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ARTIGO COMPlEMENTARIDADE QUALITATIVO-QUANTITATIVA NA PESQUISA EM INFORMAÇÃO QUALlTATIVE-QUANTITATIVE COMPLEMENTARIENESS IN INFORMATlON RESEARCH Leilah Santiago BUFREM* RESUMO Analisa como a discussão sobre a conduta investigativafoi estimulada a partir do séc. XVII pelos êxitos da experiência comofonte de conhecimento. Métodos quantitativos ganham espaço nas áreas humanas e sociais. A tualmente, outros enfoques alternam-se ao paradigma positivista. Permanecem, entretanto, antagonismos entre enfoques quantitativos e qualitativos, simultaneamente a formas de rearticulação interdisciplinar. Da mudança qualitativa na prática da pesquisa social resultam opções á contradição entre os enfoques. A possibilidade de integrá-Ios na construção de conhecimentos é concretizada com estratégias múltiplas, dada a interdependência entre desenvolvimento científico, mudanças no contexto ecriatividade na investigação. Palavras-chave: Pesquisa em informação; Métodos qualitativos; Métodos quantitativos. ABSTRACT Discussion about investigative methods has been stimulated since the XVII century due to quality ofknowledge generated with successjiil experimentation. lnductive reasoning started to be used in IlIIman and social sciences. ln the recent past, alternative methods were used as options to positivism. While there are some antagonisms between quantitative and qualitative methodologies. interdisciplinary e[{orts offer qualitative changes to methodological approaches. Quantitative research does not necessarily represent a counterpoint to qualitative one. lntegration between the tIVOinterpretations can be realized IVith the use of multiple strategies. Hence, there is a possibility to understand methodology as an integrated view of problems and alternative solutions. Key-words: information research, qualitative method, quantitative method. INTRODUÇÃO quantitativos na pesquisa com métodos múltiplos compatibiliza-se, neste trabalho, com a tentativa de relativizar antinomias ou oposições entre o que se considera atitude científca ou não-científica, o propósito de analisar indícios de complementaridade entre aspectos qualitativos e ,') Profa. Titular Dra. do Departamento de Ciência e Gestão da Informação da Universidade Federal do Paraná. Transinformação, v. 13, nQ I, p. 49-55, janeiro/junho/200 I

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ARTIGO

COMPlEMENTARIDADE QUALITATIVO-QUANTITATIVA

NA PESQUISA EM INFORMAÇÃO

QUALlTATIVE-QUANTITATIVECOMPLEMENTARIENESSIN INFORMATlON RESEARCH

Leilah Santiago BUFREM*

RESUMO

Analisa como a discussão sobre a conduta investigativafoi estimulada apartir do séc. XVII pelosêxitos da experiência comofonte de conhecimento. Métodos quantitativos ganham espaço nasáreas humanas e sociais. A tualmente, outros enfoques alternam-se aoparadigma positivista.Permanecem, entretanto, antagonismos entre enfoques quantitativos e qualitativos,simultaneamente a formas de rearticulação interdisciplinar. Da mudança qualitativa naprática da pesquisa social resultam opções á contradição entre os enfoques. A possibilidadede integrá-Ios na construção de conhecimentos é concretizada com estratégias múltiplas,dada a interdependência entre desenvolvimento científico, mudanças no contexto ecriatividadena investigação.

Palavras-chave: Pesquisa em informação; Métodos qualitativos; Métodos quantitativos.

ABSTRACT

Discussion about investigative methods has been stimulated since the XVII century due to qualityofknowledge generated with successjiil experimentation. lnductive reasoning started to be usedin IlIIman and social sciences. ln the recent past, alternative methods were used as options topositivism. While there are some antagonisms between quantitative and qualitative methodologies.interdisciplinary e[{orts offer qualitative changes to methodological approaches. Quantitativeresearch does not necessarily represent a counterpoint to qualitative one. lntegration betweenthe tIVOinterpretations can be realized IVith the use of multiple strategies. Hence, there is apossibility to understand methodology as an integrated view of problems and alternativesolutions.

Key-words: information research, qualitative method, quantitative method.

INTRODUÇÃO quantitativos na pesquisa com métodos múltiploscompatibiliza-se, neste trabalho, com a tentativa derelativizar antinomias ou oposições entre o que seconsidera atitude científca ou não-científica,

o propósito de analisar indícios decomplementaridade entre aspectos qualitativos e

,') Profa. Titular Dra. do Departamento de Ciência e Gestão da Informação da Universidade Federal do Paraná.

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objetividade ou subjetividade na pesquisa em ciênciashumanas. Com esse intento, colocam-se inicialmente asdiferenças entre as duas visões dominantes na pesquisapara caracterizá-Ias e somente então sugerir acomplementaridade possível.

Aceita-se que qualquer trabalho científco,desenvolvido em determinado contexto social e emdado momento histórico, reflete as mudanças econtradições desse contexto, tanto em sua organizaçãointerna ou método, quanto em suas aplicações. Se pormétodo, segundo o sentido etimológico que remonta aPlatão, se deve entender o encaminhamento dado àinvestigação; esse encaminhamento pode resultar deopções ou perspectivas como as que se definem entreo tratamento quantitativo e oqualitativo, em decorrênciado peso específico e representativo de cada um para apesquisa em questão.

Assim, as forças denominadas por CHALMERSde progressistas, estimuladas, a partir do séc. XVIIpelos êxitos de grandes cientistas, passaram a considerarcada vez mais a experiência como fonte deconhecimentos(1991, p. 11). Os impactos promovidos pelos sucessosdos métodos das ciências físicas sobre o mundomoderno, decorrentes dos avanços científicos,intluenciaram amplamente e com expressiva repercussãoa condução teórica e prática das pesquisassubseqüentes.

A partir de então, o prestígio da pesquisaexperimental aumenta consideravelmente, a ponto de seafirmar que a ciência seria uma estrutura assentadasobre fatos. A trajetória do pensamento para alcançar averdade, fundada na experiência, passa a ser apreciadacomo método por excelência para as ciências naturais.

Surge, assim, o conceito moderno de pensamentocientífco, marcado pelo desenvolvimento das ciênciasnaquele século e criando expectativas de que osconhecimentos gerados pelas ciências humanas e sociaispermitiriam ao homem um domínio análogo sobre omundo humano e histórico. Enfatizada a importância daexperimentação e dapossibilidade de quantificá-Ia, essesprocedimentos passam a ser propostos como métodostambém para as ciências humanas.

A polêmica instaurada pela aceitação ou nãodesse paradigma dominante ocorre mais precisamente apartir do advento do positivismo, termo cunhado porAugusto Comte para definir uma forma de empirismoestrito, apresentada historicamente como teoria geral daciência, ao mesmo tempo uma concepção global do devirdo espírito humano. Esta teoria foi objeto do seu Cursode Filosofia Positiva, publicado em Paris, em seisvolumes, entre 1830e 1842,após exposição a umpúblico

selecionado entre cientistas, em busca de uma novavisão geral do conhecimento e da sociedade. SegundoComte, a ordem seria a base do conhecimento científicoe só teriam caráter de legitimidade as pretensões deconhecimento fundadas na experiência. Assim comoAugusto Comte, StuartMill e Durkheim foramdefensoresda tese da unidade das ciências, que legitimaria oargumento a favor da utilização do mesmo método paratodas as ciências, sejam sociais, fisicas ou naturais.

Observando que o tema foi desenvolvido pelosneopositivistas nas décadas de 1920e 1930,GRANGERavalia ter sido tão forte o seu sentido a ponto decompreender uma uniforme estruturação lógico-matemática do conhecimento científico e apossibilidadede expressão dos conteúdos empíricos, em linguagemúnica, independentemente da área. Essa concepçãoleva-o a se perguntar sobre a unidade real da ciência.Ao mesmo tempo em que relativiza essa unidade daciência, o autor faz justiça à pluralidade de métodos ede objetos associada à unidade de uma comum visão doconhecimento (1994, p. 42).

Percebe-se nesse continuum que TeixeiraCOELHO denomina deprojeto da modernidade, lançadono século XVIII e afirmado ao longo do XIX, processoscomo o da Revolução Industrial, de um novo pensamentosobre o social (como o de Karl Marx) e dos passosiniciais da psicanálise, para ficar nos mais evidentes.Transformações mais radicais ocorreriam após 1905,ano da teoria que viria a alterar onúcleo do conhecimentohumano, quando Einstein revisa em seus artigosrevolucionários sobre a relatividade conceitosfundamentais para o homem, como o de espaço etempo. Deixam de existir noções até entãoconsideradas postulados, princípios nãodemonstrados... (1995, p. 25).

Progressivamente, passam a ser consideradastambém possibilidades metodológicas cujos critériosde objetividade não seriam dependentes apenas deconsiderações quantitativas ou de modelos irrefutáveis.

AS VISÕES DOMINANTES NA CONDUÇÃODAS PESQUISAS

Constata-se que a partir dos últimos trinta anosa oposição entre os chamados paradigmas quantitativoe qualitativo predomina nas discussões sobre aspesquisas em ciências sociais. Das tentativas de superarcontrovérsias entre adeptos ou não dessas posições,decorrentes especialmente da interpretação positivistados fenômenos sociais, alternam-se correntescaracterizadas por diferentes abordagens. Essa

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tendência talvez se deva ao fato, como afirmouGADAMER, de que se espera ainda mais das ciências doespírito ao se perceber que o crescente domínio danatureza acrescenta o mal estar na cultura ao invés de

reduzi-lo( 1994,p.43).

A crítica de FEYERABEND aos empiristasexpressa a restrição que esta corrente faz à variedade,cunhada pela condição de coerência, e que se traduzpela denominada adoração dosfatos, traço característicode todo empirismo (1989, p. 57). Ao ressaltar amultiplicidade dos métodos, as lacunas das explicaçõescientíficas e a precariedade das teorias, opróprio filósofonão se considera um anarquista sério e, segundoGRANGER, o aspecto positivo de sua epistemologiaconsiste na violenta crítica ao conservado rismo e ao

dogmatismo, sublinhando a mobilidade doconhecimento científico (1994, p. 43).

Quanto a POPPER, um dos mais incisivosrepresentantes da crítica ao indutivismo, ao lançar asbases do método hipotético dedutivo e do critério defalseabilidade, na sua obra Conjectural knowledge: mysolution to the problem, assume a posição de realistacrítico ao acreditar que um mundo material existe,independente da experiência. Por outro lado, pode-seidentificar, pela postura metodológica que adota -enunciar claramente o problema e examinar,criticamente, as várias soluções propostas (1975, p.536) - que ele relaciona a atitude científica a uma posturaracional e crítica diante dos problemas. Essa posturaexpressa-se no método hipotético-dedutivo, queconsiste na construção de conjecturas a submeter aostestes mais diversos, à crítica intersubjetiva, ao controlemÚtuo pela discussão, à publicidade crítica e aoconfronto com os fatos para a verificação das hipótesesque se sustentam como mais aptas por resistirem àstentativas de refutação e falseamento. A importância docritério de falseabilidade tem sido reconhecida e

interpretada especialmente por estar ligada à idéia de umconhecimento que se cria e se constrói, critério quecorresponde ao aspecto dinâmico do saber.

No esforço para instaurar uma verdadeira ciênciado homem, Lévi-Strauss distingue com o estruturalismotrês níveis de investigação: oda etnologia, oda etnografiae o da antropologia. O da etnologia corresponde aoprimeiro passo para chegar, passando pelo nível daetnografia, à síntese representada pelo da antropologia,em que se pode adquirir um conhecimento global dohomem, abrangendo seu tema em toda a extensãohistórica e geográfica.

Hoje, o estruturalismo estende-se a todo odomínio das ciências humanas, concretizando-se emoposição ao empirismo já que nega significado ao fato

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isolado como tal. Por outro lado, oestruturalismo tambémse opõe a qualquer tipo de idealismo pois, embora seumodelo conceitual se apresente como uma construçãocientífica, ele não poderia ser reduzido a um ato oufunção subjetiva. Dessa forma, segundoFOUGEYROLLAS,(1992,p.90),confirmaaobjetividadede todo sistema de relações.

Com destaque pelo importante papel quedesempenhou para a evolução da pesquisa qualitativanas ciências sociais, a fenomenologia de Husserl temsido considerada uma linha depensamento cuja principalcontribuição para a epistemologia consiste na ampliaçãodas opções metodológicas, frente ao domínio positivistasobre as ciências sociais. Husserl apresentou o métodofenomenológico como um modo seguro e liberto depressuposições para todas as ciências. A fonte deconhecimento seria a consciência. Assim, toma comoponto de partida de sua filosofia e da metodologia deladecorrente os fenômenos da consciência, por entenderque somente eles poderão revelar o que as coisasrealmente são. A intencionalidade, como característicada consciência e conceito chave da fenomenologia, éutilizada por Husserl de modo bastante preciso paraindicar que a consciência é sempre consciência dealguma coisa. Daí que seu método consiste na visãointelectual do objeto, a partir de uma intuição. A intuiçãodirige-se ao fenômeno (ao dado) e nenhuma categoriadeve interpor-se entre os dois. Essa exigência requeruma tríplice eliminação ou redução: do subjetivo, ouposturas diante do dado (fenômeno); do teórico,presente em hipóteses, pressupostos ou saber adquiridoe de toda tradição, ou seja de tudo o que foi dito sobreo fenômeno. A intuição eidética, ou intuição da essência,é portanto dirigida para as coisas mesmas e orientadapara o dado, com exclusão de todo o subjetivo e de tudoo que já se tenha dito sobre ele. Alguns nomes como osde Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Karl Jaspers, L.Binswanger e Paul Tillich receberam sua influência,segundo SUTTON, em parte ao desenvolvimento demétodos que a fenomenologia inspirou diante dasperceptíveis limitações nos estudos sociológicos e emparte pela similaridade dos fenômenos estudados (1993,p.415).

Outra linha de inegável valorpara a epistemologiafoi o pensamento dialético. Com lançamento talvezexagerado, quase num manifesto, como afirmaGOLDMANN, converteu-se naproclamaçãodamudançaradical que se opera no pensamento filosófico. Ao Egode Montaigne e Descartes, Pascal responde: O eu éodioso. A partir de então, de Hegel a Marx, os outroshomens tomam-se cada vez mais seresagindo emcomum(1958, p. 14). Dessa forma, o nós prevalecerá entre os

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dialéticos, convertendo-se em realidade fundamental daqual o eu será derivado. A análise dialética define asrelações do geral com o particular em sua concretizaçãohistórica. Como metodologia stritco sensu representaum esforço epistemológico que procura destacar ostraços comuns ou, ao contrário, diferenciados de umcaso para outro, de todas as abordagens científicas quevisam prestar contas dos processos que se desenrolamno tempo.

Para o pensador dialético, as doutrinas fazemparte integrante do fato social em si, somente separáveisdele por uma abstração provisória. Seu estudo é umelemento indispensável do estudo atual do problema.da mesma forma que a realidade social e históricaconstitui um dos elementos mais importantes quandose trata de comprender a vida espiritual de uma época(GOLDMANN, 1958,p. 47). O pensamento diaiético, aoacentuar o caráter total da vida social, visa a contribuirpara a unidade do pensamento e da ação. Como principalinstrumento do pensamento científico em ciênciashumanas, destaca-se a consciência possível. Esta, emgrau máximo, expressa possibilidades no plano dopensamento e da ação em uma determinada estruturasocial.

o LABIRINTO:UMA ANALOGIAANTI-DICOTÔMICA

Como se observa na literatura que sustenta adiscussão, épossível analisar as diferenças fundamentaisentre as duas abordagens, tanto em relação aospressupostos epistemológicos quanto aosprocedimentos metodológicos da pesquisa. É tambémviável cotejar procedimentos, independentemente dospressupostos teóricos e princípios filosófcos que osorientem, como se apresenta, ainda, a possibilidade deconciliar as posições antagônicas argumentando-sepela compatibilidade e cooperação mútua entre osparadigmas. Isso porque há na multiplicidade deestratégias metodológicas uma fonte inesgotável e ricapara a prática da pesquisa, especialmente a partir dastentativas de superação da antinomia entre os enfoquesqualitativo e quantitativo na sua condução.

Refletindo especificamente sobre a polêmicaentre esses enfoques, HABERMAS observa que,metodologicamente falando, a medida desempenha duasfunções: a de garantir a simplificação de controvérsiassobre as questões existenciais e a de possibilitarrepetição, permitindo assim a garantia de intersubje-tividade da experiência (1994, p. 96). O debate tem sidomotivado, entre outros aspectos, pelos níveis e

categorias de estudo que apresenta. São discutidosespecialmente os princípios filosóficos - ontológicos,epistemológicos e axiológicos -que envolvem a oposição

entre os paradigmas qualitativos e quantitativos.

A análise desenvolvida por CRESWELL ilustraessa preocupação ao acrescentar aos enfoquesontológico, epistemológico e axiológico, o retórico e ometodológico como pressupostos para diferenciaçãodos paradigmas. Assim, à questão sobre a natureza darealidade, o paradigma quantitativo a entende comoobjetiva e singular, distinta do pesquisador, enquantoo qualitativo a define como subjetiva e mÚltipla,decorrente da diversidade de interpretações dosparticipantes de um estudo.

Do ponto de vista epistemológico, questiona-sesobre o relacionamento do pesquisador com opesquisado, ao que o paradigma quantitativo respondeque o primeiro é independente do segundo, enquanto oqualitativo defende a interação entre o pesquisador eaquilo que está sendo pesquisado.

Sob o enfoque axiológico, isto é, com relação aopapel dos valores na busca do conhecimento, costuma-se afirmar que na condução quantitativa da pesquisaeles não têm lugar, enquanto a investigação qualitativaé carregada de valores e preconceitos.

Quanto à suposição retórica, isto é, relativa àlinguagem da pesquisa, costuma-se afirmar que nostratamentos quantitativos a expressão é formal, baseadaem definições fixadas, voz impessoal, uso de termosquantificáveis e convencionados, em oposição àlinguagem informal, característica do enfoquequalitativo,que implica decisões, tem voz pessoal epalavras não-convencionadas.

Ao argumentar contra a dicotomia amplamenteaceita entre os paradigmas quantitativo e qualitativo,HAMMERSLEY aponta para seu uso limitado e discorresobre alguns perigos dela decorrentes, especialmentepor obscurecer questões e argumentos que envolvem ametodologia das ciências sociais. Identificando oscomponentes mais relevantes da distinção entrequalitativo e quantitativo, especialmente pelosdefensores da pesquisa qualitativa, o autor argumentaque as questões colocadas não são simples comoaparentam (1992, p.160).

Ele apresenta e discute sete questõesrelacionadas aos critérios que orientam a distinçãoqualitativo-quantitativa: utilização de palavraspreferencialmente a números; ocorrência do fenômenoem circunstâncias naturais ou criadas pelo pesquisador;foco no significado em oposição ao foco nocomportamento; utilização da ciência natural como

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modelo; abordagem indutiva versus dedutiva;identificação de padrões culturais versus busca de leiscientíficas e idealismo versus realismo.

Em relação ao uso de palavras de preferência aosnúmeros, mais precisamente sobre a preferência dosdados qualitativos em oposição aos quantitativos, oautor argumenta que ao pesquisador caberá julgar entreuma série de dados mais ou menos precisos, para decidirsobre o nível de precisão apropriado em relação a umaexigência particular. Essa decisão estaria, portanto, nadependência da natureza do que se pretende descrever,na desejável precisão das descrições, nos propósitos enos recursos disponíveis. Com esse argumento eledescarta o compromisso ideológico com ou outro enfoqueparadigmático.

A segunda distinção apontada pelo autor, sobrea natureza do fenômeno observado, identifica aspesquisas experimentais com as situações previamenteestabelecidas, por meio das quais se deseja aquilatardiferentes valores relativos a variáveis a controlar. Por

outro lado, as pesquisas etnográficas requerem o estudode situações que poderiam ocorrer sem a presença dopesquisador, ou com a adoção de uma postura queminimize o impacto do pesquisador sobre a ocorrência.Sob o ponto de vista do autor, a distinção é espúria poisos termos natural e artificial vêm perdendo suasconotações originais, diante do espectro depossibilidades de pesquisas e observações mais oumenos controladas.

Quanto à distinção entre a focalização nosignificado ou no comportamento, tem sido relacionadacom a ênfase no caráter interpretativo ou hermenêuticoda pesquisa qualitativa, em contraste com o ponto devista comportamentalista quantitativo. Com efeito, apesqui'sa qualitativa busca compreender a perspectivadas pessoas, entretanto, nem sempre restringe seu focode modo restrito a elas, pois em geral o comportamentonão é apenas um subproduto das perspectivas, e atépode delas discrepar. Por outro lado, há pesquisasquantitativas mais voltadas a atitudes do quepropriamente a comportamentos.

O enfoque quantitativo também tem sidoidentificado com o modelo da ciência natural. Entretanto,essa simplificação é discutível, primeiramente pelasdiferenças possíveis entre as diversas ciências danatureza, ou disciplinas delas decorrentes. Pode-setambém questionar que interpretação se irá adotar. E,ainda, deve-se esclarecer que nenhum método dasciências naturais pode ser adotado sob medida para asciências humanas.

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É comum, também, estabelecer a aproximação dapesquisa qualitativa com o método indutivo, emcontraposição com a identidade entre pesquisaquantitativa e método hipotético dedutivo. Quanto aesse aspecto, qualquer simplificação é precária poistoda pesquisa envolve tanto dedução quanto induçãouma vez que o pensamento move-se de idéias paradados e de dados para iiéias.

A identificação de padrões culturais naspesquisas qualitativas, em oposição à procura de leiscientíficas como propósito das pesquisas de enfoquequantitativo, é outra distinção em pauta quando se tentacontrapor os dois enfoques. Entretanto, nem sempre aspesquisas quantitativas vão além de generalizaçõesprobabilísticas, enquanto que muitas vezes os objetivosdas pesquisas qualitativas visam o estabelecimento deteorias.

Quanto às posições epistemológicas dosenfoque de pesquisa, costuma-se identificar oqualitativocom a idealista e o quantitativo com a realista, resultandonuma dicotomia não correspondente com as questõesque têm sido colocadas por representantes das duasposições. Esta constatação esclarece a posição deHAMMERSLEY para quem na epistemologia, assimcomo nametodologia, as dicotomias relativizamoalcancedas opções abertas (1992, p.171).

Ao concluir suas considerações sobre o tema,enfatizando que a seleção entre as duas posiçõesdepende dos propósitos e circunstâncias da pesquisa,o autor cria uma nova analogia. Substituindo a idéia querepresenta um cruzamento onde se deve optar pelaesquerda oupela direita, apresenta a imagem do labirinto,diante do qual o pesquisador depara-se constantementecom a necessidade de tomar decisões menos definitivasou rígidas do que de outro modo poderiam ser.

Essa leitura e entendimento coincidem com

conclusões de estudo anterior em que, ao analisar umrecorte expressivo da literatura resultante da pesquisaem ciência da informação no Brasil, nota-se que

à medida em que cada campo de atividadecientífica vai se fortalecendo e conquistandoautonomia, as estratégias metodológicas, astécnicas e os instrumentos selecionados pelospesquisadores vão se tornando cada vez maiscomplexos em suas combinações e menos purosem relação as suas formas originais deconcepção.Mas isso deveria ser observado e aceito como

uma prática viva de fazer pesquisa e não comouma quebra da ortodoxia metodológica(BUFREM,l 996,p.l45).

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A pesquisa e o seu aperfeiçoamento, portanto,além de desafios, são motivações para que acadêmicose profissionais tomem consciência da necessidade desuperar as oposições presentes na discussão qualitativo-quantitativa, ampliando sua compreensão a respeitodas possibilidades teóricas e concretas ao seu alcancee subsidiando a avaliação de sua prática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A insistência nos círculos acadêmicos em

contrapor de modo dicotômico os enfoques qualitativoe quantitativo em relação às trajetórias metodológicaspossí \eis nas ciências sociais deve ser superada,especialmente nas ciências da informação, cujo caráterinterdisciplinar permite uma postura mais inclinada àdiversidade de enfoques na pesquisa científica.

Se retomados os critérios de CRESWELL paradiferenciar os enfoques quantitativo e qualitativo emrelação à questão da natureza da realidade, a forma desuperá-Ia com abordagens múltiplas admite a naturezaobjetiva e singular do real, sem descartar o exercício dasubjetividade e a natureza múltipla dos seusdesdobramen.tos concretos, passíveis de interpretaçãodo pesquisador e demais participantes de um estudo.

Sob o aspecto epistemológico, maisprecisamente voltado à relação entre pesquisador epesquisado, as abordagens múltiplas ensejam ainteração entre ambos, descartando-se a idéia dopredomínio de um.sobre outro.

Quanto ao papel dos valores na pesquisa, isto é,do ponto de vista axiológico, a complementaridadequantitativo-qualitativa transcende o maniqueismoentre, por um lado, uma atitude totalmente liberta devalores como critério para obtenção da verdade e, poroutro, uma situação de busca do conhecimentosubjugada por escolhas ideológicas ou valorativas.

Em relação à suposição retórica, isto é, àlinguagem da pesquisa, o modo de superar o dualismoquantitativo-qualitativo afasta-se da rigidez formal comolinguagem única para aceitar, em circunstâncias que afavoreçam, uma voz mais pessoal que envolva decisõesentre a afirmação absolutamente categórica e as nuançaspossíveis em espectros mais amplos de opçõessemânticas.

Infere-se do exposto que formas tradicionais defazer pesquisa, como exercício de enfoque hegemônico,rigidamente quantitativo ou estritamente anti-quantitativo, acabam por condicionar as trajetórias eresultados dos estudos, tornando-se modelos

superados para as ciências sociais. Por outro lado, acriação de múltiplas formas de realização de estudosnessas áreas sugere possibilidade e motivação parametodologias mais criativas, ensejando quepesquisadores entreguem-se à tarefa de renovação desuas práticas de modo a atender expectativas deconstruções mais adequadas às possibilidades teóricase empíricas ao seu alcance.

Assim, ao pesquisar sobre informação, tanto asquestões consideradas conceituais, quanto aquelasorientadas à prática, é possível construir trajetóriasselecionadas dentre as amplas possibilidades que cadaum dos campos da ciência oferece concretamente.

Acompanhando esse processo de discussãológica e epistemológica, observado na literaturaanalisada, percebe-se a metodologia aceita comodisciplina filosófica apenas relativamente autônoma poisdestina-se à análise das técnicas de pesquisa empregadasem uma ou mais ciências. As questões mais evidenciadasnão se referem apenas às distinções entre os paradigmasqualitatito ou quantitativo, mas de modo especial àspossibilidades de complementação, especialmenterecorrendo-se à utilização de metodologias múltiplas,consideradas em suas estruturas específicas e nascondições que tornam possível a sua concretização.

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