedelas estava recebendo.. Se eupassasse a mãe delas ia perder.Aí, abaixei a cabeça e disse: “Deusestá me vendo! Vamos dar umjeito”. Aí, eu falei com a assis-

tente social do Palácio, e ela dis-se que eu fizesse os documentospara o meu filho receber o che-que. Ela me passou um telefone,e eu telefonei para uma Teresanão sei de quê... lá do Palácio. Eladisse que era só de zero a dezoi-to anos. Como ele tem trinta edois anos... Eu disse: “Para queeu vou atrás disso? Para eu meacabar? Ficar mais fraca? Deus vaime ajudar! Não vou passar fome,nem ele”. Porque ele dependemuito de ajuda.

FelicidadeEu não tive alegria. Nem na

vida toda também. Só trabalho,só a luta com filho, só médico,só... Minha filha, Ave Maria! Coma doença do meu filho, não temquem eu conheça. Eu fiz examenele até a raiz do cabelo. Aondeme mandavam, eu estava ali. Eurecebi ele, quando ele veio dohospital São Sebastião... destetamanhinho. Ele com um ano ecinco meses, eu punha ele assim.Recebi ele todo queimado dopescocinho até os quadris, comumas bolhas que eram desse ta-manho... do oxigênio. Um diretorda Rua da Passagem queria pro-cessar, e eu disse: “Não, eles meentregaram ele vivo, eu quero éuma pomada que sare isso aqui.Eu vou sarar meu filho”.

·

(Alfriza Rodrigues de Souzafaleceu em 07.08.08)

Page 31: Comunicação e Comunidade

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Edna Ferreirado Nascimento

Dona Edna nasceu em SãoCristóvão no Rio de Janeiro, maspassou sua infância em Concei-ção do Macabú, onde permane-ceu desde o seu primeiro ano deidade até o décimo, quandoretornou à sua terra natal. Foipara o interior morar com a avódevido à morte de seu pai e aopouco tempo que sua mãe tinhapara cuidar dela. Logo que sou-be da gravidez de sua mãe, tevede voltar para auxiliá-la na cri-ação de seu irmão.

Lembra de sua saída do cam-

po com saudade. Veio de trem e,mal saindo da cidade, já sentiacerta tristeza. Não tem muitaslembranças de sua infância,além de algumas brincadeiras nocampo, pois, ao retornar para acidade, em um mês já estavaempregada como babá no Leblone, desde então, não parou mais.

Chegando ao Rio, foi morarna Ladeira do Leme e, depois,passou pelo Tabajara e Morro dosCabritos, indo finalmente parao Chapéu Mangueira, onde morahá 62 anos. Chegou com 18 na

comunidade, numa época emque “havia muita gente e muitaajuda. Você ia fazer alguma coi-sa, e todo mundo se interessavaem ajudar. Hoje em dia, se vocênão tiver dinheiro para pagar,você fica na saudade”.

Recorda-se que, anti-gamente, o convívio na comuni-dade era muito mais agradável,todos se conheciam; atualmen-te, há muita gente nova e umarelação muito fragmentada.Quanto à relação da sua famí-lia, afirma que era muito boa,

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 31 a 34

Acervo NECC

Por Michelle AlvesEntrevista realizadaem junho de 2006

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porém difícil por causa dos tem-pos de trabalho que não coinci-diam, tornando os encontros ra-ros; ela só ia para casa de oitoem oito dias.

Não saía muito para se diver-tir, porque sua mãe, MariaDelice, também chamada deDona Iaiá, tinha um instinto ru-ral que a prendia mais em casa,não deixando ela ir nem aos car-navais. Argumentava que “gen-te da roça é diferente das pes-soas da cidade”. Quando chegouà adolescência, se deu mais li-berdade e mencionou o baile dasanfona, que adorava, dentremuitos outros que eram reali-zados. Na época, havia mais tran-qüilidade para ir às festas, ecomparou-as com as de hoje,destacando o empobrecimentocultural da comunidade.

Teve a oportunidade de es-tudar apenas por um mês, nocolégio Coccio Barcelos: tevede interromper para cuidar doseu irmão e logo depois sua pri-meira filha nasceu, tornandoinviável seu estudo definitiva-mente. Morou durante trêsanos com o pai das suas duasfilhas, Georgina e Graciana, e,atualmente, aos seus 78 anos,possui uma família enorme,com gerações que chegam atéaos tataranetos.

Sua casa era feita de estu-que; as de alvenaria vieramdepois, numa época em quetodas eram feitas ainda bemseparadas em meio a ruas sempavimentação. Buscava águanuma bica, onde atualmente éo Leme Tênis Clube, atravésdos latões que carregava emcima da cabeça. Expôs a difi-culdade em pagar a conta de

luz da época: alugava um“bicozinho do falecido Teófilo”e apresentou um documento de1970, onde constava o paga-mento à base de trabalho.

Havia plantações de café, eas pessoas criavam galinha eporcos, mas, de vez em quando,“o exército subia matando o por-co dos outros adoidado”, pois eraproibido. Muitas das matançaseram próximas ao Natal.

Lavava a roupa nas bicas, eo fogão era alimentado com alenha, depois substituída porquerosene, que buscava nasconstruções dos prédios nas re-dondezas. Acompanhou a cons-trução de quase todos os prédi-os do bairro.

Ao se depararem com o nomede Dona Renèe no documento,ela demonstrou sua afinidadecom a enfermeira que auxilioumuito a comunidade em sua for-mação e chegou a ser definidacomo líder devido suas reivindi-cações e a parceria estabelecidacom a Associação.

Dona Edna é uma das poucasmoradoras que recebe a Folia dosReis, que só vai às casas das pes-soas que os convidam. Eles “sal-vam” os lares com o canto de suaspreces, comentou mostrando seulivro referente à religião. Citoutambém a procissão em reverên-cia a Nossa Senhora das Graças,que saía da Babilônia e dava a voltano bairro, em romaria, acompa-nhada de uma banda de música,passando pela igreja do Rosário atéretornar à comunidade.

Acredita muito em Deus,“porque, se não fosse Ele, eu nãosei o que seria de mim”, confes-sou. Vai à igreja quando seu co-ração manda ou lhe convém. É

Buscava água numa

bica onde

atualmente é o

Leme Tênis Clube.

Page 33: Comunicação e Comunidade

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Quando chovia as

pessoas tinham que

se segurar que nem

gato para não cair.

católica, e diz que, atualmen-te, há muitos crentes na co-munidade, enquanto antiga-mente era repleta de católicos.Com orgulho, falou de seu bis-neto, que vai sempre à igreja,mas ainda é muito novo e nãoescolheu o caminho que irá tri-lhar. Freqüenta a igreja cató-lica e a evangélica.

Na parte cultural da comu-nidade, sua família teve repre-sentação, pois ela desfilava naala das baianas pela escola desamba local, Aventureiros doLeme, e seu genro foi quem com-pôs o melhor samba enredo daescola até hoje. Joãozinho ela-borou o Sinhá Maria. Com o pas-sar do tempo, algumas compa-nheiras faleceram, e ela foi per-dendo o entusiasmo em desfi-lar. Nos últimos três anos, nãoparticipou mais. Com saudosis-mo, desabafou que “agora nãotem mais graça”.

Nunca se identificou muitocom a política e não acha que osgovernantes fizeram muito pelacomunidade, pois há muitasobras feitas pela prefeitura porcima do que já estava pronto,sem falar nas obras que deixa-ram incompletas. Estrutural-mente, as mudanças são míni-mas. Como eles não querem fa-zer nada, podiam, pelo menos,subsidiar os materiais ou darempréstimos para as pessoasmelhorarem o ambiente e suasvidas, opinou.

Fez uma comparação entre ostempos passados e o de agora,mencionando os recursos que osmoradores têm hoje, pois, atépara se locomover, antigamenteera complicado, enquanto, hoje,há escadas, Kombi e moto-táxi.

Quando chovia, “as pessoas ti-nham que se segurar que nemgato para não cair”. Com o pas-sar do tempo, foi se acostuman-do a morar na cidade e só “saido Chapéu agora se for para ocemitério”, pois, em termos decomunidade, o Chapéu é um lu-gar muito conveniente, onde dápara se morar com tranqüilida-de. Tratando-se de educação, elaprefere a de antigamente a hoje,pois “há crianças, hoje, que dáaté medo de conversar: estãomuito desrespeitosas”.

As mulheres não têm muitotempo para baterem papo emconseqüência das tarefas decasa ou de seus trabalhos, mas,aos domingos, ainda há um con-vívio entre elas. Nunca gostoude bebida, porém não consegueabandonar o cigarro; nunca usoupílulas ou teve de fazer um abor-to. Não gosta de escutar músi-cas, mas, em compensação, es-tando com tempo, assiste às no-velas o dia inteiro: vai das duasàs onze se deixarem. Gostava defazer colchas de retalho, mas,como sua visão está muito ruim,teve de parar.

Quando perguntaram se gos-tava da rádio comunitária, res-pondeu, surpresa, que nem sa-bia de sua existência, pois, naparte onde mora, o som não che-ga. Concordou que pode ser útilà comunidade se for bem arti-culada. Só criticou um aspecto,“o problema é quando você nãoestá interessado em ouvir aquelamúsica e não pode desligar”.

Com tristeza, relembrou dofalecimento de uma vizinha que,abalada com a morte da filha,faleceu no mesmo dia, em meioao enterro. Elas eram suas co-

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Acervo NECC

Michelle e Edna na gravação da entrevista.

madres, madrinhas da Georgina,sua filha.

Desde sua chegada à cidade,só conheceu, por inteiro, o Pão-de-Açúcar, o Cristo Redentor e aIgreja da Penha por causa da di-ficuldade em pagar a passagemdos seus netos e bisnetos, já quenão gosta de sair sozinha. Acos-tumou-se bem à evoluçãotecnológica que, a seu ver trou-xe muita comodidade em deter-minados aspectos.

Com curiosidade, comentousobre o nome da comunidade,que dizem ter sido batizada pe-los antigos moradores devido auma mangueira plantada no altodo morro e, provavelmente, poreste ser mais baixo que aBabilônia, assim chamaram-no:uma mangueira simbolizando ochapéu do local.

Hoje, devido às circuns-tâncias, não trabalha mais, jáque “ninguém aceita velho paratrabalhar”, e fica em casa cui-dando das crianças ou vendo te-levisão. Passou por diversas ca-

sas em seu trabalho, sempre foibem tratada, e, hoje, muitos dosseus patrões já morreram.

Não possui nenhum sonhomais na vida. Cansada de sua ba-talha, diz que, agora, está “só es-perando a chegada da preciosa”.Sem motivação para as coisas, pre-tende permanecer em “sossegoabsoluto”, sorrindo confessou.

Encerrou a entrevista deixan-do sua mensagem às criançaspara que elas tenham mais juízoe vejam mais as conseqüênciasde seus atos: “parece que estãocegos”. Isso, para ela, é umaconseqüência do tempo, é umacaracterística das novas gera-ções, “pois tudo muda”e, hojeem dia, não se pode confiar emmais ninguém.

Hoje, sua neta, Edna, mora comos quatro filhos junto com ela. To-dos estão entre 10 e 15 anos.

·

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NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 35 a 43

Gibeon deBrito Silva

Acervo NECC

Natural da ParaíbaEu nasci na Paraíba. Cheguei

aqui com quatro meses. Chega-mos aqui em 1954.

Eu nasci na capital, JoãoPessoa. Tenho um irmão quemorreu reclamando de ter sa-ído de lá porque a gente mo-rava num bairro de classe mé-dia , bem na pra ia lá emTambaú. A casa era própria,era da minha mãe. Ele morreureclamando que sa iu daParaíba pra morar no morro,aqui, no Rio de Janeiro.

InfânciaA infância aqui era infância

mesmo, porque a gente tinha queusar da imaginação pra poder sedivertir. Não é como hoje em diaque as crianças vivem diante dumcomputador, videogame. Essascoisas todas, não. A gente brin-cava de filme épico. A gente sevestia de El Cid, de Dartagnan,do Zorro, National kid, essas coi-sas todas. A gente brincava des-sas coisas naquela época.

Tinha bem menos casas, e ascasas eram bem menores, eram

casas de madeira, algumas deestuque. As telhas da maioriaeram de lata mesmo, cortava latade vinte, não era nem zinco, eralata de vinte que cortava e bota-va no telhado. Eu me lembro: naminha casa, quando chovia legal,tinha que trocar a cama de lugar.Aí pingava em cima da cama,botava a cama do outro lado. Aícomeçava a pingar lá. Ficava umtira e bota a cama, era bem difí-cil. O telhado era baixinho. Erauma coisa meio braba. A gentemesmo passava um perrengue e

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem março de 2007

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Acervo NECC

Gibeon e Manuela na exibição do vídeo dele.

um aperto, que, hoje em dia, issoaqui é luxo pra gente .

A gente andava toda a comu-nidade, porque as brincadeiraseram mais livres, eram mais sol-tas. A gente brincava de pique1,2,3, bandeirinha, essa coisatoda. As brincadeiras da genteincluía toda a juventude. Brin-cando a gente corria isso aquitudo, subia nas árvores. Tinhaárvores de montão. Tinha árvoreem toda comunidade. Tinhacarambola, sapoti. Uma frutaamarela, que a gente chama detrapiá. Lá atrás do galpão, aindatem uma árvore dessa fruta, massó que ela foi ocupada por umaerva, e aí não dá fruta. Mas ti-nha manga, bastante manga ebananeira. Alguns vizinhos ti-nham cana. Mal crescia, a genteia lá na noite e passava o facãona cana do vizinho. DonaAmbrósia mesmo, dona Ambrósiaplantava o feixe de cana. A gen-te pegava a cana. A arte da gen-te era essa na época. Pegava umacana, no vizinho. Às vezes, acer-tava o telhado do vizinho ten-tando derrubar manga. Quantasvezes a dona Dionita expulsou a

gente de lá? Tinha um pé demanga na casa dela, eram aque-las mangas carlotinha,redondinhas, uma delícia!

LazerAqui teve três, quatro times

de futebol. Os times de futeboleram a diversão da gente. Ante-rior à minha geração, tinha oFlamenguinho, tinha o Unidos doLeme, tinha o Cruzada, que eralá de cima, e o Triunfo também.Mais pra minha geração foi quesurgiu o Embalo, que até hoje táaí. O Embalo era daqui do Cha-péu Mangueira. O Cacto era orival do Embalo, era o time ondeeu jogava. Tinha o Nacional, queera mais ali da frente, que a gen-te chama Beira do Mangue, e oEco, que era lá da Babilônia. Hojeem dia, a gente só tem um timedas duas comunidades, que é oEmbalo, e ele só joga na praia.

Os times daqui eram todoseles de campo. O Embalo, inclu-sive jogou com times que hojejá estão na segunda divisão: jo-gou com o Tomazinho, oGoytacazes, Araruama, jogoucontra o Colatina, que é time ládo Espírito Santo. Alguns timeseram de primeira e segunda di-visão, com estádio mesmo, fe-chado, com cobrança de ingres-sos. A gente saiu daqui muitasvezes pra se divertir assim.

Um dia, o falecido Bola cha-mou a rapaziada pra participardo mutirão. Ele foi em cima doArtur, que era uma liderança dajuventude, era o fundador doEmbalo, “Artur, vocês podiam daruma força pra gente no domin-go, pra participar do mutirão”. Elefalou: “Olha, a gente participadesse mutirão toda vez. A gente

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A cultura do Rio é

um pouco uma

mistura das outras

características do

Brasil e com influ-

ências estrangeiras.

deixa de ir ao nosso lazer praparticipar de mutirão. Só que éo seguinte: a gente trabalha avida toda pra botar água na co-munidade, pra botar luz, botarisso aquilo outro, mas nunca acomunidade, a associação, arru-ma um espaço de diversão pragente, pra juventude”. Essa re-clamação ele fez foi em 1978.Então foi fundado o Aventurei-ros do Leme, um espaço de lazerdentro da comunidade para osmoradores. Antes não havianada. A gente saía porque nãotinha opção.

Hoje, nós temos opções bemmaiores que antigamente, tan-to dentro quanto fora da comu-nidade. Mas o Aventureiros foio que abriu este espaço. Não ébem espaço, é uma agremiação,uma agremiação que oferece umlazer dentro da comunidade pragente. Antes era o Embalo, epassou o período que cada umsaia daqui pra viver a sua vidade lazer lá fora.

Eu, por exemplo, eu e minhaesposa, mais alguns que saíamcom a gente, íamos muito prosubúrbio, Rocha Miranda,Coléginho, Guadalupe, essesclubes todinhos da Zona Norte.Eram os que a gente freqüen-tava, porque, nesse período, aZona Norte, era o espaço delazer do Black. Do famoso BlackRio. Aqui na Zona Sul, era maisum som assim discoteca. A gen-te chamava de cocota. O modode se vestir era diferente, a lin-guagem era totalmente dife-rente. E nós, que moramos aqui,na Zona Sul, moramos aqui, nomorro, tivemos a felicidade deviver esses dois convívios. En-tão a gente viveu essa época boa

do Black Rio e a melhor época donosso samba, do pagode, do pa-gode que era feito de mesa, ospagodes do Cacique de Ramos.Essa coisa, a gente viveu dentroe fora da comunidade.

União de culturasO pessoal que veio aqui pro

morro, veio de várias regiões doBrasil. Eles vieram trazendo,claro, as suas culturas e foramse juntando, foram se juntan-do. Tanto que eu acho que acultura do Rio é um pouco umamistura das outras caracterís-ticas do Brasil e com influênci-as estrangeiras, principalmen-te do negro. A gente vê a influ-ência do que a gente chama dosoul, do funk, do hip hop, dosamba, essas coisas, tudo é cul-tura, vêm do povo negro. Entãoforam as características que sejuntaram. O negro que veio deMinas pra cá trouxe a Folia deReis e tinha bastante Folia deReis aqui na comunidade. Agente tinha três Folia de Reis.Jongo, até hoje tem gente quegosta dum jongo, dum calango...Então foi-se misturando issotudo com a convivência. Claroque a gente sempre viveu pró-ximo aqui dos bacanas, do pes-soal lá de baixo. Por exemplo, aprimeira música que eu ouvi doJames Brown, o primeiro disco,foi lá em baixo. Não foi aqui emcima. Foram pessoas lá de bai-xo que gostavam do blues, gos-tavam do soul, trazendo de foraos discos. A gente ouviu lá edepois a gente foi curtir na con-vivência da gente, no meio dagente mesmo. Época que o BigBoy e o Santos, começaram a fa-zer os bailes com essa mistura-

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A gente bebia um

leite que vinha da

Aliança Francesa,

vinha da França, um

leite que era doado

para as comunida-

des mais pobres

aqui no Rio.

da toda. Mas a gente não es-quecia o nosso convívio aqui.

A rapaziada aqui sempre vi-veu o surf, tanto desde a épocadaquela prancha de madeiritegrande até o que eles chamamhoje de body board, Durante amanhã, o cara ia pra praia, to-mar o banho dele na praia, cur-tir a praia e, à noite, ia para osbailes da vida. Têm uns que iampra gafieira. Quem pegou épo-ca da gafieira, tinha umas boas.Outros iam para o subúrbio, prosamba. Tem uma rapaziada da-qui que sempre foi chegada àEscola de Samba.

A gente tinha menos facili-dade pra algumas coisas. Se agente tinha uma vivência maissolta, mais liberada, naquela épo-ca a gente tinha mais inocênciae corria menos risco. Hoje em dia,a gente vê que o risco está den-tro da comunidade. Antigamen-te, a gente podia ir pra rua, pas-sar o dia todo na praia que agente não era criança de rua,não era menor abandonado. Sehoje em dia uma criança for fa-zer isso, vai ser tratado comomenor abandonado. Só que asdificuldades obrigaram a nossageração a lutar muito. A gentelutava. Hoje em dia, a gente vêessas crianças aí, aqui no mor-ro: eles têm, em casa, Mucilon,Nescau, Neston... A gente bebiaum leite que vinha da AliançaFrancesa, vinha da França, umleite que era doado para as co-munidades mais pobres aqui noRio. E a gente recebia. Era o lei-te que a gente bebia.

Dona RenéeEra Dona Renée quem con-

seguia esse leite. A comunida-

de sempre teve uma relação boacom o exterior, e era onde sefacilitavam algumas coisas aquipara a comunidade. Pra mim,quem começou tudo isso foidona Renée. Ela chegou aqui porvolta de 1952, 53. Eu já disseisso em outras entrevistas: seuma comunidade quiser crescer,antes de fazer uma escola, an-tes de fazer uma sede pra Asso-ciação, até uma creche, faz umposto médico. Faz um posto mé-dico porque é o seguinte: aquitudo cresceu a partir da donaRenée e a partir do posto médi-co que ela criou. Ela criou umposto médico, e esse posto mé-dico propiciou o crescimento res-tante. Os moradores daBabilônia freqüentam o PostoMédico da gente. A creche aten-de às duas comunidades da mes-ma forma. Mas, não foi sempreassim. O Posto Médico e as coi-sas que a associação ia criandoera exclusivamente pra a comu-nidade do Chapéu Mangueira. Ascoisas que foram criadas aquiforam importantes, mas elas sóforam possíveis de serem cria-das justamente por causa doPosto Médico. Ele que determi-nava para a Associação: “olha, sevocês quiserem resolver o pro-blema de diarréia das crianças,não basta só dar o remédio, vaiter que colocar elas num lugarmelhor do que elas estão viven-do. Se não é possível, resolverisso dentro de casa, a gente vaiter que arrumar um espaço, praresolver isso ai. Para as criançascomeçarem a aprender a se la-var, lavar as mãos, tomar banho,essas coisas todas”. Então, o Pos-to Médico é que determinavaaquilo que era prioridade para

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Acervo NECC

Gibeon e outros moradores durante o mutirão da Casa Grande.

Associação, independente danossa luta principal, que era pormoradia. Na época, a gente vi-via uma época muito braba, queera a época das remoções doCarlos Lacerda.

RemoçõesO Favela Bairro não é nada

mais que um projeto por que agente sempre lutou na vida toda,que era a urbanização de fave-las. E o que a gente queria nãoera o Favela-Bairro. A gente que-ria urbanização na favela, por-que eu prefiro a minha comuni-dade com o nome de favela, Mor-ro Chapéu Mangueira, mas quetenha as condições que o poderpúblico me permite, as condiçõesde uma convivência digna naminha comunidade.

Os fatos acontecidos aqui agente considera históricos, nãosó pra cá, mas pra todo Rio deJaneiro. Porque a gente acreditaque tenha sido esse fato quetenha derrubado a Lei da LeãoTreze, que não permitia a cons-trução de casas de alvenaria nacomunidade. Por volta de 1970,75, 76, uma senhora fez um ba-nheiro pra casa dela, um banhei-ro de tijolo, de alvenaria, e o te-nente que tomava conta daqui,veio e mandou ela derrubar obanheiro, que não podia fazercasa de alvenaria, que era proi-bido fazer casa de alvenaria. Elafalou que não era uma casa, eraum banheiro, pra, quando a gen-te fizer as nossas necessidades,o pessoal do prédio não ficar ven-do a gente ficar exposto aqui. Elevirou e falou pra ela: “Olha, asenhora me desculpe, mas vocêssão favelados, vocês têm que fa-zer numa latinha, num jornal,

enrolar o jornal e jogar lá parabaixo”. Ela falou “o Senhor nãopodia estar falando assim dessejeito com a gente, não! Não vouderrubar porque eu tenho auto-rização do seu Lúcio - o seu Lú-cio era presidente. Se o senhorquiser, o senhor chama ele lá praderrubar”. Ai ele foi lá no seuLúcio. Seu Lúcio falou “eu nãovou derrubar nada. Como é quevocês vêem um negócio desse efalam que vai obrigar a gente aderrubar a casa. Não, não vamosderrubar nada, não!”. “Então euvou levar o senhor preso!”. “En-tão você me leva preso”.

Aí ele foi levando o seu Lú-cio pra ladeira. Foi juntandoaquele monte de gente atrás. Aíforam pressionando, pressio-nando, pressionando... Chegoulá, ele liberou o seu Lúcio, masfalou que ia voltar pra derrubaro banheiro e derrubar mais al-gumas outras casas que tinhamfeito com paredes de tijolo. Ti-nham pessoas que faziam pa-redes, e embolsavam rapidinhoe depois diziam que era de es-

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Acervo NECC

Gibeon e Ana na gravação da entrevista.

tuque. Nesse mesmo período, agente participava da Pastoral deFavelas. Ela era bem forte nes-sa época. A Pastoral Sul junta-va todas as favelas daqui: Mor-ro Azul, Cantagalo, Rocinha... Ea gente discutia junto com aIgreja. Doutor Bento Rubião fa-zia parte do grupo que defen-dia a gente. A gente já sabiacomo se defender. Foi feita umareunião dentro da comunidadecom as lideranças: seu Lúcio, oBola, a Benedita. Eles fizeramuma reunião e procuraram osadvogados pra ver como ia de-fender a gente disso ai. Eles fi-zeram uma carta, umas trêslaudas de carta, era uma cartabem feita, e mandaram para ocomandante da Praia Vermelha,que era o comandante tambémdaqui do PO. Foi um moradorque servia na Praia Vermelha,o Tavinho, que levou a carta. Eleera ordem e comanda do coman-dante: entregou a carta emmãos. O resultado disso foi queele chegou aqui dizendo, nacomunidade, que o tenente ti-nha sido transferido lá pra Ama-zônia. Se o tenente foi transfe-

rido pra Amazônia ou não, agente não ficou sabendo, nãoimporta. Só que ele nunca maisapareceu aqui. Nesse mesmoperíodo, a doutora Eliana falouque a gente poderia construiras nossas casas de alvenaria,porque, se o governo fosse der-rubar alguma casa, ele teria queindenizar. “O morador poderiaser removido, sim! Mas aconte-ce que é o seguinte: eles vãoter que pagar o valor da suacasa, o que você gastou de mão-de-obra, o que você gastou dematerial, e transferir você praum lugar, onde você tenha asmesmas condições daqui. Então,se o Governo não tiver condi-ções de fazer isso, ele não vaiderrubar a sua casa, não vai re-mover”. Isso aí já era 80. Foiuma doença mesmo de constru-ção. Todo mundo saiu constru-indo de alvenaria.

Em 82, a gente conseguiueleger a Benedita comovereadora. Isso teve uma impor-tância até bastante razoável,porque ela criou, dentro da ges-tão dela, uma Secretaria de Fa-velas. O secretário de favelasdela era o Bola. Ele já fazia umtrabalho de conscientização, decriação de associações fora atédo Rio. Têm muitas associações,as associações que, hoje em dia,tem esse símbolo da mãozinha,o símbolo de união, tudo her-dado da idéia daqui. O Bola éque saiu espalhando, logo de-pois que a FAFERJ foi fundada.A Secretaria prestava um servi-ço de apoio muito importantepara as lideranças, as pessoasque queriam formar associação,pessoas que estavam com pro-blemas na associação...

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A gente passa hoje,

entra naquela

Creche, a história

dessa Creche foi

muito importante

pra gente.

Trabalho ComunitárioPra mim, o início do trabalho

comunitário foi por causa de umadívida. É uma dívida que tinha quepagar. Ah! Eu tô colocando umadívida assim porque foi o que mi-nha mãe deixou mais ou menospra mim. O meu pai fazia parteduma diretoria aqui, da Comissãode Luz. Nesse período, estava jun-tando a Comissão de Luz com aAssociação. Então ele, duma horapra outra, foi lá pra Paraíba, como dinheiro da Comissão de Luz. Odinheiro que era pra pagar a luzda comunidade. Nesse período, aAssociação ficou sem Presidente,ninguém queria assumir porquecomo ia responder pelo resto queficou? A Benedita aceitou assu-mir. Ela assumiu a Comissão deLuz. Foi lá pra acertar tudo e co-meçou a trabalhar. Aí minha mãevirou pra mim e falou “olha, vocêpode dar uma ajuda lá à Benedita.”- Eu tinha 17 anos na época.“Você pode dar uma contribuiçãopra ela, pra pelo menos, limpar onome da nossa família.” Eu come-cei a trabalhar com a Benedita comessa intenção. Mas aí a gente foipegando aquelas coisas da políti-ca, foi entendendo determinadascoisas. Nesse mesmo período agente recebia muito material doseu Lúcio, do Bola, que faziamparte do Partidão. A gente foi jun-tando o que lia com respeito àpolítica. Eles mandavam pra gen-te muitas questões teóricas docomunismo pra gente ler. E a genteestava vivendo aquilo ali, mais oumenos na prática, a gente estavavivendo ali, não era só a conta daluz da gente, na Associação. A gen-te também estava vivendo, nessaépoca, a questão das remoções evivia, nessa época também, a ques-

tão da Ditadura. Nessa época, agente tinha algumas pessoas, in-clusive, que vinham se esconderaqui na comunidade. Então issofoi despertando uma consciênciana gente, além da questão da éti-ca, da questão da família, essasquestões todas... A gente foi ven-do também e aquecendo na gen-te a necessidade da luta pelasmelhores condições de vida nacomunidade. A gente foi juntan-do tudo e começou nesse período.

ExemplosA gente seguia as orientações

e admirava a postura, além da for-ma de atuar, do Bola. Se hoje eleestivesse vivo, ele não perderia pranenhum desses sociólogos queestão por ai, colocando um montede coisas que, na realidade, nemviveram. O Bola foi a principal pes-soa, mas a gente também pediabastantes orientações ao seu Lú-cio e à Benedita, que, se a gentefor colocar assim, é a política departido. Eu fui três vezes presi-dente da Associação, fui uma vezDiretor-Social, Secretário Interi-no, Secretario Geral e fui Vice-Pre-sidente do conselho Fiscal daFAFERJ. Tudo encarreirado por es-sas influências.

CrecheEu acredito que a gente tenha

feito uma das últimas coisas prin-cipais dentro da comunidade. Agente passa hoje, entra na cre-che. A história dessa creche foimuito importante pra gente. Eume lembro que, ainda pequeno,minha mãe tinha problema de nãopoder trabalhar fora. Minha mãe,que era uma excelente costurei-ra, nunca pôde trabalhar pra ne-nhuma fábrica, porque ela tinha

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A gente começou a

mudar a geografia

da comunidade,

com aquele dinhei-

ro. Que era pra

fazer a Creche.

que trabalhar em casa porque ti-nha que tomar conta dos filhos.Então ela falava que uma crechefaltava. Um dos sonhos dos dire-tores antigos, dos presidentes an-tigos, era exatamente a constru-ção de uma creche. E a gente con-seguiu realizar a construção des-sa creche. Janeiro de 89, aBenedita trouxe aqui o cônsul doCanadá, e a gente viu que o côn-sul ia fazer alguma coisa aqui nacomunidade. A coisa que a gentemais admirava era aquele cônsulbranquinho, no meio de trêsnegonas: a Benedita, a esposa delee a cunhada dele. Três negonasde 1 metro e 80 quase. A Beneditafalou que a gente tinha feito isso,que a gente tinha feito aquilooutro. A gente fez a Casa Grande,a gente fez o Galpão de Artes, agente fez o Posto Médico, a gentefez isso e aquilo outro... Sobrouuma brechinha e eu falei pra ela!“Benedita, você está falando procara que a gente fez isso tudo ai,que a gente tem tudo isso ai, elenão vai dar nada pra gente!”. Elafalou: “Ele só vai dar porque a gen-te fez isso! Se a gente não tivessefeito, ele não ia dar”. Aí a gentefez o projeto, mandou pra Peque-nos Eventos, do Canadá. Não es-tava esperando muito, mas, de re-pente, veio a verba de lá. Acho queforam, primeiro, vinte mil dólares.Aquela época era época da infla-ção Então a gente recebeu aqueledinheiro. Olha! Vocês não sabemo que a gente fez! A gente come-çou a mudar a geografia da co-munidade, com aquele dinheiro.Era pra fazer a Creche, então agente respeitava direitinho o quetinha que realizar pra Creche. Masas aplicações... A gente comproucano, começou a fazer mutirão, a

gente pagou mão de obra. A gen-te fazia mutirão aqui de juntarcem, duzentas pessoas. Aca-bamos com as valas. E fazendo aCreche. Na realidade, o dinheiroque ele deu, foi pra fazer uma sala.Quando veio a prestação de con-tas da gente, foi até uma senhoraque veio, ela ficou boba. Ela falou“Não, gente, essa verba era prafazer uma sala e vocês fizeram umprédio!”. Aí a gente falou: “aindabem que a gente fez um prédio,tá tudo aí prestado conta direiti-nho, você pode ver”. E nós conse-guimos terminar. Depois a genterecebeu mais quatorze mil dóla-res, que vieram de uma institui-ção no Canadá. O Ricardo Gouveiaque era Coordenador da Arquite-tura Comunitária da Santa Úrsula,que prestava assessoria pra gen-te na construção da Creche, foi praAlemanha, levou o projeto e,quando voltou, voltou com essaboa resposta. A gente terminou aprimeira parte da Creche, e, de-pois, a gente teve a ajuda aqui deuma senhora que mora aqui noLeme, dona Naná Sete Câmara. Elaacabou de fazer o acabamento pragente, e a gente fez um projeto,com o Viva Rio que propiciou agente conseguir aparelhar, juntocom a dona Naná Sete Câmara.

Gerações FuturasAlgumas coisas eu vejo com

bons olhos, mas a maioria eu nãovejo com bons olhos. Uma coisacheguei à conclusão: essa gera-ção dos meus filhos, da minha fi-lha, vai ser uma geração maisconservadora que a nossa. Elesnão vão permitir que os filhosdeles estejam liberados pra al-gumas coisas que a gente libe-rou. A gente viveu uma época em

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A gente não segue

mais o nosso pa-

drão comunitário,

a gente não segue

mais um padrão de

província. A gente

segue um padrão

internacional.

que a gente chegou à conclusãode que era proibido proibir. En-tão a gente tá tendo um retornoao conservadorismo. Só queacontece que é o seguinte: elesestão indo sem uma caracterís-tica boa da minha geração, queera liberal, mas, em compensa-ção, era aberta para as coisas. Nãose fechava naquele mundinho ali.Então é uma geração que vaisofrer mais que a gente. Tem aoutra parte que não vai ter comose recuperar, porque, embora elavá ser uma geração mais con-servadora, vai ser uma geraçãomuito mais alienada que a nos-sa. Isso eu vejo de uma formanegativa. Têm algumas coisasque a gente tinha esperança deque fossem resolvidas pela ge-ração posterior, pois a gente jáestá largando mão de resolveressas coisas. A gente está ven-do que quem está vindo atrásnão vai ter peito de resolver,principalmente essa questão daAssociação de Moradores. Agente tem influência hoje emdia que, na minha época, nãoteve. A gente tem influência dotráfico, a gente tem influênciada política e a gente tem influ-ência da Igreja.

A gente não segue mais onosso padrão comunitário, agente não segue mais um pa-drão de província. A gente se-gue um padrão internacional.Então o individuo é obrigado aconviver, hoje em dia, com umpadrão que não está ao alcancedele. E, se tentar globalizar, con-forme estão fazendo, vai ser pre-judicial pra gente, porque é, nes-sa hora, que a gente vê que agente tem mais cultura, a gen-te tem mais cultura no sentido

de folclore. Essas questões to-das a gente tem mais que osoutros povos.

Jornal ComunitárioA gente tinha O Chapéu! O

jornal que a gente criou em1979, criado pelo grupo jovem.Uma forma alternativa de se co-municar. A gente lia o jornal dagrande imprensa. Alguns de nósliam, nem todo mundo lia. Al-guns passavam na banca e liama manchete. Da manchete fazi-am toda a história! A gente criouO Chapéu com a intenção de es-tar fazendo uma comunicaçãomais direta com o morador dacomunidade, mas a respeito danossa situação. Vários jornaisforam criados nas comunidadescom a mesma intenção. Aliás,havia até um intercâmbio entreesses jornais, entre esses gru-pos, a gente fazia um intercâm-bio com as outras comunidades.

Coisas Boas do PassadoA principal coisa do passado

que tá faltando é a solidarieda-de. Aqui, solidariedade era coisamais comum, mas já começa afaltar um pouco. A fraternidadetambém. Ela também não se dámais como antigamente. Outracoisa também é o respeito. Res-peito principalmente aos maisvelhos. Eu vou continuar acredi-tando que a gente tem muito aaprender com quem já viveu maisque a gente. A gente tem muitoa aprender, e, hoje em dia, a gen-te vê uma geração que está maispreocupada com o seu crescimen-to, sem ver que a gente precisapreservar os mais velhos.

·

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44

No dia nove de maio de 2005,numa tarde nublada, Jorge FariasCabral, o “seu” Jorge, nos recebeuem sua casa para um bate paposobre as lembranças de sua vidacomo morador da favela do Cha-péu Mangueira. Casado, pai de qua-tro filhas e com quatro netas, mo-rador da comunidade há 34 anos,carioca do bairro de Botafogo. Doalto de seus quase 75 anos de vida,ele nos falou, durante uma hora,das diferenças entre os tempos esobre a arte que mais gostava depraticar: a de escrever estórias.

Escrever, só por prazerHá dez anos que eu parei de

escrever. Há dez anos. Não es-crevo mais. Tá vendo minhamáquina? Eu não quero nadacom computador. Batia tudo namáquina de escrever. Tudo queeu via. Vou te dar um exemplo:minha avó, na época em que eraviva, eu era garoto ainda, liaaquela revista “O Cruzeiro”. Elalia aquilo, ela não lia, ela nãosabia ler, ela olhava as fotos, asfotografias, as figuras. Quandoela acabava de ler, ela me dava.

Eu lia, aquele trecho peque-nininho assim, aquela letrinhamiúda. Aí, daquele trechinhoassim, eu fazia duas, três pági-nas. Criava outros personagens,aumentava outros personagens,era assim que eu fazia. Depois,eu comecei a fazer da minhacabeça. O que eu pensava aqui,botava no papel. Eu ia trabalhar,estava trabalhando, pintandoparede, eu estava marcando umaparede, pintando, tava pensan-do no que eu ia escrever maistarde quando chegasse em

Jorge FariasCabral

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 44 a 48

Acervo NECC

Por Ana Cristina Arruda

e Tatiane RochaEntrevista realizadaem maio de 2005

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casa... Eu guardava no sub-cons-ciente, no consciente... Chegavaem casa, ó: tacava no papel e,depois, batia á máquina.

Tem um bocado aí guardado,mas eu já mostrei pra tantagente...Já fui até roubado! Umdia, emprestei pra uma garota aí.Ela trabalhava com um cineas-ta, rodou um filme aqui, de queaté participei, fiz umafiguraçãozinha, que um“cachezinho” não faz mal. Eupedi a ela pra mostrar para ele,dá uma olhada, fazer uma avali-ação, se valia à pena ou não.Depois que aconteceu isso, eudecidi não escrever mais. Minhamáquina “achou” de parar tam-bém, aí eu “achei” de parar. Oque eles vão fazer com aquilo,eu não sei. Se não tivesse utili-dade nenhuma, eles não iam fa-zer isso, né? Aí, acho que nãovale nada, pode queimar. Isso aíme desanimou muito; desde oano passado também esfriei.Agora, estou parado de escrever.

Pintar idéia, pinta. Tanto éque eu estou com uma estóriaaí pra terminar... Já está quaseno final. Tem 400 e tantas pági-nas, 430 e poucas páginas, qual-quer coisa assim. Eu já até es-queci... Fica jogada lá no canto.Mas eu gosto de escrever, tantode ler quanto de escrever. Masaí, é isso. A gente fica nessa luta,com a esperança de que Deusajude que a gente seja reconhe-cido, pelo menos reconhecido.Riqueza não carece, não, que agente não vai ficar rico mesmo.Dinheiro que é bom, nunca vem,não aparece (risos). Mas aí, agente vai, pelo menos, ser umapessoa séria. Um cara que seacha gente, por exemplo. Eu não

tive apoio de ninguém. SóNailton (Prof. Nailton de Agosti-nho Maia). Nailton sempre medeu apoio. Estou até em falta comele, tem muito tempo que nãoligo pra ele. Já me chamou duasvezes pra passeio e eu não fui.Mas também não pude, falta deoportunidade. Toda vez que eleme chama, o horário está meioimpróprio. Ele sempre me aju-dou muito, o Nailton. Ele já leua minha estória toda. Ficou unstempos lá, ele leu: “tá bom, suaestória está ótima”. Só ele falouisso, só ele. O resto? Ninguémse interessou.

A máquina de escrever, eucomprei essa máquina, não eranem minha. Eu comprei pra mi-nhas filhas, quando elas come-çaram a fazer o curso de datilo-grafia. Ela (uma das filhas) dis-se: “Pai, eu quero aprender aescrever à máquina”. “Tudo bem,eu vou comprar uma máquinapra você”. Aí, eu comprei. Elasaprenderam a bater, e eu “catomilho”. Eu não sei bater, mas dápro gasto. Mesmo catando mi-lho, eu vou embora.

Já procurei fita pra máquina,mas só tem negócio de compu-tador. A minha filha tem com-putador, mas eu não sei lidar comaquilo. Não consigo lidar comaquilo, com aquela peça... Meatrapalho, nem tento mexer, pranão estragar. Depois vai dizer quefui eu que quebrei.

O Nailton queria que os ga-rotos me ensinassem computa-ção, informática, né? Eu nãoquis, eu larguei, abandonei. Temlá um rapaz novo, moça nova,meninos que estão na flor daidade, aí tudo é mais fácil. Ago-ra, pra gente velha, já com uma

Pintar idéia, pinta.

Tanto é que eu

estou com uma es-

tória aí prá termi-

nar... já tá quase no

final. Tem... 400 e

tantas páginas.

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idade, nada é fácil, não. Tem quese conformar e ir levando a vida.Com doença, com tudo em cima,nós vamos embora!

Minha vida, minha lutaAqui no morro, eu fazia jor-

nal, fazia rádio, escrevia as ma-térias com o Gibeon (morador dacomunidade), apresentava, faziao jornalzinho lá na Facha, sónotícia local, só local, aqui dolocal. Naquela época, a gentepodia trabalhar mais à vontade.Agora mudou tudo aqui.

Meu nome na coluna do jor-nal (“O Chapéu”, jornal comuni-tário produzido pelos moradores)era a coluna do Jorge “Pipoca”.Eu era pintor e pipoqueiro. Tra-balhava na obra e, de tarde,quando saía, ia pegar acarrocinha que ficava na igrejae de lá mesmo saía e ia ganharuns trocadinhos. Mas eu nãovendia quase nada e desisti.Nem vendi a carroça, eu dei. Agente vai vivendo, se eu for tecontar tudo mesmo, Nossa Se-nhora! Aqui tem uma pessoaconversando, conta uma coisa, eisso dá pra fazer alguma coisa(escrever uma estória). Aí eusentava na máquina de escre-ver, começava a pensar, pensar,pensar e estava fazendo o queeu queria fazer. Eu tenho muitacoisa escrita, tenho um bocadode coisa escrita, está tudo joga-do lá no canto...

Eu escrevia sobre tudo. No-ticiário geral. O jornal era sobreas notícias da comunidade. Tan-to falava bem da comunidade,como “metia o pau” também (ri-sos). Mas era assim: a gentefazia tudo com vontade. A gen-te fazia a coisa na direção certa,

pra fazer um trabalho pra todomundo ficar satisfeito. Agoravocê não pode falar mais nada.O “Tiziu” (morador da Babilônia,comunidade vizinha ao ChapéuMangueira) estava com uns qua-tro horários pra mim. Pra que eleestá me chamando pra ir pra rá-dio. Ele pergunta: “Quando éque você vai aparecer?” Eu digo:“Não vou, não”. Não vou. Porcausa de quê? Vou ficar com aminha mão “presa” e não poderescrever o que eu quero. Voufazer recado pra estranho?Não. Aí, eu parei.

Eu fazia de tudo. Eu sou as-sim, desse tipo de gente. Estasala (sala da casa do seu Jorge,onde foi feita a entrevista) aqui,por exemplo, quem fez fui eu.Sem ter engenheiro, sem ternada, sem planta, sem nada.Tudo era eu que ia fazer. Semplanta, sem nada, eu levanteiaté lá em cima, tijolo por tijolo.Lá na laje, eu tive ajuda, tive quefazer com alguém.

Morei na Catacumba, depoiseu fui pra Senador Camará. Piordo que lá na Catacumba. Depoisfui pra Manguinhos. Até que lánão era ruim, não. Um aparta-mento, apartamento de pobre,né? Deu uma chuva lá, em 1972.Estava lá desde 1970. 72 deu umtoró d’água, que entrou águadentro de casa que foi quase noteto. Tive que tirar minhas filhascorrendo, pra botar para o andarde cima. Foi por aí.

A melhor favela da zona sulé esta aqui, apesar de tudo.Apesar de tudo, esta aqui aindaé a melhor favela. Eu criei mi-nhas filhas aqui, todo mundo.E, hoje, tem gente aí que temcriança pequenininha, que já

Eu fazia de tudo. Eu

sou assim, desse

tipo de gente...

essa sala aqui, por

exemplo, quem fez

fui eu.

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está casado, tem filho já, o ruimé que pega, né? Mas já faz par-te da vida. Eu, graças a Deus,tive só mulher. Mulher dá me-nos trabalho.

Todo mundo da família moraaqui. Não aqui em casa. Aqui emcasa, moramos eu, minha mu-lher e a Kika. O nome dela é An-dréia, o apelido é Kika. Essa é aque mora aqui, mas tem outrafilha que mora do lado de lá; temuma aqui nos fundos, casadatambém, viúva, o marido já mor-reu. E tem uma outra, mãe des-sa menina que está aqui (umamenina que entrou enquantoconversávamos e foi para o an-dar de cima).

Essa “branquelona”... é que opai dela é claro. Mas, é isso. Agente vai lutando, vai vivendo...mas, apesar de tudo, eu gostodaqui. É um bom lugar.

Pai disciplinadorAs minhas filhas com 10, 12

anos gostavam de passear, defesta, tinha aquele negócio denamoro escondido. Aí, quando ti-nha festa aqui no morro, elas pe-diam: “Pai, deixa eu ir na festa dofulano de tal?”. Eu dizia: “não”. Aí,chorava, pedia, implorava: “ah,pai...”. Eu dizia: “até tal hora, nãopode passar dessa hora. Quandovocês ouvirem o apito...”. Eu ti-nha um apito de jogar futebol.Eu era juiz, de vez em quandoeu apitava. Eu tenho o apito atéhoje, está guardado aqui, juntocom uns troços velhos. Aqueleapito, quando soava, todo mun-do saía correndo. Aquele quenão saía correndo, eu ia buscar.E aí, a ordem que eu dava, sedesobedecesse, chegava aqui eó... (gesto das mãos se batendo,

como se fosse palmadas). Masnão batia pra valer, pra machu-car, não. Dava na perna. Umapalmadinha só, pra aprender aobedecer. E era assim: meus fi-lhos foram “tudo criado” nesseritmo. Hoje, eu vejo criança quea gente fala e: “Ah! Vai práisso!”. Fala um monte de boba-gem, garoto pequenininho. Nos-sa senhora! Mudou muito, mu-dou demais. Conforme vai mu-dando, as crianças também mu-dam, os sentimentos vão mudan-do. É isso aí, menina! A vida nãoé fácil, não!

Saudades daquela épocaAntigamente, era tipo

mutirão. A pessoa ia fazer a casadele, aí: “Domingo vou montarminha laje”. Não precisava cha-mar, não. Todo mundo apareciana hora certa. Às vezes encon-trava com os amigos, que todomundo era amigo nessa época,né? Contava com as pessoas, iao dobro, às vezes o triplo. En-chia a casa dele (do amigo), degente pra fazer o trabalho. Hojeem dia, não tem mais isso; hoje,aqui, ninguém trabalha se nãofor pago. Se não for remunera-do, ninguém trabalha. Se vocêvai fazer sua casa, se vira. Voulá “puxar”, ajudar. Ajudar a fa-zer uma massa, virar concreto,essas coisas que tem lá (naobra). Antigamente, era melhor.Aquela creche, já dura, ó... Eutrabalhei desde a fundação, ali.Aí que desanima, sabe? Esse cli-ma me entristeceu muito. Nós,quer dizer, falo de um modogeral, ali tinha 150 homens tra-balhando e mulheres também,misturados, ajudando. E nós,que trabalhamos da fundação

Antigamente, era

tipo mutirão.

A pessoa ia fazer a

casa dele, aí: “Do-

mingo vou montar

minha laje”.

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até lá em cima, hoje não temosnem o direito de entrar. Elesbotaram, sei lá, o “poder” tomou,o dono, o “mais forte”.

Eu também já ajudei muitagente! Eu sempre procurei aju-dar todo mundo. “Fulano, vocêpode fazer isso prá mim?”. Trocaruma porta, trocar uma janela...fazer um banheiro. Vou lá, ia lá!Trabalhava, ajudava mesmo, seminteresse em nada. Tomava umacerveja depois. Uma cervejinhaé de lei. Era assim, todo mundo,era unido. Hoje, acabou isso tudo.Não tem mais aquela união quetinha, não. Hoje aquele tipo decamarada que tinha anti-gamente, não existe mais. Nãotem mais, não. Acabou. Temumas reminiscências.

Eu conheci Dona Renèe. Nãovou dizer que conheci profun-damente, porque, quando eu che-guei aqui, ela já estava, mas foimuito pouco tempo, uns cinco ouseis anos mais ou menos. Eu aconheci e trabalhei junto comela. Respeitei muito ela, porqueela não queria esse negócio dea pessoa discutir com ela. Elaenfrentava mesmo. Se ela nãogostasse do que a pessoa falas-se, aí o bicho pegava. Mas elaera influente, tinha muita influ-ência aí por baixo (fora da fave-la). Ela fez muito por este morrotambém. O posto médico, a igre-ja, ela lutou muito por isso. Ar-rumava verba na rua, doação defora (do país) também.

Quando tinha mutirão, elavinha bater na porta de cada um,chamando, intimando pra ir parao mutirão, qualquer tipo demutirão. Ela era braba! E era res-peitada, muito respeitada. Quan-do ela batia na porta: “Ei, acor-

da, vamos embora!”. Com panca-da mesmo. Quem estava dormin-do, tinha que acordar. “Ah! Euestou cansado, cheguei agora detal lugar!”. “Não tem nada disso,não! Tem que aparecer! Se nãoaparecer, vai se ver comigo!”. Elaera terrível mesmo! Foi ela que,praticamente, melhorou essemorro aqui o quanto pôde.

É, mas não tenho o que re-clamar da vida, não. Tenho o quereclamar porque sou aposenta-do, ganho uma “merreca’ de di-nheiro que não dá pra fazer oque a gente quer, mas tô vivo.Não estou com saúde também,estou meio balançado, mas fazparte da vida, estou ficando ve-lho mesmo. Estou ficando, não!Já estou velho! Porque com 74anos ninguém é mais novo. Jáchegou na terceira idade e estáchegando ao final. Só que nin-guém sabe quando é que vai sere não tenho medo.

·

A entrevista se encerra.Ainda conversamos um pou-co, a caminho do portão. Al-guns meses depois, ligo paraseu Jorge e a esposa me in-forma que ele está prestes afazer uma cirurgia. Na liga-ção, dona Celi conta que seuJorge está com a pressão alta,o que impossibilita o proce-dimento cirúrgico. Estimo-lheas melhoras e fico de ligardepois, para gravarmos a en-trevista com câmeras devídeo. Infelizmente, essa gra-vação não aconteceu. Seu Jor-ge nos deixou no dia 08/09/05. Em minha lembrança, res-ta a imagem daquele simpáti-co senhor, ostentando em seurosto as marcas de uma vidaconstruída no esforço pesso-al, acenando para mim. Na-quele momento, não penseique seria o último. Restou,também, uma lição importan-te: a relação estabelecida en-tre as pessoas é a herançamoral que devemos conservare transmitir para as geraçõesseguintes. A morte é a ruptu-ra dos laços entre os amigos,parentes e, a partir do momen-to em que se estabelece, nãotemos como resgatar o que sevai com a pessoa. Por isso, de-vemos alimentar e valorizar asrelações humanas, compreen-dendo cada um por aquilo quelhe é particular: as diferenças.

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Antes de vir com seu irmãomais velho para o Rio de Janeiro,Lúcio de Paula e Bispo, o Seu Lú-cio, morou em Curvelo no nortede Minas, “onde nosso presidentetem uma grande fazenda”. Nomeio do caminho, trabalhou du-rante três meses em Belo Hori-zonte como auxiliar de constru-ção civil, pois havia sido recomen-dado devido seu profissionalismo.Seu irmão era mecânico e, logoque chegou ao Rio de Janeiro, co-meçou a trabalhar na oficinaItapemirim, chamando-o pouco

depois para ajudá-lo, pois teria umsalário melhor do que recebia. Aoficina mecânica Itapemirim eraonde fica o Rio Sul hoje. Ficava aolado de um colégio de irmãs. Ape-sar de não entender nada de me-cânica, logo se adaptou às ordensdo irmão. Tinha 18 anos.

Em 1946, já estava traba-lhando com obras novamente emorou durante um período na pró-pria construção, que ficava na Ave-nida Atlântica com Duvivier. Foinessa época que ele conheceu aBabilônia e o Chapéu Mangueira,

pois ia aos forrós a convite dosseus companheiros de trabalho.Um dia, já gostando do lugar, sur-giu a oportunidade de compraruma casa, a mesma onde está atéhoje, desde 1950.

Antes de morar no ChapéuMangueira, ele construiu, juntocom outros amigos, em 1946, umlugarejo atrás do Pinel.Construiram as casas sobre ter-renos que lhes eram vendidos, gra-ças às madeiras que tinham aces-so nas sobras das obras onde tra-balhavam. Em 1947, mandaram

Lúcio dePaula e Bispo

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 49 a 54

Acervo NECC

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem agosto de 2007

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Acervo NECC

Lúcio e Ana na gravação da entrevista.

remover toda a favela antes mes-mo de ela ser batizada em meio àstrês Forças Armadas. Se a pessoadesmanchasse seu próprio barra-cão, eles davam as condições ade-quadas para o desapropriado vol-tar ao seu terreno e, caso não otivesse, era paga sua passagem devolta ao seu local de origem. SeuLúcio tinha comprado em 1947 umterreno em Vilar dos Telles, mas,naquele momento foi despejadoperto de onde hoje é a refinaria dePetróleo. Construíram e sanearamo local tornando-o um anexo àfavela da Alegria. Em 1949, fezum acordo com a Polícia Especi-al, que, em contrato, lhe permi-tia morar no terreno de Vilar dosTelles onde ficou até o fim do ano,quando foi morar definitivamen-te no Chapéu Mangueira.

Mudou-se com toda a famíliapara o Leme, exceto seu irmão, quesempre foi independente. As pare-des da casa eram feitas de caixo-tes de bacalhau, enquanto o te-lhado era revestido com pedaçosde latas de 20 litros. Improvisaram

o fogão com essas mesmas latas:não havia gás na época. Essas difi-culdades foram enfrentadas de for-ma menos penosa por seu Lúcio jáque, no interior, as condições erammais precárias. Quanto à luz, os demaior poder aquisitivo tinham lam-piões, mas, fora de casa, “você ti-nha que fazer igual vagalume, suapupila resolve o problema” dianteda falta de claridade.

Possui atualmente 43 netos,quinze bisnetos e dez filhos, es-palhados pela comunidade e nosubúrbio. Sua formação foi cató-lica e a transmitiu para sua famí-lia, que possui, hoje, alguns evan-gélicos. Quando era criança, “in-vés de ser crime, era pecado; en-tão todo mundo tinha medo de sercastigado”, Daí haveria menos cri-mes e mais tranqüilidade.

Com a chegada da Dona Renèe,enfermeira francesa que acabou setornando líder da comunidade, co-meçaram as organizações dosmutirões e, logo, formaram o co-mitê do Chapéu Mangueira, em1957, que viabilizou as reivindica-ções dos moradores, como a che-gada da água encanada, luz e es-goto. Houve um período em que aorganização procedia informal-mente até que, em 1960, resolve-ram fundar a Associação dos Mo-radores da comunidade e, em 1966Seu Lúcio se tornou o primeiro pre-sidente dela, legalmente eleito eregistrado. Sua secretária era aBenedita. Dava assistência às mu-lheres. O tesoureiro era o Bola. E aícomeçou toda a organização ne-cessária para se comunicarem comas autoridades.

Para as exigências por eles for-muladas serem atendidas, foramnecessários registros em cartóriopara, através de documentações,

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Os objetivos da

associação giravam

em torno do

homem, bem-estar

do homem, a sua

participação,

melhoria social e

cultural para levantar

a sua auto-estima.

legitimarem seus cargos na Asso-ciação e também terem o controledo que se passava internamente.Todo esse ritual burocrático con-tava com a presença do ServiçoSocial, que participava do pleitoeleitoral, e também da DelegaciaMilitar do Comando Leste, que vis-toriavam a documentação e mar-cavam as eleições para dois anosdepois do encontro, dando-lhestempo de se organizarem.

Havia uma D.P.O do Exércitosupervisionando as movimentaçõesno morro, e quando eram feitas aseleições, o tenente junto com aassistente social e o administra-dor regional apuravam os resulta-dos, marcando a posse da nova di-retoria. Para consolidar as organi-zações, eles entravam em contatocom as outras comunidades, atra-vés da FAFEG – Federação de Fave-las da Guanabara, no intuito deevitar qualquer tipo de remoçãodando reconhecimento às áreas.Se tornou vice-presidente desseórgão, levando consigo a Beneditae o Bola para assumirem outroscargos. Passaram a requerer o quelhes faltavam e a organizar con-gressos e seminários. O apoio daIgreja Católica e de advogados,como Sobral Pinto e Bento PiresRubião, foram muito importantesfrente às autoridades.

No período entre a fundação eregulamentação da Associação, foiinstalada a canalização de águacom auxílio da Mercedes Bens eCruzada São Sebastião, em 1962,no governo de Lacerda. Até então,buscavam água nas minas, inclu-sive no bicão que ficava ao fundodo edifício Montese. A luz, primei-ramente, foi disponibilizada paracem moradores pela Comissão daLuz, pelo seu maior poder aquisiti-

vo. A porcentagem que arrecadavano excesso da taxa cobrada pelalight investiam em projetos soci-ais, agindo paralelamente à Asso-ciação, até que, em 1966, o siste-ma elétrico foi ampliado a pontode atender toda a comunidade. So-mente em 1982, durante o gover-no Brizola, é que foi instalado osistema sanitário e o elétrico quese encontram em vigor. Nesse meiotempo, Dona Regina, na época re-presentante da Associação, come-çou a se envolver com os projetossociais desenvolvidos no território.Exemplo: o departamento femini-no, que levantava fundos atravésde várias formas para organizar ascoisas da comunidade.

Sua definição sobre a associa-ção é bem clara: “Os objetivos daassociação giravam em torno dohomem, bem-estar do homem, asua participação, melhoria sociale cultural para levantar a suaautoestima”, pois, quando eramfeitos projetos elaborados pelosórgãos municipais, eram dadoscontinuidade ou aperfeiçoamen-to ao que já estava feito porque,estruturalmente, os moradores seviravam por conta própria em bus-ca das melhorias.

Como exemplo, é o caso doschás beneficentes que o GeneralLott e a Teresinha Muran organi-zavam três vezes ao mês, funcio-nando, na verdade, como uma for-ma de estigmatizar os favelados,pois os recursos não eram vistosem produção enquanto a fama decoitados, alimentada por artigoscomo os de Ibrahim Sued por exem-plo, explicitava a inferio-ridade for-mulada pelas elites. Na época darevolução, a Fafeg tinha muita forçaem decorrência de não terem umasede fixa que viabilizava reuniões,

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Havia um cabo de

aço delimitando o

espaço autorizado à

construção, ultra-

passando esse limite

o cidadão seria reti-

rado a fogo e ferro.

pois todos os órgãos da socie-dade civil eram destruídos peloregime como os sindicatos esedes estudantis. As reuniõeseram feitas também na ABI eOAB, por exemplo.

É importante destacar a reali-zação de vários mutirões em todoesse processo, pois, através deles,foram erguidos posto médico, es-cola e diversas casas. Foi um meiode interação entre os moradores afim de buscar a melhoria do seuambiente e de moradia, que, mes-mo através da diversidade culturaldo local, com moradores de váriosestados e credos distintos, resul-tou em um ótimo trabalho. Antese nos intervalos, seu Lúcio e donaRenèe davam palestras para ins-truírem os trabalhos que estavamsendo arquitetados. Atualmente, aspessoas preferem realizar“mutirões de ofício”, ficando de-pendentes da manifestação alheiaem vez de colocarem a mão namassa. Ainda nasceu o poder pa-ralelo, tráfico de drogas ecriminalidade, que se articulouapós a ditadura militar, gerandoconflitos internos e dificultandoesse tipo de interação. É um sinto-ma conjuntural.

Em relação às queixas por par-te de moradores, criticando acorrupção que havia nas gestõesda Associação, tanto seu Lúcioquanto dona Regina afirmam tertudo documentado nas prestaçõesde conta e que nunca se benefi-ciaram com desvios de dinheironem nada referente à propina.Tudo era destinado para o bem-estar da comunidade.

Seu Lúcio resgatou de sua me-mória um momento em que che-gou às suas mãos uma arma cali-bre 32, encontrada nas mãos de

uma criança de doze anos no meioda comunidade. Seu procedimentofoi entregá-la na delegacia, ondeprotocolou o ocorrido, registrando-o na Associação. Trazer um casocomo esse para os dias de hoje tor-na-se algo muito distante, poisuma conduta dessa é praticamen-te inviável frente à situação que aviolência se encontra no Estado eos métodos que a polícia utilizapara reprimi-lo.

Um fato curioso da época, queaborda um tema muito discutidoatualmente, o aborto, era a pos-sibilidade que as mulheres ti-nham de optarem em fazê-lo gra-tuitamente ou utilizar o DIU atra-vés dos recursos oferecidos pelolaboratório de um americano nailha das Dragas.

Quanto à moradia muitos es-tavam passando por dificuldadesreferentes à demarcação dos ter-ritórios da comunidade, e outros se-riam removidos: 32 famílias, comose soube depois, devido à ocupa-ção do Clube da Aeronáutica, quereivindicava suas terras. Havia umcabo de aço delimitando o espaçoautorizado à construção, que elecomparou com a Cortina de Ferrona Alemanha. Ultrapassando esselimite o cidadão seria retirado afogo e ferro. Seu Lúcio se respon-sabilizou pelas questões burocrá-ticas debatidas na época, pois es-tava a par dos procedimentos le-gais graças ao conhecimento quefoi adquirindo através da Fafeg,sendo o principal articulador fren-te às autoridades assinando umtermo que não autorizava a expro-priação. Nos primórdios da forma-ção da comunidade, houve um fatoque amadureceu o conhecimentode seu Lúcio: quando os militaresderrubaram no Chapéu Manguei-

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Arquivo pessoal

ra cerca de 200 barracões alegan-do motivos disciplinares a fim deevitar a verticalização da favela edemarcaram os territórios, pois ti-nham a portaria que lhes dava odireito de policiar toda a área, queera considerada militar, adjacentemilitar e servidão militar.

As casas de alvenaria têm ori-gem em sua gestão, quando ummorador foi à Associação, commedo de se contaminar pela doen-ça do vizinho tuberculoso, solici-tando uma providência a respeitodo assunto. Seu Lúcio conseguiuuma licença junto a Recuperaçãode Favela, pois o Serviço Social nãoautorizava, e, desde então, a co-munidade passou a construir suascasas com alvenaria. Nessa época,dona Renèe, considerada uma es-pécie de coordenadora da favela naépoca, por ter desenvolvido umaconsciência reivindicadora nos mo-radores, começou a arrecadar doa-ções junto aos dominicanos para oprogresso da comunidade.

Foi também nesse período quese tornou fundador da Amaleme,que formava uma integração en-tre a Associação e a comunidadedo asfalto, deixando clara eexplicita a necessidade dessa tro-ca entre a comunidade e os edifí-cios do bairro, pois grande parte damão-de-obra na região era origi-nária da favela.

Em 1966 e 1973, houve casosde desalojamento por conta de pos-síveis desmoronamentos, mas, numato sagaz por parte de Seu Lúcio, asituação foi contornada através dosmoradores do bairro, que,conscientizados de que poderiamtambém ser afetados, muniram-sede recursos através da imprensapara solucionarem o problema: “ti-nha uma pedra enorme para cair

lá em cima, e eles preferem remo-ver a gente do que tirar a pedra.Nós podemos correr; agora, o pes-soal aqui do prédio não pode cor-rer não”, referindo-se ao local derisco para o síndico, que se portouadequadamente às circunstâncias.

Ao comparar a situação econô-mica da época da sua geração coma atual, chegou à seguinte conclu-são: “Antigamente, as coisas erammais acessíveis para se comprar, acondição de vida era melhor; atu-almente, você recebe um ordena-do maior só que o preço é muitosuperior ao seu salário”.

Sobre a estruturação das fave-las, disse o seguinte a respeito, emcontraste às elites e à postura demuitos governos: “a favela semprefoi considerada um problema; paranós, sempre foi considerada umasolução, pois, através da favela, re-solvemos o problema de moradia,de trabalho perto do comércio e daindústria, enfim onde existe uma

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infra-estrutura necessária”. Equanto à questão da remoção, queé tema atual, se referiu: “estão rei-vindicando fazer a Copa do Mun-do. Quando acontece isso não po-dem existir problemas sociais muitogritantes. Chegam aqui e se depa-ram com a favela e muita pobreza,e o que querem é esconder a situ-ação”. Os moradores vêm sendomuito “marginalizados”, pois nãohá nenhuma iniciativa ultimamen-te, mesmo tendo toda uma estru-tura para suprir novos projetos.

Com as áreas conquistadasapresentando uma estrutura cons-tituída, só lhes falta um projeto deurbanização com o auxílio finan-ceiro dos moradores, de acordo comsuas condições junto à Prefeitura,não deixando de ressaltar, que nasfavelas, o grande problema é “so-cial e não repressivo”. Demonstrasua lucidez em relação ao proces-so geopolítico que o Rio de Janeirovem atravessando há anos. Daí vemsua saudade da época em que lu-tava pelo reconhecimento de seuscompanheiros, pela cidadania deseu povo, “recordar é viver”.

Demonstrando seu conheci-mento e consciência política, seuLúcio comentou a respeito do po-der das superpotências atuais: “nósestamos aí com o poder constituí-do ameaçado pelo poder paralelo.Não é. O poder constituído, inclu-sive, é que está sendo a maior ame-aça para a paz mundial: os EstadosUnidos. Como é que pode, sempredando exemplo de democracia paranós e inclusive vocês vêem o se-guinte: Quais são os países quetêm base militar dos EUA? E quaissão os países que têm base militarnos Estados Unidos? São poucos,únicos. O Brasil está lá com a Ama-zônia... a Amazônia ocupada”.

Seu Lúcio sempre almejou vero povo nas eleições populares, ten-do participação no poder, ele foifundador da Associação de Mora-dores do Chapéu, participou da fun-dação dos partidos PMDB, PSDB ePT, colaborou na fundação daAMALEME, bloco carnavalescoAventureiros do Leme, foi preso emdecorrência de suas lutas e parti-cipou em diversas organizações noestado do Rio de Janeiro. “Só nãoconsegui ajudar o Batomuche, queafundou perto da minha casa, masa culpa não foi minha”.

Essa é a história de um líderque teve enorme influência naformação do local onde reside epara as favelas como um todo. Se-gundo Gibeon, outro moradorcontribuinte histórico-social nacomunidade, descreveu da se-guinte forma o Chapéu Man-gueira: “Uma população formadacom mais de 50% de nordesti-nos, que apresenta o espírito decoletividade em suas necessida-des, onde o mutirão é transfor-mado em instituição. Famíliasque, primeiro, faziam as casas esó depois discutiam a distribui-ção dos cômodos. Líderes que pen-saram a comunidade a partir dasaúde e educação preventiva,apesar da pouca escolaridade esaúde de alguns deles. Gente que,sem abandonar suas tradições deorigem, conseguiu se adaptar astradições locais e ainda contri-buir na formação de novas. Povoque não permitiu que os precon-ceitos eliminassem a auto-esti-ma, que se fez favelado-surfista,crioulo-roqueiro, paraíba-sam-bista e carioca-forrozeiro”.

·

(Seu Lúcio de Paula e Bisponos deixou em 21.12.07)

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Dona Antônia Francisca tem81 anos. Nasceu dia 24 de mar-ço de 1924, em São José dosCalçados, no Espírito Santo, epassou pelas cidades Bom Jesuse Apiacá antes de vir para o Cha-péu Mangueira, onde está há 60anos. É filha de Ana Franciscade Jesus e Salustiano e irmã deJosé, Sebastião e Joaquina, aúnica que ainda está viva nosseus 90 anos.

Seu pai era lavrador até mu-dar-se para Apiacá, onde se tor-nou marceneiro. Morreu nesse

período, quando AntôniaFrancisca era ainda muito jovem,e, como nessa época não existiaINPS, teve de interromper os es-tudos na quarta série para au-xiliar sua mãe em casa. Mas oensino era de melhor qualidadeque hoje, afirma. Sua mãe co-meçou a trabalhar colhendo café,algodão e arroz com ela na la-voura que tinham em casa, poisseu pai fazia de tudo para elasnão trabalharem nas “casas dosricos”, que, segundo ele, as es-cravizavam. Da terra, obtinham

todo o sustento da família, en-quanto seu irmão mais velho eraquem cuidava dela e vendia cer-tas mercadorias para ajudá-los.

A relação de sua família eramuito boa, eram muito reli-giosos e criados sempre à vistados pais. Lembra-se de uma fes-ta, em Bom Jesus, que ho-menageava o padroeiro da cida-de e seus pais iam. Passavam trêsdias fora, deixando-os na casade uma moça em Calçados: elatrabalhava com eles e era muitoamiga da família. Seu pai gosta-

AntôniaFrancisca

de Jesus

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 55 a 59

Acervo NECC

Por Michelle Alves

e Pedro PioEntrevista realizadaem março de 2006

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Antônia na exibição do seu vídeo.

Acervo NECC

va muito de dançar, sempre iaàs festas e levava toda a famí-lia. Dona Antônia era a únicaque ficava só “apreciando”: gos-ta de música só para ouvir. Asmúsicas eram à base de san-fona, os pares dançavam nãotão juntos como hoje e servi-am para beber café ou leite,enquanto a comida era bem tí-pica do local, como bolo, mela-do, broa de fubá, dentre outrasguloseimas do interior.

Criavam galinha e porco,então não se preocupavam emcomprar carne como hoje e fa-ziam açúcar e rapadura, quesupriam suas necessidades.“Foi uma infância com poucolazer, mas com grande facili-dade de fartura”, era “uma in-fância pobre, mas sadia” .Quando brincavam, era por per-to de seus pais e sempre debonecas, rodas de cantigas ecordas. Ela gostava muito. Se-gundo suas palavras, nessaépoca as crianças eram maisobedientes e , durante suasmudanças de cidade, nem sen-tiu diferenças, pois estava sem-

pre agindo de acordo com as or-dens de seus pais.

Quando tinha festa em ho-menagem a Nossa Senhora daSantana em Apiacá (ela já ado-lescente perto dos 18 anos), eraum rebuliço devido aos três me-ses de preocupação com as pre-parações para ir à missa e parti-cipar da festa.

Veio para a cidade em 1943,com uma amiga a quem auxi-liou no trabalho, mas não seadaptou: levou um choque aochegar, quando viu aquela cida-de enorme. Devido à saudade,retornou para Apiacá, onde co-nheceu Seu Lafaiete, com quemse casou depois. Eles se conhe-ceram ao acaso quando ele es-tava trabalhando em uma bar-raca de uma festa, e daí em di-ante, começaram a namorar.Pouco depois, seu Lafaiete seentendeu com a mãe e o irmãodela afirmando que tinha umacasa no Rio para eles morarem etornou-se responsável pela vin-da deles à cidade. Em 1945, che-garam ao Chapéu Mangueira, deonde não saíram mais.

Ao chegarem, ela se deu mui-to bem com a família do namo-rado e passaram oito meses nacasa do primo de Lafaiete, DonaAntônia nem sabia que ele mo-rava no morro, onde, na época,existiam pouquíssimas casas emmeio a um matagal onde hoje éo Chapéu. “No interior tem mor-ro, mas não pra moradia”, expôssua primeira impressão.

Alugaram um barraco oitomeses depois da chegada e logotiveram o primeiro dos oito fi-lhos. Não se deram bem com oproprietário e então construíramuma casa humilde de barro, de

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Hoje parece que

está cada um por si.

Tem toda a

melhoria, mas não

existe a mesma

tranqüilidade. Por-

tas ficavam abertas

a qualquer hora; de

madrugada os vizi-

nhos vinham e fica-

vam conversando.

Isso acabou.

estuque posteriormente, paramorarem por conta própria. Suafamília foi crescendo e, para darvazão, a casa também aumen-tou. Além dos seus oito filhos,dois deles gêmeos, tem atual-mente quinze netos e bisnetos.A mais nova está com 10 anos.

Os fogões, nesse período,eram alimentados à lenha e es-tavam começando a utilizar oquerosene para acender e man-ter o fogo. Ela se lembrou de umdia quando, sem querer, caiu nosono em certa tarde e quase pôsfogo na casa. Ao acordar, seu fi-lho estava com a panela cheiade fuligem e a cara toda preta.

Criava porcos, galinhas egalos , que, na época, SeuLafaiete levava para a rinha,pois ainda não era proibida. Ti-nham também uma birosca nacomunidade, que auxiliava nosustento da famíl ia . DonaAntônia não podia trabalharna “casa das madames” porquenão havia creche na época nemdinheiro para colocar alguémcuidando de seus filhos. Edu-cou sempre a família com es-pírito de união, estão sempreajudando uns aos outros, o quepara ela é o mais importante.

Nesse tempo, não haviaágua encanada. Seu Lafaieteera o encarregado de buscá-lano pocinho, donde trazia os la-tões em cima da cabeça, até odia em que Dona Renée apare-ceu na comunidade e, poucodepois, providenciou a água dis-tribuída em bicas espalhadaspelo morro. Ela lembra da difi-culdade que era para cozinhare lavar roupa, mas afirma quefoi uma fase de união, haviamais amor entre os vizinhos da

comunidade. “Hoje, parece queestá cada um por si. Tem todaa melhoria, mas não existe amesma tranqüilidade. Portasficavam abertas a qualquerhora, de madrugada os vizinhosvinham e ficavam conversan-do. Isso acabou”.

Organizavam muitos movi-mentos no intuito de buscarmelhorias para a comunidade,mas não havia a Associação ain-da nessa época, com seu siste-ma burocrático. As prestaçõesde contas eram feitas nachacrinha, onde é hoje a ladei-ra do Leme. Seu Lúcio, Seu Ag-naldo, Seu Bola, Seu Pereira,entre outros, já atuavam emnome dos moradores na forma-ção da comunidade.

Os caminhos eram trilhas ain-da, muitos escorregavam quandoestavam molhados. Não tinhafarmácia no Leme e, sem ser alojinha de verduras que havia nobairro, o comércio era todo daRua Princesa Isabel em diante. Asluzes eram lamparinas acesascom querosene e, com o tempo,passaram a utilizar lampião paraclarear a casa.

Depois, veio Seu Lafaiete coma instalação do primeiro pontode luz elétrica no morro, por vol-ta da década de 50, e a distri-buiu para os moradores, deixan-do Antônia encarregada pelacontagem, realizada através deum medidor da light, e do rece-bimento das contas pagas pelosmoradores. A luz era fraca, seuTeófilo colocou uma um poucomelhor depois, até o dia em quedona Renée, através de suas rei-vindicações na light, trouxe umaluz de qualidade para a comuni-dade. Dona Antônia afirma que

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as pessoas pagavam sempre osgastos pela utilização da luz nasmãos dela, que encaminhavapara a empresa toda a mensali-dade da população. O índice deinadimplentes era praticamen-te nulo.

Ao se referir à infra-estru-tura, lembrou-se de que, naépoca, era proibida a constru-ção de casas de alvenaria, masa casa de estuque construídapor seu Lafaiete era ótima enunca deixou a desejar.

Ao descrever o seu marido,nascido dia 30 de julho de1908, dentro do contexto deformação da comunidade, res-saltou que ele ajudou muito acomunidade: levava as pessoasdoentes no ombro até as ruaspara serem atendidas, arruma-va remédios, dentre outros be-nefícios. Devido à instrução pre-cária que tinha, ela acredita queLafaiete foi mal interpretado aotentar participar das questõespolíticas da comunidade: tinhaboas idéias, mas não possuíameios de levá-las adiante.

Quando eram organizados osmutirões, ela não presenciava,mas colaborava mandando lan-ches e refrigerantes. DonaRenée estimulava todos a tra-balhar. Seus filhos e seuLafaiete participaram carregan-do os materiais de construção ecolocando a “mão na massa”.

Dona Renée e dona Marcelaforam pessoas maravilhosaspara ela e para a comunidade.Quando teve seus gêmeos, afrancesa vivia em sua casa aju-dando, pois eles tinham nasci-do “sem peso”, enquantoMarcela educava muita criançana antiga creche, inclusive

seus filhos, na década de 50.Não podia ajudá-las, pois vivia,na birosca, cheia de tarefas.

Alguns dos seus filhos com-pletaram o segundo grau e ou-tros foram até a prova de ad-missão, realizada, antigamen-te, no intuito de ingressar osalunos na quinta série, que fi-nalizava o curso do colégio emque estavam. Devido ao seu tra-balho e ao difícil acesso às es-colas, não foi possível fazer to-dos concluirem.

Seus pais eram católicos. Elacarrega toda a fé estimuladaem sua infância até hoje e atransmite às novas gerações dafamília. Todo domingo vai a igre-ja, reza o terço em casafreqüentemente e afirma que,sem Deus, nada existiria. Falacom orgulho de um neto quemora em Belford Roxo, que, aos13 anos, já é freqüentador as-síduo da igreja Católica.

Dona Antônia sempre rece-be a Folia de Reis em casa, umgrupo religioso que havia na co-munidade e agora vem do mor-ro da Mangueira, para benzersua casa anualmente e trans-mitir um pouco de boas energi-as, através de danças, cantos epalhaçadas. Fazem apresenta-ções a fim de arrecadar dinhei-ro para a caridade.

Quanto ao carnaval , e lasempre gostou de assistir, masnunca foi de participar. Ado-rava os banhos de mar a fan-tasia que os integrantes dobloco Aventureiros do Lemefaziam quando desfilavam nasruas. Eram muito animados. Osdesfiles eram realizados naRua Gustavo Sampaio , noLeme, e na Arnaldo Quintela,

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Acervo NECC

em Botafogo, Seu Lafaietesempre saía fantasiado juntoa toda criançada.

A festa junina que a donaMarcela organizava era muitomelhor que as de hoje, poisela fazia as pessoas colabora-rem com comidas típicas. Na-quele tempo, esse tipo de fes-ta não era considerado cafonacomo hoje. Atualmente, elanão participa e diz que caiumuito a qualidade.

Ao perguntarem para elasobre as lendas da comunida-de, ela comentou que semprefalavam na existência de umlobisomem, que não havia adesconfiança dos moradoresem ser alguém da comunida-de, mas ela confessa que nun-ca o viu pelo morro.

Antônia, comparando o na-moro de antigamente com osde hoje, diz que é horrível a si-tuação e que está com muitapena das meninas que demons-tram um ritmo muito avança-do: viram mães muito cedo, poisnão aproveitam a infância nemescutam seus pais. Quanto àsmulheres em geral, acha queestão se tornando menos sub-missas: a voz das mulheresestá sendo mais ouvida queantigamente e estão tendomais espaço.

Atualmente, fica ouvindomúsica, adorava Altemar Dutra,na rádio, e vê as novelas e no-ticiários. Ao ser questionada so-bre a rádio comunitária da co-munidade, disse que é muitoimportante que ela transmita asnotícias, “mas não pode é ficarfalando qualquer coisa senãoincomoda os moradores”.

Concluiu dizendo que prefe-

re os dias de hoje aos de anti-gamente, pois as pessoas têmmais facilidade e acesso às coi-sas. Deixou sua mensagem àscrianças: devem estudar e darmais valor ao amor, pois ele émuito importante para se ven-cer na vida, e estimulou-as abatalhar por seus objetivos.

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NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 60 a 64

Natanael Silva é nativo domorro Chapéu Mangueira ondemora até hoje. Nasceu dia 26de dezembro de 1944, no hos-pital Miguel Couto, e construiutoda a sua história na comu-nidade. Filho de Genésio Silva,natural de São Pedro da Al-deia, e Zeni Silva, vinda deConceição de Macabú, mora-vam em uma casa próxima auma gruta, onde atualmenteé o Leme Tênis Clube. Devidoa um acordo estabelecido comos militares, foram transferi-

dos para a parte superior domorro, mas anos depois seri-am removidos novamente, de-vido às demarcações ter-ritoriais feitas pelo exército.

Conta que seu avô paternofoi um dos primeiros a povoar acomunidade. Era um escravovindo da África, que, chegandoao Rio de Janeiro, foi compradopor um Senhorio, que o levoupara São Pedro da Aldeia. Noengenho, conheceu sua mulhercom quem teve o pai deNatanael e, em 1888, através

da abolição da escravatura, foiconcedida sua liberdade. Foibeneficiado por seu superiorcom sementes, farinha, sal, umcavalo e um burro para sua sub-sistência: o suficiente para co-meçar sua jornada. Em 1889,veio em seu cavalo de São Pedroda Aldeia ao Rio de Janeiro, embusca de uma vida melhor. Che-gando à Igreja da Penha, localapontado de acordo com a des-crição, seu cavalo morreu, fa-zendo a viagem tornar-se maisdifícil. Continuou em seu burro

Natanael

SilvaAcervo NECC

Por Manuela Musitano,

Michelle Alves e Pedro PioEntrevista realizadaem maio de 2006

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Acervo NECC

Natanael e Isabel na gravação da entrevista.

com todos os suprimentos.Ao chegar aonde atualmen-

te é a Ladeira Carlos Peixoto,seu burro padeceu, e ele oesquartejou, colocando-o numbarril, e levou-o até o canto doLeme, junto a todos seus man-timentos. Ergueu, enfim, o pri-meiro barraco no Leme, ondeatualmente é o Forte.

Nesse período, o Chapéu ain-da não existia, e ele permane-ceu um bom tempo no local, vi-vendo de plantio e pesca atéque, em 1913, comunicaram aele a construção do quartel, fa-zendo-o retirar-se do local. Seisanos depois, seria inauguradoo Forte do Leme. Passou a mo-rar na parte superior da comu-nidade, até serem removidospelo Exército para uma casamais abaixo, devido às demar-cações da área ambiental fei-tas pelos militares. Acreditaque seu avô tenha sido o pri-meiro morador do Morro doLeme, que, depois, veio a sechamar Chapéu Mangueira.

Seu pai, Genésio, veio parao Rio depois da morte de suamãe, em São Pedro da Aldeia e,

ao chegar, trabalhou na cons-trução dos prédios no bairro pelaconstrutora Pederneira e Esta-ques Franques, indo morar pos-teriormente na comunidade.Nessa época, sua madrasta eseus dois irmãos faleceram, dei-xando seu pai “desnorteado”,restando-lhe apenas ele e suairmã Beth, que atualmentemora no Éden, em Nilópolis,com os seus 73 anos. SeuGenésio teve muitos filhos commulheres diferentes e trouxemuitas famílias, entre amigose familiares, para a comunida-de, colaborando para sua povo-ação. Ele é conhecido e respei-tado por muitos moradores.

Natanael estudou apenas oprimeiro grau, e a relação quetinha com seus pais era muitodifícil. O pai de Natanael agre-dia muito a mãe dele, e isso re-fletiu na criação de seus filhos,que cuidou com o maior cari-nho possível. É muito apegadoaos seus netos também.

Conciliava seu trabalho como lazer. Teve uma infância re-pleta de brincadeiras, como sol-tar pipa, pescar, jogar bola degude. Vivia na praia, no meio domato, no morro, junto com osamigos. Reuniam-se para pegarfrutas no morro e, quando haviaa festa dos americanos, todo dia4 de julho, no Forte, a molecadatoda entrava pelo mato por de-trás do Panteon e se divertia.Pescavam muito nas pedras, mas,de um tempo para cá, alguns“oportunistas” estão utilizandobombas para pescar em série,estragando toda a flora marinha,segundo suas palavras. Adoravapegar o bonde, meio de trans-porte na época, e lembrou-se de

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um episódio: ao pular de um de-les em movimento, bateu comcabeça no chão e ficou todo ma-chucado, fazendo-o parar noMiguel Couto. Utilizava o bondepara ir ao Tabuleiro da Baiana,no Centro da cidade, onde eramorganizados os grandes carna-vais do Rio de Janeiro.

Quando criança, adorava aSemana da Asa, quando os mi-litares vinham da base aérea deSanta Cruz realizar apresenta-ções, atirando em barcaças nomar através dos canhões. Lem-brou-se de que as pessoas ti-nham de abrir as janelas desuas casas devido à potênciados motores dos aviões, quepodiam estourá-las tamanhaera a pressão.

Assistia sempre às partidasde futebol do Flamenguinho doLeme e sempre brincava com osamigos no Choró, uma casaonde ficavam muitos carrosnazistas. Um dia, rasgou a ca-beça num rococó de ferro, noportão da casa, fazendo-o le-var 19 pontos no hospital Ro-cha Maia, que, na época, aindaera na Praça do Lido.

Natanael tinha 10 anosquando arrumou seu primeiroemprego. Comprava suas mer-cadorias na Praça XV e as traziano caminhão do Seu Sampaio,um senhor de 90 anos, atéCopacabana, onde era a garagemdos bondes e, atualmente, fica agaleria comercial na PrincesaIsabel. Trabalhou por muito tem-po como vendedor em feiras.Havia uma na Domingos Ferreirana época e vendia peixes nascomunidades do Rio, como, porexemplo, no Morro do Pinto.

Na década de 60, parou de

trabalhar nas feiras e passoupor diversos empregos, entreeles, na Paulino Angelo Ferra-gem, em Belford Roxo; entre-gou panfletos para um médico,que acabou não lhe pagando;trabalhou na firma Artal de alu-mínios e serviu o exército, ondetentou se engajar comoparaquedista, mas, devido a fal-ta de estudo, não lhe foi possí-vel. Saindo do exército, traba-lhou durante oito anos numacutelaria, Paulo MendesFerreira, na galeria Ritz e, ao ti-rar sua carteira de motorista,tornou-se caminhoneiro, pas-sando por alguns estados pró-ximos à cidade, levando sua fa-mília quando podia.

Ao se referir às obras na co-munidade, mencionou como eramais difícil antigamente, quan-do construíam os postes comconcreto e faziam todas as es-cadas. Demonstrou a im-portância do estímulo dado pelaDona Renée e Dona Marcela,pois estimulavam, através dosmutirões, as pessoas trabalha-rem. Marcela era a responsávelpela tradicional feijoada. “A ge-ração atual é privilegiada, nãofaz idéia do sacrifício que foiconstruir essa estrutura que acomunidade tem. Agora já têmtudo pronto”.

Referindo-se à questão re-ligiosa do local, frisou osincretismo que se encontrahoje, pois, antigamente, a Igre-ja Católica predominava nomorro, mas, com o tempo, fo-ram surgindo muitos evangéli-cos, sem contar o pessoal quese identifica com a linha afri-cana. Hoje, a diversidade é vas-ta. Muitos moradores são evan-

A geração atual é

privilegiada, não faz

idéia do sacrifício

que foi construir

essa estrutura que a

comunidade tem.

Agora já tem

tudo pronto.

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63

gélicos, inclusive sua família,que é cristã. Ele compõe algu-mas músicas em louvor à fé. Háhoje, no Chapéu, uma igrejauniversal e uma pequena sededa Igreja Católica, representan-do a antiga que foi destruída.

Ele e sua mulher têm trêscasas no terreno em torno dacasa onde moram. Umas foramcedidas para a Prefeitura alo-jar algumas famílias, e o pro-jeto Bairrinho, planejado nagestão do governo Conde, lheauxiliou ao conceder uma casaa sua família.

Quanto ao relacionamentocom os militares, os integran-tes da 5ª DL – Divisão de Levan-tamento, responsáveis pelomapeamento do território na-cional, vinham à comunidadefreqüentemente para monitorara demarcação dos territórios de-les: na parte superior do morro,há um terreno de cem metrosde área militar, junto à área depreservação ambiental.

Na década de 50, pegoufogo em grande parte da matae Seu Natanael contribuiu noreflorestamento junto ao seupai. Buscavam no Jardim Bo-tânico mudas de melancia,jaca, manga, entre outras ár-vores e frutas, no intuito dereerguer a floresta da comu-nidade; no entanto, muitosnão sabiam lidar com a terrae colhiam as plantações deforma inadequada, sendo per-didas com o decorrer do tem-po. Anos atrás, eles criavamgalinhas e porcos para se ali-mentar, tinham um cavalo noqual andavam pelo morro e umbode, que colocavam na praçacom uma charrete, para as

pessoas passearem e lhes ren-der algum dinheiro.

Ao perguntarem sobre asfestas, Seu Natanael mostrou-se desinteressado no assunto,pois sua criação foi feita cominfluências da Igreja Universale, em conseqüência, fez ape-nas um breve comentário so-bre as festas à fantasia queexistiam, os bailes da sanfonae os bailes funks atuais, masnunca gostou de nenhum de-les. Quanto às lendas, nuncaacreditou em nenhuma, apesarde ter escutado falar sobremuitas delas na comunidade.

Antigamente, ia muito ao ci-nema local. Era amigo do por-teiro, que o deixava entrar, eadorava assistir aos filmes doZorro e de faroeste no Cine-Danúbio. Tinha também o CineLeme, que era em cima daMarios e depois virou PizzariaMarios. Nas proximidades, ha-via a Cantina Sorrento, ondevendia os peixes, lagostas e pol-vos que pescava junto com oLourão, seu parceiro. Tem ami-zade em diversas comunidadesdo Rio e, sempre que é chama-do para churrascos e reuniões,tenta comparecer.

Nunca participou de nadarelacionado à política e temsuas desavenças com aBenedita: quando estava de-sempregado, pediu que ela nãocortasse sua luz, que, na época,era paga por cabine. Ela nãoouviu seu apelo. Comentou so-bre a ascensão política dela, que“só usou a comunidade e a As-sociação para poder subir”, en-quanto Seu Lúcio defendia osdireitos da comunidade e até foipreso uma vez por isso.

Na década de 50,

pegou fogo em

grande parte da

mata, e Natanael

contribuiu no reflo-

restamento junto

com seu pai.

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Acervo NECC

Natanael e Isabel na gravação da entrevista.

Na época da ditadura, mui-tos amigos seus foram perse-guidos. Comentou sobre a cen-sura, que reprimia a liberdadede expressão, dando, comoexemplo, essa entrevista, quenão seria dessa forma se fossedurante a ditadura. Em 64, es-tava no Exército e lembrou-sede um caso: estava de sentine-la e deu uma rajada de metra-lhadora para o alto quando pas-sou o filho de algum superiorgozando com a sua cara. Nãoteve repercussão.

Entre os presidentes quegovernaram nosso país, ele temsuas preferências: Jango e Jus-celino. Não é a favor de gre-ves, nem dos movimentos or-ganizados pelos Sem-Terra, erecordou quando Lula saiu dacadeia em 1980, deixando mui-tos caminhoneiros e carretei-ros na miséria.

Diante a evolução tecnológica,mencionou a sua fácil adaptaçãoe até comentou que “não querotv de plasma, eu quero tv degosma”. As tvs chegaram na dé-cada de 70 à comunidade. Antes,eram de válvula, gastavam muitaenergia, até a chegada das tvs“transistorizadas”, que, na épo-ca, poucas pessoas possuíam. Orádio chegou bem antes. Lembra-se de quando utilizavam a galenapara sintonizar as emissoras.

A comunidade já recebeuauxilio de algumas institui-ções e mencionou o períodoentre os anos 80 e 84, quan-do a comunidade recebia lei-te. Ari Barroso era morador domorro e colaborava nesse pro-jeto, “mas aí apareceu o De-putado Túlio Simões e come-çou a vender os tíquetes fa-

zendo pessoas cadastradas fi-carem sem leite”.

Em relação ao tráfico nacomunidade, ele diz que há umrespeito por parte dos crimi-nosos com os moradores dolocal, mas a polícia não temnenhuma consideração com apopulação pois entra na comu-nidade atirando sem a menorrestrição, fazendo os morado-res se apavorarem.

Sempre valorizou muito suafamília, nunca traiu sua mulher eestá com ela há 40 anos, apesarde, antes, ter se relacionado comvárias mulheres e numa delas terfeito um filho que não assumiu.Seu filho mais velho atualmenteestá com 39 anos e o mais novo,com 20. Todos têm estudo ou pra-ticam algum esporte.

Ao responder aos entre-vistadores, por que, com tantashistórias, não se aventura a es-crever um livro, ele respondeu:“até que poderia, mas cadê omoney. Eu tenho até músicapara gravar”.

·

Page 65: Comunicação e Comunidade

65

Isabel Vieira da Silva nasceuem Minas Gerais, mas veio bemjovem para o Rio de Janeiroonde passou a morar na ruaBarão de Petrópolis, no Rio Com-prido. Aos 12 anos, começou aexercer o seu primeiro empre-go numa fábrica de jóias, na ruaEstrela, perto de sua casa, emfrente a atual FAET, onde faziao acabamento dos cordões evendas na joalheria.

Ao acaso, num dia de chuvaem que estava na praia doLeme com suas amigas, conhe-

ceu o Natanael, atual marido,e, a partir daí, a insistênciadele em procurá-la acabouunindo-os. Nessa época, elatrabalhava como bordadeirapara o carnavalesco EvandroCastro Lima, companheiro deClóvis Bornay, e seu marido, noLeblon, em uma loja de ferra-mentas, como comerciante.

Em 1966, após seis meses denamoro, acabaram se casando,ela com 17 anos, e ele com 22.Isabel foi morar junto a ele noChapéu Mangueira, em uma

casa de tapume recémconstruída por ele, no topo domorro. Os dois tiveram a opor-tunidade de estudar só até o pri-mário, pois, devido às necessi-dades, começaram a trabalharmuito cedo.

A família do Natanael era deCabo Frio e veio para o Rio quan-do ele era ainda bem pequeno,mas sua madrasta faleceu, e opai resolveu voltar para o inte-rior. Quando estava com oitoanos, seu pai resolveu retornare foi morar no Chapéu Manguei-

Isabel Vieira

da Silva

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 65 a 69

Acervo NECC

Por Pedro Pio, Manuela

Musitano e Michelle AlvesEntrevista realizadaem maio de 2006

Page 66: Comunicação e Comunidade

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ra, onde estão até hoje.Atualmente, moram numa

casa de alvenaria graças ao pro-jeto Bairrinho realizado em2002, mas bem abaixo de ondeera sua antiga casa. Moravam nomeio do mato, e o caminho parase chegar à casa era de pedras.O “sossego era total” e o espaçopossibilitava a criação de ani-mais, como galinha, porcos epassarinho. Nessa época, haviaa liberdade de deixar a casa todaaberta quando sentiam calor, nãoprecisavam se preocupar com asegurança, como hoje.

Essa antiga casa ficava emterritório militar, então não ti-nham a permissão de trans-formá-la em alvenaria. Houveum episódio: eles acres-centaram um pouco a estruturada casa, e os militares manda-ram botar abaixo. A fiscalizaçãoera feita pessoalmente em tor-no de seis em seis meses, e essaantiga casa não existe mais.

Essa casa onde mora é me-nor que a outra, mas, como émais em baixo, torna mais cô-modo o acesso para eles, que jánão estão em idade de subir atéo topo do morro com tanta faci-lidade. A diferença é que agora,nessa casa cedida pela Prefei-tura, uma de suas filhas se mu-dou e tornou-se sua vizinha, fa-zendo com que a casa tenha setepessoas em seu interior em vezde nove. Dona Isabel tem setefilhos, sua neta mais velha estácom dezesseis anos e seu déci-mo neto está para nascer.

Antigamente, era a Asso-ciação quem monitorava o cres-cimento populacional da comu-nidade, demarcava os territóriose os distribuía, inclusive nessa

área onde ela mora, que era todadela, mas, devido às condiçõesfinanceiras, fez somente suacasa atual.

Antes de conhecê-la,Natanael era paraquedista noExército, mas não deu continui-dade à carreira, em decorrênciada sua reprovação por duas ve-zes na prova para sargento e afalta de dinheiro para tentarpassar em outras provas. Ele éuma pessoa muito comunicati-va e, após anos de experiênciano comércio, trabalhou em fei-ras e lojas de encanamento ede cosméticos, dentre outras.Acabou aprendendo um poucode alguns idiomas, como o Ja-ponês e Árabe. Atualmente,está desempregado.

Para ela, foi natural sua mu-dança para o Chapéu, pois vi-nha do Escondidinho, no RioComprido, e diz que, desde quechegou, em 1966, as mudançasnão foram tantas, apesar de osbarracos terem se transforma-do em casas, formando no mor-ro uma comunidade.

Atualmente, só mora no mor-ro quem compra uma casa por-que não é mais possível ganharáreas para habitação, como nosvelhos tempos. As épocas de com-pra e venda variam: às vezes ven-de muito; outras, não. A vizi-nhança está sempre mudando.

Os dois são cristãos, evangé-licos, crêem fielmente em Deuse já foram a muitos eventos noMaracanã e no Aterro, mas, ul-timamente, não têm participadomuito por falta de programa-ções. As chamadas religiosasque faziam na pracinha rara-mente são promovidas atual-mente. Festas juninas e Folia de

Moravam no meio

do mato, e o cami-

nho para se chegar

à casa era de pe-

dras. O “sossego

era total”.

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67

Reis também. Ela nunca foi departicipar muito desses eventosmas sempre os observou.

Quando chegou ao morro, jáhavia luz e, lá em cima, ondemorava, não chegava água daCEDAE, porém havia a minad’água nas proximidades de suacasa, que possibilitava ter sem-pre água fresca e pura com faci-lidade. Chega a ter saudade daágua geladinha. Nessa época,ainda pegou o fogão à lenha paraocasiões emergenciais e as pa-nelas que utilizava já eram to-das de alumínio na década de 60.

O movimento hippie desseperíodo foi uma euforia, mas, se-gundo ela, parou no tempo e, nacomunidade, não via manifesta-ções desse gênero. Quanto às pí-lulas anti-concepcionais, nãochegavam com tanta facilidade aomorro, não via palestras sendorealizadas para instruir as pes-soas, e ela só começou a buscarinformações no posto de saúde,após ter seu primeiro filho.

A respeito das passeatas emutirões, ela não tem uma po-sição muito a favor, pois as vê,atualmente, como movimentosmuito desorganizados e defen-de que falta mais decência emsuas ideologias e métodos dereivindicação: “estão se aprovei-tando muito das greves e passe-atas para fazerem desordem”.

Os mutirões, que viabilizarama chegada da água, luz e posto desaúde à comunidade, atualmentenão têm mais força alguma; “émuito difícil agora você conseguirque o povo se reúna para qual-quer coisa. É muito difícil”.

A Associação tenta admi-nistrar e colaborar com a comu-nidade, mas, devido à falta de

recursos e contribuições, ficamuito difícil. “Houve uma épocaem que todo mundo contribuíadireitinho; se precisava de aju-da física o pessoal ia e partici-pava. Hoje, é tudo muito difícil”.

Tem suas opiniões sobre ogoverno Lula e Rosinha/Garo-tinho, mas não se identificamuito com questões relaciona-das à pol ít ica. Ao falar daBenedita, nativa da comunida-de, disse a mesma coisa quandose referiu ao Lula: que, comopessoa, não tem nada contra,mas, na política, os dois deixama desejar. Destacou a queixa quemuitos moradores têm em rela-ção à Benedita, devido a falta deretorno à comunidade por partedela, após integrar-se na admi-nistração do governo: as únicasmelhorias foram realizadas nasredondezas de onde sua casa sesitua no morro.

Dentre os antigos políticos,demonstrou alguma simpatia porGetúlio Vargas e citou a possibili-dade de Tancredo Neves e Brizolaterem feito um bom governo de-vido à linha de seus raciocínios,

Acervo NECC

Natanael e Isabel na gravação da entrevista.

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tinham boas idéias. Não tem cer-teza disso porque diz que não en-tende muito de política.

Quanto às contribuições, háuma instituição francesa que,todo fim de ano, distribui cestasbásicas aos moradores e desen-volvem diversos cursos com anova geração. Já houve muitos eestá melhorando cada vez mais,além das ONG’S, que tambémtrazem diversos benefícios.

Sempre se deu bem com a vi-zinhança apesar de viver isola-da no topo do morro. Acha que aunião das pessoas permaneceaté os dias de hoje. Tem algunsconhecidos na Babilônia, mas aligação entre as comunidadesnão é significativa.

Em sua antiga casa, existi-am histórias curiosas, como ade um lobisomem, cujos baru-lhos seus filhos ouviam, de ca-chorros estranhos no mato, ànoite, e de uma noiva, que elaviu passar em sua casa e depoissumiu no meio do mato, entreoutros fatos que ocorriam, devi-do à influência do lugar, que erabem no meio da natureza e porcausa das “macumbarias” queeram feitas por perto.

Muitos bichos circulavam porlá. Certa vez, seu filho, com ape-nas cinco anos, foi picado poruma jararaca dentro de casa elevaram-no imediatamente parao Miguel Couto, onde teve de fi-car em recuperação durante oitodias. Os atendimentos em hos-pitais antigamente eram muitomais rápidos que os de hoje.

Seus filhos sempre brincavamao redor de sua antiga casa comos amigos, viviam soltos pelomato, e sempre foram muito àpraia; que é referencial de es-

porte na comunidade, pois mui-tos a utilizam para praticar fu-tebol e body-board. Há um in-centivo muito grande no morro,através de projetos relacionadosaos esportes, e seu filho caçula,Diego, é um dos exemplos, pois,aos vinte anos, já possui algunsprêmios de surf.

Mencionou também a parti-cipação dos moradores do Cha-péu no bem estar do bairro: têmcolaborado na limpeza e em al-guns cuidados no local. O comér-cio no bairro aumentou bastan-te, porém existe agora muitaslojinhas em vez de um bom mer-cado, que só é encontrado de-pois da rua Princesa Isabel.

Quanto à rádio comunitária,ela acha que realmente é muitoimportante para a região, masraramente a ouve fazendo cha-mada para alguma coisa impor-tante. Se tivesse um trabalhocontínuo e avisasse aos mora-dores coisas necessárias, seriamuito útil à comunidade.

Seu dia-a-dia fica em tornodas questões da casa, pois seufilho caçula e sua filha, que moraao lado, passam o dia trabalhan-do, enquanto ela tem que ficarcuidando das duas casas e dacriançada. Sua família está sem-pre ajudando um ao outro.

·

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69

Regina MariaRiboredo

InfânciaMinha infância foi boa, con-

siderando que a gente tinha asnossas tarefas. E uma delas in-cluía que a gente tinha que car-regar água. Lenha não tinha quecarregar muito não, mas águasim, porque não tínhamos bicasem determinados pontos, nãotinha água todos os dias! Tinhadia que a gente tinha que pegarágua, deixar as vasilhas cheias,quer dizer, essa era a tarefa mi-nha e do meu irmão, que, no fi-nal, saía, ia pra praia e acabavaque eu fazia sozinha. Mas mi-

nha mãe tinha que chegar e en-contrar água.

BrincadeirasEu falo pros meus netos que

eles não sabem nem brincar. Agente brincava muito ali noCampinho, onde tem o Galpão.Era bem mais espaçoso ali! Ali agente brincava de bandeirinha...Queimada! A gente brincavamuito... Balançar nos cipós...Outro dia, lá na entrada, as cri-anças estavam penduradas, e eufiquei lembrando do tempo bom(risos). Brincava! Sem preocupa-

ção. Tinha menos casas, e as ca-sas tinham quintais. Agora nãotem mais quintal, porque vai fa-zendo, fazendo, vai invadindo oquintal do outro. Mas as casastinham quintais. A minha casaera ali naquela ponta, onde é acasa da Wilma, e aquela parteali, onde também é a casa daRosa. Pegava da Rosa e ia até acasa da Wilma.

Ali, naquela primeira parte(parte de baixo onde é a casa daRosa atualmente) era a sede doLobinho. Tinha Lobinho, Escoteiroe a continuação era na casa da

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 69 a 76

Acervo NECC

Por Ana Cristina ArrudaEntrevista realizadaem maio de 2007

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O grupo de esco-

teiros era da

Paróquia da Igreja

do Rosário. Os

Dominicanos eram

responsáveis pelas

atividades.

minha avó. Eu ainda morava coma minha avó.

EscotismoEu trabalhei com os lobinhos,

dois anos... A gente fazia váriasatividades. De vez em quando,tinha acampamento. A gentesaia pra fazer acampamento.

O grupo de escoteiros era daParóquia, aqui da Igreja do Rosá-rio. Os Dominicanos eram res-ponsáveis pelas atividades. Mastinha um grupo de senhoras (praelas seria uma obra social), era opessoal da antiga revista Cruzei-ro! Tinha um grupo que vinha, eele é que começou a organizarisso com os padres. As senhorasda obra social da Igreja do Rosá-rio se organizaram e fizeram essegrupo. Sábado à tarde, elas vi-nham aqui pra cima. Nós pegá-vamos crianças de 7 a 10, na fai-xa dos lobinhos. Tinha o grupode Bandeirantes, que era lá naIgreja de Copacabana, mas as me-ninas, às vezes, faziam ativida-des junto. Às vezes, elas vinhamtambém (as meninas da Igreja vi-nham para o Chapéu). A partir dos11 pra 12 anos, já era escoteiro.Era o marido da Filhinha, SeuInácio, que trabalhava com os es-coteiros mais um grupo que vi-nha da rua. Sempre trabalhandoassim, juntos! O pessoal da rua,mas integrado com o pessoal dacomunidade. Em 64, teve o en-contro que reuniu os escoteirosde todos os países, foi muito bo-nito, lá na Estação da Marinha.Eu fiquei até 69, depois eu saí.Seu Inácio, ainda ficou bastantetempo trabalhando com os es-coteiros. Tinha o Frei Anselmo.Frei Anselmo trabalhou muitoaqui na comunidade.

As crianças de hojePara você ver, é a parte as-

sim de respeito aos mais velhos.Nós tínhamos tarefas para aju-dar as pessoas que vinham darua. Alguns ainda conservamisso de ajudar: vê alguém com abolsa e pega. Não é igual agora:já querem saber se tem um real.(risos). Antigamente não: fazi-am mesmo porque somavam pon-tos pra matilha deles. Então es-tavam sempre preocupados emfazer boas ações. Mas hoje não:você salta da Kombi, minha fi-lha, tem que separar 1 real, se-não você tem que subir com asua bolsa. (risos)

Tá tudo na base do lucro, maseu não quero gerar esse lucro,não! Meu neto esta semana des-cobriu que vender alumínio dádinheiro. Agora tem que escon-der tudo que é alumínio. (risos).Meu neto disse assim “Vó, a se-nhora tem alguma coisa de alu-mínio aí?” Aí que eu fui desco-brir: “o moço dá dinheiro. A gentedá pro moço (o alumínio), e omoço dá dinheiro!”. Eles vêmaqui e depois vão lá praBabilônia. E as crianças ficamdesesperadas. Agora é assim:“essa tampa tá boa?” “Tá! Deixaa minha tampa aí” (risos). É alu-mínio, minha filha, eles saemcatando! É muito engraçado!Quer dizer: eles já estão se pre-ocupando que precisam ter umdinheiro. Uns querem jogar naslan houses, comprar pipa, com-prar bobagem, biscoito, coisinhasassim miúdas. Então eles que-rem arrumar um jeito... Tem es-ses que estão ali para pegar bol-sa justamente pra isso, pra teruma renda! Pra eles gastaremnas besteirinhas deles. Ele traz

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Na casa da tia

Marcela, eu come-

cei a trabalhar, fui

estudar... A minha

tia sempre partici-

pou dos trabalhos

na comunidade.

a bolsa pra você e você dá o di-nheiro pra ele. É mais o consu-mo. E que nós também não tí-nhamos esse negócio de ter di-nheiro para comprar isso ouaquilo. A gente se preocupavamais em brincar. A gente não fi-cava preocupado em comprar al-guma coisa. A coisa vai compli-cando, até que um real dá e da-qui a pouco um real não dá. Vocênão está sempre fazendo eleentender que é importante es-tudar, para que ele tenha con-dições de ter um trabalho pra eleter as coisas que ele quer...

O trabalho na comunidadeQuando eu saí dos Lobinhos,

foi a primeira separação dosmeus pais. Minha mãe foi mo-rar lá em Caxias. Minha mãe semudou daqui, e nós fomos comela. Eu parei tudo e fui com aminha mãe. Meu pai bebia mui-to, por causa disso eles se sepa-raram. Depois de um tempo, euvoltei e fiquei com essa minhatia Marcela (risos). Na casa datia Marcela, eu comecei a tra-balhar, fui estudar... A minha tiasempre participou dos trabalhosna comunidade, e ela envolviatodo mundo dentro de casa nis-so. A gente querendo, a genteestava envolvido. Tem que fazero almoço, daí a gente sempreestava com aquela preocupaçãode ter comida a mais, porque, derepente, daquela reunião lá, elavinha com todo mundo e, se elachegasse para almoçar, tinha co-mida pronta. Entendeu? Indire-tamente, ela estava envolvida nonegócio. A maioria das pessoasnem liga, mas nós fomos educa-dos assim: com dezoito anos,todo mundo lá em casa tinha

carteirinha de associado, de de-pendente... Éramos sócio-depen-dentes pagávamos a metade dovalor da mensalidade da Associ-ação. Então, quando eu casei, játinha a carteirinha, porque eradependente. Até mesmo pracomprar casa aqui, pra você mo-rar aqui, tinha que ser associa-do. Então isso fazia com que aspessoas todas se conhecessem,não tinha ninguém de fora.

Era o próprio morador. Sua fi-lha vai casar, precisava de casa,você já ficava ali esperando. Seera associado, tinha preferência.Hoje é muito caro, acaba passan-do pessoas de fora porque nemsempre o morador tem condiçõesde pagar o que pedem.

Antes era uma família mes-mo. Todo mundo se conhecia. Afilha da dona Maria, a filha dadona Zezé... Os moradores erampessoas conhecidas... Os filhosdaquelas famílias maisantigas...os netos...não tinhatanta gente de fora. Hoje, vol-tou o problema do preço. O pre-ço foi ficando muito alto, aí nemsempre se pode comprar. Unscompram até pra morar, porqueprecisam. Pior é o que comprapra alugar.

Sempre foi a preocupação. Deque não fosse assim, fosse sim-plesmente pra pessoa mesmo!Filhos de moradores mais anti-gos comprar. Até a mentalidadeé outra, porque nós fomos todosjá criados com essa história departicipar dos mutirões. Você nãopode carregar dois tijolos, car-rega um, mas todos se envolvi-am na melhoria da comunidade.Pras coisas funcionarem, todomundo participava. Depois o defora vem, nem sabe o que é isso

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nem quer saber... E agora tam-bém tá tudo mais prático, pra-ticamente quase tudo pron-to! Você tem água em casa,no caminho...

As coisas tinham mais difi-culdade, mas também as pesso-as queriam melhorar. Tinha maisintegração entre os moradores...entendeu? Precisamos botar atampa da caixa d’água! Todomundo ia pra lá colocar a tampaou então todo mundo se unia praajeitar, porque a caixa não podeficar aberta. Agora ninguém sepreocupa, não tem mais aquelamotivação de que tem que fa-zer. Ué, manda o presidente!Cadê o presidente? Não tem pre-sidente, não?!(risos). Verdade:até hoje eles acham que é o pre-sidente que tem resolver isso.Deixou de ser interesse da co-munidade participar dasmelhorias. Acham que tem umresponsável lá, e ele tem que darconta. Tem convênio com aCedae, manda a Cedae vir arru-mar. Uma coisa que você podepegar o cimento, misturar e fa-zer. Ainda tem muita coisa praser feita... Não está tudo pronto.

Acho que são os valores, aspessoas não têm mais isso. Mui-tos aqui agora são inquilinos.Então o inquilino quer entrar,dormir e sair. Não interessa praele se tem que consertar... se oposte ali está virando... Você vêmesmo quando faz assembléia.Assembléia tem pouquinho depessoas. É dali que você vai fa-zer os debates, discutir, priorizaras coisas pra correr atrás. Nãoestão nem preocupados em par-ticipar, em expor boas idéias,nem comparecem. Quando vocêvai ver, está aquele mesmo

grupinho. Depois dizem que é apanelinha... Ainda bem que tema panelinha, né? Porque só so-brou a panelinha!

MulheresQuem começou a organizar

essa comunidade foi uma mu-lher: Dona Renée. Graças a ela.Ela veio pra cá. Ela viu que prase conseguir água, as melhoriaspra comunidade, esta tinha queestar organizada. Ela conseguiuorganizar isso. Reuniu os mora-dores. Essas ruas que você vê:Rua Lúcio de Paula Bispo... Sãoos primeiros diretores da Asso-ciação de Moradores. Tambémsão nomes de médicos que tra-balharam durante muitos anosna comunidade. Ela conseguiuque os médicos viessem aquivoluntariamente para atenderaos moradores.

Eles participavam muito, por-que, mesmo mudando, quer di-zer, já tiveram a dona Renée,teve a Benedita, que tambémtrabalhou na Associação de Mo-radores. Sempre tinha uma mu-lher trabalhando. Quando nósnão estávamos encabeçando cha-pa, nós estávamos participandoda chapa. Quando o seu Lúciofoi presidente trabalhei na cha-pa dele. A gente estava sempremisturado, sempre tinha mulhe-res trabalhando na organizaçãoda Associação. Os homens par-ticipavam, foi uma fase boa. Hojeé muito mais difícil ser líder co-munitário. Naquela época, elesnão faziam nada pra se opornão, procuravam ajudar. Quan-do tinha mutirão, eles estavamjuntos, participavam; nas reu-niões, eles iam e participavamtambém. Eu pude contar com o

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73

Eu acho que

prioridade na

comunidade é saúde.

apoio dos moradores.Na última gestão, na minha

última gestão, foi o Gibeon! De-pois que eu saí, foi o Gibeon! Naúltima eleição, foi o Gibeon...

Aí, como dizem, fica a pane-linha. Só sobrava a panelinha,porque ninguém é... É o que eufalei, é o descaso. Ninguém estápreocupado mais em fazer nada,em cuidar de nada. Não queremnem saber. Eles acham que émuito importante ter um lídercomunitário, pra ele fazer as re-clamações deles. Tentar pelo me-nos, mas, quando você chamaum pra fazer... Eles estavam pre-ocupados agora com essa elei-ção agora, como ia ser, até queapareceu a panelinha. (risos). Osmoradores diziam assim: “Sem-pre a mesma panelinha”. Aindabem que vocês acharam uma pa-nelinha, senão como é que ia ser?É a Helena, filha da dona Alfriza,Helena, Mazé, a mulherada tá aí.Graças à Deus!

A mulherada ta aí de novo!Tomando a frente na Associaçãode Moradores, mas com muitomais dificuldade hoje.

SaúdeEu acho que prioridade na

comunidade é saúde. Você terum Posto de Saúde funcionandodentro da comunidade, já é me-nos... Já é a partepreventiva.

Dar assistência aqui, centra-liza uma parte, já não sobrecar-rega tanto o Posto lá naToneleiros. Mas você vê: o postofica assim. Tem convênio? Tem.Mas cadê? Você não tem medi-camento! Às vezes, nós temosalguma coisa, é amostra que vocêganha, alguém faz doação lá naIgreja, que passa pra recolher e

aí traz. Mas você não tem assimum laboratório, ou um órgão doGoverno que repassasse essesmedicamentos, repassasse amedicação. Você tem médicossérios trabalhando. Então pode-ria ter essa parceria. Aí eles fi-cam questionando: “vocês nãoaparecem na reunião!”. Nós jácansamos de ir para a reunião!A proposta é sempre a mesma,vocês vão pra reunião prareinvidicar que vocês queremisso. A gente vai fala, fala e con-tinua tudo a mesma coisa. Nãointeressa ele passar medicaçãopra nós termos. Você tem umproblema que precisa tratar, vocêprecisa ir lá pro cardiologista.Essa é uma experiência minha,lá pra Lagoa. Vamos, lá tem tudo.O médico tem que encaminhar;ai o médico aqui me encaminhapro cardiologista de lá. Tem umano que eu estou esperando cha-mar, até hoje ninguém me cha-mou. Se eu fosse depender de-les, eu teria morrido! Entendeu!

Quer dizer ir pra reunião agente vai, não questiono da gen-te ir pra reunião e chegar emcasa tarde, cansada e com fome,muitos depois do trabalho, praestar ali! Mas a gente quer res-posta disso. A gente vai fala,fala, faz ata, faz reunião, e, nahora do retorno, não tem... E elesalegavam que era porque a gen-te não participava. Não é que agente não participava... É preci-so unir pra conseguir asmelhorias, mas só que tem queter o interesse de fazer com queessas melhorias cheguem aténós, porque não está havendoisso. A parte da saúde é assim:você vai pra reunião, vai falar,vai ficar nisso mesmo, não vai

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resolver, não vai aparecer remé-dio, o médico vai continuar vin-do de muita boa vontade. É claroque ele não vai deixar o consul-tório pra ficar aqui no morro.Então, quando ele chega do tra-balho, ele tira um horariozinhopra vir que é pouco, não dá praatender... Nós estamos aí com odoutor Rogério. Uma terça fazatendimento domiciliar daque-les que não podem se locomover,pessoas de 90 e tantos anos (nóstemos alguns). Ele vai visitar emcasa. Então, se ele sai pra atenderem casa, ele não pode ficar no Pos-to atendendo. Então uma terça évisita domiciliar e uma terça elefica no Posto, que é pra poder con-ciliar. Ele só tem a terça-feira prapoder estar aqui ajudando na co-munidade. Temos a doutora Sônia,que está aqui há muitos anos coma gente. É as quintas. O dia dispo-nível que ela tem pra estar aquina comunidade é quinta-feira.Tem uma creche dentro da comu-nidade, e um dia só na semanapara o pediatra. É pouco! Precisá-vamos de mais pediatras, na par-te de saúde.

CrecheAgora vamos pra creche. Cre-

che é fundamental, é primordi-al, é urgente! Precisamos de umacreche! Nós tínhamos uma cre-che que tinha um convênio. De-pois o convênio foi tirado... Cri-anças levam marmita. A mãeprecisa trabalhar, então ela man-da lá a comidinha da criança.Isso é um absurdo! Não é impor-tante creche? Não precisa tercreche? Precisa! Então vocêmonta a estrutura. Quer dizer: acreche já está ai. A comunidadeque fez a Creche, com doações

de fora. Eles não gastaram prafazer (a Prefeitura). É só vir, bo-tar funcionário e sustentar acreche. Não precisa dar dinheiropara Associação pagar os funci-onários. Bota lá no banco, pagalá o dia que tem que pagar, cha-ma o pessoal lá, faz o pagamen-to prá lá mesmo. Não interessaver o dinheiro, a gente só querque funcione. Precisamos terfuncionário... entendeu?

Dona MarcelaAh! Foi um exemplo de vida.

Um exemplo de vida, uma mu-lher batalhadora que não via asdificuldades. Olhava por cima dasdificuldades, corria atrás. Ela edona Renèe, viravam esse Rio deJaneiro pra buscar melhorias pracomunidade. Ela era, pra mim,um exemplo de vida, saber quemulher pode! É ai que começouessa chama, mulher pode, entãovamos! (risos) Ela sempre diziaassim. Ela só teve filhos homens,tem uma menina que ela ado-tou... Você vai ser minha filha,você tem que aprender comigo,ia pra reunião e me levava... Aífoi nascendo o gostinho de aju-dar fazer as coisas.

Ainda foi uma boa época.Depois, as coisas foram ficandomais difíceis. Por isso, você temque ter um apoio lá fora das au-toridades, você tem que ter umrespaldo da Comlurb, você temque ter um respaldo da Saúde,não adianta você aqui sozinhafalando pro vento... Aí você cor-re atrás, e a comunidade não vêresposta daquilo que você foibuscar, você não está fazendonada. Você trabalha dia e noite,chega tarde em casa, cansado,exausto e pra eles não tá bom,

A comunidade fez a

creche, com

doações de fora.

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Acervo NECC

Discurso de Regina, presidente eleita em 1985, na cerimônia de posse da

diretoria da Associação de Moradores.

porque eles não estão vendo. Elestêm que ver alguma coisa. Querdizer, as terças-feiras, o doutorRogério vem cheio de boa von-tade, mas ele só pode vir asterças...”Vocês não podem arran-jar mais médicos?”. É coisa comose apertasse um botãozinho, e omédico subisse o morro. (Risos)Difícil. Então acho que o quemais foi me puxando pra baixo,assim me desestimulando, foiessa falta de compreensão. Seilá, fiquei muito decepcionadacom essa parte...

FilhosTive só dois... Uma menina e

um menino. Neto, eu tô no quin-to, mas já vou pro sexto...

Eu arrastava os meus filhos,eu também contaminava eles!Mutirão, eles também parti-cipavam. Nós fazíamos peixada,fazíamos coisas assim pra anga-riar fundos. Ai contávamos coma participação deles. Às vezes,tinha peixada...feijoada... E ascrianças iam ajudar, pegar gelo,pegar bebida, botar bebida nogelo, arrumar!

Uma coisa boaAh! A participação dos mora-

dores, aquela unidade tá faltan-do! Eu fico justificando que éporque os antigos estão cansa-dos! O pai da Gi, seu Geraldo, seuLúcio, tadinho, quer dizer, os ca-beças antigos estão assim. E osnovos nem são daqui, nem sa-bem o que é a comunidade, o queé participar de nada, são os in-quilinos. Eles não têm culpa deserem inquilinos, mas podiam semexer um pouquinho tambémné? Eles também estão usufru-indo da comunidade. Não é bom

eles descerem ali e subir aqui,tudo limpinho, não tem bar-ro, não tem lama, não temnada . Pod ia se dar umpouquinho né, procurar...

O que você pode fazer praparticipar, pra ajudar, o que táprecisando? Você marca ummutirão, se forem cinco pesso-as, o mês inteiro vão ser sóaqueles cinco. Você não conse-gue mobilizar as pessoas parasaírem, pra irem participar émuito difícil.

AmaLemeO pessoal ai da rua ajudava a

gente... As pessoas subiam... Por-que esse negócio desse almoço,

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essa feijoada, essa peixada, erapra fazer aquela interligaçãoasfalto e comunidade. Isso émuito importante pra comuni-dade. Nós tínhamos a Ama Leme,vinha o jornal da Ama Leme, ojornal de bairro, o jornalzinho dobairro. Isso é importante pragente! A Ama Leme também estátão afastada. Não está dandoconta nem dos problemas dela(risos). Tá difícil! A gente tinhauma parceria muito boa com aAma Leme. Todos os eventos quea gente ia fazer, ela botava, di-vulgava. Você tem que estarconectado. E a imprensa é o me-lhor meio de comunicação prafazer isso!

Mulheres naAssociação atual

Só Deus, pra botar essas me-ninas aí. É o que eu falo, eu es-tou na equipe de intercessão, euestou orando aqui por vocês. Porque tem que ter peito. É isso! Euestava comentando o outro diaassim: você tem que contar como que é certo. As autoridadesforam constituídas pra isso. En-tão eu tenho que contar que eupreciso de saúde. Eu vou à Se-cretaria de Saúde, eu vouagendar com o deputado qual-quer ou seja lá quem for. Nessahora não tem que ter partido: éaqui que vão ajudar minha co-munidade, então vamos por aqui.Eu tenho que contar que eu voubater no gabinete dele, que elevai ver no que ele pode me aju-dar. Tem que ver que, na hora dacreche, eu vou lá na... Sei lá ondeé que vai mais! Então eu vou ba-ter, eles vão me atender. Pelomenos no dia da reunião, ele vaivir pra expor por que ele não está

dando apoio à creche. Se o go-verno não quer mandar a me-renda, se o governo não querpagar o funcionário.

Dou os parabéns pra elas,porque domingo agora é dia dasmães. Essas são as mãezonas dacomunidade! Ainda que não de-pendam delas resolver as coisas,mas elas estão ai pra represen-tar a comunidade, pra sair pratentar negociar. Mas o sistematá brabo! Tá complicado! Eu voupra Secretaria ninguém meatende! Helena estava comen-tando: tiram o convênio, você sevira pra lá, o que quê vai acon-tecer se Deus não olha e tivermisericórdia de nós?

Aquilo é direito seu, você ele-geu, votou lá, pra chegar na horavocê bater na porta... É compli-cado! Elas são corajosas.

·

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Eu nasci no dia 17 de junhode 1927. 81 é nos documentos,mas na cabeça, é como se eu ti-vesse 50 anos. Entendeu comoé que é? O que vale não é a ida-de em si, o que vale é a sua men-talidade, é a sua mente. Épensar como se eu fosse umajovem igual a vocês. Eu limpo aminha janela, limpo a janela dacasa da madame, eu lavo, eu pas-so. Agora mesmo, ela me telefo-

Maria deLourdes deOliveira Lopes

nou perguntando se eu posso iramanhã para passar as roupasdela. É roupa de seis pessoas queeu tenho que ir lá passar. En-tão, eu lavo, passo, aquela coisatoda. O dia vai passando e eufaço todo o serviço. Vou láembaixo,desço morro, faço com-pras, porque a cabeça não pen-sa como uma velha de 81. A ca-beça pensa como uma pessoaque tem 50 anos. Faço faxina,

lavo roupa, passo. Faço tudo.Faço comida. O que der para fa-zer, eu vou fazendo.

Sou de Santa Maria Madalena.É no Estado do Rio, onde nas-

ceu à famosa Dercy Gonçalves.Sou de lá.

Foi no final de 1938. Eu vimpara cá, mas não vim para aquidireto não. Eu fui para o Vidigal.O meu tio morava lá e nós fo-mos para lá. Ficamos lá durante

NECC / Revista Comunicação & Comunidade / Volume 12 - páginas 77 a 89

Acervo NECC

Por Luciana Assis

e Tatiane RochaEntrevista realizadaem outubro de 2008

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um ano e, no final de 39, a mi-nha mãe veio trabalhar aqui.

Vieram todos.Éramos sete,não, éramos seis pessoas. Éra-mos Eli, minha irmã, uma outraque era aleijada, a Creusa, umrapaz, que já está morto, Rui. Euma que morreu de meningite.Não! Éramos cinco. A Eli, Creusa,Rui, Madalena, irmã Zelina e eu.Então éramos seis. Só que agente...A casa do meu tio eramais ou menos desse tamanhoaqui e éramos sete pessoas. Eleacenava por qualidade de vidaaqui e a gente vivia na lavoura.Uma situação difícil, entendecomo é que é? Meu pai tambémjá estava doente. Então a genteveio aos trancos e barrancoscomo se fosse em um pau de ara-ra. O primeiro calçado que a gen-te botou no pé foi no primeirodia que a gente veio para cá.Então de lá, a gente veio e che-gou a um lugar chamado Cor-deiro. Pegamos um trem, viemospara Niterói e, de Niterói, pega-mos a barca e viemos para o Rioe de lá nós seguimos para ondeatualmente é o Vidigal.

Meu tio veio tentar a vidaaqui primeiro. Minha mãe, quan-do chegou aqui, estava com meupai muito doente. E ela espalhouos filhos todos porque não tinhacomo criar. Tinha a família domeu tio, família do meu outrotio, pai da Mariquinha. Todospequeninos, eram seis pessoas.Não tinha lugar para todo mun-do. Medina é parente dos Oli-veiras. A minha mãe tinha vindoquatro meses antes, para traba-lhar para arranjar dinheiro parair buscar a gente. Ela trabalhavano Méier. Lá havia as amigas dapatroa. Uma, que morava na

Hemengarda, no Lins, eu fiqueilá na casa dela em troca de umprato de comida e uma esteirapara dormir. O meu irmão ficouna São Francisco Xavier, na casade outra amiga dela, também emtroca de um prato de comida, e aoutra ficou com ela no Méier,que é a Eli. Tinha ficado com elaporque a moça precisava que elacuidasse dos dois pequenos dela.

A mais nova era a falecidaCreusa que era a aleijada. Ela eracostureira, era aleijada, teve pa-ralisia e não teve jeito: ficouparalítica. Mas fazia o serviço,costurava e tudo. A minha irmãmais velha e as minhas duas ir-mãs mais novas ficaram com omeu tio, minha avó, mãe da mi-nha mãe. Ficou todo mundo lá,no Vidigal. E a gente só ia emcasa assim, de vez em quando.Aí, um belo dia, não sei se vocêsconhecem o Natanael?

É mas não sei se a versão delecondiz com a minha. Esse peda-ço aqui é um anexo de um casa-rão lá de baixo. O exército de-pois desocupou, cortou. Veio a2ª Guerra Mundial, e eles preci-savam de que os soldados an-dassem por aqui. Então eles ti-raram a metade. Embaixo da casada Irene, ali, tem um muro, né?O pai do Natanael, seu Genésio,era encerador dessa casa. Eracasa de um general. Nesse meiotempo, a gente tinha essebarraquinho, pequenininho, queatualmente é Selva de Pedra,mas era Praia do Pinto. Foi oGovernador Lacerda que acaboucom aquilo: ele mandou botarfogo e acabou com aquilo. Láperto do Miguel Couto, tinha umbarraquinho onde se reunia opessoal da Igreja Petencostal da

A gente veio aos

trancos e barrancos

como se fosse em

um pau de arara. O

primeiro calçado

que a gente botou

no pé foi no primeiro

dia que a gente veio

para cá.

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Assembléia de Deus. Meu paiestava muito doente, os irmãosforam lá, oraram por ele e eledisse que queria ser crente. Fi-cou crente mesmo. E a famíliatoda ficou e a reunião era lá. Foifinal de 1939. Esse Genésio foireclamar com o pessoal da Igre-ja que a mulher dele tinhamorrido. Nessa época, a tuber-culose acabava com o Brasil, e amulher dele morreu de tubercu-lose. Ele era encerador aqui nacasa do general e a dona da casa,a Dona Sinhá, permitiu que elefizesse um barraquinho. Tinhaele, os dois filhos, uma criançarecém- nascida, uma menininhade dois anos e a mulher que ti-nha morrido. Ele estava sem sa-ber o que faria com uma criançarecém-nascida e uma menina dedois anos, porque a mulher ti-nha morrido. Aí a minha mãe fi-cou com pena dele e falou: o queé que eu posso fazer? Ele disse:Você não quer comprar o meubarraco? Eu não sei o que voufazer com essas crianças. Não seise eu volto, a família morava emSão Pedro D’Aldeia. Não sei o queeu faço. Minha mãe disse: a gen-te vai ver o que faz. Minha mãefoi falar com o meu pai. Meu paideu o estouro da boiada, mas eletambém não podia fazer muitacoisa. Era uma pessoa que nãotinha muita alternativa também.A gente morava de aluguel. Agente já tinha saído do meu tioe estava morando em um quartode aluguel. Aí ela disse: vamospara o Leme, vamos deixar depagar aluguel. Eu vou trabalharnessa casa, e a gente cuida dascrianças desse irmão aí. Meu paidisse: eu não vou não. Você nãovai, tudo bem, o quarto está pago.

Agora, eu vou com as crianças,não adianta que eu vou mesmo.E a gente veio. Era um barracofeito de tábua, de caixote, o tetoera de.... Já viu essa lata de 20?Latão? Aquilo era cortado, ajei-tava direitinho e ia prendendoum em cima do outro para for-mar o teto, mas, quando chovia,chovia tudo dentro de casa. Eraum quarto e uma pequena cozi-nha para tudo. E vivia assimmesmo. Minha mãe era guerrei-ra pra caramba. Ela veio para cácom a cara e com a coragem e,dois meses depois, ela já estavadando ao Genésio duzentos re-ais por aquilo. Foi o meio que elaencontrou para sair do aluguel.E continuou trabalhando nessacasa. Ficou trabalhando lá pormais ou menos 20 anos. Comessa casa desse jeito. E assim agente cresceu aqui, foi melho-rando, a gente foi trabalhando.Aí ela foi tirando a gente do su-búrbio. Eu comecei a trabalharnesse edifício, Tietê. Aqui do lado,perto do Regina’s. A minha irmãtrabalhava em um edifício maisadiante. E a minha mãe continu-ava nessa casa. E, assim, foi me-lhorando depois, foi jogando aqui-lo depois, foi levantando, comose diz... de barro. De taipa. Vocêvai botando uma madeira em cimada outra depois vem com o barro.Estuque. Aí já melhorou um pou-co. Fez mais dois quartos. Aquelacoisa toda.

Quando cheguei aqui, eu jáestava com treze anos. E não ti-nha nada. Era mato puro, Nãotinha nada.

Não, filha. O Genésio foi oprimeiro, depois eu e a minhamãe, depois veio um senhor, alimais adiante, era encerador tam-

Era um barraco fei-

to de tábua, de cai-

xote, o teto era

de.... Já viu essa lata

de 20? Latão? Aqui-

lo era cortado, ajei-

tava direitinho e ia

prendendo um em

cima do outro para

formar o teto.

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bém. Onde tem o último edifí-cio. Deixaram ele fazer ali emcima. Ainda está ali, a casa. Sótêm os remanescentes deles, alina casa da Lucinha. Remanes-centes daquele senhor.

Isso, exatamente. São todosda família daquele senhor. Vocêconhece a Dadinha?

Taty- Conheço.O marido dela ficou doente

tinha dois anos, José Moraes. Elapedia para a minha irmã cuidardele. A gente saía para trabalhar.Todo mundo saía, e a minha avóe a minha irmã cuidavam do ZéMoraes. Ela mandava umamarmitinha de comida. E assimfoi. Mas não era qualquer umque morava aqui não, só as pes-soas que eram recomendadas porquem morasse lá embaixo. Aí, em1940, começou a Segunda Guer-ra Mundial. Meu Deus do Céu!Aqui era a pior coisa do mundo!Você queria água, você tinha queesperar a pipa de água da Light,que era onde era o Colégio SãoThomás de Aquino. O bonde, elefazia a volta ali para ir para aCidade e tinha um recuo. Elevinha para molhar, para tirar umpouco a poeira. Vinha uma pipade água para tirar. Então, elesficavam com pena da gente edavam água para a gente. Ouentão você tinha que ir por aqui,pelos casarões, pedindo uma latade água. Não tinha nada, não ti-nha água. O fogão era de lenha.A luz era lamparina, querosene.Quem tinha um... A gente nãotinha dinheiro para comprar umlampião. Era umas lamparinas.Vocês não conhecem. A casa, elapagou. Ela arranjou duzentosreais com a patroa, foi descon-tando devagarzinho. E foi paga.

O Genésio foi morar em outroscantos, a gente se perdeu delecompletamente. O menino elecolocou no hospital ali,no Hos-pital Jesus, mas o garoto nãoresistiu porque, quando ele nas-ceu, a mãe, já estavatuberculosa, e ele nasceu umacriança fraca. Aí morreu. Entãoele agarrou a Elizabeth, que eraa filha dele, e sumiu com eladaqui. Não quis mais serencerador e foi embora.A gentese perdeu completamente deGenésio. Aí veio meu tio, Dodô.Ele já morreu. Jorge e Moisés sãoos netos. Aí veio o pai daMariquinha. Aí a família se ins-talou, todo mundo aqui. Mas obarraco tinha que ser feito à noi-te, porque, se o exército chegassee estivesse fazendo, jogava nochão. O negócio foi esse e, no fim,foi crescendo. Cinco anos de Guer-ra, né? Terminou em 45 e come-çou em 40, né? Ali a gente foi vi-vendo a trancos e barrancos.

Alimentação, minha filha, naépoca da Guerra a gente arrumaalimentação. O Brasil mandoutrês mil homens para a Itália,que o Governo Americano pediu.Então começou o racionamentoe você tinha direito, de quinzeem quinze dias, a um ticket paracomprar um pouco de alimenta-ção. Um pouco de carne, um pou-co de qualquer coisa. Tinha umafila enorme e se comia carneuma vez por mês porque não ti-nha dinheiro para comer carnetodo dia. E quem tinha , tinhamesmo. As madames não tinhamaquele negócio que hoje tem, ofreezer, onde você coloca comi-da hoje e dura dois, três meses.Naquele tempo, não tinha. A ge-ladeira nem era elétrica. Era uma

Começou a Segunda

Guerra Mundial.

Meu Deus do Céu!

Aqui era a pior coisa

do mundo! Você

queria água, você

tinha que esperar.

Mas o barraco tinha

que ser feito à noite,

porque, se o exército

chegasse e estivesse

fazendo, jogava

no chão. O negócio

foi esse e, no fim, foi

crescendo.

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geladeira, mas você tinha quecolocar gelo. Uma barra de gelo,senão a comida estragava. O al-moço que sobrava na panela,elas chamavam o pessoal e da-vam mesmo. E a gente ia lá bus-car. E a gente vivia assim. “De-pois, logo mais, vocês vêm bus-car a janta” porque o que sobras-se não podia guardar, senão es-tragava. Então, elas davam. Eassim a gente ia vivendo. Hojeem dia, eles são esnobes. Masfoi uma vida difícil, foi uma vidamuito dura. Dura mesmo. Vocênão sabe como é que isso aquidepois foi feito. Apareceu poraqui uma freira, Dona Renée. Elaveio. Ela ficava no posto lá emcima. Foi ela quem fez aqui o clu-be. Ela ia às Embaixadas apanhardinheiro com aquela gente. Elaficou horrorizada de ver que aquinão tinha luz, não tinha água,não tinha coisa nenhuma. En-tão, ela pegava dinheiro lá naEmbaixada França, da Holanda,daqui, dali foi modificando aquiaos poucos. Fez escada porqueaqui era tudo de barro. Dia dechuva você chegava lá embaixocheia de lama. Isso aqui era ocaos. Hoje, eu falo: vocês recla-mam, mas vocês estão morandomuito bem. Vocês chegam den-tro de casa, vocês tem uma tor-neira, um chuveiro para tomarbanho, vocês tem água na tor-neira da cozinha, água na des-carga... Que isso! Você tinha umaporta por onde você jogava tododetrito, ali dentro. Fedia que erauma coisa horrorosa. Tinha ra-tazana, que você não faz nemidéia. Cobra, tinha tudo aqui,muita barata, percevejo. Vocêsconhecem percevejo?

Tinha muito piolho,tinha

tudo. Só veio melhorar depois de1960 pra cá, depois que fize-ram Brasília, depois que Jusce-lino chegou aqui de Brasília éque isso aqui deu uma levanta-da aqui dentro. Porque a gente...Em 1960, não tínhamos gran-des coisas. Quem tinha sapatopodia calçar um sapato, calçavaum sapato; quem não podia cal-çava uma sandalinha. Quem ti-nha um dinheiro para comprarum vestido, um tecido de sedapara fazer um vestido fazia;quem não tinha não tinha. Aí oque aconteceu? Quando Jusce-lino Kubitschek entrou, ele pri-meiro fez uma análise porque eletinha sido governador em MinasGerais. Ele fez uma análise emtorno do Brasil. Aí, o que ele fez?Um cara descendente de judeus,estudou lá fora... Ele sabia o rit-mo de lá de fora. Como é queera a América do Norte, AméricaCentral, a Europa. A primeiracoisa que ele fez foi implantaras lojas de departamento aquidentro, quando ele entrou. Apa-receu Ponto Frio, D Moreira, fezas lojas de departamentos. Aquifoi um grupo estrangeiro queveio. Que já até acabou. Ele fezas lojas de departamentos, e avida da pessoa melhorou. Em1960, Brasília foi feita, o Rio deJaneiro melhorou, São Paulomelhorou, Minas melhorou como sistema de crédito. Todo mun-do melhorou, porque já chega auma loja para fazer um crediário.Compra um conjunto de mesa,uma televisão... Antigamentenão podia fazer isso não, porquenão tinha. Não tinha o sistemade crédito, então não se compra-va nada. Você se vestia de trapo,calçando um tamanquinho. Era

Só veio melhorar

depois de 1960 pra

cá, depois que fize-

ram Brasília, depois

que Juscelino che-

gou aqui de Brasília

é que isso aqui deu

uma levantada.

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aquilo. O Juscelino colocou, e oBrasil realmente avançou cincoanos. Hoje é tudo bom. Hoje fa-zem até maldade: fazem o cré-dito e, no fim das contas, nempagam. Se a pessoa tem tudodentro de casa porque não vaipagar? Tem mais é que pagar. Éisso, assim a vida melhorou.Melhorou muito, graças a Deus!

Todo mundo. Todo mundoparticipou. Ela deve ter conhe-cido o Pereira? Você erapequeninha quando ele morreu.Essa gente toda, dona Marcela,todo mundo contribuiu. A famí-lia toda contribuiu para a comu-nidade que é agora. Agora, eu jánem reconheço mais ninguémaqui porque as pessoas que têmaqui, os que não morreram, jávenderam suas casas, já foramembora, já não moram mais aqui.Já estão no subúrbio. A única queestá teimosa aqui sou eu. E aAntônia. A Antônia, quando eume casei, morava aqui onde é aAgostinha. Aquilo ali, o primeirobarraco que tinha ali, foi o meu.Quando eu me casei, eu fui mo-rar ali. Quando a Raquel já es-tava com três meses, o pai mor-reu, eu vendi o barraco e fuimorar na casa da minha mãe. Amaior besteira que eu fiz na mi-nha vida. Eles queriam me do-minar né. Eu não quis mais sercrente, e eles queriam que eucontinuasse crente. Aí conti-nuou a briga. Eu sou teimosamesmo. Quando eu coloco algona cabeça, ninguém tira. Quan-do eu boto algo na cabeça... Elesdisseram: você tem que ser cren-te. Eu digo: eu já sou crente.Minha vida está de perna para oar. Viúva, com dois filhos. Nem acasa que vocês acham... Dois do

primeiro marido. Eu não queroser crente mesmo. Fui lá na Igre-ja, entreguei ao Gustavo o meucartão. Ele era o manda-chuvada Igreja. Eu não quero mais. Eunão sou hipócrita, eu não voupara o baile hoje e, amanhã voupara a Igreja. Isso eu não voufazer mesmo. O que eu faço, eufaço mesmo e todo mundo temmais é que saber mesmo. Eu nãoquero mais ser crente. AcabouPor que eu não quero ser? Por-que eu não quero. Nunca quis.Aí eu contei para eles. Meu paie minha mãe eram crentes, elesnão me deixavam escolha: eutinha que ir para a Igreja. Eu mecasei com crente, eu não ia dei-xar meu marido ir para a Igrejae eu para o baile, ou para o ci-nema. Eu ia atrás dele. Ele nãoexiste mais. Pra que eu vou fi-car na Igreja se eu não gosto?Eu nunca gostei, entendeu?Aquela coisa de você bater car-tão ali todo dia. Eu sou crenteem Deus, Deus tem me ajudadomuito, mas eu não tenho reli-gião. Agora a minha fé é a mi-nha fé. Eu creio em Deus todopoderoso, mas creio mesmo. E eletem me ajudado muito para che-gar até agora, onde eu estou.Estou mal. Eu estou bem? Não,não estou. Até meu cheque es-pecial: Eu estou no cheque es-pecial. Minha conta bancária, elasó não fecha não sei por quê. Eunão sou uma pessoa de muitodinheiro, mas é o que eu gosto.Agora eu vou ficar dentro de umaIgreja, vou bater cartão dentrode uma Igreja? Eu já tenho quefazer muito pela vida. Depois, euarrumei uma segunda família,uma segunda família que Deussabe como. Deus é que tem me

Agora, eu já nem

reconheço mais

ninguém aqui por-

que as pessoas que

têm aqui, os que não

morreram, já vende-

ram suas casas, já

foram embora.

Eu sou crente em

Deus, Deus tem me

ajudado muito, mas

eu não tenho reli-

gião. Agora a minha

fé é a minha fé. Eu

creio em Deus todo

poderoso, mas

creio mesmo.

Page 83: Comunicação e Comunidade

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ajudado a segurar esse pessoalnas costas. Entendeu como é queé? Dando apoio a eles. Depoisdisso, eu tive problema também:esse menino que mora lá naEspanha, esse menino era chefedos bandidos aqui. Entendeu?Não tirei. Um belo dia, de tantosofrer nas mãos dos bandidos enas mãos da polícia ele disse:Chega! Eu não quero mais. Elechegava aqui, isso aqui não eraisso aqui não. Quando eu com-prei, também era umbarraquinho. Isso aqui era daRosa. Você não conheceu a Rosa.Ela queria ir embora, aí e com-prei o barraquinho dela. O bar-raco da minha mãe, eu dei paraa minha filha morar. Um belo dia,ela disse: Mãe, eu vou venderisso aqui porque eles cresceramdemais, não querem ficar aqui,querem ficar com a senhora. Euvou trabalhar, eles ficam aí. Umbelo dia ele chega aqui com doisrevólveres na mão. Aí eu disse:Mas o que é isso? E ele disse: eunasci para ser bandido. E queroser bandido mesmo, porque aí euvou ter meu tênis Nike, roupa.Meu Deus do céu, mas por cau-sa de roupa e sapato você estánesse inferno? É assim mesmo,pelo menos eu tenho meu di-nheiro toda semana na mão.Sabe que idade ele tinha? 15anos. Uma criança. Eu fui falarcom o chefe deles, que era o fi-lho da Helena, o Cosme. Ele dis-se: tia Lourdes, eu não chameiele para ser daqui, ele é que quer,a senhora quer que eu faça oquê? Mas é uma criança. É, ele éuma criança, mas o que a senho-ra quer que eu faça? Eu não pos-so fazer nada. Ele vai fazer o queele quiser. E foi assim. Aos 25

anos, de tanto sofrer na mão dapolícia e na mão dos bandidos,ele disse: Eu não quero mais,acabou e pronto. Deram tironele. Tiro no peito dele, a balapegou aqui e saiu aqui. Aquelacoisa toda. Eu criei direito, masfogem ao controle da gente,mesmo. Olha, eu sofri muitonesta favela. Mas estou aqui, dojeito que sou. Um belo dia eu voumorrer mesmo, e isso vai ficarpara alguém. É a vida.

Minha vida sempre foi traba-lhando, minha filha, trabalhando.

Que brincar! Brincadeira nãofoi feita para a gente, não. Umdia, a minha mãe me pegou an-dando de bicicleta com a filhada madame, lá embaixo, na casaonde ela trabalhava. E eu tinhaum montão de roupa para pas-sar. Ela falou: você já terminoua roupa? Já fiz já, mãe. Ela foi láe molhou a roupa todinha outravez. Falou que eu tinha passadode qualquer maneira e o ferroera de carvão. Ela molhou tudonovamente. Ela disse: Eu querotudo muito bem passado.

Não. Não se brincava aqui,não. Final de semana, nós íamospara a Igreja. Já viu crente brin-car? Meu pai falava: crente nãobrinca. Crente ora. Não tinhaesse negócio de brincadeira, não.Por isso é que eu não acho gra-ça de nada, eu não tive infância.A gente brincava muito lá naroça. Brincava lá, armando arma-dilha para pegar passarinho. Cor-rer, levar cabras para aqui, levarpara lá. No dia que eu chegueiaqui, a coisa era séria, tinhamesmo é que trabalhar muito,para poder sobreviver, senão nãoia dar. Não tinha ninguém paradar nada para gente, não. A gente

A gente brincava

muito lá na roça.

Brincava lá, armando

armadilha para pegar

passarinho. Correr,

levar cabras para

aqui, levar para lá.

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vivia pelo que a gente produzia.Hoje em dia, você chega a umaloja dessa aí, você compra à pres-tação um sapato para o seu fi-lho, roupa. Antes não tinhanada. Foi uma infância muitodura, muito dura mesmo. Anda-va pela casa das madames tra-balhando. Aqui, já tinha umsalariozinho, metade do que pa-gavam para um adulto, mas agente dava graças a Deus de termetade daquele salário.

Não, eu casei a primeira vez.Na segunda, não houve um casa-mento, houve um ajuntamento.

No total são seis filhos. Doisdo primeiro e quatro do segun-do. Os dois primeiros são a Ra-quel (60) e o Joel (61). E depoisvem a Dóris (57), Saulo, Fred,Deise. Você não conhece nem oSaulo e nem a Dóris, eles vivemlá no subúrbio.

Netos eu vou ter que contarnos dedos. O primeiro foi o Ro-gério (Engenheiro Eletrônico,trabalha no Ministério da Justi-ça) e Luciana (ela é uma moçaassim que nem vocês, fez facul-dade, estudada. Ela trabalha naPetrobrás). Filhos do Joel.Wladimir, filho da Raquel. De-pois tem os filhos da Dóris:Verônica , Valéria e o Roberto. Edepois tem o Paulo, que nuncateve filhos, nunca se relacionoucom ninguém. Tem a Deise, quetem os gêmeos: Gláucio eGláucia e a mais velha, que é aGlória, que tem 35 anos. Então,tem três da Deise, um da Raquel,dois do Joel. São nove. Bisnetos,eu já perdi a conta. O Gláuciotem quatro (três garotos), o Eric,Vinícius, Fabrício e Vanessa. De-pois, a Glória tem um, tem 14anos; a Gláucia tem dois; o Wladi,

tem um, mas ficam dois por cau-sa do enteado. Somando comesse, dá nove. A Dóris tem três,um menino e duas meninas; oJoel tem dois. Já tem 14. O doJoel chega o mês que vem. 14com esse que vai chegar. É muitagente! Uma pessoa só colocandoum monte de gente no mundo.

Meu companheiro nunca veioaqui. Isso eu arrumo lá pela rua.É arranjo de rua. É rolo. O certomesmo foi o pai do Joel e da Ra-quel. A gente se casou, mas nemse conheceu direito, que a vidanão deixou.

A dona Renée foi a benfeitoradaqui. A gente não pode negar.

Ajudou! Se tem essas caixasd’àguas, foi tudo idéia dela. Aquinão tinha água. Ela foi atrás dopessoal que tinha dinheiro. Es-trangeiro que tem dinheiro, elaia mesmo. E não era para guar-dar com ela não. Tem muitos poraí que vão lá e pegam dinheirocom eles, como em uma históriaque eu não vou nem citar por-que fica feio falar dos outrospelas costas. Mas ela apanhavao dinheiro e gastava aqui mes-mo. Comprava material de cons-trução. Ela tinha um revólver nacinta, ela era freira, mas andavacom um revólver. Eu soube queela se extinguiu lá no Xingu. Elafoi para lá, não sei como é quefala, mas a ordem que comandaessas freiras requisitou ela parao Xingu, falou que ela já tinhafeito o trabalho aqui no ChapéuMangueira. Ela foi para o Xingue morreu lá. Mas ela contribuiumuito. Quando eram seis horas,ela estava na porta: como é queé, levanta! Seu avô, seu Pereira,seu Lúcio, todo mundo trabalhoumesmo, trabalhou de verdade.

Foi uma infância

muito dura, muito

dura mesmo.

Andava pela casa

das madames

trabalhando.

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Aquela mulher era uma guerrei-ra, vou te contar. Pequenininha,mas tinha fibra. Era uma fran-cesa, mesmo, porreta. Igualàquela eu nunca vi. Se impunha.O pessoal obedecia mesmo. Nãotinha namoro que não fosse des-coberto. Ela não era boba. Quan-do ela dava umas incertas nopoço... e não tinha droga, não ti-nha nada. Ela estava sempre ali.Aí ela foi embora, e isso aqui vi-rou bagunça. Mas uma bagunçaque está pronta, né. A comuni-dade que está pronta. O postode saúde foi ela que implantou;se tem o posto de saúde, ela éque trazia os médicos aqui paracima, para atender à comunida-de. A minha avó mesmo tomavamorfina porque ela ia lá nos hos-pitais e requisitava. Tinha queaplicar morfina porque ela tinhaum câncer de intestino, que,quando a morfina acabava, elagritava feito uma louca. E nãotratava, não tinha a tecnologiaque tem agora. Ela falava: nãoadianta internar ela no hospitalporque é a morfina que vai seraplicada, então ela fica em casaporque aí vocês dão assistência,apoio, aquela coisa toda de ficarcom a família porque ela está emestado terminal. Mas, todo dia,a enfermeira vinha para apli-car e, quando a enfermeira nãovinha, a Renée aplicava porqueela era enfermeira. A gente sópode enaltecer uma pessoa des-sas. Vai esquecer? Não, a gentenão pode esquecer.

O posto médico e a alfabeti-zação à noite, né? Tinha alfabe-tização à noite. Não sei se aindatem. Tem a creche das crianças,que são muito importantes tam-bém para as mães que trabalham.

Elas precisam daquela creche ali.Aquela creche já vem depois dadona Renée. Já vem com outraspessoas, mas, em compensação,está aí. Ainda têm as criançasque ficam do outro lado, embai-xo do posto. Tem uma escolinha,que quando as crianças saem dacreche passam por aquelaescolinha e depois descem paraa rua. Já são matriculadas dire-to lá na rua, no São Thomaz deAquino ou qualquer outra.

Eu fui trabalhar na casa deuma professora, e ela ficou apa-vorada, na Princesa Isabel, pertodo teatro Villa Lobos, em umavila. Ela ficou apavorada porqueeu disse que não sabia ler nemescrever. Eu já estava com 14anos. Fui cozinhar, lavar e pas-sar. Ela ficou com pena e mematriculou na escola Eça deQueiroz. Aquela era a única es-cola do bairro, não tinha outra.Ela era professora no primário,e ela me matriculou. Enquantoela esteve ali, eu trabalhava nacasa dela. Ela lecionava na par-te da tarde. Então, eu chegavabem cedo, fazia todo o serviçoda casa e, quando dava mais oumenos por volta de onze horas,colocava o almoço para ela e parao marido. A louça ficava dentroda pia. Ela pegava a sacola delae a gente ia para o colégio. Eusaí na segunda série: ela foitransferida, e acabou o estudoné, minha filha. Mas, em com-pensação, eu aprendi a ler e aescrever. Já viu a quantidade delivros? Eu leio muito. Tem umasapateira ali cheia de livros.

Eu gosto mais de história.Agora mesmo, eu estou lendoHistória, do meu neto, esse quefoi para o estrangeiro, Ele fez o

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segundo grau. Esse Telecurso.Então, eu vou ali e pego aquelelivro de História do Brasil e leio.Não querem nada com estudo,né, mas você sabe que, nessemeio, eu não tenho nada contraeles, eles me respeitam e eu res-peito eles, mas não sei por queeles têm que falar errado. Sãopessoas que passaram por umcolégio, mas acham bonito falarerrado. Eles não falam dois re-ais; eles falam dois real. Elesacham bonito isso, o que eu pos-so fazer? Cheio de ginga, cheiodaquela coisa...

Trabalho. Lavar, passar, cozi-nhar. Isso é o que eu gosto de fa-zer. É um prazer, arrumar, organi-zar a casa. Eu gosto muito de fazeresse tipo de coisa. Para você ver, aminha casa é pobre, mas é bem lim-pinha, apesar de eu fazer isso umavez na semana, porque, quinta, sex-ta, sábado e domingo, eu estou dooutro lado da cidade. Em Realengo.Eu também trabalho em VilaValqueire e Jacarepaguá. Vou fa-zendo as coisas lá, mas tambémajudando as pessoas. Gente pobreque quase não ganha nada. Entãoeu tenho que ajudar. Por que eu,Maria de Lourdes, gosto de ajudar.Você conhece lá embaixo, o José,Aquele menino, quando a mãemorreu ele estava com cinco anos.O guri era insubordinável, um mo-leque que ninguém agüentava ele.E... sabe: ele chegava aqui e nãorespeitava ninguém. Nem a mãe.Ele tem retardamento mental, e elaachava que a criança com retarda-mento mental não poderia se cor-rigir. Eu chegava aqui, ele metia amão em tudo, jogava tudo no chão.E, de repente, um belo dia, a gentecolocou ele no eixo, porque, antes,ele era bagunceiro. Não pede, mas

a gente ajuda. Deu uma dor de ca-beça, ela foi para o hospital, e osmédicos disseram que ela já iriaentrar em coma. Ela teve uma trom-bose e morreu instantaneamente.Foi uma coisa assim que ninguémesperava. E deixou uma criançaretardada com cinco anos e mais ooutro com sete. E o pai só sabiachorar, sem saber o que fazer comaquela criança. Aí, ele falou com amãe dela, uma portuguesa grossapra caramba, e ela disse meia dú-zia de palavrão, que eu nem ousorepetir para vocês. Disse que quempariu Mateus que o balance, queela não tinha nada com isso. O queeu vou fazer com essa criança? Seilá, vende, dá, faz o que você quiser.Ela falou assim. E ele falando compessoas. Aí falaram que tinha umorfanato. Um abrigo para criançasretardadas em Petrópolis e eu, queleio tudo que aparece, até na casada minha mãe, sabia que aqueleabrigo de crianças estava sob sus-peita, que estavam morrendo mui-tas crianças lá em cima, e nin-guém tomava providência de nada.Aí, quando ele veio falar comigo, aDona Lourdes. Como é que está oJoão? Tem jeito não, eu vou botarele lá em Petrópolis porque, pelomenos lá, ele fica e vem uma vezpor mês. Aí eu falei: não faz issonão cara. A dona Hilda não quertomar conta? Não! Ela já deu o es-touro da boiada. Deixa para lá. Aíeu falei: deixa o garoto comigo. Euestou fazendo agora umas coisaspara vender em casa, não estou tra-balhando fora, estou vendendo unsjogos de marmita. Você deixa elecomigo, que eu cuido dele. Esse aíé o meu jeito de ser, eu gosto deajudar as pessoas. Mas donaLourdes, eu não tenho nem dinhei-ro para lhe pagar. E eu estou te

Já viu a quantidade

de livros? Eu leio

muito. Tem uma

sapateira ali cheia

de livros.

Eu gosto mais de

história.

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pedindo dinheiro? Deixa o meninocomigo, não precisa me dar nadanão. Se eu faço comida, vai sobrar.Eu vou vender comida e vai sem-pre sobrar comida para a casa. Eele come. Deixa que eu cuido, vocênem precisa ir lá. É até bom vocênão ir para não ficar achando quevocê... Criança perde pai e mãe.Você deixa comigo. Ele ficou comi-go aqui, até os dez anos. Ficou cin-co anos comigo. Eu cuidando dele.Eu acabava de fazer comida parafora e cuidava dele. Lavava, cozi-nhava. Só tinha uma coisa: se er-rasse, apanhava. Não faça isso.Coloca isso aí. Não é para mexernão. E ele ficava assim: é tia? É sim,se colocar mão aí, eu te meto ochinelo. Levava ele no médico, che-gava na cantina, ele queria... Euquero um refresco. Aí comprava orefresco, colocava na mão dele. Táaí. Ele me olhou. Aí ele falou, maseu quero. Você não quer nada. Elese espojou no chão. Derrubou nochão, aquela berração. Acho quelembrou da mãe. Ele sempre faziaisso com ela. Aí eu disse: vem cáfilho, vem com a tia. Levei ele láatrás do carro e dei umas belas deumas chineladas nele. Sapatadaboa nele. E disse: agora você jogouo refresco no chão, agora nem re-fresco você tem. E, se você conti-nuar, você vai apanhar mais quan-do chegar em casa. Hoje, eu passoe, se ele está conversando com al-guém ele vem e me abraça. Essaaqui foi quem cuidou de mim. Essadaqui é minha mãe, é minha avó.Entendeu? Porque não faz mal umcorretivo. Não é para maltratar, ésó para corrigir. Mas o Careca nun-ca me deu um tostão. Um belo dia,o João estava com a boca toda in-chada e com dor. Eu disse: o quefoi filho? Está doendo muito, do-

endo muito. Eles davam muito an-tibiótico para ele. Ele não queriacolocar a roupa não. Só decuequinha. Aí eu falava: esse me-nino só de cuequinha, põe umaroupa. Ele não quer. O que ele nãoqueria, não faziam. Não possível,ele vai ficar doente. Estava semprecom pneumonia. Ficava internadodois dias lá no hospital. E enchiamo moleque de antibiótico. Isso ar-rebentou os dentes do moleque. Oque eu vou fazer? Eu telefonei parauma pessoa que eu conhecia, e elafalou que o melhor hospital paracuidar de criança deficiente é oHospital Jesus. Mas você tem quechegar lá pelo menos às seis horasda manhã. Tudo bem. Lá em VilaIsabel. Aí eu fui, falei com a Deise.Hoje você falta ao trabalho porquevocê vai tirar o almoço para mim. Elevei ele lá em Vila Isabel para fa-zer uma avaliação da boca. Fui paralá e fiquei lá o dia inteiro. Fez umaradiografia, fez isso, fez aquilo. Nomesmo dia eles tiraram a radio-grafia do pulmão, do coração por-que menino com deficiência elestinham que avaliar tudo, para ver

Acervo NECC

Alunas entrevistam Maria de Lourdes

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como iam fazer. O médico chegoupara mim e falou que ele estavacom os dentes todo podres, preci-sando de tirar . Como ele é muitonovo, ele vai fazer uma birra dana-da, então nós vamos ter que daranestesia geral, para ele dormirpara os dentistas trabalharem. Osdentes dele estão todos ruins mes-mo. Temos que fazer flúor, fazercanal, tudo no mesmo dia. A se-nhora vai e volta porque nós va-mos lhe telefonar para dizer o diaem que ele vai fazer a cirurgia. Ummês depois, eles me chamaram:amanhã, seis e meia da manhã,você aparece aqui porque ele vaifazer a cirurgia. Ele foi o primeiroa ser chamado. E assim foi. Eles tra-balharam das sete até mais oumenos às cinco da tarde. O mole-que saiu cambaleando. Eu estoucom fome, tia. Eu disse: eu tam-bém estou. Passei a mão nele, co-loquei ele nas costas, peguei umônibus, e meu sobrinho trouxe eleda Princesa Isabel até aqui. É umser humano que precisa de cuida-dos. Hoje em dia ele diz: se nãofosse a senhora, dona Lourdes, nãosei o que seria do João. Eu disse:não precisa render homenagempara mim não, porque o que fiz paravocê eu faria para qualquer um. Eusou assim, eu gosto de contribuir.Dentro do meu limite. Uma vez,uma colega disse: você tem queguardar dinheiro para você desfi-lar pelo bloco aí. Vestir uma baiana.Eu disse: eu não fui criada paradançar carnaval. Se você precisa dacontribuição do meu dinheiro euaté dou. Para armar o bloco de vocêsaí. Agora, para brincar junto comvocês, eu nunca fiz isso, então porque eu vou fazer agora.

Não, de carnaval, não. A nãoser que tenha uma festa benefi-

cente, onde eu possa contribuir,aquela coisa toda. Mesmo porqueeu nunca fui dada a festas. Eu nãogosto. Eu gosto mais de ficar nosbastidores. Se precisar que eu válá fazer a comida, eu até vou. Fa-zer os doces, fazer qualquer coisa.Agora, ficar lá na frente dos bas-tidores, lá na frente, não. Eu nãofui criada para isso. É da pessoa,né? Isso é muito pessoal.

A juventude de hoje vejo commuita dó. Com muita dó, porque,de cem, você tira três, quatro,que têm uma educação. As me-ninas, a Taty sabe, elas, malmenstruam, e já estãoengravidando. Se a mãe sabe quea filha está menstruando e estájá de olho em um garoto, levapara o médico, toma anticoncep-cional, não faz mal nenhum. Fa-zer amor, como eu sempre falopara eles, para os meus filhos,netos, vizinhos que vêm me per-guntar. Fazer amor não é fazerfilho, não. Já foi tempo. Antiga-mente a gente tinha muito fi-lho porque não tinha os preser-vativos que têm hoje. Hoje não,as meninas, eu vejo, elas nãotem muito futuro. Essa aí ( Taty)é uma exceção. Eu nem sabiaque ela estava fazendo jornalis-mo. Ninguém me conta nada, eunão sei de nada. Essa menina eoutras que podiam, sei lá. Me-ninas bonitinhas. Todo lugar, euvejo lá no subúrbio, tudo igual.Elas não têm aquela coisa. Aminha bisneta, por exemplo, apágina dela de relacionamentosno Orkut. A Vanessa gostosa. Aprima dela: ela é promíscua, avó.Que coisa feia! Em vez de estu-dar, o pai já morando lá fora, elapoderia muito bem estudar láfora. Mas o pai não tem... ele

Fazer amor não é

fazer filho, não. Já

foi tempo. Antiga-

mente a gente

tinha muito filho

porque não tinha os

preservativos.

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teme por ela. Ela vai lá para fora,para quê? Ainda mais com amentalidade dela. Vai atrás degaroto, não pode ser assim.Iguais a ela, tem muitas assim.Eu não vejo muita perspectiva devida para eles não. Aqui teve oPasquale, um amigo, marido daCatarina. Ele tentou colocar umcurso de Francês aqui: alguémfreqüentou? Ninguém. Não tinhaque pagar nada, era só freqüen-tar as aulas. Ele foi embora por-que não conseguiu nada aqui.Acho até que ele foi transferidopara a França. Eles trabalhavamaqui em uma multinacional. Foiembora. Se ele colocou aqui umcartaz dizendo que lecionavaFrancês, tal dia , tal dia, não erapara ter freqüentado? Não tinhaque pagar nada. Era a oportuni-dade de aprender mais um idio-ma. Não vejo perspectiva de vidapara elas, infelizmente não vejo.Estão muito atrasadas. Muitomesmo. Mesmo porque, nas es-colas, não estão dando a míni-ma. O professor ganha igual auma empregada doméstica. NaBarra, tem empregada domésti-ca ganhando dois, três saláriosmínimos, enquanto que profes-sor, agora é que vão pagar nove-centos e cinqüenta. Não se fazisso! Afinal, se a pessoa estu-dou, ele faz jus ao que a pessoaestudou. Você está fazendo jor-nalismo. Amanhã ou depois, vocêvai aceitar ganhar um salário mí-nimo? Dois salários? Não! Eu es-tudei jornalismo, eu quero seruma jornalista. Eu acho que eusou boa, então eu vou pegar umaempresa que valorize o meu tra-balho. Eu acho que é por aí. Omédico estuda pra caramba, vaipara um posto de saúde, traba-

lha à noite toda atendendo pa-ciente e ganha mil e duzentosreais. Isso é cretinice, isso nãose faz. Não valorizar a mão deobra de um médico, não valo-rizar a mão de obra de um pro-fessor, peraí. Que isso? Isso éarbitrário. Depois aquela me-nina, Cristiane Brasil, diz queo Brasil é um país pobrezinho.Eu fiquei olhando. Eu digo: elaestá de gozação. Vocês achamo Brasil um país pobrezinho?Eu também não.

Taty- Obrigada!

Luciana- Obrigada! Nós vol-taremos.

Maria de Lourdes- Podem vol-tar, ficarei esperando vocês.

O professor ganha

igual a uma empre-

gada doméstica. Na

Barra, tem empre-

gada doméstica

ganhando dois, três

salários mínimos,

enquanto que pro-

fessor, agora é que

vão pagar novecen-

tos e cinqüenta.

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