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ESTUDOS CONSTITUCIONAIS 172 COMPLEXIDADE, PRECEDENTES E TRIBUTAÇÃO – NOVOS PARADIGMAS PARA O ESTUDO DO DIREITO TRIBUTÁRIO. Luis Carlos Roveda Caio Rios Silva Elaine Graciela Tibes Pereira Marcelo Vitorino Edson Mercuri Resumo O presente artigo é fruto do trabalho desenvolvido no grupo de Estudos Tributação, Complexidade e Precedentes, coordenado pelo Professor Paulo Zanellato junto à Academia Brasileira de Direito Constitucional. Tem por objetivo apresentar novos paradigmas para o desenvolvimento da ciência do Direito Tributário. A partir de uma crítica ao modelo epistemológico cartesiano, pautado no paradigma da simplificação, que apesar de ter contribuído para o desenvolvimento desta Ciência, levou à criação de teorias dissociadas da realidade; apresenta o paradigma da complexidade como alternativa à construção de uma nova Ciência do Direito Tributário. O paradigma da complexidade, pautado na interdisciplinaridade, revela-se como um instrumento mais adequado para o progresso do desenvolvimento científico. Critica também o modelo construtivista do direito, utilizado especialmente nos países com o sistema civil law, o qual, por muitas vezes, leva à inobservância dos precedentes judiciais, gerando grave insegurança jurídica. Oferece, a partir disso, a teoria do precedente judicial como instrumento apto para conferir harmonia e coerência às decisões judiciais, congregando, com isso, maior segurança às relações jurídicas. Palavras Chave: Complexidade, Precedentes, Tributação, Paradigma Científico. Abstract This article is the work of the Study Group “Tax Complexity and Precedent”, developed with the Academia Brasileira de Direito Constitucional. It has the purpose to

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  • ESTUDOS CONSTITUCIONAIS 172

    COMPLEXIDADE, PRECEDENTES E TRIBUTAÇÃO – NOVOS PARADIGMAS PARA O ESTUDO DO

    DIREITO TRIBUTÁRIO.

    Luis Carlos RovedaCaio Rios Silva

    Elaine Graciela Tibes PereiraMarcelo Vitorino

    Edson Mercuri

    Resumo

    O presente artigo é fruto do trabalho desenvolvido no grupo de Estudos Tributação, Complexidade e Precedentes, coordenado pelo Professor Paulo Zanellato junto à Academia Brasileira de Direito Constitucional. Tem por objetivo apresentar novos paradigmas para o desenvolvimento da ciência do Direito Tributário. A partir de uma crítica ao modelo epistemológico cartesiano, pautado no paradigma da simplificação, que apesar de ter contribuído para o desenvolvimento desta Ciência, levou à criação de teorias dissociadas da realidade; apresenta o paradigma da complexidade como alternativa à construção de uma nova Ciência do Direito Tributário. O paradigma da complexidade, pautado na interdisciplinaridade, revela-se como um instrumento mais adequado para o progresso do desenvolvimento científico. Critica também o modelo construtivista do direito, utilizado especialmente nos países com o sistema civil law, o qual, por muitas vezes, leva à inobservância dos precedentes judiciais, gerando grave insegurança jurídica. Oferece, a partir disso, a teoria do precedente judicial como instrumento apto para conferir harmonia e coerência às decisões judiciais, congregando, com isso, maior segurança às relações jurídicas.

    Palavras Chave: Complexidade, Precedentes, Tributação, Paradigma Científico.

    AbstractThis article is the work of the Study Group “Tax Complexity and Precedent”,

    developed with the Academia Brasileira de Direito Constitucional. It has the purpose to

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    present new paradigms for the development of Science of Tax Law. From a critique of the Cartesian epistemological model, based on the simplification paradigm, that despite having contributed to the development of this science, led to the creation of theories disassociated from reality; presents the paradigm of complexity as an alternative to the construction of a new Science of Tax Law. The paradigm of complexity, based on interdisciplinarity, it appears more suitable for the scientific progress. It also criticizes the constructivist model of law, used especially in countries with civil law system, which, by often leads the judiciary to ignore judicial precedents, creating serious legal uncertainty. Offers, from that, the theory of judicial precedent as an instrument able to give consistency and coherence to the court decisions, bringing with it greater certainty to legal relationships.

    Key-Words: Complexity, Precedents, Taxation, Scientific paradigm.

    Sumário

    1. Introdução; 2. O cientista do direito tributário e a teoria da complexidade; 3. A teoria dos precedentes judiciais e a jurisprudência hodierna; 4. Consluões; referências biliográficas

    1. Introdução

    A globalização e a tecnologia certamente dinamizaram as relações humanas e, com a sua chegada, sobrevieram dificuldades até então nunca enfrentados pela sociedade. Nessa nova conjuntura, os problemas enfrentados não são mais vistos compartimentadamente, o que permitiria a solução do conflito, na grande maioria dos casos, por meio de uma mera análise fático-normativa, à luz de um determinado ramo do direito; pelo contrário, os problemas atuais geram reflexos em uma gama de situações tal, que o modelo científico até então vigente, melhor dizendo, utilizado em larga escala até a atualidade, o cartesiano, reducionista e simplificador, não mais responde a estes problemas, oferecendo-lhes soluções adequadas.

    Normas tributárias geram reflexos econômicos não apenas regionais, mas globais, assim como influenciam comportamentos desejáveis ou indesejáveis. Problemas econômicos levam, por exemplo, à alteração das alíquotas de impostos, para controle cambiário. Uma norma que incentive o setor automotivo faz com que a frota de veículos aumente em níveis indesejáveis nas cidades, causando não apenas dificuldades na mobilidade urbana, mas também problemas de efeito estufa e outros problemas ambientais e de saúde pública.

    Muito embora o modelo cartesiano, consistente no método pelo qual divide-se o problema (objeto de estudo) em tantas partes quantas fossem necessárias para melhor poder resolvê-lo, isto é, pretende conhecer o “todo” pelo estudo das partes, tenha contribuído para o desenvolvimento do Direito Tributário, a hiperespecialização

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    deste ramo do direito levou à construção de doutrinas completamente dissociadas da realidade e que ignoram as consequências das soluções que propõem, de forma que este modelo não mais se apresenta como adequado para apontar as soluções para situações como as acima descritas.

    Como já alertava Morin, o modelo reducionista não é inofensivo: “cedo ou tarde, ele conduz a ações cegas, ignorantes do fato de que ele ignora age e retroage sobre a realidade social, e também conduz a ações mutilantes que cortam e talham, deixando em carne viva o tecido social e o sofrimento humano”1.

    Como superação do modelo cartesiano, propõe-se neste artigo a utilização da teoria da complexidade como paradigma científico a ser utilizado no desenvolvimento da ciência do direito tributário daqui por diante. Como se demonstrará a seguir, o modelo complexo exige um estudo interdisciplinar e transdisciplinar, de forma que o cientista do direito tributário procure não apenas soluções associadas com outros ramos da ciência do direito, mas também associadas com outros ramos científicos.

    Os problemas pertinentes ao estudo do direito tributário não se cingem, contudo, apenas com relação ao paradigma científico da simplificação, mas liga-se também ao desprezo dos precedentes judiciais. Com efeito, decisões judiciais conflitantes e desarmônicas, que ignoram os precedentes vigentes geram grave insegurança jurídica, subjugando o contribuinte à uma situação de incerteza, afastando os investimentos e desestabilizando a economia.

    A teoria dos precedentes judiciais, atualmente encampada pelo Código de Processo Civil de 2015, pretende a aproximação do common law (que vê na jurisprudência as premissas para resolução do conflito) com o civil law (cujas decisões são baseadas no construtivismo lógico-semântico normativo, isto é, cabe ao “juiz” dizer e interpretar o direito escrito), de forma a impor a força dos precedentes como estabilizador da coerência que deve haver nas decisões judiciais e a perpetuação da ratio decidendi.

    A partir de uma crítica ao modelo cartesiano e à utilização do construtivismo lógico-semântico, em desprezo aos precedentes existentes, afirmaremos ao longo deste artigo estes paradigmas científicos como os métodos mais adequados para o desenvolvimento da Ciência do Direito Tributário contemporânea, pois, somente através deles encontraremos soluções mais adequadas aos problemas atuais e alcançaremos a almejada segurança jurídica.

    2. O cientista do direito tributário e a teoria da complexidadeO estudo da complexidade como método científico de elaboração do

    conhecimento faz parte da epistemologia. Isso porque a epistemologia é o estudo

    1 MORIN, Edgar. Para sair do Século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 119

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    da ciência ou da forma como se produz conhecimento. Por isso, um problema de complexidade é também um problema epistemológico.

    Inserida nesse contexto epistemológico, a ideia de complexidade se opõe à ciência clássica na forma de fazer ciência e produzir conhecimento, não só porque explora apenas partes que compõe os objetos de estudo, mas principalmente porque faz a síntese desse conhecimento de forma objetiva. Com efeito, o novo espírito científico não é adepto a objetivismos, pelo contrário, trata os experimentos com subjetividade e relativismo, para se chegar a conclusões mais próximas da realidade.

    Por muito tempo a ciência elaborou seus métodos e colocou-os em prática como forma absoluta de se produzir conhecimento. No entanto, essa técnica fechada de elaboração da ciência está sendo questionada, não porque a produção científica caminha por uma lógica equivocada, mas porque a sua fisiologia tem sido limitada ao longo do tempo.

    Quando se limita os objetos de estudo e os tem como suficientes, o pesquisador invade o campo do reducionismo que, por sua vez, acaba comprometendo o experimento. Talvez esse tenha sido o equívoco de Descartes quando observou os fenômenos naturais e dispensou do seu modelo teórico informações que julgava irrelevantes para suas conclusões. Por isso, pode-se afirmar que o método cartesiano é redutivo e não indutivo, ou seja, dispensa circunstâncias que são fundamentais para a nova descoberta2.

    O modelo cartesiano, reducionista e simplificador, sem sobra de dúvidas, influenciou a Ciência do Direito nos séculos XVIII e XIX. Com efeito, a história nos mostra que a Ciência do Direito neste período é marcada pelo êxito das grandes codificações3, essencialmente redutoras e simplificadoras das realidades sociais, que abalizaram o surgimento do positivismo jurídico.

    Porém, como afirma Morin, um conhecimento científico baseado nestes princípios constitui em si uma patologia, pois o pensamento simplificador, reducionista, “é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitas multiplex): ou ainda unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou, pelo contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unidade”4.

    2 BACHELARD, Gaston. O novo espirito científico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1985, p. 159.

    3 A título exemplificativo citamos o Código Napoleônico de 1804 (no original, em francês, Code Civil des Français, mas comumente referido como Code Civil ou Code Napoléon); O Bürgerliches Gesetzbuch (ou BGB), conhecido como o Código Civil Alemão, em desenvolvimento desde 1881, aprovado em 1896, o qual entrou em vigor em 01 de janeiro de 1900; e, o Código Civil Brasileiro aprovado pela Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916.

    4 MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 16

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    Não é assim que a teoria da complexidade se comporta. São diversas as questões relacionadas ao estudo científico, de forma que a construção do conhecimento deve passar por experiências de diversas perspectivas.

    A complexidade é o método que retira qualquer limitação à busca pelo conhecimento, pois, a leitura que se faz dos ensaios científicos possui variáveis que fogem ao seu entendimento completo, o que significa dizer que com todo o esforço intelectual do pesquisador, não se pode chegar a uma análise integral do objeto investigado.

    O novo espírito científico não busca uma análise completa do estudo – porque sabe que esta pretensão é irreal –, mas fixa seu propósito em admitir outras fontes de conhecimento que possam complementar a pesquisa, e mais, segue por uma intuição primeira, indutiva e experimental, para se chegar a uma ideia racional5.

    Os fenômenos objetos de estudo são por essência complexos. Assim, não há ideias simples por si só, pois toda ideia simples está inserida em uma trama complexa, de forma que as ideias completas são as únicas capazes de formar a base segura do conhecimento.

    Atualmente, para os adeptos da teoria da complexidade, não se admite no processo de pesquisa a utilização de experimento que parte do simples para o complexo, como no método cartesiano, utiliza-se a forma complexa das observações para se chegar a uma questão simples.

    Particionar elementos sem levar em consideração o todo complexo gera um problema patológico de saber, que somente pode ser corrigido quando da formação do conhecimento pela base pujante de dados que darão sustentação ao todo.

    Ao mesmo tempo em que a inteligência humana se expande para agregar dados e corrigir erros de conclusões equivocadas, pode também levar a imaginação à sofismas, de forma que o cientista sequer percebe o engodo que o pensamento lhe conduz. É o caminho de uma inteligência cega, ou seja, ignora informações relevantes ao estudo6.

    E esta cegueira, alerta Folloni, é percebida também no campo do Direito. Com efeito, a adoção do método cartesiano no desenvolvimento da Ciência do Direito levou-nos, aparentemente, à separação da norma de seu contexto social. Segundo o autor, “[...] parcelas desse contexto estudadas por outros saberes, como a economia, a sociologia, a ciência política, o constitucionalismo contemporâneo e a ética, ficaram excluídas do estudo científico do direito”7, tornando-o cada vez mais afastado do 5 BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 1626 MORIN, Edgar. Op. cit., 2011, p. 12.7 FOLLONI, André Parmo. Ciência do direito tributário no Brasil: crítica e perspectivas a partir de

    José Souto Maior Borges. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 334

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    cidadão, sujeito a quem necessariamente este preza a objetivar seus interesses. O pensamento voltado exclusivamente às normas se voltou, inclusive, no sentido de negar pertinência, no direito, às preocupações que os efeitos que tais normas geram na vida social e no meio ao qual as próprias normas estão inseridas, são aplicadas e surtem seus efeitos.

    Apesar de reconhecer os avanços científicos que o paradigma científico cartesiano, até então vigente, trouxe para o desenvolvimento do Direito Tributário, José Souto Maior Borges também aponta que o estudo deste ramo do direito pela ótica reducionista, focado na especialização exacerbada, implica no isolamento disciplinar em nome da autonomia do Direito Tributário e na circunscrição estrita da dogmática jurídico-tributária em torno da obrigação tributária, do fato gerador e do ato de lançamento, alienando-se quanto à análise, por exemplo, da aplicação dos recursos públicos, por entender que esta era tarefa da Ciência do Direito Financeiro; ou ainda, deixando de lado a consideração econômica na interpretação da lei tributária8.

    Propõe Souto então um novo paradigma para o estudo do Direito Tributário: o paradigma da complexidade. Segundo o autor, o estudo do Direito Tributário pela ótica da complexidade significa a necessidade de um estudo interdisciplinar9.

    A produção do conhecimento a partir da teoria dos sistemas, em nível interdisciplinar e transdisciplinar10, fornece os instrumentos destinados a favorecerem as permutas entre disciplinas, exercendo um papel muito útil na melhora da qualidade e progresso científico11.

    Contudo, não se pode perder de vista a noção de não se presumir o pensamento complexo como a “mistura de saberes, como um coquetel de ciências, como sincretismo metodológico”12. Segundo o autor:

    A demanda por um conhecimento capaz de se dirigir ao todo, e de compreender o que há nas fronteiras entre as disciplinas científicas, suas inter-relações e suas trocas retroativas, não significa o abandono dessas disciplinas. O interdisciplinar pressupõe as disciplinas. Mas significa saber

    8 BORGES, José Souto Maior. Um ensaio interdisciplinar em direito tributário: superação da dogmática. Revista Dialética de Direito Tributário, 2013, pp. 107-122. p. 106-113

    9 De acordo com José Souto Maior Souto: “A interdisciplinaridade é, neste ensaio, um outro nome da complexidade. Dilargando-se para além do confinamento disciplinar, a interdisciplinaridade implica complexidade, embora nem tudo que é complexo, por exemplo, a extrafiscalidade do tributo, corresponda, necessariamente, ao campo interdisciplinar.” Idem

    10 O significado atribuído ao termo ‘interdisciplinar’ é a relação existente entre as várias disciplinas formativas de uma mesma área do conhecimento. Já o termo ‘transdisciplinar’ será empregado para designar a relação entre uma área do conhecimento com outra., v.g Direito e Economia.

    11 DELATRE, Pierre. Teoria dos Sistemas e Epistemologia. Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Editora Regra do Jogo. 1981. p. 12

    12 FOLLONI, André Parmo. Op. Cit., p. 335

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    que as disciplinas promovem um corte abstrato – geralmente arbitrário – no real, e que esse corte não impede, aliás demanda, um conhecimento voltado

    para o que ficou dele excluído, na tentativa de uma compreensão mais ampla.13

    Assim, é possível concluir que o anseio por um conhecimento capaz de se referir à totalidade (pensar complexo), compreende e ultrapassa fronteiras entre as disciplinas, o que não significa seu abandono.

    É interessante perceber que o trabalho do pesquisador deve ser coerente e ético, visto que para fazer a percepção do objeto é necessário se afastar de sua relação com o objeto, mas não muito a ponto de se perder a compreensão.

    A relação entre o sujeito e o objeto de estudo deve ser concebido na perspectiva do pensamento complexo. Esse pensamento em complexidade demanda uma coerência epistemológica, pois, se assim não for, a reflexão do cientista ficará comprometida pela técnica precária aplicada.

    No nosso entender, o desenvolvimento da ciência do direito tributário, ao buscar as soluções para os problemas que ainda permanecem e para os que ainda sobrevirão no seio da sociedade, deve buscar no pensamento complexo as soluções para os casos concretos, evitando com isso, o desenvolvimento de uma ciência cega que leve à conclusões desconexas da realidade, permitindo a utilização de instrumentos tributários tais como a extrafiscalidade para o desenvolvimento socioambiental, em prol das gerações futuras.

    3. A teoria dos precedentes judiciais e a jurisprudência hodierna

    Outro problema ligado ao estudo do Direito Tributário é a falta de harmonia na jurisprudência pátria. Facilmente nos deparamos com jurisprudências conflitantes que, não raramente, simplesmente ignoram os precedentes existentes nos Tribunais Superiores, na contramão de uma eficiente prestação jurisdicional e da segurança jurídica.

    Atualmente em crise, o Estado vem exercendo função autônoma àqueles que governam, corroborando politicamente, de maneira negativa aos interesses de determinadas classes, privilegiando certos interesses como sendo os mesmos do conjunto social, desconsiderando as demandas dos outros componentes sociais14 e é, diante disso, que há sempre o questionamento de seu poder, ou da política implementada, a qual, sempre evidencia seu caráter de classe.

    13 Idem14 Cf. ALMEIDA, Lúcio Flávio de. Estado, nação, transnacionalização: algumas reflexões em torno

    do Manifesto do Partido Comunista. Revista Lutas Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, v.4. p.19-26, 1998, p. 21-21

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    A partir da percepção desse cenário implantado no país, é possível entender como entendimentos do Poder Judiciário nacional, muitas vezes podem ser absurdamente conflitantes, impossibilitando a consagração a força da segurança jurídica, a qual depende das decisões judiciais, para que possa produzir efeitos consistentes e harmônicos com os seus objetivos15.

    Historicamente o Estado Brasileiro, culminando nesse cenário, devido suas circunstancias políticas e culturais, adotou o modelo de tradições jurídicas baseados em códigos, ou seja, leis escritas devidamente aprovadas pelo poder Legislativo e Executivo, ambos, braços do comentado falido Estado.

    O civil law, sistema jurídico adotado no Brasil, se utiliza dessas normas escritas e genéricas, promulgadas e sancionadas pelo Estado, para regulação das condutas humanas e o Poder Judiciário, por sua vez, utiliza delas como fundamento para julgar os casos concretos.

    Partindo da premissa que o direito se constitui como um sistema que se utiliza da linguagem como meio necessário à comunicação da conduta que pretende regular, cumprindo ao cientista do direito atribuir os sentidos que o legislador utilizou quando da edificação dos enunciados que compõem o direito positivo, interpretando o direito e aplicando-o ao caso concreto16, é possível asseverar, de acordo com Thomas da Rosa Bustamante, que

    “O poder de criação do Direito reconhecido pelo Positivismo aos juízes levou a uma abordagem muito estreita dos precedentes judiciais. Já que os juízes não encontravam limites ao seu poder de criação normativa, tornou-se necessário interpretar as regras jurisprudenciais de modo estrito”17

    É exatamente aí, afirma Marinoni, que surge o brutal problema do nosso tempo. O sistema brasileiro – baseado no civil law, não havia se dado conta de que esta forma de poder judicial coloca em risco a coerência da ordem jurídica, a segurança e a igualdade, valores fundamentais em qualquer Estado de Direito18.

    Por outro lado, o common law pode ser descrito como um sistema jurídico fragmentado, não codificado e enraizado profundamente na tradição, cuja principal fonte é o costume reconhecido pelos órgãos com autoridade para dizer e interpretar o Direito19.

    15 DELGADO, José Augusto. A Imprevisibilidade das Decisões Judiciárias e seus Reflexos na. Segurança Jurídica. Disponível em: . Acesso em 10 de Mai de 2016. p. 7

    16 A respeito vide: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 6ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008.

    17 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do Precedente Judicial – A Justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 253

    18 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. Disponível em:. Acesso em: 12.05.2016. p. 2

    19 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Op. Cit.. P. 4

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    No common law, a submissão aos fatos ocorridos na sociedade, sem, a princípio, ocorrer a intervenção negativa do Estado, propiciou o julgamento, pelos países que adotaram tal sistemática, muito mais adequado aos próprios anseios de cada qual, o que ensejou o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, tão objetivado por grande parte dos Estados mundiais. Com isso, as decisões prolatadas em tal sistema tornam-se muito mais estáveis e seguras, ao contrário do que ocorre no civil law, onde variam constantemente as decisões de acordo com o sentido atribuído à Lei.

    Os precedentes judiciais, ou seja, as decisões estabelecidas pelos tribunais, têm o objetivo crucial de determinar comportamentos com base nas premissas formadas pelos próprios Tribunais em suas decisões, de forma a permitir que a sociedade saiba como determinado assunto será julgado pelo Poder Judiciário. No entanto, como sabiamente percebem Luiz roberto Peroba e Rodrigo Martone, em artigo publicado na revista Valor Econômico, no ano de 2012:

    O que se verifica atualmente no Brasil é a constante alteração das decisões dos tribunais, sem qualquer justificativa ou preocupação com a mensagem que é transmitida para a sociedade, o que causa a sensação de insegurança jurídica20.

    No direito tributário, a falta de estabilidade das decisões judiciais muitas vezes fere a confiança do contribuinte, assim como direitos fundamentais básicos.

    Como já salientado anteriormente, essa “plurissignificação do texto da lei”21proporcionada pelo civil law, gera desconfiança e propicia entendimentos conflitantes, como, por exemplo, no caso em que se discutia a respeito da prescrição intercorrente.

    Analisando as decisões proferidas pelo C. STJ, verifica-se a existência de entendimentos divergentes entre si, sobre o assunto. Inicialmente, a jurisprudência do E. STJ caminhava no sentido de que não era possível a decretação de ofício da prescrição intercorrente nas execuções fiscais, tendo em vista esta envolver direitos patrimoniais22. Contudo, com o advento da Lei 11.051/04, a jurisprudência do E. STJ, passou a entender que era possível a decretação de ofício, porém, desde que fosse realizada a oitiva da Fazenda Pública23. Ato contínuo, em razão do Lei nº 11.280, de 16/02/06, com vigência a partir de 17/05/06, aquele D. Tribunal, por ocasião do julgamento do REsp 855525 RS, cuja decisão foi publicada em 18.12.2006, entendeu

    20 MARTONE, Rodrigo; PEROBA, Luiz Roberto. A importância dos precedentes tributários. Revista online Valor econômico. 17 de ago. 2012. Disponível em: Acesso em: 09 de mai. 2016.

    21 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010, p. 149

    22 BRASIL. STJ. RESP 655.174/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 09.05.2005.23 BRASIL. STJ. REsp n. 794737/RS, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 20.2.2006.

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    que a decretação da prescrição intercorrente poderia ocorrer de ofício24. Entretanto, mesmo transcorrido quase 3 (três) anos desta última decisão, o E. STJ continuou a impedir a decretação da prescrição de ofício sem a oitiva da Fazenda Pública25, divergindo, no entanto, em diversos julgados, permitindo a decretação de ofício da prescrição intercorrente, sem a oitiva da Fazenda Pública26.

    Mais recentemente, nos deparamos com o caso do julgamento pelo STJ do IPI incidente sobre a revenda de produtos importados. Em um primeiro julgamento, ocorrido em data de 11.06.2014, o Pleno daquele Tribunal havia decidido que o IPI não incidiria na revenda de produtos importados que não fossem submetidos à processos de industrialização (Embargos de Divergência no Resp nº. 1.411.749-PR). No entanto, pouco mais de 1 (um) ano após a publicação daquela decisão, o Colendo STJ, instado a se manifestar novamente sobre a matéria, em data de 14.10.2015, reverteu seu posicionamento, permitindo a incidência do IPI na revenda de produtos importados não submetidos à processo de industrialização, prejudicando todos os contribuintes que estavam com liminar deferida em seu favor, em função do julgamento anterior, e ainda, deixando em situação de desigualdade os contribuintes que obtiveram êxito judicial antes da revisão do posicionamento daquele Tribunal.

    Ou seja, pela simples análise dos julgados acima mencionados, proferidos por uma mesma Corte, é perceptível que não há o mínimo de certeza para o contribuinte, que poderia ser conferida caso fossem respeitados os precedentes.

    O respeito aos precedentes se mostra, portanto, como condição sine qua non à manutenção de uma ordem jurídica coesa e que privilegia a segurança jurídica e certeza do direito.

    Importante mencionar, neste ponto, que a adoção dos precedentes judiciais não significa o engessamento da dinâmica do direito, muito menos importa em abandono da interpretação ou da força criativa dos Magistrados e Tribunais, no julgamento da lide, pois o precedente vigente pode ser superado caso novos argumentos, sólidos e relevantes, apontem para a necessidade de um novo precedente, mais adequado à resolução do conflito. Tal superação pode ser dar, entretanto, apenas nos casos em que estar-se-á diante de um dintinguishing, um overrruling ou um fact-adjusting27.

    Contudo, como não é objeto específico deste artigo o trato destes institutos, não serão aprofundados os conceitos e os casos de cabimento de cada um. A intenção deste artigo, neste ponto específico, é apenas demonstrar que o que se objetiva com a aplicação da teoria dos precedentes é conferir maior coerência às decisões, tornando-as muito mais robustas, seguras e certas, haja vista a ratio decidendi, ou os motivos 24 BRASIL. STJ, REsp 855525 RS, 1ª Turma. Rel. Min. José Delgado, DJ de 18.12.2006.25 BRASIL. STJ. AgRg no AgRg no REsp 1089464 MG, 2ª Turma. Min. Rel. Humberto Martins. DJ

    de 11.05.2009.26 BRASIL. STJ. AgRg no Ag 1149027 RS, 2ª Turma. Min. Rel. Eliana Calmon. DJ de 28.10.200927 A respeito vide: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Op. Cit. p. 387 e ss.

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    determinantes da decisão tomada pelos tribunais, servirem como precedentes a serem seguidos pelos Magistrados e Tribunais do país.

    Também é objetivo deste artigo demonstrar que o estudo dos precedentes é imprescindível ao Cientista do Direito, haja vista que a utilização do precedente se apresenta, a priori, como meio mais adequado à preservação e promoção da segurança jurídica e certeza do direito, cabendo ao intérprete a tarefa extrair do precedente a ratio decidendi e, com base nela, requerer a aplicação do precedente ao seu caso.

    A respeito da aplicação dos precedentes, a legislação brasileira parecer começar a flertar com o que pretende o common law, abandonando aos poucos o protagonismo que exerce a figura do Juiz enquanto interprete da vontade do legislador. Isso ficou ainda mais evidente com o Código de Processo Civil de 2015, que entrou em vigor em março de 2016, o qual prescreveu no seu artigo 926 que as decisões judiciais deverão ser estáveis e coerentes.

    A exigência de estabilidade está ligada ao dever de respeito aos precedentes já firmados e a necessidade de fundamentação adequada para a sua distinção e/ou superação. Inexistindo qualquer das hipóteses de superação do precedente, o mesmo deve permanecer hígido e incólume quanto a sua aplicação. Por sua vez, as noções de integridade e coerência evidenciam que casos semelhantes devem ser decididos sob o prisma da igualdade, com respeito aos princípios que foram aplicados nas decisões anteriores.

    Com o que foi até aqui exposto, já é possível perceber que com a aproximação desses sistemas (common law e civil law), o cidadão ganha força e retira da mão do Estado o poder principal de julgamento dos conflitos, se tornando muito mais atuante e participativo nas decisões a que possam ser absorvidas por ele e pela sociedade em que se insere.

    4. Conclusão

    Em conclusão, vislumbramos que o paradigma cartesiano, reducionista e simplificador, não mais se apresenta como método hábil a identificar à solução aos conflitos que surgem na atualidade. Os problemas atuais não são mais compartimentados e a solução não é encontrada dentro de um único ramo do saber; pelo contrário, os problemas atuais geram reflexos em uma grande gama de situações, das quais exsurge a necessidade de congregar o conhecimento de diversas áreas para que possa ser encontrada a solução mais adequada ao caso concreto.

    Particionar elementos do conhecimento sem levar em consideração o todo complexo gera um problema patológico de saber, uma cegueira ao cientista que, circunscrito no seu círculo de conhecimento, deixa de observar variáveis necessárias à correta compreensão do fenômeno e sua solução. Esta patologia, somente pode

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    ser corrigido quando da formação do conhecimento pela base pujante de dados que darão sustentação à totalidade do problema.

    A superação do modelo cartesiano se dá com a chegada do paradigma da complexidade, paradigma este a ser utilizado no desenvolvimento da Ciência do Direito Tributário daqui por diante. Como demonstrado acima, o modelo complexo exige um estudo interdisciplinar (da qual resulta o relacionamento, por exemplo, do direito tributário com os demais ramos do direito, tais como o direito constitucional, administrativo, ambiental, penal, etc) e transdisciplinar (relacionamento do direito com outros ramos do saber, v.g., com a biologia: o biodireito; com a economia: a análise econômica do direito).

    Outro problema da atualidade, ligado ao estudo do Direito Tributário, é a falta de harmonia e coerência na jurisprudência pátria. Historicamente, o Estado Brasileiro, por adotar o sistema da Civil Law, se utiliza de um sistema de normas escritas e genéricas, promulgadas e sancionadas pelo Estado, para regulação das condutas humanas. Por sua vez, cabe ao Poder Judiciário se utilizar dessas normas como fundamento para julgar os casos concretos, ficando a seu cargo poder de dizer e interpretar as Leis prescritas pelo Estado.

    Entretanto, em razão da força criativa interpretativa do juiz, encontramos na atualidade uma “plurissignificação do texto da lei”, da qual decorrem diversas decisões conflitantes, as quais ignoram os precedentes judiciais já existentes, subjugando o contribuinte em uma situação de completa insegurança jurídica.

    Com efeito, demonstrou-se no decorrer deste artigo que o respeito aos precedentes se mostra como condição sine qua non à manutenção de uma ordem jurídica coesa e que privilegia a segurança jurídica e certeza do direito.

    Atualmente, a legislação brasileira parecer começar a aproximar-se do common law, abandonando aos poucos o protagonismo que exerce a figura do Juiz enquanto interprete da vontade do legislador, situação esta que ficou ainda mais evidente com o Código de Processo Civil de 2015, o qual prescreveu no seu artigo 926 que as decisões judiciais deverão ser estáveis e coerentes.

    Contudo, em que pese o avanço legislativo no sentido de dar maior força ao precedente judicial, certamente o Brasil encontrará problemas até a solidificação de uma cultura que se aproxima da common law. Daí porque a importância e relevância do presente estudo, para chamar a atenção do cientista do direito tributário para o desenvolvimento de estudos que não apenas levem em conta o paradigma da complexidade, mas também a análise dos precedentes existentes.

  • ESTUDOS CONSTITUCIONAIS 184

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