como entender a análise de discurso na análise fotográfica

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Como entender a ‘análise de discurso’ na análise fotográfica? 1 Angélica Lüersen 2 Universidade Federal de Santa Maria Resumo A fotografia nasceu sob a égide de verdade absoluta. Sua inserção na mídia impressa, no entanto, modificou seu papel, fazendo dela um instrumento capaz de atender aos interesses políticos, econômicos e ideológicos. Tornou-se comum a possibilidade de distorcer ou mesmo forjar uma realidade. A reprodutividade técnica (fruto da pós- indústria), a possibilidade de manipulação fotográfica e o fato de ela ser formadora de opinião fazem da fotografia um objeto de interesses políticos e ideológicos capazes de persuadir o público. A verdade que a fotografia transpassa nada mais é do que uma representação (parcial/total) da realidade, muitas vezes forjada para atender a interesses de alguns sujeitos. Palavras-chave Fotografia; aparelho; ideologia; interpretação; realidade. A imagem, na antiguidade, exercia uma influência extraordinária nas pessoas, pois não havia outro modo de informar, a não ser mais tarde, quando o texto verticalizado assumiu seu posto de informar conceitual e objetivamente, provocando uma queda na utilização da imagem. Porém, na pós-indústria, há justamente uma crise nos conceitos retos do texto verticalizado. Para ultrapassar tal crise surgem as imagens técnicas, produzidas por aparelhos. Os aparelhos fazem parte da nossa cultura, e apresentam-se de várias formas. Alguns são retirados da natureza e transformados, pelos homens, para suprir nossas necessidades (aparelho fotográfico, por exemplo, os quais produzem as imagens técnicas), tornando-se instrumentos utilizados no dia-a-dia para diversos fins. Por tratar-se de instrumento, pode-se dizer que é um prolongamento do corpo do homem. (FLUSSER, 2002) 1 Trabalho apresentado ao Intercom Júnior 2 Angélica Lüersen, acadêmica do quinto semestre do curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Santa Maria. Participante e pesquisadora no grupo PET Comunicação e no grupo de pesquisas em imagem. E-mail: [email protected]

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  • Como entender a anlise de discurso na anlise fotogrfica?1

    Anglica Lersen 2

    Universidade Federal de Santa Maria

    Resumo

    A fotografia nasceu sob a gide de verdade absoluta. Sua insero na mdia impressa, no

    entanto, modificou seu papel, fazendo dela um instrumento capaz de atender aos

    interesses polticos, econmicos e ideolgicos. Tornou-se comum a possibilidade de

    distorcer ou mesmo forjar uma realidade. A reprodutividade tcnica (fruto da ps-

    indstria), a possibilidade de manipulao fotogrfica e o fato de ela ser formadora de

    opinio fazem da fotografia um objeto de interesses polticos e ideolgicos capazes de

    persuadir o pblico. A verdade que a fotografia transpassa nada mais do que uma

    representao (parcial/total) da realidade, muitas vezes forjada para atender a interesses

    de alguns sujeitos.

    Palavras-chave

    Fotografia; aparelho; ideologia; interpretao; realidade.

    A imagem, na antiguidade, exercia uma influncia extraordinria nas pessoas, pois no

    havia outro modo de informar, a no ser mais tarde, quando o texto verticalizado

    assumiu seu posto de informar conceitual e objetivamente, provocando uma queda na

    utilizao da imagem. Porm, na ps- indstria, h justamente uma crise nos conceitos

    retos do texto verticalizado. Para ultrapassar tal crise surgem as imagens tcnicas,

    produzidas por aparelhos. Os aparelhos fazem parte da nossa cultura, e apresentam-se

    de vrias formas. Alguns so retirados da natureza e transformados, pelos homens, para

    suprir nossas necessidades (aparelho fotogrfico, por exemplo, os quais produzem as

    imagens tcnicas), tornando-se instrumentos utilizados no dia-a-dia para diversos fins.

    Por tratar-se de instrumento, pode-se dizer que um prolongamento do corpo do

    homem. (FLUSSER, 2002) 1 Trabalho apresentado ao Intercom Jnior 2 Anglica Lersen, acadmica do quinto semestre do curso de Comunicao Social na Universidade Federal de Santa Maria. Participante e pesquisadora no grupo PET Comunicao e no grupo de pesquisas em imagem. E-mail: [email protected]

  • Homem e aparelho tornam-se um, mas ambos perdem-se um no outro. E, ao mesmo

    tempo em que o fotgrafo domina o seu aparelho, tambm dominado por ele. Isso

    porque, mesmo sabendo como conseguir imaginar os fatos (ato de fotografar), no

    entende o funcionamento da "caixa preta". [O aparelho se apresenta como uma caixa

    preta, pois o fotgrafo no tem completo acesso a ela.]. Mesmo que o fotgrafo

    'entenda' tecnicamente o que e como funciona tal aparelho, nunca consegue captar

    todas as virtualidades possveis nele. O fotgrafo no consegue, embora sempre busque,

    esgotar o rico campo de imagem que, de certo modo, o aparelho possibilita. Sob esse

    aspecto o fotgrafo est em comunho e tambm submetido ao que no conhece no

    aparelho. Isso a programao do aparelho fotogrfico quem a determina um tcnico,

    no um fotgrafo. Ele determina o programa, que determina as virtualidades possveis

    ao fotgrafo, que determinar a percepo da pessoa que a fotografia (imagem). Ou

    seja, todos se pensam livres mas so determinados por algo anterior. Programador

    programa programado assim at o infinito. O aparelho ento uma pea

    desumanisada que 'cospe' imagens de forma mgica (FLUSSER, 2002). H sempre um

    jogo de trocas, isto , assim como "o aparelho funciona em funo do fotgrafo (...) a

    prpria escolha do fotgrafo funciona em funo da programao do aparelho"

    (FLUSSER, 2002, p.31).

    Imagens que informam. Isso fotografia. E, segundo Flusser (2002), elas esto por

    todos os lados, reproduzem os objetos do mundo. Por isso, as fotografias vm

    carregadas de significados, sejam eles transportados at ela pelo fotgrafo ou pelo

    aparelho fotogrfico, com smbolos que buscam ser impresses do mundo. necessrio

    decifrar as fotografias, decodific- las, desde a sua inteno, sua forma de apresentao e

    sua ideologia, enquanto fotografia composta por diversos elementos simblicos.

    Ora, podemos afirmar que analisar um discurso elucidar que nem todo texto neutro

    e dito por acaso. Tal ao visa estudar como a lngua se coloca e como ela vai refletir no

    homem, que passa da condio de indivduo passivo, para sujeito ativo. A maneira de

    enunciar algo traz diferentes modos de linguagem e significados, podendo ainda haver

    uma srie de sentidos anteriores. A linguagem constitui-se por cores, formas, gestos,

  • palavras, corpo, sinais, entre outros, ou seja, um conjunto de elementos que do um

    significado a partir do local onde acontecem. (ORLANDI, 2002)

    Pcheux diz

    que no h discurso sem sujeito e no h sujeito sem ideologia: o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia e assim que a lngua faz sentido. Conseqentemente, o discurso o lugar em que se pode observar essa relao entre lngua e ideologia, compreendendo-se como a lngua produz sentidos por e para os sujeitos (ORLANDI, 2002, p. 17).

    Desse modo, a produo de sentido oriunda da interpretao que o sujeito desempenha,

    uma relao dele, afetado pela lngua, com a histria e a materialidade. Ou seja, para

    que a lngua faa sentido preciso que a histria intervenha, pelo equvoco, pela

    opacidade, pela espessura material do significante. Diante de qualquer objeto

    simblico o homem levado a interpretar colocando-se diante da questo: o que isto

    quer dizer?. O sentido da resposta esperada somente pode vir pela interpretao. Por

    meio desta pergunta o sujeito levado a interpretar, quer dizer, produzir um

    determinado sentido. (ORLANDI 2002)

    Referindo-se questo feita pelo sujeito ao interpretar: o que isto quer dizer?

    podemos pensar se realmente, ao fazer essa pergunta, ele analisa o que determinada

    fotografia diz, ou se simplesmente a tem como a imagem verdadeira de um

    acontecimento. Faz-se necessrio, no entanto, compreender que as fotografias no so

    representaes fiis da realidade, pois so plenas de ambigidades, portadoras de

    significados no explcitos e de omisses pensadas, calculadas (KOSSOY, 2002, p22).

    Pode-se dizer, desse modo, que a fotografia no uma representao total de um

    determinado acontecimento, mas pode produzir uma conscincia desse, por meio dos

    objetos parciais que oferece. Os objetos parciais so simplesmente o recorte de um

    determinado acontecimento capturado pela lente num instante. Eles, em si, so

    inabarcveis pela intuio humana, e evidentemente tambm pela fotografia. (ORLANDI, 2002)

  • Mas, a fotografia torna-se um todo se admitida somente enquanto uma impresso de

    imagem num plano. Um instante capturado, por ambguo que parea, uma totalidade.

    A fotografia a totalidade do instante que atravessou as lentes e ficou impressa no

    negativo. Ela em si mesma auto explicativa, pois no suporta e nem necessita de

    outros elementos para ser totalidade, mesmo que seja a imagem simples capturada do

    cu azul at uma imagem complexa de uma cidade, por exemplo. Uma fotografia ser

    auto explicativa no quer dizer que seja possvel a universalidade de sua interpretao.

    A tentativa de interpret- la por qualquer sujeito j lhe introduz elementos que no lhe

    so prprios. As interpretaes possveis deveras dependem da histria de quem

    interpreta que maculam a imagem impressa com elementos contingentes e subjetivos. (ORLANDI, 2002)

    O sujeito ento necessita tornar presente os fatos passados por meio de um

    mecanismo que se pode chamar de re-presentao a saber, que pode tornar presente

    o que j no est dado. A fotografia uma forma de representao. A memria outra.

    A primeira objetiva, porque imprime mecanicamente num plano imagens capturadas

    instantaneamente. A memria subjetiva de tal modo que est merc dos lapsos

    prprios de cada indivduo e, portanto, no possvel ter certeza objetiva dos fatos tais

    como ocorreram e transcrev- los de um modo tal qual aconteceram ou foram

    adquiridos. A fotografia torna presente na forma de um plano (papel) impresso um

    recorte de um determinado fato que ocorreu. Ela uma representao mecnica de fatos

    passados (no tempo) e nunca poder apresentar um ato presente, se conseguisse isso

    deixaria de ser fotografia. (ORLANDI, 2002) Alm do mais, ela uma representao a

    partir do real, uma representao onde se tem registrado um aspecto selecionado

    daquele real, organizado cultural, tcnica e esteticamente, portanto ideologicamente

    (KOSSOY, 2002, p.59)

    Pode-se dizer que a fotografia sempre uma representao parcial porque formada por

    objetos parciais. Contudo, ela conduz o sujeito conscincia que se pode chamar de

    representao total. Uma representao total (embora o termo seja ambguo) seria a que

    um sujeito tem de um determinado acontecimento que o possibilita interpret- lo de

    modo subjetivamente completo. A representao total que a fotografia provoca

  • justamente o ponto (circular) que tende a conduzir a interpretao do sujeito. Circular

    porque a fotografia no provocaria a interpretao do sujeito num sentido

    especificamente causal, seria efeito e causa simultaneamente, pois ao sujeito tambm

    determina o que tem de ser interpretado nela. (ORLANDI, 2002)

    Ora, para que o sujeito capte a representao total da fotografia requer que esteja

    imbudo da histria do fato fotografado. Por exemplo: uma pessoa que ocupa um cargo

    poltico fotografada sambando. Aparentemente esta imagem no tem muito sentido,

    mesmo sendo reconhecidamente um poltico, se o local que compe a cena retratada

    (objeto parcial) no conhecido ou prximo da realidade do ledor da fotografia. No

    entanto, para algum que conhece aquele local e mesmo o contexto situacional, a

    mesma fotografia lhe dar a possibilidade de ter uma representao total, pois esse

    sujeito tem um conhecimento que o possibilita interpret- la de um modo consistente.

    Evidentemente, a representao total no se refere objetividade cientfica (que seria,

    no caso da totalidade, humanamente impossvel), mas simplesmente a uma completude

    na interpretao de um sujeito, o que no possvel para quem no compreenda o fato.

    Contudo, h uma evidente parcialidade do fotgrafo, mesmo que ele tente fugir disso

    (ou no), pois as tcnicas empregadas para fotografar interferem na imagem capturada.

    Isto , o "fotgrafo produz smbolos, manipula-os e os armazena (...) O resultado desse

    tipo de atividade so mensagens" (FLUSSER, 2002, p. 22). Essas mensagens so

    produzidas com intuito de informar, e realizadas atravs do aparelho fotogrfico, sendo

    que ele torna-se um instrumento revelador do novo, da imagem manipulada para ver o

    objeto sob outra perspectiva, ainda no conhecida.

    O valor da fotografia consiste na informao nela contida e no como objeto em si, e

    isso depende de como ela interpretada. A difuso de tais informaes ocorre de forma

    discursiva massificada, sendo que, segundo Flusser, com sua distribuio ela torna-se

    multiplicvel. Mesmo no precisando de aparelhos tcnicos para serem difundidas na

    sociedade, so transcodificadas em diferentes canais de distribuio. Canais esses, que

    conseguem, atravs das fotografias, um receptor modelado e passivo aos objetivos

    dissimulados, sendo que ele "est sob a influncia do fascnio mgico da fotografia"

    (FLUSSER, 2002, p. 57).

  • Na mdia nada veiculado sem que haja um controle, interno ou no, sobre as

    informaes que saem. Os sistemas de controle funcionam em funo dos poderes que a

    mdia possui com as informaes e pela relao dela com outros poderes. Como

    menciona Foucault: suponho que em toda sociedade a produo do discurso ao

    mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de

    procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

    acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade (FOUCAULT,

    2003, p. 8-9) Uma informao mal dita, por exemplo, provocaria interpretaes e

    significados no to agradveis, talvez, aos interesses aliados informao e isso

    poderia acarretar em srios danos a eles. Decorre ento que nada ou quase nada dito

    por acaso e difundido sem controle.

    As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre tiveram na imagem fotogrfica

    um poderoso instrumento para a veiculao das idias e da conseqente formao e

    manipulao da opinio pblica. (KOSSOY, 2002, p.20) Como se no bastasse, a

    credibilidade embutida na fotografia faz dela uma excelente ferramenta para ser

    utilizada e entendida como aquela que expressa a verdade e, ancorada ao texto, produz

    significaes que podem coagir o pblico. Prova desse argumento a larga utilizao

    da fotografia para a veiculao da propaganda poltica, dos preconceitos raciais e

    religiosos, entre outros usos dirigidos. (KOSSOY, 2002, p.20)

    Ora, no raro nos defrontamos com imagens que a histria oficial, a imprensa, ou

    grupos interessados se encarregam de atribuir um determinado significado com o

    propsito de criarem realidades e verdades. (KOSSOY, p. 22). Resta-nos, portanto,

    uma questo derradeira: se, pois, relacionados alguns temas como ontologia, objeto,

    (des)informao, massa, conscincia, imagem-imaginao, liberdade, entre outros, com

    a questo da imagem programada maquinalmente por empresas capitalistas (no-

    humanas), para sob esse mesmo vis, informar, no mais capitalisticamente; ou seja, sob

    o prisma da filosofia possvel conceber a fotografia (imagem conceitual do mundo)

    como uma possibilidade de uma salto alm da mera reproduo de imagens (e

    percepes) para uma crtica lcida.

  • Referncia Bibliogrfica

    FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 9 ed. So Paulo: Edies Loyola, 2003. FLUSSER, Vilm. Filosofia da Caixa Preta Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. KOSSOY, Boris. Realidades e Fices na Trama Fotogrfica. 3ed. So Paulo: Ateli Editorial, 2002.