compêndio de teologia de santo tomás compendium theologiae

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Santo Tomás de Aquino COMPÊNDIO DE TEOLOGIA Tradução e Notas de D. Odilão Moura, OSB. PRESENÇA RIO DE JANEIRO RJ. 1977

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  • Santo Toms de Aquino

    COMPNDIO DE

    TEOLOGIA

    Traduo e Notas de D. Odilo Moura, OSB.

    PRESENA

    RIO DE JANEIRO RJ.

    1977

  • 2

    Copyright Mosteiro de S. Bento Rio de Janeiro

    NIHIL OBSTAT

    D. Emanuel d'Oliveira de Almeida

    01/11/1977

    IMPRIMATUR

    D. Incio Barbosa Accioly Abade 01/11/1977

    Abadia Nullius de N. S.a do Monserrate

    Rio

    PRESENA EDIES

    Rua do Catete, 214S. 211 Rio de Janeiro RJ Impresso no Brasil

    1977

    PREFCIO TRADUO

    O Compendium Theologiae, que as primitivas colees das obras de Santo Toms de Aquino

    tambm intitularam Brevis Compilatio Theologiae ad Fratrem Raynoldum de Piperno, e De Fide,

    Spe et Charitate ad Fratrem Reginaldum Socium Suum1 dos mais proveitosos trabalhos do Santo.

    Alm de desenvolver, em sntese perfeita, os principais temas da Teologia, encerra, no contexto

    desta cincia, uma perfeita smula filosfica. Elaborado que foi nos derradeiros anos da vida do

    autor, manifesta, em no poucas questes, o seu ltimo pensamento sobre as mesmas. Embora no

    terminado, as partes escritas do Compndio de Teologia so rica fonte da doutrina tomista.

    Na Primeira Parte, referente F, a nica completa, onde so explicados os mistrios da

    Revelao, na ordem em que o Smbolo dos Apstolos os contm, est exposta quase toda a

    Teologia, em estilo conciso, exato, lgico e claro. Sob a luz da Revelao Virtual e da considerao

    de Deus "sub ratione Deitatis", so esclarecidos os tratados de Deus Uno e Trino, da Criao, da

    Redeno e da Escatologia. Por isso, pode-se considerar esta obra como uma introduo Teologia

    do Doutor Anglico.

    inegvel o valor filosfico das pginas do Compndio de Teologia. A inteligncia genial e

    multiforme do grande 5

    Mestre medieval no se limitou ao estudo das questes teolgicas, embora nela a atividade

    teolgica sempre estivesse em primeiro plano. Compreende-se. Mergulhado que estava na

    contemplao de Deus, era natural que mais atrasse ao Santo a sabedoria amorosa da Divindade,

    que a cincia racional do Ser. No podendo, porm, fazer boa e autntica Teologia2, sem que a

    1 Cf. Mandonnet O. P., Pedro. Des crits Authentiques de Saint Thomas dAquin. Revue Thomiste, 1909, p. 158, 257,

    274. 2 "Sem a F sobrenatural no h Teologia crist. (...) Como nos bastaria um assentimento cego, sem o esforo de

    compreenso do contedo da F? No somos papagaios; somos seres dotados de inteligncia. Tendo Deus falado, quis comunicar verdades, e no vocbulos sem sentido. Incumbe-nos, portanto, penetrar e assimilar os degraus que a Igreja prope como revelados por Deus. Elevada pela F ordem de cincia divina, normal que a inteligncia, assim divinizada, queira atuar; ora, para a inteligncia, atuar compreender. Passamos, destarte, sem hiato, do simples assentimento a um saber inteligvel; a F desabrocha em Teologia. Comeamos por crer, e, depois, dentro da F,

  • 3

    razo estivesse aperfeioada pelo hbito da Filosofia intimamente presa realidade das coisas,

    evitando, assim, que a "cincia de Deus" se degradasse e tombasse no plano da imaginao e da

    fico, o Doutor Anglico, fundamentando-se, em primeiro lugar, em Aristteles, conseguiu o

    instrumento apto para a sua especulao teolgica, e nos legou a verdadeira Filosofia. Nele, o

    filsofo nasceu do telogo, mas nem por isso a sua Filosofia confundiu-se com a Teologia.

    Respeitando sempre o objeto formal daquela cincia, Santo Toms fez que ela servisse a esta,

    conservando a sua independncia prpria. Santo Toms foi tambm filsofo, e lcito dizer que h

    uma filosofia Tomista3. Muitas das suas obras so exclusivamente filosficas. Mas mesmo das suas

    obras teolgicas pode-se retirar todo o contedo da Filosofia que lhe prpria. Tra- 6

    balho difcil, sem dvida, este de descobrir os temas filosficos nos teolgicos, e de reduzi-los

    pureza da razo natural, que no deixa de ter os seus riscos4: tarefa rdua, delicada, como a do

    garimpeiro a separar as pedras preciosas da areia que as esconde. O Compndio de Teologia est

    prenhe de doutrina filosfica, e nele esto expostas as teses fundamentais do tomismo: a intuio e a

    realidade do Ser; o ato e a potncia, a essncia e a existncia como princpios do Ser; a diviso deste

    em substncia e acidente; a matria e a forma como princpios essenciais do ser corpreo; o

    conhecimento sensitivo e o conhecimento intelectivo; a unidade e as potncias da alma humana; a

    unidade de Deus e os seus atributos. Entregando-se ao atraente labor de procurar, nesta traduo, os

    elementos da Filosofia do Doutor Anglico, o Leitor curioso, calculados os riscos, descobrir nos

    argumentos teolgicos todo um tesouro metafsico neles contido.

    * * *

    Seguro da slida amizade que o mestre frei Toms lhe dedicava, o confrade frei Reginaldo

    de Piperno lhe pede que escreva para o seu uso pessoal uma sinopse da doutrina sagrada. Ofereceu-

    lhe ento o bom Mestre "um compndio da doutrina crist, de modo a t-lo sempre diante dos

    olhos" (cap. I), no podendo deixar de satisfazer o desejo do discpulo amado, a quem sempre se

    dirige como "filho carssimo", premido pela terna afeio para quem era, para ele, como um alter

    ego. Desde 1259, logo aps o seu primeiro magistrio em Paris, escolhera Mestre Toms de Aquino

    a seu confrade Reginaldo para seu socius frater, a quem se tornara afeioado, j por ser filho da sua

    ptria, j devido sua piedade e compreenso da Teologia, e tambm porque era para si

    extremamente dedicado. Alm disso, como o Mestre, o frater socius pertencia Provncia

    Dominicana de Roma. Era costume, naqueles incios da Ordem, que os mestres mais atarefados e

    notveis escolhessem para seu servio um confrade, que lhe auxiliaria nos cuidados materiais e nos

    trabalhos de pesquisa e de preparao das aulas, enfim, um secretrio quase fmulo. Frei Reginaldo

    fazia tudo isso para o Santo, mas ultrapassou em zelo o que de si a funo exigia. Alm de

    secretari-lo em 7

    tudo, escrevia os livros que Mestre Toms lhe ditava; arrumava-lhe a cela, na qual tambm dormia;

    acompanhava-o dia e noite, aonde ele fosse; recebia-lhe as confidencias e mutuamente se ouviam

    no sacramento da Confisso. Santo Toms dedicou trs obras, alm do Compndio, a Reginaldo. Os

    ltimos e edificantes momentos da vida do grande Santo, assiste-os frei Reginaldo, e dele recebe as

    tentamos chegar a uma certa inteleco." Penido. Pe. M. Teixeira Leite. O Mistrio da Igreja. Vozes, 1956, p. 37. Cf. Congar, M. J. D. T. C, vol. XV, 342. Thologie. 3 "Um estudo profundo e atento das obras de Aristteles e de Santo Agostinho, descobriu-lhe (a Santo Toms), atrs da

    letra, o verdadeiro estilo de ambos, que no era antittico nem antagnico, mas perfeitamente harmonioso no fundo, como todos os fragmentos da verdade. Apoderou-se, pois, desse esprito, e elevando-o ao mximo com o impulso de seu prprio gnio, conseguiu reunir, numa sntese prpria e pessoal, mas muito superior, o quanto de bom e so eles haviam dito, pondo como base a experincia e a tcnica aristotlica, e, como remate, as geniais intuies agostinianas, enriquecidas com contribuies pessoais dos melhores quilates. Sntese grandiosa que fez sofrer profundas transformaes aos elementos reunidos com no poucas, nem leves, retificaes, a que "sempre aspiraram Aristteles e Santo Agostinho." Ramirez-Santiago. Introduccin a Tomas de Aquino. B. A. C, Madri, 1975, p. 117.

    Cf. Gilson-Etienne. Le Thomisme, 5me. ed. Paris, 1944, p. 37 e ss.; Maritain, Jacques. Le paysan de Ia Garonne. Descle de Brower, Paris, 1966, p. 197, 201. 4 Cf. Nicolas O. P., J. H. Dieu connu comme inconnu. Descle de Brower, Paris, 1966, p. 293.

  • 4

    ltimas palavras e o ltimo olhar. Morto Santo Toms, a quem durante quinze anos servira fiel e

    cotidianamente, o socius frater sobrevivente ser o primeiro a propagar-lhe o culto; recolhe,

    classifica e cataloga-lhe as obras. Por feliz iniciativa, pois ningum seno ele poderia faz-lo,

    completa a III Parte da Suma Teolgica, que ficara inacabada, e substitui o grande Doutor na

    Ctedra de Teologia da Universidade de Npoles. No fora o humilde frei Reginaldo, dificilmente

    teriam chegado a ns tantos e preciosos pormenores da vida do amigo santo, e muitas das suas obras

    estariam perdidas5. O rgio presente que era o Compndio de Teologia, pedao da alma

    amantssima e reflexo da inteligncia clarssima do Doutor Anglico, frei Reginaldo no quis

    conserv-lo s para si, mas, divulgando-o, abriu para todos as pginas de um dos mais importantes

    tratados da Teologia Catlica.

    * * *

    Conhecido o destinatrio, melhor se pode compreender o significado do livro que o Mestre

    redigira com a inteligncia, e o Santo, com o seu ternssimo corao. Se todos os seus escritos saem

    de uma alma ardorosa de caridade, amantssima de Deus e dos homens, este especialmente

    embebido de amor. Se o fim da obra, no Compndio de Teologia, est dirigido para a mais rigorosa

    Teologia cientfica, o fim que o autor teve em vista, ao escrev-lo, foi despertar, na alma do

    "carssimo filho", a santidade, que, na caridade, encontra a perfeio: "caridade, pela qual a tua

    afeio deve ser inteiramente ordenada" (cap. I). A finalidade do livro , portanto, espiritual. Se a

    Primeira Parte desenvolve-se em argumentos estritamente racionais, parcimoniosa em citaes da

    Escritura, os poucos captulos terminados da Segunda Parte, abundantemente baseados em textos

    escritursticos e patrsticos, prenunciavam uma obra, talvez 8

    exaustiva, de Teologia Asctica e Mstica. Terminada se fosse, condensaria, qui, toda a

    espiritualidade do Doutor Anglico. Alis, para ele, a Teologia cincia especulativa e prtica,

    tratando tambm das aes humanas informadas pela graa, "das quais ela se ocupa enquanto, por

    elas, o homem se encaminha para o perfeito conhecimento de Deus, no qual consiste a sua

    felicidade eterna"6. Terminada se fosse, nela esse aspecto prtico da "cincia de Deus" bem estaria

    duplamente ressaltado.

    O Compndio de Teologia, escrito que foi pelo maior telogo da Igreja para outro telogo,

    qui o que lhe tenha de modo mais profundo admirado e apreendido as idias, tal circunstncia

    explica porque o livro no entra em digresses elementares exigidas pelos aprendizes da Teologia,

    como acontece em muitas outras obras de Santo Toms (por exemplo, na Suma Teolgica), mas,

    nele, as questes so tratadas em alto nvel cientfico, sem, contudo, perderem da simplicidade e da

    clareza prprias do autor.

    * * *

    Inspirou-se, Santo Toms de Aquino, para a composio da sntese teolgica dedicada ao

    confrade, na obra de Santo Agostinho denominada Enchiridion7. Um amigo do Doutor de Hipona

    pediu-lhe que compusesse um manual que resumisse a doutrina catlica. Embora visse a dificuldade

    de tal tarefa, Santo Agostinho escreve para Loureno, assim se chamava o amigo, o manual

    desejado, lastimando, no incio e no fim deste, a impossibilidade de condensar matria to extensa

    em volume pequeno, e nele distribuiu o assunto conforme as trs virtudes teologais. Os temas

    relacionados com a F, trata-os conforme os artigos do Smbolo dos Apstolos. Mas o genial

    5 Cf. Toco O. P., Guilherme. Vita Sancti Thomae, Aquinatis. In Acta Sanctorum, Joo Bossando S. J., Veneza, 1735, VI,

    p. 657 e ss.; Mandonet O. P., Pedro. Opuscula Omnia. Paris, 1927, vol. I, introduction, p IV. 6 Cf. S. T., I, l, 4c.

    7 P. L., XL, p. 241 e ss. Santo Toms, no Compndio de Teologia, no fugiu, pois, da sua filiao a Santo Agostinho,

    como, alis, acontece em toda a sua doutrina, escrevendo, a respeito, Santiago Ramirez, um dos mais profundos conhecedores desta em nossos tempos: "Neste sentido profundo e verdadeiro, foi Santo Toms mais aristotlico e mais agostiniano que os aristotlicos e agostinianos de todos os tempos, e o maior discpulo e continuador de ambos que os sculos conheceram." (Texto que continua a citao posta na nota 3 supra.).

  • 5

    Doutor da Graa, dando vazo sua exuberante e ardorosa inteligncia, estende-se demais, com a

    sua sempre encantadora pena, pelos 9

    temas atinentes ao problema do mal, ao pecado, predestinao, e, quando vai abordar as virtudes

    da Esperana e Caridade, restringe o texto. Ao discorrer sobre a Esperana, comenta a Orao

    Dominical. Apesar da desproporo das partes e da omisso de muitos temas essenciais Teologia,

    o Enchiridion sempre foi considerado fonte preciosa desta. Muito divulgado na Idade Mdia, ele,

    realmente, abundante manancial do pensamento agostiniano. Alm disso, talvez tenha sido, no

    Ocidente cristo, a primeira sntese orgnica da Teologia.

    Sai vista a semelhana do Compndio de Teologia com o Enchiridion. A coincidncia de

    terem sido ambos escritos por solicitao de amigos; o fato de os dois estarem divididos conforme

    as trs virtudes teologais, e de considerarem nas partes os assuntos segundo o Smbolo dos

    Apstolos e a Orao Dominical, so indcios visveis de que o Mestre medieval desejou imitar o

    Mestre patrstico. J no Primeiro Captulo, aquele cita o Enchiridion: "agora permanecem a F, a

    Esperana e a Caridade. Trs virtudes pelas quais presta-se culto a Deus." Mas a obra do Doutor

    Anglico, sem desdouro da do seu grande mestre Agostinho, supera a deste como trabalho de

    sntese ordenada e perfeita. Se no a excede pela forma literria, pois o estilo do autor das

    Confisses de beleza inigualvel, leva-lhe vantagem pela clareza e pela lgica do pensamento.

    Sem embargo das diferentes pocas em que foram escritas, e das dessemelhantes personalidades dos

    respectivos autores, pela natureza, pela finalidade comum e pela unidade doutrinria, as duas

    primorosas snteses completam-se mutuamente.

    * * *

    Santo Toms escrevia as suas obras, s vezes por iniciativa prpria; outras, para atender s

    exigncias do magistrio, ou s solicitaes de amigos, de autoridades religiosas e de nobres, que

    desejavam esclarecimentos sobre algum assunto. Nelas tratou dos mais variados temas: teologia,

    moral, exegese, direito, liturgia, poltica, pedagogia e metafsica. Naturalmente seguia os padres

    literrios da sua poca, tendo publicado comentrios Sagrada Escritura, a livros de Filsofos e de

    Padres da Igreja; snteses doutrinrias em forma de sumas; temas debatidos nas disputas

    universitrias; respostas a consultas, discursos e sermes.

    Em pouco mais de vinte anos de atividade pedaggica e literria, a jamais excedida

    inteligncia e invulgar capacidade 10

    de trabalho daquele silencioso mestre do sculo XIII possibilitaram-lhe escrever cento e trinta obras

    de tamanhos diversos, cuja primeira edio completa, de 1570, a "Piana", assim denominada por ter

    sido promovida pelo papa So Pio V, abrange dezoito volumes in folio. As obras de menor extenso

    constituem os Opuscula, e perfazem o nmero de cinqenta e trs. Entre elas, sem embargo dos

    seus duzentos e quarenta e cinco captulos, est colocado o Compndio de Teologia.

    Quanto ao gnero literrio, o do Compndio seguiu ao das sumas. Estas surgiram, no sculo

    XIII, como ltima etapa da evoluo multissecular da sistematizao da Teologia, que, partindo da

    Lectio, passando sucessivamente pelas Glossae, Quaestiones, Sententiae, encontrou nas Summae,

    em um sculo no qual os homens estavam sedentos de clareza e de exatido nas idias, o perfeito

    acabamento8. Santo Toms publicou, alm do Compndio de Teologia, duas obras em forma de

    suma: a conhecida Suma Teolgica e a Suma Contra os Gentios. Esta, com fim apologtico, aborda

    quase todos os temas da Teologia, ressaltando as questes que mais de perto interessavam ao

    confrade, de Santo Toms, So Raimundo de Penaforte, pois, para este, aquele comps o livro. So

    Raimundo de Penaforte dedicava-se ao trabalho missionrio em Arago entre judeus e muulmanos,

    e sentia dificuldades para fazer frente s sutilezas exegticas e filosficas destes. No h grande

    afinidade entre essa obra e o Compndio de Teologia.

    Afinidade h, porm, entre este e a Suma Teolgica, por pretenderem ser ambos snteses

    8 Cf. Fraille O. P., Guillermo. Historia de la Filosofia. 2. ed. Madri, 1956, B. A. C, vol. II, p. 533 e ss.; Grabmann, Mons.

    Martinho. Introduo Suma Teolgica de Santo Toms de Aquino, 2. ed., Vozes, 1959.

  • 6

    completas da Doutrina Catlica. Diferem, porm, quanto finalidade, quanto distribuio da

    matria, bem como quanto extenso desta. A Suma Teolgica trabalho de longos anos da vida de

    Santo Toms, e ele a escreveu para facilitar aos iniciantes a aprendizagem da Sacra Doctrina, de

    modo que as questes inteis, repetidas e postas fora da ordem lgica fossem evitadas, e que os

    temas fossem tratados com brevidade, clareza e de acordo com a exigncia da matria9. A Suma

    Teolgica dos poucos livros do Santo escritos por iniciativa prpria, pois no se sabe de algum 11

    que lha solicitara. Por outro lado, a disposio da sua matria difere da existente no Compndio de

    Teologia. Neste, toda a doutrina deveria ser desenvolvida relacionada com as trs virtudes

    teologais; naquela, com o prprio Deus: Deus em si mesmo; o Universo enquanto sai de Deus e

    por ele governado; a volta de tudo a Deus por meio de Jesus Cristo. Enquanto na Suma Teolgica

    acentua-se mais o aspecto divino da Teologia, no Compndio de Teologia, sem que se fuja do

    objeto formal da cincia teolgica, visa-se mais o seu aspecto antropolgico. A finalidade do livro

    justifica essa perspectiva.

    No seguiu o Compndio de Teologia o mtodo disputativo encontrado em outras obras do

    autor. Todo o livro desenvolve-se numa s exposio, tendo os assuntos concatenados por rgida

    seqncia lgica, os silogismos sucedendo-se organicamente. Trata-se, na realidade, de um grande

    srites. Os captulos, em geral, assim se estruturam: primeiro, apresentao do tema, seqncia da

    concluso do captulo anterior; em seguida, comprovao da tese por argumentos em forma

    silogstica; por fim, a concluso geral, que a prpria concluso do ltimo argumento, e que

    prepara o tema do captulo seguinte. Os ttulos dos captulos talvez no sejam de Santo Toms.

    * * *

    Durante a Quaresma de 1273, Santo Toms pronunciou, na Capela do Convento

    Dominicano de Npoles, a pedido do Arcebispo, uma srie de sermes explicando ao povo o

    Credo10

    , o Pai Nosso, os Preceitos da Caridade11

    e a Ave Maria. O cuidado de um outro seu

    discpulo, a ele tambm muito chegado, frei Pedro de Andria, futuro bispo de Aquino, fez que eles

    fossem conservados, escrevendo-os enquanto o Santo os proferia do plpito. manifesta a

    conformidade das duas primeiras sries destes sermes com as duas partes que existem do

    Compndio de Teologia. Se esta obra estava sendo elaborada em Npoles por ocasio daqueles

    sermes, conforme alguns supem (alis, tal conformidade refora a hiptese), Santo Toms 12

    estaria transmitindo para o povo, em linguagem vulgar, na Capela, aquilo que ditava, para o socius

    frater, em termos cientficos, na sua pobre cela do Convento. Como bom filho de So Domingos,

    sabia o grande Doutor das Universidades tambm adaptar-se mentalidade dos fiis simples.

    Decalcados nas idias do Compndio de Teologia, aqueles sermes eram enriquecidos com

    exemplos fceis e desenvolvidos nas aplicaes prticas da doutrina, para serem compreendidos

    pelo povo. Vistas as semelhanas entre eles e a obra teolgica, no fora de propsito afirmar que a

    Terceira Parte desta tambm seguiria a linha dos sermes referentes aos Preceitos da Caridade.

    * * *

    No so concordes os estudiosos da obra de Santo Toms quanto poca da sua vida em que

    foi composto o Compndio de Teologia12

    . Diversamente opinam para o perodo do seu magistrio

    na Cria Papal, quando esta localizava-se em Anagni e Orvieto, de 1258 a 1259; ou quando ela

    9 Cf. Suma Teolgica, Prlogo.

    10 Desses sermes h a traduo para o nosso idioma: Santo Toms de Aquino, Exposio Sobre o Credo. Traduo e

    notas de D. Odilo Moura, O. S. B., Presena, Rio, 1975. 11

    H uma antiga traduo um tanto livre desses sermes: Tratado dos Dous Preceitos da Caridade e dos Dez Mandamentos da Lei de Deus por S. Thoms de Aquino. Traduzido pelo Dr. Braz Florentino Henriques de Souza. Garnier, Rio, 1876. 12

    Cf. Biffi, Inos. I Misteri di Cristo nel Compendium Teologiae di S. Tommaso. Divinitas, 1974, p. 287, nota 2; Boulogne, Ch. D. Saint Thomas d'Aquin. Essai Biographique. Nouvelles Editions Latines. Paris, 1968, p. 110 e ss.

  • 7

    fixou-se novamente em Roma, de 1265 a 1267. A sentena mais provvel e mais tradicional que

    foi escrito no perodo do magistrio napolitano, em 1272 e 1273.

    * * *

    O texto latino utilizado nesta traduo o que se encontra na edio dos Opuscula de Santo

    Toms, orientada pelo insigne historiador dominicano Pedro Mandonnet O.P.13

    . A traduo foi feita

    o mais possvel em conformidade com o texto original latino, embora, por vezes, a clareza lhe

    pedisse uma forma mais livre. O nosso idioma, para as tradues da lngua-me, mais favorecido

    que os outros neolatinos, porque a nossa terminologia e a construo da nossa frase ainda no se

    afastaram muito do latim. Nas obras filosficas e teolgicas, a fidelidade ao idioma primitivo pode

    ser, por isso, em muito, conservada. 13

    Para dirimir dvidas atinentes ao sentido das palavras de Santo Toms, duas tradues nos

    auxiliaram; uma, feita para a lngua espanhola14

    , bastante fiel e clara; outra, para a lngua francesa15

    .

    Em vista da mentalidade da poca em que vivemos e do ambiente cultural brasileiro, notas

    esclarecedoras foram anexadas a alguns captulos da obra, naturalmente teis para quem no esteja

    familiarizado com o pensamento tomista e com a histria das idias do sculo XIII.

    Para facilitar a leitura, os pargrafos dos captulos foram numerados, separando os

    argumentos ou dividindo os textos mais extensos.

    Ficaramos gratos a quem nos indicasse as falhas e as imprecises que tivesse encontrado

    nesta traduo.

    Ter o Leitor em mos, com esta traduo, pginas que condensam o que h de mais

    precioso no pensamento do Doutor Anglico. So elas um guia seguro para conduzi-lo ao infinito e

    insondvel mistrio da Divindade, cujos vislumbres, por mais longnquos que estejam, fascinam a

    alma humana pela clarividncia da verdade e pelos encantos da beleza de que so envolvidos. S a

    inteligncia divina capaz de penetrar nas ltimas profundezas deste mistrio, e de compreender

    todos os seus segredos. O mnimo, porm, que deles a inteligncia humana possa apreender, j a

    satisfaz plenamente. So migalhas que caem da mesa da eternidade para os gentios deste desterro...

    S por meio da inteligncia lcida, coerente, dcil realidade, consegue o homem atingir e

    apreender um pouco do mistrio divino. Desprezando-a, transvia-se ele para as sendas da

    imaginao ou da emotividade, e vai fatalmente cair no abismo do obscuro, do confuso, do

    ininteligvel, do nada. Ningum conseguiu, como o Doutor Comum, ensinar aos homens como fugir

    desse abismo, que atrai, tenta, e, finalmente, traga 14

    a inteligncia, e como dirigir-se direta e seguramente para a verdade. Ele o Mestre do bom senso e

    da reta razo, e, por isso, da verdadeira Filosofia e da slida e legtima Teologia16

    .

    Em nossos dias, nem todos o aceitam. A ndole subjetivista da filosofia desligada do real,

    que seguiu os passos de Descartes e que ainda perdura nas fices metafsicas do existencialismo17

    ;

    13

    S. Thomae Aquinatis. Opuscula Omnia. Cura et Studio R. P. Petri Mandonnet. Parisis. P. Lethielleux Bib. Ed, 1927,

    Tomus Secundus, vol. II. 14

    Santo Toms de Aquino. Compndio de Teologia. Editora Cultura, Buenos Aires, 1943. utilizada a traduo feita por Leon Carbonero (Madri, 1880). 15

    Opuscules de Saint Thomas d'Aquin. Traduits par M. Vaudrine, M. Baudet e M. Fouruet, Paris, Louis Vives, Ed., 1956,

    Tome Premier. 16

    "O Doutor Anglico considerou as condies filosficas nas razes e nos prprios princpios das coisas. (...) Ademais, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, tal como convm, a razo e a f, une-as ambas pelos laos de uma mtua amizade. Conserva, assim, cada uma os seus direitos, salvaguarda-lhe a dignidade, de tal sorte que a razo levada pelas asas de Santo Toms at ao fastgio da inteligncia humana quase no pode subir mais, e dificilmente pode a F esperar da razo socorros mais numerosos, ou mais poderosos do que os que Santo Toms lhe forneceu." Leo XIII. Enc. Aeterni Patris, 4.8.1879, A. S. S., XII, p. 108. 17

    Sobre Heidegger, assim se expressa Jacques Maritain: "No se trata, de fato, daquela intuitividade de que anteriormente falei bastante e que ao olhar para as coisas busca a pura objetividade caracterstica da inteligncia que se realiza conforme suas leis estritamente prprias e empenhada nas vias do conhecer. Em Heidegger trata-se da intuitividade potica. (...) Longe de trabalhar sobre as naturezas inteligveis atingidas no verbo mental (o obscuro Denken heideggeriano), concentra-se sobre o que pode apreender ainda do contedo fugitivo de uma intuio quando ele esfora-se por dessubjetivizar esta antes (e a fim) de a conceptualizar ou tornar inteligvel em termos metafsicos.

  • 8

    o ativismo, "a heresia dos nossos tempos", como j se disse, com a obsesso do imediato, da

    eficincia, das construes materiais e do desenvolvimento econmico; a hipertrofia a que foram

    levadas as cincias e a tcnica; o desprezo pelo estudo da Metafsica, e reduzido o estudo da

    Filosofia a superficiais abordagens das idias de um ou outro pensador atual; a Teologia aprendida

    sem a devida formao filosfica, e mais dirigida para o campo pastoral; essa mesma Teologia

    acomodada s filosofias existencialistas e s correntes luteranas; o critrio do verdadeiro substitudo

    pelo critrio do 15

    mais recente, todas essas so causas, entre outras, que levam ao esquecimento a doutrina de Santo

    Toms de Aquino, ou a fazem repelida. H quem use de algumas teses e da terminologia tomistas,

    com louvvel inteno de abertura para as novas perspectivas filosficas do pensamento, para criar

    uma sntese do tomismo com outras filosofias, de outros princpios e de outros mtodos. Disso

    resulta um larvado ecletismo, nebuloso, indistinto, incompreensvel, e que leva tantos a

    confundirem a contemplao do mistrio de Deus com a contemplao do nada, no se salvando,

    dessa simbiose, nem o tomismo, nem o que as outras filosofias possam ter de inteligvel18

    . Muitos

    h que no do crdito doutrina tomista, simplesmente por desconhec-la. A esses, alerta-os Paulo

    VI: "No nos passa despercebido o fato de que, muitas vezes, a desconfiana ou a averso, em

    relao a Santo Toms de Aquino, dependem de um contato superficial e limitado com as suas

    obras, e, nalguns casos, da falta completa de uma leitura direta e do estudo das mesmas. Por isso,

    tambm Ns, como fez Pio XI, recomendamos a todos os que desejam formar uma conscincia

    madura no que se refere prpria posio nesta matria: Ide a Toms! Procurai e lede as obras de

    Santo Toms de Aquino, repetimos, para ter uma idia pessoal da incomparvel profundidade, da

    abundncia e da importncia da doutrina que ali se encerra19

    .

    Para ir a Santo Toms, esta traduo muito til ser ao Leitor. Vencidas as primeiras

    dificuldades do contato com um pensamento em si muito inteligvel, cultivado em plano s de pura

    inteligncia, despido dos limitados recursos audiovisuais e emotivos que geralmente entorpecem a

    razo, e persistindo, o atento e srio Leitor, no estudo desta obra, pouco a pouco ir sentindo os

    benficos efeitos do conhecimento da "doutrina que a Igreja fez sua"20

    . proporo que a vai

    assimilando, mais 16

    tambm penetrar na sabedoria de clarssima e belssima luminosidade do Santo e do Mestre,

    denominado, desde os tempos medievais, Luz da Igreja e do mundo inteiro".

    D. Odilo Moura, O.S.B.

    Mosteiro de S. Bento, 15-10-1977. 17

    19

    INTRODUO

    Sabemos que agora Heidegger volta-se para os prprios poetas e para os poderes teognicos da linguagem destes, esperando dela uma espcie de revelao proftica cujo desejo parece ter obcecado, desde o princpio, o seu esprito. O mito a sua verdadeira ptria." Maritain, Jacques. Approches Sans Entraves. Fayard, Paris, 1973, p. 389, 391. Em termos crticos semelhantes, assim se refere Maurice Corvez O. P. posio dissociada da realidade de Heidegger; "Na anlise fenomenolgica de Heidegger, no aparece jamais a realidade verdadeira. Nenhum juzo formulado sobre o conhecimento e a unidade do Ser ("sendo"), cuja realidade ontolgica se impe aos nossos sentidos e nossa inteligncia. O real escapa a Heidegger: ele no tem a intuio do real e permanece em estado de abstrao: sua filosofia uma filosofia das essncias Corvez O. P.. Maurice. La Pense de LEtre Chez Martin Heidegger. Revue Thomiste, 1965, p. 552. 18

    "Na realidade", escreve Charles Journet, "a questo no saber se se deva ou no fazer teologia. Todos a fazem. A nica questo de saber que teologia se quer fazer, boa ou m, verdadeira ou falsa, franca ou disfarada." Journet, Charles. Introduction Ia Theologie. Descle de Brower, Ed. Paris, 1947, p. 86. Sobre o conceito de Teologia, ver Santo Toms: S. T., I, 1, 1 e ss; Super Boetium de Trinit. II, 2; in Sent, III, 33, 1, 2. 19

    Paulo VI. Carta Lumen Ecclesiae, 3, A. A. S., LXVi, p. 675. 20

    A expresso "A Igreja fez sua a doutrina de Santo Toms" encontra-se nos seguintes pronunciamentos pontifcios: Bento XV. Encclica Fausto Appetente, 29.6.1921. A. A. S., XIII, p. 332; Pio XI. Encclica Studiorum Ducem, 29.6.1923. A. A. S., XV, p. 314; Joo XXIII. Alocuo de 16.9.1960. A. A. S. LII, p. 821.

  • 9

    CAPTULO I

    1 O Verbo Eterno do Pai, que pela sua imensidade abrange todas as coisas, para revocar elevao da glria divina o homem diminudo pelo pecado, quis fazer-se limitado, assumindo a

    nossa limitao, no renunciando, porm, sua majestade. Para que ningum fosse dispensado de

    receber a doutrina da palavra celeste, que transmitira extensivamente por intermdio dos homens

    que a estudaram, e, de modo claro, pelos livros da Sagrada Escritura, condensou, numa breve suma,

    a doutrina da salvao humana. Desse modo conhec-la-iam tambm aqueles que se entregam mais

    aos cuidados das coisas terrenas.

    2 A salvao humana consiste no conhecimento da verdade, que impede o obscurecimento da inteligncia pelo erro; no desejo da devida finalidade do homem, que o impede

    de seguir os fins indevidos que o afastam da verdadeira felicidade, e, finalmente, na observncia da

    justia, para que ele no se macule por tantos vcios.

    O necessrio conhecimento das verdades da salvao humana est contido em poucos e

    breves artigos de f. Por isso o Apstolo disse: "Dar o Senhor uma palavra abreviada sobre a

    terra." (Rom 9,28.) Esta a palavra da f que ns pregamos. 19

    O Verbo Eterno do Pai corrigiu o desejo humano por uma breve orao, na qual manifesta,

    ao nos conduzir por ela, como o nosso desejo e a nossa esperana devem ser orientados.

    A justia humana, que consiste na observncia da Lei, Ele resumiu num s preceito de

    caridade: "A plenitude da Lei a caridade." (Rom 13,10.)

    Por esses motivos, o Apstolo ensinou que toda a perfeio da presente vida consiste na f,

    na esperana e na caridade, que so como captulos nos quais se compendia a doutrina da nossa

    salvao. Escreveu tambm o Apstolo: "Agora permanece a f, a esperana, a caridade." (I Cor

    13,13.) Trs virtudes pelas quais, conforme Santo Agostinho, presta-se culto a Deus.

    3 Para te transmitir, carssimo filho Reginaldo, um compndio da doutrina crist de modo a t-lo sempre diante dos olhos, a nossa inteno, no presente trabalho, tratar das trs virtudes:

    primeiro, da f; depois, da esperana; e, por fim, da caridade. Em tal ordem considerou-as o

    Apstolo, a qual, alis, conforme reta razo. Realmente, o amor no pode ser reto se no estiver

    dirigido para o devido fim da esperana, nem esta pode existir se no houver o conhecimento da

    verdade.

    necessria, por conseguinte, em primeiro lugar, a f, pela qual deves conhecer a verdade.

    Em segundo lugar, a esperana, pela qual deve ser colocado no devido fim o teu desejo. Em terceiro

    lugar, necessria a caridade, pela qual a tua afeio deve ser inteiramente ordenada. 20

  • 10

    PRIMEIRA PARTE

    SOBRE A F

    23

    CAPTULO II

    ORDEM DAS QUESTES SOBRE A F

    1 A f uma certa prelibao daquele conhecimento que nos far bem-aventurados no futuro. O Apstolo disse que ela a "substncia das coisas que se esperam" (Heb 11,1), fazendo j

    existir em ns, por uma certa incoao, as coisas que se esperam, isto , a felicidade futura.

    2 O Senhor ensinou que aquele conhecimento beatificante consiste em duas verdades: na divindade da Trindade e na humanidade de Cristo. Ele mesmo dirigiu-se ao Pai com estas palavras:

    "Esta a vida eterna: que Te conheam a Ti por nico Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo a quem

    enviaste" (Jo 17,3.) Por conseguinte, todo o conhecimento da f resume-se nestas duas verdades: na

    divindade da Trindade e na humanidade de Cristo. Isso no de se estranhar, porque a humanidade

    de Cristo o caminho pelo qual se vai divindade.

    Enquanto estamos em caminho, convm conhecer o caminho pelo qual se alcana o fim, at

    porque, na ptria, os bem-aventurados no podero dar suficiente ao de graas se no tiverem tido

    o conhecimento do caminho pelo qual foram salvos. Por isso o Senhor disse aos discpulos: "Sabeis

    para onde Eu vou e conheceis o caminho" (Jo 14,4.) 23

    3 A respeito da divindade, trs coisas devem ser conhecidas: primeiro, a unidade da essncia; segundo, a Trindade das Pessoas; terceiro, os efeitos da ao da divindade.

    PRIMEIRO TRATADO

    SOBRE A UNIDADE E A TRINDADE DE DEUS

    I A UNIDADE DA ESSNCIA DIVINA

    CAPTULO III

    DEUS EXISTE

    Com relao unidade da essncia divina, deve-se, em primeiro lugar, crer que Deus existe,

    verdade esta evidente razo humana. 1 Vemos, com efeito, que todas as coisas que se movem so movidas por outras: as

    inferiores pelas superiores, como os elementos o so pelos corpos celestes; vemos que as coisas

    inferiores agem impulsionadas pelas superiores. impossvel que nesta comunicao de

    movimentos, o processo prolongue-se at o infinito, porque toda coisa que movida por outra

    como um instrumento do primeiro motor da srie. Ora, se no houver um primeiro motor, todas as

    coisas movidas nada mais so que instrumentos. Por conseguinte, se houver um processo que leve

    ao infinito a srie das coisas que movem sucessivamente umas s outras, nele no pode existir um

    primeiro motor. Conseqentemente, todas as coisas, as que movem e as movidas, seriam

  • 11

    instrumentos.

    2 ridculo, porm, at para os menos instrudos, imaginar instrumentos que no sejam movidos por um agente principal. Seria como pensar em construir arcas ou leitos s com serras e

    machados, mas sem o carpinteiro que os fizesse. Por isso, necessrio que exista um primeiro

    motor, supremo na sucesso dos movimentos das coisas que se movem umas s outras. A este

    primeiro motor, chamamos Deus. 24

    CAPTULO IV

    DEUS IMVEL

    Do acima exposto, depreende-se ser necessrio que Deus, que move todas as coisas, seja

    imvel. .

    1 Com efeito, sendo o primeiro motor, se fosse movido, s-lo-ia necessariamente por si mesmo, ou por outro movente.

    Ser movido por outro movente no possvel, porque, se o fosse, existiria algum motor

    anterior a ele. Ora, isso contradiz a prpria noo de primeiro motor.

    Se fosse movido por si mesmo, poderia, por sua vez, ser movido de duas maneiras: ou,

    conforme o mesmo aspecto, sendo movente e movido; ou, ento, conforme um aspecto sendo

    movente, e, conforme outro, movido.

    No possvel dar-se a primeira parte da alternativa. Sabemos que tudo o que movido,

    enquanto movido, est em potncia, pois o que move est em ato. Ora, se segundo a mesma

    considerao fosse movente e movido, estaria tambm conforme a mesma considerao em

    potncia e em ato, o que impossvel.

    No se salva tambm a outra parte da alternativa. Se estivesse, segundo um aspecto como

    movente, e, segundo outro, como movido, no seria o primeiro motor por si mesmo primeiro

    movente, mas pela sua parte que o move. O que por si, porm, anterior ao que no por si. No

    poderia, portanto, ser primeiro motor, se fosse movido pela parte. Conseqentemente, o primeiro

    motor deve ser absolutamente e em tudo imvel.

    2 A essa mesma concluso pode-se chegar considerando-se as coisas que so movidas, e que, ao mesmo tempo, movem outras. Ora, todo movimento apresenta-se como procedente de algo

    imvel, que no movido pela mesma espcie de movimento com que move. Assim que as

    alteraes, as geraes e as corrupes, movimentos que se do nos corpos inferiores, referem-se a

    um corpo celeste como a um primeiro motor que movido por outra espcie de movimento que a

    que o move, 25

    pois os corpos celestes no surgem por gerao: so incorruptveis e inalterveis. Aquilo, portanto,

    que o princpio de todo o movimento, convm que seja absolutamente imvel.

    CAPTULO V

    DEUS ETERNO21

    Do precedente resulta tambm que Deus eterno, pois tudo o que comea a existir ou deixa

    de existir, por movimento ou mutao, mvel por natureza. Ora, foi provado que Deus

    absolutamente imvel. Logo, Deus eterno.

    21

    "Este captulo, que aparece em muitas edies latinas, talvez no seja autntico Cf. A. Motte O. P. Un Chapitre inauthentique dans le Compendium Theologiae de S. Thomas (Revue Thomiste, T. XLV, 4, 1939, p. 749 e ss.).

  • 12

    CAPTULO VI

    DEUS NECESSARIAMENTE EXISTE POR SI MESMO

    Na seqncia do mesmo raciocnio, prova-se que necessrio que Deus exista.

    1 Com efeito, tudo o que tem possibilidade de existir ou de no existir mutvel. Ora, Deus absolutamente imutvel, como se viu. Logo, ser ou no ser, em Deus, no uma

    possibilidade.

    2 Alm disso, tudo o que existe e que no possvel no existir necessrio que exista, porque, existir necessariamente e no ser possvel no existir significam o mesmo. Por conseguinte,

    Deus necessariamente existe.

    3 Ademais, aquilo que possvel ser ou no ser exige algo que o tenha posto em existncia, porque, considerado em si mesmo, pode existir ou no existir. Ora, aquilo que pe a

    coisa em existncia, existe antes dela. Logo, h sempre algo 26

    anterior quilo que pode existir ou no existir. Conseqentemente, como no h nada anterior a

    Deus, existir ou no existir no lhe uma possibilidade. Logo, Deus existe necessariamente.

    4 Continuemos o raciocnio: algumas coisas so necessrias, mas tendo outra como causa dessa necessidade, que lhes anterior. Ora, Deus existindo antes de todas as coisas, no pode ser

    causa da sua necessidade de existir. Logo, existe necessariamente por si mesmo.

    CAPTULO VII

    DEUS SEMPRE EXISTE

    1 Dando prosseguimento argumentao, conclui-se que Deus sempre existe. Tudo aquilo que necessariamente tem existncia, sempre existe, porque o que no possvel no existir,

    impossvel no existir, e, assim, nunca privado da existncia. Ora, vimos que a existncia

    necessria a Deus. Logo, Deus existe sempre.

    2 Continuemos: nada comea a existir, ou deixa de existir, a no ser por movimento ou mutao. Ora, ficou certo que Deus absolutamente imutvel. Logo, impossvel que tenha

    comeado a existir, ou que deixe de existir.

    3 Ademais, tudo aquilo que nem sempre existiu, ao comear a existir exige algo que lhe cause a existncia, pois nada pode passar de potncia a ato, ou do no ser ao ser, por si mesmo.

    Como no pode haver uma causa da existncia de Deus, j que Ele o primeiro Ser, e a causa

    sempre anterior ao efeito, necessrio que Deus tenha sempre existido.

    4 Por fim, o que convm a alguma coisa no por causa extrnseca, lhe convm pela prpria natureza, por si mesma. Ora, a existncia no convm a Deus por alguma causa extrnseca,

    at porque essa causa lhe seria anterior. Por conseguinte, Deus tem a existncia por si mesmo.

    Como as coisas que existem por si mesmas sempre existem por necessidade intrnseca, Deus

    sempre existe. 27

    CAPTULO VII

    NENHUMA SUCESSO H EM DEUS

    Evidencia-se, alm disso, que em Deus no h sucesso, mas, que todo o seu ser existe

    simultaneamente.

    1 No se encontra sucesso de tempo a no ser nos seres sob certos aspectos sujeitos a movimento, porque a sucesso de tempo tem a sua explicao na anterioridade e na posterioridade

  • 13

    que h no movimento. Ficou j provado que Deus de modo algum est sujeito a movimento. Logo,

    no h sucesso alguma em Deus, mas todo o seu ser existe simultaneamente.

    2 Ademais, se um ser no existe todo simultaneamente, nele algo poderia desaparecer, e algo, aparecer, pois desaparece nos seres aquilo que passa, e aparece aquilo que esperado no

    futuro. Ora, em Deus nada pode desaparecer, nem nada lhe pode ser acrescentado, porque Ele

    imvel. Logo, o seu ser existe todo simultneo.

    3 Esses dois argumentos provam justamente que Deus eterno por propriedade da sua natureza. eterno por propriedade da natureza aquilo que sempre existe e cuja existncia est toda

    simultaneamente realizada. Bocio definiu a eternidade como sendo "total possesso, simultnea e

    perfeita, de uma vida interminvel".

    CAPTULO IX

    DEUS SIMPLES

    Em prosseguimento ao raciocnio anterior, chega-se tambm evidncia da razo por que o

    primeiro motor deve ser simples.

    1 Em toda composio convm que haja dois elementos que se relacionem como a potncia para o ato. Ora, no primeiro motor, se ele absolutamente imvel, impossvel haver

    potncia unida a ato, porque, desde que esteja em potncia, 28

    mvel. Logo, impossvel que o primeiro motor seja composto de potncia e ato.

    2 Ademais, deve haver algo anterior ao ser composto, porque as causas que atuaram na composio lhe so anteriores. Por conseguinte, impossvel que aquilo que antecede a todos os

    seres seja composto.

    3 Considerando, agora, a ordem dos seres compostos, vemos que os seres mais simples so anteriores, porque os elementos so anteriores aos corpos mistos. Mais ainda: entre esses

    elementos, o primeiro o fogo, que simplicssimo. Anterior, porm, a todos os elementos o

    corpo celeste, constitudo que est em maior simplicidade, porque livre de contrariedade. Segue-

    se, ento, que o primeiro dos seres absolutamente simples22

    . 29

    CAPTULO X

    22

    2 a) O primeiro argumento fundamenta-se na doutrina de Ato e Potncia, e conserva toda a sua validez metafsica. O segundo argumento tambm a conserva considerada sota o aspecto metafsico. O terceiro argumento, fundamentado na Fsica da poca de Santo Toms, que seguia ainda a viso do universo de Empdocles e de Aristteles, bem que bom quanto forma, ilao, evidentemente est desatualizado quando ao contedo.

    b) Observando atentamente a realidade, Aristteles descobriu e formulou a teoria do Ato e da Potncia. Por meio dela, ele encontrou a explicao do problema, insolvel para Parmnides e para Herclito, que as tentativas de conciliao entre a unidade e a multiplicidade, entre o repouso e o movimento dos seres criaram. Procurada para esclarecer as questes da ordem fsica (matria e forma), Aristteles estendeu-a, posteriormente, ordem metafsica chegando ao conceito do Ato Puro. Santo Toms aceita como verdadeira a teoria aristotlica do Ato e da Potncia, e, aps a ter aprofundado e completado, lev-la- s ltimas conseqncias, e utiliz-la- nas questes fundamentais da sua Filosofia. Para muitos, essa teoria d a fisionomia prpria ao tomismo. Manser, em exaustiva obra, defende essa posio, escrevendo: "No desenvolvimento e aperfeioamento, rigorosamente lgicos e conseqentes, da doutrina aristotlica do Ato e da Potncia, ns vemos a mais ntima essncia e o ponto central do tomismo." (Manser O. P. La Esencia del Tomismo, traduo espanhola de Valentn G. Yebra, 2. ed. Madri, 1953, p. 119.)

    Dias antes de morrer, o Papa S. Pio X aprovou a resposta da Sacra Congregatio Studiorum referente a vinte e

    quatro teses, propostas para o exame da referida Congregao, que resumiam os princpios e as teses principais da doutrina de Santo Toms, que devero ser fielmente seguidas nas escolas catlicas. As duas primeiras teses so:

    "I A potncia e o ato dividem o ser de tal maneira que tudo o que , ou ato puro, ou composto de potncia e ato, como de princpios primeiros e intrnsecos.

    "II O ato, como perfeio, somente limitado por uma potncia que seja capacidade de perfeio. Donde se segue que na ordem em que o ato puro, este no pode existir seno nico e ilimitado; e onde, pelo contrrio, ele finito e mltiplo, permanece em um verdadeiro estado de limitao com a potncia." (Acta Apostolicae Sedis, vol. VI, n 11, 1914, p. 383 e ss.).

  • 14

    DEUS SUA PRPRIA ESSNCIA

    Desenvolvendo-se ainda mais o raciocnio, chega-se concluso de que Deus tambm a

    sua prpria essncia.

    1 A essncia de cada coisa aquilo que a sua definio significa. H sempre identificao entre a essncia e a coisa definida, a no ser que, acidentalmente, entre na definio algo que no

    pertena prpria definio, como, por exemplo, definio prpria de homem, isto , animal

    racional e mortal, se acrescente o qualificativo brancura. Animal racional e mortal diz o mesmo que

    homem, mas brancura no o mesmo que homem enquanto branco.

    2 Nas coisas nas quais no se encontram as duas determinaes, uma que lhe seja essencial, e outra, acidental, as essncias identificam-se totalmente com elas. Ora, ficou

    demonstrado acima que Deus simples, no podendo, portanto, haver n'Ele uma determinao

    essencial e outra acidental. Logo, em Deus, a essncia identifica-se totalmente com Ele.

    3 Ademais, quando uma essncia no se identifica totalmente com a coisa de que essncia, encontra-se nela algo de potncia e algo de ato, pois a essncia refere-se coisa, de que

    essncia, como forma; assim como, por exemplo, a humanidade refere-se a homem. Ora, em Deus

    no h composio de ato e potncia, mas Ele ato puro. Logo, a sua prpria essncia.

    CAPTULO XI

    A ESSNCIA DE DEUS NO OUTRA REALIDADE QUE O SEU SER

    Desenvolvendo-se ainda mais o raciocnio, chega-se tambm evidncia de que a essncia

    de Deus no seja outra coisa que o seu ser.

    1 Em qualquer ente no qual uma coisa a essncia, e outra, o seu ser, convm que uma coisa seja pelo que , e

    30

    outra, pelo que algo, pois, pelo seu ser, se diz de qualquer ente que , e, pela sua essncia, se diz o

    que ele . Donde tambm deduzir-se que a definio significativa da essncia demonstra o que uma

    coisa . Em Deus, porm, no uma coisa o que , e, outra coisa, o pelo que algo, pois, como

    n'Ele no h composio, como foi demonstrado, tambm no h d'Ele outra essncia que o seu

    prprio ser23

    .

    2 Ademais, vimos anteriormente que Deus ato puro, no qual no h mistura alguma de

    23

    a) Por fidelidade ao pensamento tomista, traduziu-se, o mais literalmente possvel este texto. Exige, evidentemente, uma leitura atenta, para ser compreendido.

    b) Est aqui exposta uma das teses fundamentais do tomismo (para muitos, a fundamental). como seja a que apresenta a distino primeira entre o Criador e as criaturas. No pode haver dvida a respeito do pensamento de Santo Toms, que, desde as primeiras obras, vinha afirmando a tese da distino real entre a essncia e a existncia. Escreve, a respeito, o insigne intrprete de Santo Toms, Cardeal Gonzales:

    "Admitindo-se que a essncia e a existncia das criaturas so uma s e mesma coisa, logicamente se conclui que elas existem pela sua essncia (...) conforme a observao profunda de Santo Toms, precisamente porque a existncia das criaturas depende de Deus como de sua causa eficiente, que ela no pode ser idntica sua essncia. Suposta, com efeito, esta identidade, a essncia realizada no seria seno a existncia atual da criatura. Seria, portanto, impossvel que ela fosse produzida por outro ser. Por que dizemos que Deus existe necessariamente, absolutamente e independente de toda causa? No por que a sua essncia existir? Dever-se-ia tambm admitir que seria assim para a criatura, se a sua essncia fosse absolutamente idntica sua existncia, porque, em tal hiptese, a sua essncia realizada seria a sua existncia atual como em Deus. Se o ser de Deus no , nem pode ser, causado, e porque Ele existe por Si mesmo, pela sua essncia, ou, em outros termos, porque a sua essncia absolutamente idntica sua existncia, e no outra coisa que o seu prprio ato de existir." (Gonzales, Zeferino, Cardeal. Estdios Sobre la Filosofia de Santo Tomas, I. 2, 6.) A tese da distino real entre a essncia e a existncia, nas criaturas, tambm conseqncia da doutrina do Ato e da Potncia. Defendem-na todos os autnticos seguidores do Doutor Anglico.

    A Sacra Congregatio Studiorum, em continuao s duas primeiras teses tomistas (cf., supra, nota 1 ao cap. IX), assim enuncia a terceira: "III Donde um s subsiste na absoluta razo do prprio Ser, Deus, uno e simplicssimo; todos os demais seres tm natureza que limita o Ser, e constam de essncia e ser, como princpios realmente distintos.

  • 15

    potencialidade. Convm, por isso, que a sua essncia seja o seu ato ltimo.

    Esclareamos melhor esta verdade. Com efeito, todo ato, que se refere ao ato ltimo, est em

    potncia para ele, e este ato ltimo o prprio ser. Ora, como todo movimento passagem de

    potncia a ato, o ltimo ato ser aquele para o qual 31

    se dirige todo o movimento. Como o movimento natural tende para o que naturalmente desejvel,

    ser tambm o ato ltimo aquele que todas as coisas desejam, isto , o ser. Conseqentemente,

    convm que a essncia divina, que ato puro e ato ltimo, seja o prprio ser.

    CAPTULO XII

    DEUS NO EST COLOCADO EM GNERO, COMO SE FOSSE ESPCIE

    Nesta seqncia, chega-se tambm ao conhecimento de que Deus no est colocado em

    gnero algum, como se fosse uma espcie.

    1 A diferena acrescentada ao gnero constitui a espcie. Por isso, a essncia de qualquer espcie possui algo acrescentado ao gnero. Mas o mesmo ser, que a essncia de Deus, nada

    contm em si que lhe tenha sido acrescentado. Logo, Deus no espcie de gnero algum.

    2 Ademais, como todo gnero contm as diferenas especficas em potncia, tudo o que constitudo de gnero e diferena tem mistura de ato e potncia. Ora, foi demonstrado que Deus

    ato puro, sem mistura de potncia. Conseqentemente, a sua essncia no constituda por gnero e

    diferena. Logo, Deus no est colocado sob gnero algum.

    CAPTULO XIII

    IMPOSSVEL DEUS SER GNERO

    Avanando o raciocnio, verifica-se tambm que impossvel Deus ser gnero.

    1 Tem-se, pelo gnero, o que a coisa , mas no aquilo pelo que ela existe, porque a coisa s pode ser posta no prprio ser aps ter sido determinada pela diferena. Ora, sendo Deus o seu

    prprio ser, fica impossibilitado de ser gnero. 32

    2 Ademais, todo gnero dividido pelas diferenas especficas. Mas o prprio ser do gnero no consiste em receber as diferenas especficas, pois elas no participam do gnero seno

    acidentalmente, na medida em que as espcies, que so constitudas pelas diferenas, participam do

    gnero. No pode, com efeito, haver diferena que no participe do ser, at porque no no ser no

    existe diferena alguma. Logo, impossvel que Deus seja um gnero que se divida em muitas

    espcies.

    CAPTULO XIV

    DEUS NO UMA ESPCIE QUE SE DIVIDE EM MUITOS INDIVDUOS

    Tambm no possvel que Deus seja uma espcie dividida em muitos indivduos.

    1 Os diversos indivduos que possuem a mesma essncia da espcie distinguem-se por algo no inerente essncia da espcie, como, por exemplo, os homens, que possuem a mesma

    humanidade, distinguem-se entre si por algo no inerente noo de humanidade. Mas isso no se

    pode dar em Deus, pois, como ficou provado, Ele sua prpria essncia. Logo, impossvel que

    Deus seja uma espcie, e se divida por muitos indivduos.

    2 Ademais, os indivduos nos quais uma espcie se divide, diferenciam-se entre si pelo

  • 16

    ser, mas convm na mesma essncia. Ora, onde quer que haja muitos indivduos sob a mesma

    espcie, necessrio que uma coisa seja o ser de cada um, e, outra coisa, a essncia da espcie. Mas

    em Deus, como vimos, identificam-se o ser e a essncia. Logo, impossvel que Deus seja uma

    espcie que se divida em muitos indivduos.

    CAPTULO XV

    NECESSRIO AFIRMAR QUE H UM S DEUS

    Verifica-se tambm que necessrio que haja um s Deus.

    1 Se existirem muitos deuses, cada um deles ser denominado deus por equivocidade ou por univocidade: se por equi-

    33

    vocidade, a denominao no tem sentido, at porque nada me impediria, neste caso, de chamar de

    pedra o que outrem chama de deus; se por univocidade, concordaro os diversos deuses em gnero

    e em espcie. Ora, como j foi provado, Deus no pode ser gnero, nem espcie dividida por muitos

    indivduos. Logo, impossvel haver muitos deuses.

    2 Ademais, impossvel que aquilo que individualiza uma essncia comum contenha simultaneamente os seus diversos indivduos, pois, embora existam muitos homens, impossvel

    que este homem no seja seno um s homem. Ora, se a essncia fosse por si mesma

    individualizada e no por outra realidade, ser-lhe-ia impossvel multiplicar-se em muitos

    indivduos. Ora, a essncia divina individualizada por si mesma, porque em Deus a essncia

    identifica-se com o que Ele , pois j foi provado que Ele a sua prpria essncia. Logo,

    impossvel que no exista seno um s Deus.

    3 Finalmente, uma forma pode-se multiplicar de duas maneiras: uma, pelas diferenas, como forma geral: o calor, por exemplo, multiplica-se pelas diversas espcies de calor; outra, pelo

    sujeito, como, por exemplo, a brancura multiplica-se pelos diversos indivduos brancos. A forma

    que no se pode multiplicar pelas diferenas, se no est como forma existente num sujeito,

    impossvel que seja multiplicada: a brancura, por exemplo, se no estivesse existindo nos

    indivduos, seria uma s realidade subsistente. Ora, a essncia divina o prprio ser de Deus, que,

    como foi provado acima, no pode receber diferenas. Sendo, pois, o prprio ser divino como uma

    quase forma subsistente por si mesma, porque Deus o seu prprio ser, impossvel que a essncia

    divina no seja tambm seno uma s. Logo, impossvel que haja muitos deuses.

    CAPTULO XVI

    IMPOSSVEL QUE DEUS SEJA CORPO

    1 Evidencia-se, aps, que impossvel Deus ter corpo, porque em todo corpo h alguma composio, j que o corpo

    34

    constitudo de partes. Ora, o que totalmente simples, como Deus o , no pode ter partes.

    2 Ademais, nenhum corpo encontra-se em movimento, seno por alguma coisa que o tenha movido, como atesta a experincia. Por conseguinte, se o primeiro motor absolutamente

    imvel, impossvel que ele seja corpo.

    CAPTULO XVII

    IMPOSSVEL DEUS SER FORMA DE ALGUM CORPO, OU SER COMO UMA

    POTNCIA UNIDA A CORPO

  • 17

    Tambm no possvel ser Deus forma de corpo ou ser potncia em corpo.

    1 Como todo corpo imvel, necessrio que aquilo que a ele se una participe tambm do seu movimento, ainda que seja s acidentalmente. Ora, o primeiro motor nem acidentalmente

    pode movimentar-se, pois absolutamente imvel. Logo, impossvel ao primeiro motor ser forma

    de corpo ou potncia unida a corpo.

    2 Ademais, todo motor, para movimentar alguma coisa, deve ter domnio sobre ela, enquanto ela movida. Alm disso, sabemos pela experincia, que quanto mais a potncia motora

    excede a potncia da coisa movida, tanto mais veloz ser o movimento. Ora, o motor, que por

    primeiro move todas as coisas, deve domin-las, por conseguinte, de modo absoluto. Mas isso no

    poderia acontecer se ele estivesse de algum modo preso coisa movida, pois s unido a ela poderia

    ser sua forma ou sua potncia. Logo, convm que o primeiro motor no seja nem corpo, nem forma

    unida a corpo, nem potncia unida a corpo.

    3 Esse o motivo por que Anaxgoras viu a necessidade de considerar a inteligncia sem mistura alguma, para que ela pudesse dominar e dar movimento a todas as coisas.

    35

    CAPTULO XVIII

    DEUS INFINITO NA SUA ESSNCIA

    Do exposto se pode considerar que o primeiro motor infinito, no privativamente, pois o

    infinito privativo prprio da quantidade, isto , quando por sua natureza a coisa deve ter limite,

    mas considerada como se o no tivesse. O primeiro motor, porm, infinito negativamente,

    porque o infinito negativo atribui-se a uma coisa que carea totalmente de limite.

    1 No se encontra nenhum ato limitado, a no ser que a potncia que o receba o limite: as formas, por esse motivo, so limitadas pela potncia da matria. Ora, se o primeiro motor um ato

    sem mistura de potncia, porque no pode ser forma de corpo, nem potncia unida a corpo,

    necessrio que ele seja infinito.

    2 O mesmo verificamos quando observamos a ordem das coisas, pois, quanto mais elevada uma coisa entre os entes, tanto maior ela a seu modo. Entre os elementos que so

    inferiores aos outros, encontram-se uns maiores que os outros, tanto entre os que tm quantidade,

    quanto entre os simples. Na gerao destes, conforme ensina a experincia, com o aumento de

    proporo, vai sendo gerado o fogo, do ar; o ar, da gua; a gua, por fim, da terra24

    . evidente

    tambm que o corpo celeste que simples por natureza, excede toda a quantidade dos elementos.

    Conseqentemente, torna-se necessrio que o primeiro dos entes, anterior ao qual nada pode existir,

    exista com a quantidade infinita que lhe convm.

    3 No pode causar admirao que um ser simples, carecente, portanto, de quantidade, seja considerado infinito, e excedendo, pela sua imensido, a quantidade dos corpos, porque a nossa

    inteligncia, que incorprea e simples, excede tambm pela sua imensido a quantidade de todos

    os corpos, j que atinge a todas as coisas. Ora, muito mais que a inteligncia, o primeiro de todos os

    seres, pela sua imensido absoluta, deve exceder e abranger todas as coisas. 36

    CAPTULO XIX

    O PODER DE DEUS INFINITO

    24

    Este segundo argumento baseado na considerao cientfica da poca de Santo Toms. Est, naturalmente, em discordncia com os princpios da fsica moderna. Salva-se, porm, a lgica do raciocnio, e de se notar a analogia entre o infinito de Deus e o da inteligncia humana, no terceiro argumento.

  • 18

    Da tornar-se evidente que o poder de Deus infinito.

    1 A potncia resulta da essncia da coisa, pois cada coisa age conforme o seu modo de ser. Ora, se Deus infinito na sua essncia, convm tambm que o seu poder seja infinito.

    2 Chega-se mesma evidncia observando-se, com ateno, a ordem das coisas. Ora, uma realidade, enquanto potncia, potncia receptiva, ou passiva; enquanto ato, potncia ativa.

    Mas aquilo que somente potncia, isto , matria-prima, tem potncia infinita para receber, sem

    que em nada participe da potncia ativa. Alm disso, quanto mais algo est como forma acima dela,

    tanto mais lhe abunda a potncia ativa. O fogo, por exemple, que o elemento superior a todos os

    outros, tem o mximo de potncia ativa entre os elementos. Deus, sendo ato puro, sem mistura

    alguma de potncia, age abundantemente com poder infinito sobre todos os seres.

    CAPTULO XX

    O INFINITO EM DEUS NO IMPLICA IMPERFEIO

    1 O infinito quantitativo implica imperfeio, mas o infinito que se atribui a Deus implica a suma perfeio. O infinito quantitativo convm matria enquanto privada de limite, pois a

    imperfeio convm coisa corprea enquanto a matria-prima sujeito de privao, ao passo que

    a perfeio lhe convm pela forma substancial. Ora, como Deus infinito, porque somente forma,

    ou ato, sem mistura alguma de potncia, ou de matria-prima, a infinitude de Deus decorre da sua

    suma perfeio.

    2 A observao das coisas nos leva mesma concluso. Embora em um mesmo ser que se desenvolve de imperfeito para perfeito o imperfeito anteceda o perfeito, como, no ho-

    37

    mem, em que primeiro h a criana e, s depois, o adulto; contudo, necessrio que a coisa

    imperfeita tenha sua origem em uma coisa perfeita, pois vemos que uma criana no pode nascer

    seno de um adulto, e que o smen e a semente no vm seno de um animal ou de uma planta.

    Conseqentemente, aquilo que anterior a todas as coisas, e que a todas elas d o movimento, deve

    ser mais perfeito que tudo o mais.

    CAPTULO XXI

    A PERFEIO DE TODAS AS COISAS EXISTE EM DEUS DE UM MODO EMINENTE

    Donde sermos tambm levados a afirmar que todas as perfeies, que existem em todas as

    coisas, devem existir em Deus originria e superabundantemente.

    1 Todo ser que leva outro a atingir uma perfeio tem em si, anteriormente, aquela perfeio para a qual move o outro, como, por exemplo, o mestre deve conhecer a doutrina antes de

    ensin-la aos discpulos. Ora, como Deus o primeiro motor, e faz com que todas as coisas se

    movimentem para atingir as prprias perfeies, necessrio que todas as perfeies das coisas

    preexistam n'Ele de modo superabundante.

    2 Ademais, o ser que possui alguma perfeio, faltando-lhe outra, fica limitado a um gnero, a uma espcie. Sabemos tambm que pela forma, que d a perfeio aos seres, que cada

    um deles posto em determinado gnero, ou em determinada espcie. Ora, o ser que posto em

    uma espcie, mesmo j estando constitudo em determinado gnero, no pode possuir essncia

    infinita, porque necessrio que a ltima diferena, que o pe na espcie, termine a essncia. Por

    essa razo, denomina-se definio, ou determinao de fim, o conceito que faz a espcie conhecida.

    Portanto, se a essncia divina infinita, impossvel que ela possua apenas a perfeio de um

    gnero ou de uma espcie, mas necessrio que ela possua em si mesma as perfeies de todos os

    gneros e de todas as espcies. 38

  • 19

    CAPTULO XXII

    EM DEUS TODAS AS PERFEIES IDENTIFICAM-SE REALMENTE

    Se agora considerarmos, em sntese, os argumentos at aqui desenvolvidos, fica evidenciado

    que todas as perfeies em Deus so uma s realidade.5

    1 Vimos que Deus simples. Ora, onde h simplicidade no pode haver distino real nos atributos intrnsecos. Logo, se em Deus salvam-se as perfeies de todas as coisas, impossvel

    que n'Ele elas sejam realmente distintas. Eis por que, em Deus, todas as perfeies so uma s

    realidade25

    .

    2 Essa verdade pode ser esclarecida pela comparao com as potncias cognoscitivas, pois a potncia superior em uma s e mesma considerao conhece os objetos que as potncias

    inferiores conhecem diversificadamente: a inteligncia, por uma simples e nica inteleco,

    apreende todos os objetos que as potncias inferiores conhecem diversificadamente: o objeto da

    vista, da audio e dos demais sentidos.

    Auxilia-nos tambm a comparao com as cincias: enquanto as cincias inferiores tm os

    seus objetos formais diversificados conforme a diversificao dos gneros das coisas que elas

    atingem na realidade, a cincia que se chama Filosofia Primeira uma cincia que, de plano

    superior, conhece todas as coisas.

    Serve-nos ainda a comparao com o poder poltico. Com efeito, o poder rgio, sendo um

    s, compreende todos os poderes que so distribudos pelos mltiplos ofcios do reino.

    Convm tambm que as perfeies, que nas coisas inferiores multiplicam-se conforme a

    multiplicao dessas mesmas coisas, no vrtice de todas elas, isto , em Deus, sejam unificadas. 39

    CAPTULO XXIII

    EM DEUS NO H ACIDENTE

    Por a tambm se v que em Deus no pode haver acidente.

    1 Se em Deus todas as perfeies unem-se numa s realidade, e sua perfeio pertencem a existncia, o poder, o agir, etc, necessrio que tudo n'Ele se identifique com a sua

    essncia. Conseqentemente, nenhum acidente h em Deus.

    2 Ademais, impossvel que um ser seja de perfeio infinita, se algo puder ser acrescido a essa perfeio. Se um ser tem alguma perfeio acidental, e como todo acidente acrescido

    essncia, evidente que alguma perfeio lhe foi acrescida essncia. Essa essncia, portanto, no

    de perfeio infinita. Ora, vimos que Deus, na sua essncia, de perfeio infinita. Logo,

    nenhuma perfeio lhe pode ser acidental, mas tudo que n'Ele existe pertence sua prpria

    substncia.

    3 Chega-se mesma concluso partindo-se da considerao da suprema simplicidade divina, de que Deus ato puro, bem como da considerao de que Ele o primeiro dos seres. Da

    simplicidade, pois toda unio de acidente com o sujeito um modo de composio. De que Deus

    ato puro, porque o que sujeito de acidente no pode ser ato puro, j que o acidente uma certa

    forma, ou ato, do sujeito. De que Deus o primeiro dos seres, porque aquilo que existe por si

    25

    As perfeies divinas distinguem-se por distino de razo, Isto , apenas pelos conceitos que delas temos, no por distino real. Isto , como se distinguem entre si a potncia e o ato, a essncia e a existncia, a substncia e o

    acidente, as substncias entre si e os acidentes entre si. Contudo, a natureza divina possibilita-nos afirmar que os conceitos que temos das perfeies divinas no so puras fices da nossa inteligncia. O conhecimento que delas temos , alm disso, um conhecimento analgico, isto . proporcional ao conhecimento que temos das coisas criadas. (.Cf., infra, cap. XXVII.)

  • 20

    anterior quilo que existe por acidente.

    Todas essas razes nos levam concluso de que nada h em Deus que possa ser

    considerado acidente.

    CAPTULO XXIV

    A MULTIPLICIDADE DE SIGNIFICADOS DOS NOMES ATRIBUDOS A DEUS NO

    REPUGNA SUA SIMPLICIDADE

    O seguinte argumento esclarece por que muitos so os nomes atribudos a Deus, no

    obstante Ele ser em si absolutamente simples. 40

    1 Foi demonstrado acima que a nossa inteligncia no pode apreender a essncia divina em si mesma, e que chega ao conhecimento dela partindo do conhecimento das coisas existentes

    entre ns, nas quais h perfeies diversas, cuja raiz e origem est em Deus. Como no podemos

    atribuir um nome a alguma coisa, a no ser que a tenhamos conhecido pela inteligncia (pois os

    nomes so sinais daquilo que apreendemos por inteleco), assim tambm no podemos atribuir

    nomes a Deus a no ser partindo das perfeies existentes nas coisas, cuja origem est n'Ele. Como,

    alm disso, so muitas as perfeies encontradas nas coisas criadas, deve-se tambm atribuir muitos

    nomes a Deus.

    2 Se, porm, vssemos a essncia de Deus em si mesma, no haveria necessidade dessa multiplicidade de nomes, pois teramos d'Ele um conceito simples, como simples a sua essncia.

    Esperamos v-la no dia em que entrarmos na glria, conforme se l no livro do profeta Zacarias:

    "Naquele dia haver um s Deus, e um s ser o Seu nome." (Zac 14,9.)

    CAPTULO XXV

    OS DIVERSOS NOMES ATRIBUDOS A DEUS NO SO SINNIMOS

    Do que acabamos de expor, tiram-se trs concluses.

    1 Primeiro, que os diversos nomes, apesar de significarem uma s realidade em Deus, no so sinnimos. Para que os nomes sejam sinnimos, devem eles significar uma s coisa e

    designar um s conceito da nossa inteligncia. Quando, porm, significam uma s coisa, mas

    considerada sob aspectos diversos, isto , enquanto a inteligncia conhece a mesma coisa por

    apreenses diversas, tais nomes no so sinnimos, porque no significam perfeitamente a mesma

    realidade. Nota-se que os nomes significam imediatamente os conceitos produzidos em nossa

    inteligncia, e que estes, por sua vez, so semelhantes s coisas. Por conseguinte, como os diversos

    nomes atribudos a Deus significam diversos conceitos que d'Ele h em nossa inteligncia, esses

    nomes no so sinnimos, bem que signifiquem uma s e nica realidade. 41

    CAPTULO XXVI

    PELA DEFINIO DOS NOMES NO SE DEFINE O QUE EST EM DEUS

    2 Segundo, como a nossa inteligncia no pode ter conhecimento perfeito da essncia divina por nenhum dos conceitos significados pelos nomes atribudos a Deus, impossvel definir-

    se algo que esteja em Deus pela definio de um outro nome, como, por exemplo, se quisermos

    definir a sabedoria divina pela definio do poder divino, etc.

    3 Pode isto ser demonstrado por outro argumento. Sabemos que toda definio consta de

  • 21

    gnero e diferena especfica. O que, porm, se define a espcie. Ora, foi visto acima que a

    essncia divina no pode ser colocada sob gnero, nem, sob espcie alguma. Logo, no pode ser

    definida.

    CAPTULO XXVII

    OS NOMES ATRIBUDOS A DEUS E S COISAS NO SO TOTALMENE UNVOCOS

    NEM EQUVOCOS

    4 Terceiro, que os nomes atribudos a Deus e s coisas no so totalmente unvocos nem equvocos. No podem ser unvocos: a definio dos nomes atribudos s criaturas no a mesma

    definio dos nomes atribudos a Deus. Ora, os nomes tomados univocamente devem ter a mesma

    definio. Por motivo semelhante, tambm no podem ser equvocos: nas coisas que so

    casualmente designadas pelo mesmo nome, d-se o nome a uma sem nenhuma considerao para

    com a outra. Por conseguinte, nada se pode deduzir de uma, relacionando-a com a outra.

    5 Aqueles nomes, porm, que so equivocamente atribumos a Deus e s outras coisas, so atribudos a Deus conforme alguma ordenao existente entre elas e Deus, nas quais a

    inteligncia considera o significado daqueles nomes. Eis porque, partindo-se das diversas coisas,

    podemos deduzir algo referente a Deus. 42

    6 Contudo, esses nomes no so ditos equivocamente de Deus e das outras coisas, como o so os nomes equvocos por acaso

    26. So atribudos a Deus por analogia, isto , conforme certa

    proporo de alguma perfeio, Assim, quando comparamos as outras coisas com Deus, por que Ele

    a primeira causa delas, os mesmos nomes que significam as perfeies das coisas atribumos a

    Deus. Fica, pois, esclarecido, com relao imposio dos nomes, que embora esses nomes

    refiram-se primeiramente s criaturas, pois ao impor os nomes a inteligncia sobe das criaturas para

    Deus, com relao a coisa significada pelo nome, eles referem-se primeiramente a Deus, de Quem

    as perfeies descem para as outras coisas.

    CAPTULO XXVIII

    CONVM QUE DEUS SEJA INTELIGENTE

    1 Devemos agora demonstrar que Deus inteligente. J foi acima dito que em Deus preexistem superabundantemente todas as perfeies de todos os seres. Ora, a inteleco tem a

    preeminncia sobre todas as perfeies dos seres, pois os seres inteligentes so mais perfeitos que

    os demais. Logo, conveniente que Deus seja inteligente.

    2 Foi tambm acima afirmado que Deus ato puro, sem mistura alguma de potncia. A matria-prima sendo ser em po-

    43

    tncia, convm que Deus seja totalmente carecente dela. Ora, a imunidade de matria-prima a

    26

    Neste captulo est implcita a diviso dos termos. Estes podem ser unvocos ou equvocos. Os equvocos, por sua vez, dividem-se em equvocos por acaso (simplesmente equvocos) e equvocos de conselho (equvocos de certo modo). Os termos equvocos de conselho so usualmente chamados de termos anlogos. Os conceitos, que so representados pelos termos, podem tambm ser unvocos ou anlogos. Nunca, porm, equvocos por acaso. Para mais

    ampla e melhor compreenso da analogia dos termos e dos conceitos, leia-se este texto de Santo Toms: "Deve-se saber que algo pode ser atribudo a diversos sujeitos de vrias maneiras: ora conforme uma s razo, e ento diz-se que lhes atribudo univocamente (por exemplo: a atribuio do termo animal ao boi e ao cavalo); ora conforme razes totalmente diversas, e diz-se ento que lhe so atribudos equivocamente (por exemplo: o termo co atribudo constelao e ao animal); ora conforme razes que so em parte diversas e, em parte, no diversas: diversas, na medida em que implicam maneiras de ser diferentes; no diversas, conforme se referem a uma mesma e nica coisa. Diz-se. ento, que a atribuio aos sujeitos feita analogicamente, isto , proporcionalmente, enquanto cada sujeito referido ao mesmo termo de acordo com a sua maneira de ser." (In Metaph. IV, 1, I, n. 535.)

  • 22

    causa da inteleco, pois as formas materiais fazem-se inteligveis em ato, na medida em que so

    abstrada da matria-prima e das condies materiais. Logo, Deus um ser inteligente.

    3 Ademais, foi tambm acima demonstrado que Deus o primeiro motor. Ora, essa uma propriedade da inteligncia, porque a inteligncia usa de todas as outras coisas como

    instrumento para os movimentos: o homem, pela inteligncia, usa como de instrumento aos animais,

    s plantas e aos seres inanimados. Por isso, Deus sendo o primeiro motor, deve ser tambm

    inteligente.

    CAPTULO XXIX

    A INTELECO EM DEUS NO POTNCIA NEM HBITO, MAS ATO

    Como no h potncia em Deus, mas tudo que n'Ele existe ato, convm que a sua

    inteleco no proceda de potncia ou de hbito, mas que ela seja somente ato.

    1 Da se conclui que nenhuma sucesso pode haver nesse ato de inteleco. Quando uma inteligncia conhece as coisas sucessivamente, deve conhecer algumas que estejam em ato, e outras

    que estejam em potncia para o conhecimento. Deve-se ainda considerar que quando as coisas so

    simultneas, entre elas no pode haver sucesso. Se, portanto, Deus nada conhece passando de

    potncia a ato, a sua inteleco carece totalmente de sucesso.

    2 Da tambm se conclui que todas as coisas que Deus conhece, conhece-as simultaneamente, bem como que nada conhece como novidade. A inteligncia que conhece algo

    como novo estava primeiramente em potncia para este conhecimento.

    3 Ademais, conclui-se que o conhecimento divino no se faz por inteleco discursiva, vindo do conhecimento de uma coisa para o conhecimento de outra, como acontece com a nossa

    inteligncia, quando raciocina. O discurso realiza-se em nossa inteligncia quando, partindo das

    coisas conhecidas, chegamos ao conhecimento das desconhecidas, ou daquilo que no 44

    consideramos atualmente. Tal coisa no pode acontecer na inteligncia divina.

    CAPTULO XXX

    DEUS CONHECE POR MEIO DA SUA ESSNCIA, NO POR MEIO DE ALGUMA

    ESPCIE

    Evidencia-se, pelo que foi dito, que Deus no conhece por meio de espcie, mas pela sua

    essncia.

    1 Toda inteligncia que conhece por uma espcie distinta de si refere-se a essa espcie como potncia a ato, pois a espcie inteligvel a perfeio que a faz ter a inteleco. Se, portanto,

    em Deus nada h de potncia, pois Ele ato puro, convm que Deus conhea no por meio de

    espcie, mas pela Sua prpria essncia.

    2 Da se infere que Deus primeira e diretamente conhece a Si mesmo. A essncia no leva prpria e diretamente ao conhecimento de alguma coisa, seno daquilo mesmo de que

    essncia. Assim que, pela definio de homem, se conhece propriamente o homem; pela definio

    de cavalo, o cavalo. Se, por conseguinte, Deus conhece pela sua prpria essncia, convm que o

    objeto da sua inteleco seja direta e principalmente o prprio Deus.

    3 Como Deus sua prpria essncia, conclui-se que n'Ele a inteligncia, aquilo por meio de que conhece, e a coisa conhecida so absolutamente uma s realidade.

    CAPTULO XXXI

  • 23

    DEUS A SUA PRPRIA INTELECO

    Convm tambm que Deus seja sua prpria inteleco.

    1 Como toda inteleco ato segundo, ao considerarmos as inteligncias que no se identificam com a prpria inteleco (j que o ato primeiro a mesma inteligncia, ou cincia), elas

    referem-se s suas inteleces como potncia a ato. Na or- 45

    dem das potncias e dos atos, sempre o que vem antes est em potncia para o que vem em seguida,

    e o ltimo ato completa a srie. Isso, quando se trata de uma s e mesma coisa. Quando, porm,

    trata-se de coisas distintas, d-se o contrrio: o movente e o agente referem-se ao movido e

    atualizado, como ato que atualiza a potncia. Em Deus, porm, como Ele ato puro, nada h que se

    refira a outra coisa como potncia a ato. Convm, pois, que Deus seja sua prpria inteleco.

    2 Ademais, a inteligncia, de certo modo, refere-se inteleco como a essncia refere-se ao ser. Mas Deus conhece por sua prpria essncia, e esta identifica-se com o seu ser. Por

    conseguinte, a inteligncia identifica-se com a prpria inteleco, e, justamente por ser inteligente,

    no se pode supor em Deus composio alguma: n'Ele no h distino entre inteligncia,

    inteleco e espcie inteligvel. Eis porque tais coisas em Deus nada mais so que sua prpria

    essncia.

    CAPTULO XXXII

    CONVM QUE EM DEUS HAJA VOLIO

    Continuando, esclarece-se por que necessrio haver volio em Deus.

    1 Vimos acima que Deus conhece a si mesmo, e que se identifica com o bem perfeito. Ora, o bem, quando conhecido, torna-se necessariamente amado. Como esse amor ato da vontade,

    necessrio que haja volio em Deus.

    2 Ademais, tambm vimos que Deus o primeiro motor. Como a inteligncia no pode mover alguma coisa seno mediante o apetite, e como o apetite que segue inteligncia a vontade,

    convm que em Deus haja volio.

    CAPTULO XXXIII

    CONVM QUE A VONTADE DE DEUS NO SEJA DISTINTA DA SUA INTELIGNCIA

    claro que a vontade de Deus no distinta da sua inteligncia. 46

    1 O bem conhecido pela inteligncia, sendo o objeto da vontade, move a vontade e leva-a ltima perfeio. Ora, como em Deus no h distino entre movente e movimento, entre ato e

    potncia, entre perfeio e perfectvel (como j foi anteriormente demonstrado), deve a vontade

    divina ser o prprio bem conhecido. Logo, como a inteligncia divina identifica-se com a essncia

    divina, a vontade de Deus outra coisa no que a sua prpria inteligncia e que a sua prpria

    essncia.

    2 Ademais, a inteligncia e a vontade tm a preeminncia entre as perfeies das coisas, pois elas existem, como verificamos, nas coisas mais nobres. Ora, as perfeies de todas as coisas

    so, em Deus, uma s realidade, isto , constituem a sua essncia, como vimos acima. Logo, a

    inteligncia e a vontade divina identificam-se com a essncia divina.

    CAPTULO XXXIV

  • 24

    A VONTADE DE DEUS A SUA PRPRIA VOLIO

    Pelo exposto, tambm se esclarece por que a vontade divina o prprio querer de Deus.

    1 Ficou demonstrado que a vontade, em Deus, identifica-se com o bem por Ele desejado. Isso no possvel seno identificando-se a volio com a vontade, pois, na vontade, a volio

    nasce do desejo. Logo, a vontade de Deus a sua volio.

    2 Ademais, a vontade divina identifica-se com a inteligncia e com a essncia divina. Como a inteligncia divina a sua inteleco e a essncia divina o ser de Deus, convm do

    mesmo modo que a vontade divina seja a prpria volio divina.

    3 Fica tambm, por isso, evidenciado que o fato de Deus ter vontade no repugna sua simplicidade.

    CAPTULO XXXV

    TUDO QUE AT AQUI FOI DITO EST COMPREENDIDO EM UM S ARTIGO DE F

    Podemos concluir, de tudo que acima foi dito, que Deus uno, simples, perfeito, infinito,

    dotado de inteligncia e de 47

    vontade. Tudo isto, com efeito, est contido em um breve artigo de f, que professamos, dizendo:

    "Creio em um s Deus, Todo-Poderoso."

    Como se julga que o nome de Deus deriva do termo grego THES, o qual, por sua vez, vem

    de STEASTHAI, que significa ver, considerar, da prpria significao do nome, deduz-se que Deus

    inteligente e, conseqentemente, dotado de vontade.

    Quando se diz que Deus uno, exclui-se toda pluralidade de deuses, e toda composio.

    Ora, tambm no pode ser simplesmente uno o que no simples.

    Ao afirmarmos que Deus onipotente, dizemos tambm que a sua potncia infinita, de

    cujo poder nada pode ser subtrado. Ora, se assim , est implcito nesta afirmao que Deus

    infinito e perfeito, porque o poder de uma coisa proporcional sua essncia.

    CAPTULO XXXVI

    TODAS ESSAS VERDADES FORAM CONSIDERADAS PELOS FILSOFOS

    1 Tudo o que acima foi dito a respeito de Deus, muitos filsofos dos gentios consideraram com sutileza, embora alguns o tenham feito com erro. Os que disseram coisas

    verdadeiras sobre tais assuntos, a elas chegaram com dificuldade, aps longa e trabalhosa procura.

    2 H, porm, outras verdades, a respeito de Deus, expostas na doutrina crist, s quais eles no puderam chegar, quais sejam as verdades que conhecemos pela f, e que ultrapassam a

    capacidade do entendimento humano.

    Foi demonstrado que Deus uno e simples. Mas tambm Deus Pai, Deus Filho e Deus

    Esprito Santo, embora esses Trs no sejam trs deuses, mas um s Deus. Essas coisas que

    pretendemos agora considerar, na medida das nossas possibilidades. 48

    II A TRINDADE DE PESSOAS EM DEUS

    CAPTULO XXXVII

  • 25

    COMO H UM VERBO EM DEUS

    Resumindo o que j foi dito: Deus se conhece a Si mesmo e se ama a Si mesmo. A sua

    inteleco e a sua volio no se distinguem realmente do seu prprio ser. Ora, como Deus, pela sua

    inteligncia, se conhece a Si mesmo, e como a coisa conhecida pela inteligncia nela est, convm

    que Deus esteja em Si mesmo, como a coisa conhecida est na inteligncia. A coisa conhecida

    enquanto est na inteligncia um certo verbo (ou palavra) da inteligncia. Aquilo que

    interiormente conhecemos pela inteligncia significamos pela palavra exterior, pois, conforme o

    Filsofo27

    , as vozes so sinais das coisas conhecidas pela inteligncia. Convm, por conseguinte,

    colocar em Deus o Seu prprio Verbo.

    CAPTULO XXXVIII

    O VERBO EM DEUS UMA CONCEPO

    Aquilo que est dentro da inteligncia, como verbo interior, conforme a maneira comum de

    se falar, uma concepo (conceito) da inteligncia.

    Considera-se como concebido corporalmente aquilo que formado no tero do ser vivo pela

    potncia vivificante, funcionando o macho como elemento ativo e a fmea, em cujo tero d-se a

    concepo, como elemento passivo, de modo que o ser concebido participa da natureza de ambos,

    quase conformando-se a eles segundo a espcie. 49

    Assim, tambm, aquilo que a inteligncia compreende, nela se forma, como se o ser

    inteligvel fosse o agente, e a inteligncia, o paciente. E aquilo mesmo que compreendido pela

    inteligncia, existindo no interior dela, conforme quer ao ser inteligvel movente, do qual uma

    certa semelhana, quer inteligncia que est quase como paciente, enquanto nela tem ser

    inteligvel. Portanto, o que compreendido pela inteligncia, no sem motivo, chama-se sua

    concepo.

    CAPTULO XXXIX

    COMO O VERBO COMPARADO AO PAI

    Torna-se agora necessria uma distino.

    1 Como aquilo que concebido na inteligncia uma imagem da coisa conhecida, representante da sua forma, aparece como se fosse um filho desta. Quando a inteligncia conhece

    algo distinto de si, a coisa conhecida como um pai do verbo concebido na inteligncia. A

    inteligncia, neste caso, exerce mais a funo de me, enquanto deve dar-se para que nela se realize

    a concepo.

    2 Quando, porm, a inteligncia se conhece a si mesma, o verbo nela concebido comparado como o filho ao pai. Como estamos nos referindo ao Verbo que se forma quando Deus

    se conhece a Si mesmo, convm que este Verbo seja tambm comparado a Deus, de quem Verbo,

    como o filho, ao pai.

    CAPTULO XL

    COMO SE ENTENDE A GERAO EM DEUS

    27

    O Filsofo, para Santo Toms, Aristteles. Denominando assim ao Estagirita, o Doutor Anglico manifesta o respeito que tem pelo filsofo que considera o maior de todos, do qual assumiu e depurou a filosofia.

  • 26

    Essa a razo pela qual a regra da F Catlica nos ensina a confessar que h, em Deus, um

    Pai e um Filho, quando ela diz: "Creio em Deus Pai e em seu Filho."

    Para que ningum, ao ouvir os nomes de Pai e Filho, pense que se trata de gerao carnal,

    quando ns, catlicos, falamos de Pai e Filho, o Evangelista So Joo, a quem foram revelados os

    mistrios celestes, em lugar do nome Filho, ps 50

    o nome Verbo, para que soubssemos que se trata de uma gerao realizada na inteligncia.

    CAPTULO XLI

    O VERBO, QUE FILHO, TEM, COM O PAI, A MESMA ESSNCIA E O MESMO SER

    1 Devemos, entretanto, considerar que, como em ns o ser natural no se identifica com o ato da inteligncia, torna-se necessrio que o verbo concebido em nossa inteligncia (o qual, por sua

    vez, tem apenas ser inteligvel) seja de outra natureza que a dela, que tem ser natural.

    2 Em Deus, porm, h identidade entre o ser e a inteleco. Por conseguinte, o Verbo de Deus, que est em Deus, cujo ser inteligvel, possui o seu ser idntico ao de Deus, de Quem

    Verbo. Por isso, tambm necessrio que Ele tenha a mesma essncia e a mesma natureza de Deus.

    3 Assim, tudo que atribudo a Deus, deve ser tambm atribudo ao Verbo de Deus.

    CAPTULO XLII

    ESSA VERDADE ENSINADA PELA F CATLICA

    Da se infere o motivo por que a Regra da F Catlica nos ensina a professar que o Filho

    consubstancial ao Pai, e, assim, dois erros so excludos.

    1 Em primeiro lugar, para que no se entenda pai e filho como existem na gerao carnal, na qual o filho origina-se da substncia do pai como que por uma separao: se assim fosse, o Filho

    no poderia ser consubstancial ao Pai.

    2 Em segundo lugar, para que tambm no consideremos o Pai e o Filho conforme a gerao que se processa na inteligncia humana, como o Verbo concebido em nossa inteligncia,

    vindo a ela acidentalmente, e existindo nela como no vindo da prpria essncia. 51

    CAPTULO XLIII

    EM DEUS NO H DIFERENA, ENTRE O PAI E O FILHO, DE TEMPO, DE ESPCIE

    E DE NATUREZA

    Quando as coisas no se distinguem realmente pela essncia, impossvel que haja entre

    elas distino de espcie, de tempo e de natureza. Como o Verbo consubstancial, essas trs

    distines no se realizam entre o Verbo e o Pai.

    1 Assim que no p