como fomos envergonhados enquanto crianças

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www.emidiocarvalho.com Educação Emocional, 2010 1 Como fomos envergonhados enquanto crianças 1. Uma criança pode experienciar a vergonha quando os pais ou outros adultos lhe dizem, por palavras ou atitudes, que ela não é desejada. Esta mensagem pode ser transmitida desde uma tenra idade, pela forma como os adultos pegam na criança ao colo, por exemplo. 2. Quando uma criança é humilhada em público, a resposta à vergonha é intensificada na criança. Quando um pai, por exemplo, diz aos amigos que o filho não sabe jogar à bola, à sua frente. 3. Quando se reprova o comportamento da criança tendo em conta a totalidade que ela é, em vez do comportamento em si. Por exemplo: “Pedro, és muito mau!” em vez de: “Pedro, bater na tua irmã é feio. Podes estar zangado com ela, mas baterlhe não resolve nada.” 4. Quando uma criança tem que esconder uma parte de quem é por forma a ser aceite, cria dentro de si sentimentos de vergonha. Quando tem que esconder os seus medos, alegrias, erros, sucessos e falhanços. 5. Quando as fronteiras emocionais ou físicas da criança são violadas. Isto acontece quando há violência física ou abuso sexual, ou mesmo um abuso psicológico. A vergonha irá surgir na criança. Uma criança não pode nunca criar fronteiras saudáveis e uma identificação de quem é a menos que estas fronteiras sejam claras nas relações com os progenitores. O abuso físico ou sexual de uma criança levaa a criar sentimentos que lhe dizem que não é amada ou aceite. Aprende que só é amada ou aceite quando fisicamente abusada. A criança irá ainda crescer num mundo de segredos, sentindo que tem que se esconder constantemente dos outros para não sofrer uma vergonha adicional. 6. Quando a criança sente que não tem qualquer privacidade, nenhum lugar para se esconder, irá crescer com um sentimento de invasão do espaço pessoal e acreditará que tem que ser mesmo má para não poder ter esse espaço. Por exemplo, os pais que vasculham os pertences dos seus filhos, ouvem as conversas que têm com amigos, abrem as suas cartas ou lêem os seus diários, o que dizem à criança é algo como “eu sei o que andas a fazer... se me amasses contavasme tudo.” 7. Quando os adultos tratam com indiferença eventos ou presentes que são importantes para a criança, esta sente automaticamente vergonha. Uma criança pode passar todo o dia a fazer um desenho para a mãe e quando lhe mostra o desenho esta não lhe dá valor, ou colocao encima de um monte de papeis, para ver mais tarde. Ou então responde qualquer coisa como “É bonito... O que queres que faça com isto?”. Quando os pais consecutivamente ignoram as atitudes da criança que lhe são importantes, como um jogo ou um desenho, um jantar com outros adultos, a criança irá desenvolver sentimentos que lhe indicam haver algo de errado com ela, que não é importante. 8. Quando a criança sente, por comparação, que os pais não são tão importantes como outros adultos que fazem parte do seu mundo, pode começar a desenvolver um sentimento de vergonha em relação aos progenitores, à família e, eventualmente, em relação a si mesma. Este sentimento de diferenças nos estatutos ou importância do agregado familiar conduz a criança a criar duas personalidades distintas: uma para lidar com a família e outra para lidar com o mundo exterior à família. Isto, por seu turno, leva a criança a esconder e envergonharse de uma parte de si. Por exemplo, os filhos de pais imigrantes, cuja linguagem e costumes diferem dos que observa na escola. Crianças de etnias diferentes e minoritárias, crianças cujos pais tenham poucos recursos económicos.

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Uma criança pode experienciar a vergonha quando os pais ou outros adultos lhe dizem, por palavras ou atitudes, que ela não é desejada.

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Page 1: Como fomos envergonhados enquanto crianças

www.emidiocarvalho.com  -­‐  Educação  Emocional,  2010   1  

Como  fomos  envergonhados  enquanto  crianças  

 

1. Uma  criança  pode  experienciar  a  vergonha  quando  os  pais  ou  outros  adultos  lhe  dizem,  por  palavras  ou  atitudes,  que  ela  não  é  desejada.  Esta  mensagem  pode  ser  transmitida  desde   uma   tenra   idade,   pela   forma   como   os   adultos   pegam   na   criança   ao   colo,   por  exemplo.  

2. Quando  uma  criança  é  humilhada  em  público,  a  resposta  à  vergonha  é  intensificada  na  criança.  Quando  um  pai,  por  exemplo,  diz  aos  amigos  que  o  filho  não  sabe  jogar  à  bola,  à  sua  frente.  

3. Quando  se  reprova  o  comportamento  da  criança  tendo  em  conta  a  totalidade  que  ela  é,  em   vez   do   comportamento   em   si.   Por   exemplo:   “Pedro,   és   muito   mau!”   em   vez   de:  “Pedro,   bater   na   tua   irmã   é   feio.   Podes   estar   zangado   com   ela,   mas   bater-­‐lhe   não  resolve  nada.”  

4. Quando  uma  criança   tem  que  esconder  uma  parte  de  quem  é  por   forma  a  ser  aceite,  cria  dentro  de  si  sentimentos  de  vergonha.  Quando  tem  que  esconder  os  seus  medos,  alegrias,  erros,  sucessos  e  falhanços.  

5. Quando   as   fronteiras   emocionais   ou   físicas   da   criança   são   violadas.   Isto   acontece  quando   há   violência   física   ou   abuso   sexual,   ou   mesmo   um   abuso   psicológico.   A  vergonha  irá  surgir  na  criança.  Uma  criança  não  pode  nunca  criar  fronteiras  saudáveis  e  uma  identificação  de  quem  é  a  menos  que  estas  fronteiras  sejam  claras  nas  relações  com   os   progenitores.   O   abuso   físico   ou   sexual   de   uma   criança   leva-­‐a   a   criar  sentimentos   que   lhe   dizem  que   não   é   amada   ou   aceite.   Aprende   que   só   é   amada   ou  aceite   quando   fisicamente   abusada.   A   criança   irá   ainda   crescer   num   mundo   de  segredos,   sentindo   que   tem   que   se   esconder   constantemente   dos   outros   para   não  sofrer  uma  vergonha  adicional.  

6. Quando   a   criança   sente   que   não   tem   qualquer   privacidade,   nenhum   lugar   para   se  esconder,   irá   crescer   com  um   sentimento   de   invasão   do   espaço   pessoal   e   acreditará  que  tem  que  ser  mesmo  má  para  não  poder  ter  esse  espaço.  Por  exemplo,  os  pais  que  vasculham   os   pertences   dos   seus   filhos,   ouvem   as   conversas   que   têm   com   amigos,  abrem  as  suas  cartas  ou  lêem  os  seus  diários,  o  que  dizem  à  criança  é  algo  como  “eu  sei  o  que  andas  a  fazer...  se  me  amasses  contavas-­‐me  tudo.”  

7. Quando  os  adultos  tratam  com  indiferença  eventos  ou  presentes  que  são  importantes  para  a  criança,  esta  sente  automaticamente  vergonha.  Uma  criança  pode  passar  todo  o  dia   a   fazer   um  desenho  para   a  mãe   e   quando   lhe  mostra   o   desenho   esta   não   lhe   dá  valor,   ou   coloca-­‐o   encima   de   um   monte   de   papeis,   para   ver   mais   tarde.   Ou   então  responde  qualquer  coisa  como  “É  bonito...  O  que  queres  que  faça  com  isto?”.  Quando  os  pais  consecutivamente  ignoram  as  atitudes  da  criança  que  lhe  são  importantes,  como  um   jogo   ou   um   desenho,   um   jantar   com   outros   adultos,   a   criança   irá   desenvolver  sentimentos  que  lhe  indicam  haver  algo  de  errado  com  ela,  que  não  é  importante.  

8. Quando  a   criança   sente,   por   comparação,   que  os  pais  não   são   tão   importantes   como  outros   adultos   que   fazem   parte   do   seu   mundo,   pode   começar   a   desenvolver   um  sentimento  de  vergonha  em  relação  aos  progenitores,  à   família  e,  eventualmente,  em  relação   a   si  mesma.   Este   sentimento   de   diferenças   nos   estatutos   ou   importância   do  agregado   familiar   conduz   a   criança   a   criar   duas   personalidades   distintas:   uma   para  lidar   com   a   família   e   outra   para   lidar   com   o  mundo   exterior   à   família.   Isto,   por   seu  turno,  leva  a  criança  a  esconder  e  envergonhar-­‐se  de  uma  parte  de  si.  Por  exemplo,  os  filhos   de   pais   imigrantes,   cuja   linguagem   e   costumes   diferem   dos   que   observa   na  escola.  Crianças  de  etnias  diferentes  e  minoritárias,  crianças  cujos  pais  tenham  poucos  recursos  económicos.  

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9. Quando  uma  criança  sente  que  os  pais  são,  de  uma  maneira  ou  outra,  defeituosos  ou  imperfeitos,   quando   comparados   com   outros   adultos,   desenvolve   sentimentos   de  vergonha.  Por  exemplo  uma  família  onde  o  pai  é  alcoólico  ou  toxicodependente  e  tem  um  comportamento  menos  apropriado  em  sociedade.  Crianças  com  um  progenitor  que  tenha   problemas   físicos,   uma   deficiência,   e   esse   problema   nunca   é   discutido   em  família,   levará   a   criança   a   sentir-­‐se   inicialmente   embaraçada   e   mais   tarde  envergonhada.  

10. Quando   a   confiança   depositada  num  adulto   é   destruída   através   de   inconsistência   de  comportamentos  ou  negligência,   irá   levar  a  criança  a  experiências  de  “onde  é  que  eu  encaixo   neste   mundo?”.   Este   sentimento   de   estar   desconectado,   onde   não   há   um  sentimento  de  ligação,  conduz  a  um  aumento  da  vergonha  e  ao  isolamento.  

11. Quando  a  criança  cresce  à  volta  de  adultos  que  vivem  eles  próprios  em  vergonha  e  se  sentem   sem   qualquer   poder   para   lidar   com   os   desafios   da   vida.   A   vergonha   é  contagiosa  e  a  criança  irá  também  desenvolver  um  sentimento  de  vergonha.  

12. Quando,  através  de  palavras  ou  gestos,  os  progenitores,  ou  outros  adultos  que  tenham  significado,   fazem   saber   à   criança   que   não   é   desejada,   não   é   amada   ou   não   tem  qualquer   valor   provoca   um   sentimento   profundo   de   vergonha.   Por   exemplo,   as  crianças   que   têm   dificuldades   a   ler   e   não   é   detectado   qualquer   dificuldade   na  aprendizagem  e,   através   de  palavras   ou   atitudes,   lhes   é   dito   que   são  preguiçosas   ou  estúpidas.  Crianças  que  são  negligenciadas  em  casa  e  vão  para  a  escola  vestidas  de  uma  maneira  considerada  inapropriada  ou  com  aspecto  pouco  higiénico,  são  depois  postas  de  parte  pelos   colegas  de  escola,   ou  vistas   com  desdém  ou  ainda  gozadas.  Por  vezes  surge  um  adulto  que  trata  estas  crianças  com  um  falso  carinho,  que  nada  mais  é  que  pena  mal  disfarçada,  e  que   irá  apenas  aumentar  o  sentimento  de  vergonha  e   falta  de  auto-­‐estima.  

13. Quando  uma  criança  é  constantemente  culpada  pelas  acções  e  estados  emocionais  dos  adultos  à  sua  volta  e  se  torna  impossível  para  a  criança  compreender  o  que  é  esperado  dela,  quanto  mais  preencher  as  expectativas  destes  adultos,  desenvolve  um  sentimento  profundo  de  culpa  e  vergonha.  A  criança  sente  que  “se  apenas  fosse  mais  esperta,  forte,  amável,  então  os  meus  pais   iriam  beber  menos,  seriam  mais  felizes  e   iriam  tratar-­‐me  melhor.”  

14. Quando   a   criança   não   consegue   atingir   as   expectativas   criadas   pelos   progenitores  porque   estas   expectativas   são   irrealistas   ou   inconsistentes   com   a   idade   e  desenvolvimento  da   criança,   a   criança   irá   sentir-­‐se   como  um  animal   amputado:   sem  valor,  um  peso,  um  erro,  sem  merecer  amor.  E  mais  uma  vez  a  vergonha  debilitante  é  criada  e  alimentada.  

15. Quando   os   progenitores   utilizam   o   silêncio   como   forma   de   disciplinar   o  comportamento   da   criança,   ela   irá   apreender   que   todo   o   seu   ser   é   mau.   Quando   a  rejeição   silenciosa   é   usada   como   forma   de   castigo,   a   criança   não   tem   qualquer  possibilidade  de  reparar  qualquer  dano  que  tenha  causado  ou  de  fortalecer  a  relação  com   o   adulto.   A   criança   é   assim   abandonada   com   uma   culpa   irreparável   pelo  comportamento  que  teve  e  uma  vergonha  debilitante  por  ser  apontada  como  má.  Por  exemplo,   a   criança  que   leva  para   casa  uma  nota  da   escola   a   informar  os  pais  que   se  envolveu  numa   luta   durante   o   recreio.  Depois   de   jantar   a   criança  mostra   a   nota   aos  pais.   Eles   lêem   a   nota   e   fitam   a   criança   com   desdém,   suspiram,   deixam   cair   a   nota  sobre  a  mesa,  e  afastam-­‐se  sem  dizer  uma  palavra,  deixando  a  criança  só.  A  infracção  na  escola  nunca  chega  a  ser  discutida.  A  criança  não  tem  qualquer  oportunidade  de  se  explicar.  E  o  assunto  fica  eternamente  por  encerrar.  

 

 

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Devido  a  estas  vergonhas  cada  um  de  nós  irá  criar  uma  máscara  que  será  útil  para  esconder  aquilo  que  percepcionamos  como  um  defeito  em  nós.  Esta  máscara  será  do  tipo  predador  ou  presa.  É  impossível  saber  qual  a  máscara  que  irá  utilizar  como  adulto.  Os  eventos  dolorosos  dos  primeiros  anos  irão  ditar  qual  a  que  mais  lhe  será  útil.  Quanto  mais  a  criança  se  esforçar  por  esconder  os  seus  sentimentos  de  vergonha  mais  forte  será  esta  máscara.  Como  adulto  não  será  capaz  de  reconhecer  que  não  é  quem  pensa  ser.  Com  tempo  esquece-­‐se  que  quem  pensa  ser   é   apenas   uma  máscara   que   lhe   foi   útil   nos   primeiros   anos   de   vida.   Só   com   coragem   e  vontade   de   honrar   quem   é   poderá   descartar   a   máscara.   Este   processo   pode   levar   algum  tempo.   A   pessoa   que   consegue   tirar   a   sua   máscara   muda   radicalmente.   Sem   máscaras  sentimo-­‐nos   em   paz   independentemente   dos   eventos   ou   das   pessoas   à   nossa   volta.   Sem   a  máscara   conseguimos   ver   as   máscaras   que   os   outros   utilizam,   poderemos   ajudar   a   tirar   a  máscara   que   outros   utilizam,   mas   não   é   importante   fazê-­‐lo.   A   aceitação   torna-­‐se   uma   das  características  principais  da  pessoa   sem  máscara.  A   imperturbabilidade  e   a   vulnerabilidade  são  outros  atributos  da  pessoa  sem  máscara.  

De   que  maneira   fomos   envergonhados?   Esta   é   a   questão   que   dá   início   ao   desbloqueio   dos  aspectos  da  sombra  mais  sombrios.  Os  aspectos  onde  é  perigoso  avançar,  feitos  de  ratoeiras  e  areia  movediça.   São   perigosos   porque   podemos   confundir   a   auto-­‐estima   com   a   arrogância.  Podemos  misturar   o   egoísmo   com  amor-­‐próprio.  Quando   é   que   é   uma  ou   outra   qualidade?  Como   discernir   as   qualidades   positivas   das   negativas?   Se   prestarmos   atenção   aos   nossos  sentimentos  teremos  algumas  pistas.  Em  caso  de  dúvida  a  resposta  correcta  será  aquela  que  se  faz  sentir  mais  subtilmente.  Sem  se  justificar.  É  Aquilo  Que  É.    

Podemos  ainda  perguntar-­‐nos:  o  que  me   irrita  nos  outros?  O  que  vale  a  pena   lutar?  Onde  é  que  ainda  sinto  necessidade  de  ter  razão?  Onde  é  que  ainda  penso  que  preciso  de  ter  algo  para  ser  feliz  e  completo?