comportamento/ erudito pesquisa asem

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Diversão&arte Brasília, domingo, 21 de abril de 2013 CORREIO BRAZILIENSE 5 » LEONARDO COELHO ESPECIAL PARA O C CO OR RR RE EI IO O R io de Janeiro — Assim co- mo uma impressão digital, cada instru- mento de corda feito por um luthier, seja ele um violino, viola ou vio- loncelo, é único, mes- mo que não pareça à primeira vista. Entretanto, boa parte desses instrumentos existentes hoje são cópias de modelos já consagrados co- mo os de Stradiva- rius, Stainer, Saló, entre outros seletos cons- trutores europeus. Assim, um dos últimos degraus que um luthier po- de aspirar é justamente construir um modelo pra chamar de seu, a partir do qual poderá ser copiado, e não mais apenas copiar. No Brasil, porém, há um modelo de violino, viola e vio- loncelo ainda mais original que os ou- tros, uma vez que seu artesão o fez inspirado pelos novos ventos que so- pravam do Centro-Oeste brasileiro nos anos 1950/60: o Brasiliano. Projetado e construído pelo luthier brasileiro Guido Pascoli (1905-1986), em 1958, para homenagear a construção de Brasília, o modelo intitulado de Brasilia- no inovou completamente a estética da luteria até então, caracterizada tradicio- nalmente por linhas suaves e refinadas, bem exemplificadas nos instrumentos de Stradivarius, que servem de modelo e referência até os dias de hoje. O visual diferenciado dos instrumen- tos desse modelo, com linhas que se quebram, uma voluta quadrada, efes (aberturas acústicas) angulosos, e em al- guns instrumentos até uma pintura feita em verniz das colunas do Palácio da Al- vorada foram inspiradas na arquitetura única de Brasília. Como faz questão de pontuar o luthier Orlando Ramos, discí- pulo de Guido e um dos poucos luthiers que faz instrumentos de corda sob tal modelo, “o Brasiliano não foi criado só pra fazer um desenho diferente. Existe um porquê técnico de tudo aquilo.” Guido, natural de Itobi, interior paulista, começou a tra- balhar não como lu- thier, mas como mar- ceneiro-aprendiz sob a tutela de Be- venuto Pascoli, seu irmão. Porém, em 1920, ambos se mudaram pa- ra São Paulo com o intuito de se tornarem luthiers. Na capital, Guido co- meçou um expedien- te duplo: de dia tra- balhava numa fábrica de móveis e, durante a noite, finalizava e enver- nizava violões na fábrica da Di Giorgio. Apenas em 1922 os dois conseguiram dedi- car-se à luteria em tempo integral na Casa de Música e Luteria Cremona. Porém, foi no Rio de Janeiro que Guido começou a de- linear sua trajetória enquanto luthier. Uma pesquisa em jornais de época, em especial o A Noite da década de 1930, ex- põe sua agitada vida enquanto profissio- nal. Pascoli, com um diretor de orquestra chamado Bartolomeu Livolsi, comprou algumas toras de sustentação do antigo Teatro Lyrico do Rio, que ficava na atual Avenida Treze de Maio, no Centro. Por se- rem de abeto europeu, elas eram perfei- tas para a confecção de violinos. Tendo em vista que a demolição do Teatro Lyrico foi bastante coberta pela mídia da época, em especial pelo A Noi- te, Guido e Livolsi resolveram promover, com o jornal, um concurso para esco- lher um/uma violinista que ganharia um instrumento feito exclusivamente com a madeira do antigo teatro. A ven- cedora foi uma violinista de apenas 12 anos na ocasião, chamada Yolanda Maurity Saboia. Posteriormente, a me- nina se transformou em uma violinista requisitada, trabalhando inclusive no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela também é mãe do compositor ca- rioca Antônio Adolfo. ERUDITO POUCO CONHECIDO, MODELO DE INSTRUMENTO DE CORDA INSPIRADO NAS LINHAS ARQUITETÔNICAS DE BRASÍLIA FAZ 55 ANOS, RELEMBRANDO A VIDA DO LUTHIER GUIDO PASCOLI Pesquisa Dono de uma curiosidade in- saciável e radical no que diz res- peito à construção de instru- mentos, quebrando qualquer regra que acreditasse tolher uma eventual melhora, Guido foi um grande pesquisador e inovador na complexa enge- nharia acústica e estética que é a luteria. De acordo com seu ne- to, e também luthier, Marcus Goulart, Guido testou tudo o que era possível na luteria, indo do verniz à construção de arcos, chamada de archeteria. “Mas sua maior pesquisa foi mesmo o Brasiliano”, conclui. Outro pon- to ressaltado por Marcus está na incessante busca de seu avô por substituir as madeiras tradi- cionais na construção de instru- mentos de corda (abeto, bordo e ébano) por equivalentes nacio- nais ou mais em conta financei- ramente, tais como a grumicha- va e a coração-de-negro. Atualmente, instrumentos feitos sob a forma do Brasiliano são difíceis de se encontrar entre violinistas, violistas ou violonce- listas. O professor de viola da Es- cola de Música da UFRJ e arche- tier Alysio de Mattos, músico profissional há mais de 40 anos, confessa que poucas vezes viu um instrumento do modelo bra- siliano ao vivo. “Eu mesmo nun- ca tive a oportunidade de tocar com um desses instrumentos, mas posso dizer que a viola que ouvi tocar tinha um som bom, ainda que parecesse ser um ins- trumento muito pesado.” Sonoridade A suspeita de Alysio real- mente corresponde. De acordo com Marcelo Nébias, violista da Filarmônica de Minas Gerais que possui uma viola brasilia- na, seu instrumento realmente pesa mais do que as tradicio- nais. A razão parece decorrer justamente das próprias inova- ções técnicas de Guido, que, de acordo com Marcelo, a cons- truiu com madeiras nacionais. “Você precisa ter uma pegada boa para tirar som dela”, afir- ma. “Mas ela possui uma sono- ridade bastante precisa, poten- te, muito diferente das outras”. O instrumento, comprado em Brasília pelo pai de Marce- lo, Diógenes Nébias, através do próprio Guido, expõe ainda a curta estada do luthier na nova capital, que começou, ironicamente, após as respon- sáveis pela Oficina Básica de Música, que visava fomentar uma produção semi-indus- trializada de instrumentos musicais, que criaria uma ba- se material sob a qual a difu- são do ensino de música pode- ria aumentar e se consolidar. Entretanto, pela falta de ma- terial, o projeto foi desativado. Popularização No Rio de Janeiro, mesmo após se aposentar, Guido con- seguiu organizar um de seus principais sonhos profissio- nais: criar uma escola de lute- ria. Em 1976, Guido organizou junto à recém-criada Funarte o Projeto Luteria, parte de um projeto maior que visava po- pularizar o ensino de música no país. A escola-oficina fun- cionou temporariamente na garagem do Palácio do Catete e, por fim, transferiu-se para uma escola no bairro de Quin- tino. Entretanto, por conta da idade avançada e de uma doença, Guido ficou cego, o que ironicamente não o fez menos exigente, como lem- bram todos os seus alunos da época, em especial o luthier Orlando Ramos. “Toda vez que terminávamos algum traba- lho, precisávamos dar o ins- trumento a ele, que mesmo cego sentia no tato o resulta- do. Em muitas ocasiões, ape- nas pelo som do corte ele já sabia que estávamos errando.” Em uma antiga reportagem de jornal da década de 1970, a profissão de luthier foi categori- zada como um dos “trabalhos das profissões sem esperança”, que, inevitavelmente, iriam de- saparecer. Hoje, 27 anos após a morte de Guido e 55 depois da construção do modelo Brasilia- no, percebe-se que, se o ofício de luthier não desapareceu no país, muito se deve a Guido Pas- coli e a coragem de sua inova- ção inspirada pelas linhas de Brasília, que envernizaram o país na história da luteria. A A T T R R A A J J E E T T Ó Ó R R I I A A D D O O L L U U T T H H I I E E R R Brasiliense, BRASILIANO, BRASILEIRO Detalhes dos instrumentos produzidos por Guido Pascoli em homenagem à criação de Brasília O mestre Guido: 66 anos como luthier Yolanda: ganhadora de um vilonino Fotos: Leonardo Coelho/Divulgação Jornal A noite de 1934/Reprodução Leonardo Coelho/Divulgação

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4 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 21 de abril de 2013 • Diversão&arte

COMPORTAMENTO / NO DIA DO ANIVERSÁRIO DA CIDADE, CINCO ARTISTASESTRANGEIROS REVELAM AS IMPRESSÕES DE VIVER E CRIAR EM BRASÍLIA

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mFR

ON

TEIR

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» MARIANA MOREIRA

Quando saiu das pranchetas e virou realida-de em concreto armado, Brasília convul-sionou o imaginário nacional. Terra feitade muitas caras, povos e tradições diferen-

tes, a capital se construiu, lentamente, no encon-tro dessas diferenças. Se o olhar do outro não é fá-cil para brasileiros, imagine para artistas estran-geiros que desembarcaram por aqui. Apesar dascontradições e dificuldades, alguns deles decidi-ram criar raízes na cidade, e agora contam aoCorreio um pouco das descobertas, estranha-mentos e da identidade que deram à nova casa.

Primeiras ilusões»Leo Sykes*

“Estou em Brasília há quase 17 anos. O que metrouxe à cidade foi um palhaço brasiliense, que meconvidou para passar o réveillon no Rio, o carnaval emFloripa, e depois conhecer a casa dele, em Brasília. Umano mais tarde, fui presa como imigrante ilegal e agente se casou. Em 2013, completamos 15 anos de ca-sados e temos duas meninas lindas. Cheguei em janei-ro de 1997, no meio do projeto Temporadas Populares.Na primeira noite, vi um show de Antônio Nóbrega e,nas outras noites, vários espetáculos maravilhosos.Achava que tinha chegado num grande centro cultural.Mas o governo mudou e vi que tinha sido enganada.

Foi difícil me adaptar à falta de pontualidade dosbrasileiros. Também gosto de poder andar pelas ruas,usando minhas próprias pernas. Sou de Londres, umgrande centro onde se pode ver arte da mais alta quali-dade e de diversas origens, todos os dias. Então, o isola-mento que a gente sofre em BrasIlha (citando o poetaNicolas Behr) é um fator radicalmente diferente. Na In-glaterra, a gente fica mais nutrida pelos outros artistas,mas ao mesmo tempo, talvez precise de mais cuidadopara manter o foco na nossa própria arte.

Faltam verba e política cultural na cidade. Tambémhá poucos espaços acessíveis de ensaio, porque o PlanoPiloto é absurdamente caro (O Udigrudi, companhia quedirige, faz 30 anos neste ano e ainda não tem sede). Gra-ças a festivais como o Cena Contemporânea e a eventostrazidos pelo Centro Cultural Banco do Brasil e a Caixa, agente consegue ver o que acontece lá fora, mas há umcerto isolamento da maioria dos grandes acontecimen-tos culturais. Esse isolamento, por outro lado, nos per-mite focar e produzir sem maiores distrações ou pres-sões. O fundamental é o carinho do público, que semprenos dá coragem de continuar fazendo o que fazemos.”

** LLeeoo SSyykkeess,, iinngglleessaa,, ddiirreettoorraa ddoo CCiirrccoo TTeeaattrroo UUddii--ggrruuddii,, eessttáá eemm LLoonnddrreess ddeessddee 22001111,, aaccoommppaannhhaannddoooo mmaarriiddoo,, qquuee ccuurrssaa sseeuu PPhhDD,, mmaass vvoollttaa aa BBrraassíílliiaaeennttrree aaggoossttoo ee sseetteemmbbrroo,, ppaarraa eennssaaiiaarr uumm eessppeettáá--ccuulloo iinnééddiittoo ddoo UUddiiggrruuddii ,, qquuee sseerráá eenncceennaaddoo nnooCCeennttrroo CCuullttuurraall BBaannccoo ddoo BBrraassiill..

Horizonte fotografia»Olivier Boëls*

“Vim parar em Brasília por causa de uma meninaque conheci em Paris. O Brasil tem uma imagem muitoboa na França, e não é ligada ao estereótipo de carnaval,futebol e favela: os franceses gostam da alegria dos bra-sileiros. Cheguei aqui em 1995, e, de lá para cá, a paisa-gem mudou bastante, há muito mais pessoas e trânsito.Me lembro de que o aspecto era o de uma vila fantasma,como se a cidade tivesse ficado pronta, mas ainda espe-rasse por seus habitantes. Como não gosto de cidadescompactas e cheias de arranha-céus, me encantei comesse jeito de cidade relativamente grande, mas com ho-rizonte visível e pouca poluição.

Lá fora, é muito difícil organizar uma exposição defotografia. O pessoal libera a galeria, mas é preciso se vi-rar pra arrumar o resto. As oportunidades de editais sãomuito raras e é difícil viver de fotografia. No Canadá, ha-via um programa para artistas, mas a maioria se susten-tava fazendo casamentos ou trabalhava com fotojorna-lismo, ou em lojas de fotografia.

Uma tendência recente é a padronização: os jornaisprecisam sair iguais com as mesmas fotos, e assim quecheguei aqui não notava isso. No Canadá, cada jornal ti-nha sua linha de trabalho bem específica. Há tambémuma precarização das relações de trabalhos. Conversocom muitos colegas desencantados com a profissão, pornão poderem desenvolver o trabalho da maneira comogostariam nos veículos nos quais trabalham. O outro la-do é que essa realidade traz outras possibilidades de vi-ver da fotografia. É preciso ser criativo e botar os neurô-nios para funcionar.

O maior desafio de fotografar em Brasília é huma-nizar a imagem. Os espaços são gigantescos e quasenão há gente circulando. A estrutura arquitetônicapretendia juntar, mas dilui a massa. A fotografia bra-sileira é fantástica, tem nível altíssimo e não deixa na-da a dever para outros países.”

** OO ffrraannccêêss OOlliivviieerr BBooëëllss vviiaajjaa oo mmuunnddoo ddeessddee ooss 1199 aannoossddee iiddaaddee,, ee ooss ppaaíísseess nnooss qquuaaiiss ppeerrmmaanneecceeuu ppoorr mmaaiisstteemmppoo ffoorraamm ssuuaa FFrraannççaa NNaattaall,, ÍÍnnddiiaa ee CCaannaaddáá.. OO ffoottóó--ggrraaffoo,, qquuee aanntteess ttrraabbaallhhaavvaa ccoommoo cchheeff ddee ccoozziinnhhaa,, ffaarrááuummaa eexxppoossiiççããoo ccoolleettiivvaa ((ccoomm mmaaiiss ttrrêêss ccoolleeggaass ddee ooffíícciioo))tteennddoo BBrraassíílliiaa ccoommoo tteemmaa..

Choro contagiante»TedFalcon*

“Moro no Brasil há cinco anos, há quatro estouem Brasília. Antes de me mudar pra cá, visitei o paísalgumas vezes para estudar choro. Estive em Brasí-lia, pela primeira vez, em 2006, para visitar PabloFagundes, que conheci em Nova York quando lan-çava meu primeiro CD de música brasileira. Depoisconhecia minha futura mulher brasiliense, naBahia, e me mudei pra cá. No Rio e em São Paulo,logo que cheguei, pude conhecer de perto, em ro-das de choro e festivais, grandes referências, comoHamilton de Holanda, Yamandú Costa, ArmandinhoMacedo, que são muito acessíveis e generosos comsua música, não têm nenhuma “frescura”.

Em Brasília, fiquei impressionado com a quanti-dade e a qualidade das rodas de choro, dos músicosmuito bons que existem aqui. Também me impres-sionou o nível da informalidade: o choro é uma mú-sica que se faz em bares, tomando cerveja, curtindocom os amigos. Nos Estados Unidos, uma música tãocomplexa e sofisticada como o choro é apresentadaem teatro, ou em locais onde o público assiste aoshow como a um concerto, mais formal.

Minha maior dificuldade foi lidar com a falta de es-paços e projetos para a música instrumental. Hoje, luga-res que ofereciam essas possibilidades foram fechadospor questões burocráticas. Aliás, acho a burocracia algoincrível por aqui. Também morei em cidades americanasque ofereciam mais opções de trabalho para os músicos,mais clubes (espaços para música), mais museus, me-lhor transporte público, e onde há muita opção de servi-ços 24 horas. Os melhores do mundo do jazz estão to-cando todo dia em Nova York. E aqui não temos oportu-nidade de ver coisas assim com muita frequência.

Nos Estados Unidos, há muitas produções de cinema,

tevê, eventos e gravações musicais. Eu recebia muitosconvites de trabalho em todas essas áreas. Há editais depatrocínio aqui no Brasil, que dão chance para o artistaproduzir seus próprios trabalhos. A dificuldade e conse-guir aprovar os projetos, o nível de dificuldade e de buro-cracia é enorme. Sem falar na concorrência, com muitosartistas e projetos bons tentando a mesma vaga”

** OO aammeerriiccaannoo TTeedd FFaallccoonn ttrraabbaallhhoouu eemm NNoovvaa YYoorrkk eeLLooss AAnnggeelleess ccoommoo mmúússiiccoo ee pprrooffeessssoorr ddee mmúússiiccaa mmuuii--ttooss aannooss.. AAttuuaallmmeennttee,, ddeeddiiccaa--ssee aaoo TTrriioo OObblliivviioonn,, ddeettaannggoo,, àà bbaannddaa JJaammbbrroossiiaa,, mmaaiiss vvoollttaaddaa ppaarraa oo rroocckk,, aaooqquuaarrtteettoo GGiippssyy JJaazzzz CClluubbee ee àà pprroodduuççããoo ddee uumm ddiissccoo eemmppaarrcceerriiaa ccoomm oo ggaaiittiissttaa PPaabblloo FFaagguunnddeess..

Sol que alegra»DorkaHepp *

“Meu vínculo com o Brasilcomeçou em Portugal. Dan-çava em uma companhia por-tuguesa com um brasileiro eestive em Brasília duas vezes,me apresentando. Na terceiravez, vim para passar férias,mas avisei a família que, searrumasse algo para fazer,acabaria ficando. Conseguitrabalho na Faculdade de Ar-tes Dulcina de Moraes e, pou-co depois, entrei pro elencodo baSiraH (companhia dedança contemporânea).

Os brasileiros têm alegria de viver. Eu andava deônibus e via gente simples sempre feliz. Na Europa, tu-do é fácil e se reclama muito. Aqui, as pessoas lutamsorrindo. Eu conversava com qualquer um e era sem-pre acolhida. Outra diferença é o sol e a luminosidadede Brasília. Quando acabava a luz de verão e chagava ooutono europeu, eu ficava deprimida. Por aqui, fico tris-te, mas no outro dia o sol aparece e já me sinto melhor.

Dançar na Europa é mais fácil entre aspas. A con-corrência é muito grande, vem gente de todos os paí-ses para fazer audição. Uma vez que o bailarino foiselecionado, porém, sabe que terá contrato e saláriomantidos com segurança. Aqui, não há editais de ma-nutenção, são raras as companhias que contam comapoio constante. A gente fazia porque acreditava notrabalho, que um dia conseguiria a manutenção, masera impossível viver da companhia de dança.

Tive muita sorte de fazer parte do baSiraH, masvia um certo amadorismo em algumas companhiasde dança. Os criadores queriam agradar, então fa-ziam o café com leite. Na Europa, chutavam o balde,havia ousadia e inovação. Enquanto, na Europa,existia a Pina Bausch, há 30 anos, no Brasil, a Debo-rah Colker surgia. A tradição da dança na Europaera usar o movimento para se expressar, mas perce-bia que o público brasileiro queria ver algo bonito.Ainda existe uma atenção excessiva ao que é nacio-nal ou internacional, mas os espectadores brasilei-ros começam a enxergar outras opções. E a cena dedança em Brasília tem ganhado em variedade”

** MMoorraaddoorraa ddee BBrraassíílliiaa ddeessddee 11999977,, aa bbeellggaa DDoorrkkaa HHeeppppddáá aauullaass ddee bbaalléé ppaarraa ccrriiaannççaass ee iinntteeggrraa uumm pprroojjeettoo ddeeddaannççaa ccoonntteemmppoorrâânneeaa eemm SSããoo SSeebbaassttiiããoo..

Excesso burocrático»AtawalpaCoello*

“Deixei Lima, no Peru, e vim para o Rio de Janeiro aos15 anos, para estudar na Escola Nacional de Circo. Como omercado de artistas de rua estava saturado por lá, decidime mudar para Brasília. Comecei dando aulas e fui me de-senvolvendo. Hoje, tenho família aqui. A língua foi minhamaior dificuldade no começo. Por ser uma arte pura, a tra-dição do circo e do teatro é mais presente lá, mas aqui hámais apoio aos artistas. Nos outros países da América Lati-na, é preciso se desenvolver por si. Mas aqui há excesso deburocracia para se conseguir financiamento para projetos.Percebo que estão surgindo editais on-line, então tenhoesperança de que o processo seja simplificado.

Outro contraste é o fato de, no meu país, o artista es-tudar as culturas dos indígenas de lá e dos incas, en-quanto Brasília, e consequentemente o Brasil, tem suaprópria cultura e as tradições populares. Poderia, no en-tanto, haver mais misturas: trazer os índios de lá paratrocas culturais com a população indígena daqui, juntarnossas culturas afro, que são diferentes. As feiras de in-tercâmbio têm começado a permitir isso.”

** AAttaawwaallppaa CCooeelllloo ee aa mmuullhheerr,, EErriikkaa MMeessqquuiittaa,, ccrriiaarraamm ooCCiirrccoo RReebboottee,, ccoommppaannhhiiaa ddee cciirrccoo--tteeaattrroo qquuee vviiaajjaa oo mmuunn--ddoo ccoomm sseeuuss nnúúmmeerrooss ee aaccrroobbaacciiaass.. AAlléémm ddiissssoo,, oo ppeerruuaannooéé pprrooffeessssoorr ddee aarrttee cciirrcceennssee.. NNoo mmoommeennttoo,, ppllaanneejjaa mmaaiissuumm ggiirroo ppeellaa EEuurrooppaa,, lleevvaannddoo eessppeettááccuullooss nnaa bbaaggaaggeemm..

Isabela Lyrio/Divulgação

AtawalpaCoello voa ao lado daTorre de TV

Luis Jungmann Girafa/Divulgação

Mariana Leal/Divulgação Rafael Ohana/CB/D.A Press - 11/10/11

Dani Oliveira/Reprodução

Dalton Camargos/Divulgação

Diversão&arte • Brasília, domingo, 21 de abril de 2013 • CORREIO BRAZILIENSE • 5

» LEONARDO COELHOESPECIAL PARA O CCOORRRREEIIOO

Rio de Janeiro — Assim co-mo uma impressão digital,cada instru-mento de

corda feito por umluthier, seja ele umviolino, viola ou vio-loncelo, é único, mes-mo que não pareça à primeiravista. Entretanto, boa partedesses instrumentosexistentes hoje sãocópias de modelosjá consagrados co-mo os de Stradiva-rius, Stainer, Saló,entre outros seletos cons-trutores europeus. Assim, um dosúltimos degraus que um luthier po-de aspirar é justamente construir ummodelo pra chamar de seu, a partirdo qual poderá ser copiado, e nãomais apenas copiar. No Brasil, porém,há um modelo de violino, viola e vio-loncelo ainda mais original que os ou-tros, uma vez que seu artesão o fezinspirado pelos novos ventos que so-pravam do Centro-Oeste brasileironos anos 1950/60: o Brasiliano.

Projetado e construído pelo luthierbrasileiro Guido Pascoli (1905-1986), em1958, para homenagear a construção deBrasília, o modelo intitulado de Brasilia-no inovou completamente a estética daluteria até então, caracterizada tradicio-nalmente por linhas suaves e refinadas,bem exemplificadas nos instrumentosde Stradivarius, que servem de modelo ereferência até os dias de hoje.

O visual diferenciado dos instrumen-tos desse modelo, com linhas que sequebram, uma voluta quadrada, efes(aberturas acústicas) angulosos, e em al-guns instrumentos até uma pintura feitaem verniz das colunas do Palácio da Al-vorada foram inspiradas na arquiteturaúnica de Brasília. Como faz questão depontuar o luthier Orlando Ramos, discí-pulo de Guido e um dos poucos luthiersque faz instrumentos de corda sob talmodelo, “o Brasiliano não foi criado sópra fazer um desenho diferente. Existeum porquê técnico de tudo aquilo.”

Guido, natural de Itobi, interiorpaulista, começou a tra-

balhar não como lu-thier, mas como mar-

ceneiro-aprendizsob a tutela de Be-

venuto Pascoli, seuirmão. Porém, em 1920,

ambos se mudaram pa-ra São Paulo com o intuito

de se tornarem luthiers.Na capital, Guido co-

meçou um expedien-te duplo: de dia tra-

balhava numa fábricade móveis e, durante a

noite, finalizava e enver-nizava violões na fábrica da Di Giorgio.

Apenas em 1922 os dois conseguiram dedi-car-se à luteria em tempo integral na Casade Música e Luteria Cremona. Porém, foino Rio de Janeiro que Guido começou a de-linear sua trajetória enquanto luthier.

Uma pesquisa em jornais de época, emespecial o A Noite da década de 1930, ex-põe sua agitada vida enquanto profissio-nal. Pascoli, com um diretor de orquestrachamado Bartolomeu Livolsi, comproualgumas toras de sustentação do antigoTeatro Lyrico do Rio, que ficava na atualAvenida Treze de Maio, no Centro. Por se-rem de abeto europeu, elas eram perfei-tas para a confecção de violinos.

Tendo em vista que a demolição doTeatro Lyrico foi bastante coberta pelamídia da época, em especial pelo A Noi-te, Guido e Livolsi resolveram promover,com o jornal, um concurso para esco-lher um/uma violinista que ganhariaum instrumento feito exclusivamentecom a madeira do antigo teatro. A ven-cedora foi uma violinista de apenas 12anos na ocasião, chamada YolandaMaurity Saboia. Posteriormente, a me-nina se transformou em uma violinistarequisitada, trabalhando inclusive noTheatro Municipal do Rio de Janeiro.Ela também é mãe do compositor ca-rioca Antônio Adolfo.

ERUDITO

POUCO CONHECIDO, MODELO DEINSTRUMENTO DE CORDA INSPIRADONAS LINHAS ARQUITETÔNICAS DEBRASÍLIA FAZ 55 ANOS, RELEMBRANDOA VIDA DO LUTHIER GUIDO PASCOLI

Pesquisa

Dono de uma curiosidade in-saciável e radical no que diz res-peito à construção de instru-mentos, quebrando qualquerregra que acreditasse tolheruma eventual melhora, Guidofoi um grande pesquisador einovador na complexa enge-nharia acústica e estética que éa luteria. De acordo com seu ne-to, e também luthier, MarcusGoulart, Guido testou tudo o queera possível na luteria, indo doverniz à construção de arcos,chamada de archeteria. “Massua maior pesquisa foi mesmo oBrasiliano”, conclui. Outro pon-to ressaltado por Marcus estána incessante busca de seu avôpor substituir as madeiras tradi-cionais na construção de instru-mentos de corda (abeto, bordo eébano) por equivalentes nacio-nais ou mais em conta financei-ramente, tais como a grumicha-va e a coração-de-negro.

Atualmente, instrumentosfeitos sob a forma do Brasilianosão difíceis de se encontrar entreviolinistas, violistas ou violonce-listas. O professor de viola da Es-cola de Música da UFRJ e arche-tier Alysio de Mattos, músicoprofissional há mais de 40 anos,confessa que poucas vezes viuum instrumento do modelo bra-siliano ao vivo. “Eu mesmo nun-ca tive a oportunidade de tocarcom um desses instrumentos,mas posso dizer que a viola queouvi tocar tinha um som bom,ainda que parecesse ser um ins-trumento muito pesado.”

Sonoridade

A suspeita de Alysio real-mente corresponde. De acordocom Marcelo Nébias, violista daFilarmônica de Minas Geraisque possui uma viola brasilia-na, seu instrumento realmentepesa mais do que as tradicio-nais. A razão parece decorrerjustamente das próprias inova-ções técnicas de Guido, que, deacordo com Marcelo, a cons-truiu com madeiras nacionais.“Você precisa ter uma pegadaboa para tirar som dela”, afir-ma. “Mas ela possui uma sono-ridade bastante precisa, poten-te, muito diferente das outras”.

O instrumento, compradoem Brasília pelo pai de Marce-lo, Diógenes Nébias, atravésdo próprio Guido, expõe aindaa curta estada do luthier nanova capital, que começou,ironicamente, após as respon-sáveis pela Oficina Básica deMúsica, que visava fomentaruma produção semi-indus-tr ial izada de instrumentosmusicais, que criaria uma ba-se material sob a qual a difu-são do ensino de música pode-ria aumentar e se consolidar.Entretanto, pela falta de ma-terial, o projeto foi desativado.

Popularização

No Rio de Janeiro, mesmoapós se aposentar, Guido con-seguiu organizar um de seusprincipais sonhos profissio-nais: criar uma escola de lute-ria. Em 1976, Guido organizoujunto à recém-criada Funarteo Projeto Luteria, parte de umprojeto maior que visava po-pularizar o ensino de músicano país. A escola-oficina fun-cionou temporariamente nagaragem do Palácio do Catetee, por fim, transferiu-se parauma escola no bairro de Quin-tino. Entretanto, por conta daidade avançada e de umadoença, Guido ficou cego, oque ironicamente não o fezmenos exigente, como lem-bram todos os seus alunos daépoca, em especial o luthierOrlando Ramos. “Toda vez queterminávamos algum traba-lho, precisávamos dar o ins-trumento a ele, que mesmocego sentia no tato o resulta-do. Em muitas ocasiões, ape-nas pelo som do corte ele jásabia que estávamos errando.”

Em uma antiga reportagemde jornal da década de 1970, aprofissão de luthier foi categori-zada como um dos “trabalhosdas profissões sem esperança”,que, inevitavelmente, iriam de-saparecer. Hoje, 27 anos após amorte de Guido e 55 depois daconstrução do modelo Brasilia-no, percebe-se que, se o ofíciode luthier não desapareceu nopaís, muito se deve a Guido Pas-coli e a coragem de sua inova-ção inspirada pelas linhas deBrasília, que envernizaram opaís na história da luteria.

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Brasiliense,BRASILIANO,BRASILEIRO

Detalhes dos instrumentosproduzidos porGuidoPascoli emhomenagemà criação deBrasília

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Yolanda: ganhadorade um vilonino

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Jornal A noite de 1934/ReproduçãoLeonardo Coelho/Divulgação