como as metanfetaminas eram o menor dos meus problemas

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    Como as metanfetaminaseram o menor dos meus

    problemas

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    Para a Alexandra que me deu a ideia que comeou esta histria, e que

    com sorte no vai ficar horrorizada com o que eu lhe fiz!

    E para Ana porque o melhor que posso oferecer neste momento um

    sorriso ou dois! :)

    Ins

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    I am grateful life beat me into submission, because thats how I learned

    to fight with compassion instead of fury. Im not broken, Im bendable,

    and I can survive anything. Damaged goods are the best kind there are.

    Liz Roberts

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    Prlogo

    Cerrei os dentes com fora e lutei para manter-me na terra do nuncaenquanto a minha conscincia puxava na outra direo. Infelizmente euparecia estar a perder a batalha: a realidade estava a chegar com uma

    velocidade vertiginosa, e a minha cabea doa tanto que eu tinha a certeza quese me mexesse ia rachar o crnio em dois. Continuei a luta interna paramanter-me longe da lucidez, mas o crebro no reconheceu a minhaautoridade e a realidade veio tona. Comeou com uma pontada nos olhos e ador que se seguiu foi to inesperadamente forte que eu teria entrado emestado de choque se no estivesse ainda entorpecida pelo sono. Mas porque que eu me sentia assim? Porque que a minha cabea doa tanto? Na verdadeno me lembrava de grande coisa, mas no podia descartar aquela hiptesesempre vlida: ser que tinha bebido demais? Se sim, esta era a me dasressacas!...

    J que estava acordada, achei que o melhor era ficar quieta para nodeslocar nada. No entanto, a curiosidade foi acumulando at ser mais forte doque a dor e, ainda de olhos fechados, tentei dobrar os dedos da mo direita efoi com alvio que compreendi que ainda me obedeciam. Ao mexer os dedossenti o cho frio... de cimento talvez? Este no era definitivamente o cho demadeira que me tinha custado os olhos da cara meter no quarto. Se calhar notinha conseguido chegar ao quarto... ser que estava na casa de banho? Osmeus dedos no conseguiam encontrar as juntas entre os azulejos do cho,

    mas talvez. Resolvi fazer uma avaliao mental da minha situao: eu estavadeitada de barriga para baixo e o meu brao esquerdo estava por baixo demim, completamente adormecido. O lado esquerdo da minha cara tambmestava encostado ao cho e portanto toda a minha cara estava gelada, mas notinha coragem para levantar a cabea. Alm disso, custava-me respirar fundoser que tinha o nariz partido? Sempre era prefervel a umas costelas emposies bizarras. Pouco a pouco consegui ignorar as dores que sentia eaventurei-me a abrir um olho - o que no estava contra o cho, portanto.Preparei-me mentalmente para a cegueira habitual induzida pela luz matinalou pela lmpada fluorescente da casa de banho, mas em boa verdade no vi

    nada. Ou estava cega ou com graves problemas de focagem. Ou na volta a luzestava apagada e eu conseguia ver perfeitamente. Sem coragem para mexer acabea, arrastei o brao direito e mexi os dedos frente dos meus olhos. Haviaali um movimento qualquer sim. Quer dizer, no que a minha mente fossedizer-me outra coisa - mesmo que estivesse cega ia ser a ltima pessoa naTerra a reconhecer o facto. Resolvi tentar focar o cho e, ainda que sem grandesucesso, consegui notar algumas irregularidades. Seriam pedrinhas decimento? A menos que tivesse levantado o cho sem dar conta, provavelmenteno estava em casa. Hum assim a coisa ficava mais complicada!

    Voltei a concentrar-me em mim e, numa tentativa de avaliar danos, usei onico brao que me atrevia a mexer para analisar a topografia da minha

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    cabea. O cabelo estava l, assim como vrios inchaos e mais qualquer coisaque parecia ser sangue seco. Se a noite anterior no tivesse sido a melhor daminha vida, eu ia ficar extremamente lixada! Pouco a pouco algumasmemrias vieram tona e comearam a agrupar-se e a tomar forma: lembrei-me de estar com a Ana no carro, do laboratrio, da polcia e do carro preto... Ocarro preto!! Consegui finalmente ar suficiente para gritar o mais alto quepodia: F*DA-SE!!!. Ainda que a minha voz rouca tivesse sado quase nummurmrio, incrvel como uma palavrinha conseguia resumir tudo o quesentia.

    O ataque de pnico tomou-a de surpresa e ela voltou a desmaiar. A poucos passos dali encontravam-se dois homens armados que ladeavam acela e um outro mais afastado, perfeitamente imvel, sentado num banco decozinha. Olhava para o cho com os cotovelos apoiados nas coxas e

    suportava o queixo com a mo direita, o cabelo cado escondia-lhe a face.Sorriu ao ouvi-la praguejar, ela estava viva e apenas isso interessava.

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    Como perder a pacincia numa operao STOP

    Umas (valentes) horas antes...

    Mas ser que ests sempre atrasada?!No tive culpa, o despertador no tocou esta manh! Ela olhou para

    mim com desconfiana e com razo: eu nunca estava pronta a horas.At estava capaz de apostar em como toda a tua vizinhana ouviu o

    alarme at o pobre do telefone se fartar e decidir acabar com a sua tristeexistncia num salto mortal do cimo da mesinha de cabeceira!

    Que dramticas que estamos hoje! O meu telemvel nem tem bateria. Rita tu sabes que eu detesto ter o carro aqui parado em segunda fila,

    est vista de toda a gente e temos aquela porcaria no porta-bagagem!Deixa l, eu pago a portagem - se formos pela autoestrada pode ser que

    cheguemos a horas.Mais hora menos hora de atraso...Tu s uma alegria pela manh! Rita mas sempre a mesma coisa! Tu ests constantemente atrasada e

    depois acabamos as duas a fazer horas a mais no laboratrio para compensar,mas ao contrrio de ti eu acordo a horas!

    A Ana dignou-se a olhar para mim a srio pela primeira vez e a cara delamudou de irritao para preocupao. Se calhar as minhas olheirasmostravam que eu no tinha dormido assim tantas horas a mais do que ela, e a

    frase que se seguiu confirmou as minhas suspeitas: eu devia considerar tirarum curso de camuflagem com maquilhagem.

    Desculpa, estou irritada por estar tua espera desde que o sol nasceu.Ests bem? Porque que tens ar de quem no dorme h uma semana, pelomenos h duas semanas?

    Eu esbocei um sorriso de conciliao que sabia que a derretia, afinalconhecamo-nos desde sempre - ou pelo menos desde que eu me lembro de terconscincia de existir. Apesar de pequena e baixinha, sempre fui mais forte do

    que a maioria dos midos e defendi vrias vezes a Ana enquanto crescamos,ela era muito acanhada e os midos pareciam pressentir isso nas vtimas queacabavam por escolher. Tambm era provavelmente por isso que ela acabavasempre por sucumbir s minhas charmosas desculpas. Ou por isso ou pelosmeus bonitos olhos - exceto nos dias em que tinha olheiras at ao queixo.Olhei para ela com ar maternal e reparei que estvamos as duas muito caladas,ainda que a conversa matinal nunca fosse digna de ser reproduzida mais tarde.Resolvi no responder e esperar que ela comeasse com as conjeturas dela: umnamorado novo? Outra desavena com os meus pais? Alguma luta de ruanoturna j que parecia que eu atraa sarilhos constantemente? L

    continumos as duas em silncio at chegar ao laboratrio e eu fiz um esforodesgraado para no voltar a adormecer. Entrmos as duas juntas, vestimos as

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    nossas batas imaculadas e inicimos a nossa rotina diria num laboratriocujo ar confundia perfumes, cremes, cobaias, desinfectantes, antibiticos edrogas em geral. Passei o dia entre pipetas, caixas de Petri e de todo o tipo deformas possveis de fazer em vidro. Parmos para almoar mas acabmos porfingir que comamos alguma coisa - desconfio que nem os caracis tocavamnaquela salada - e voltei aos meus afazeres at que chegou finalmente adesejada hora de sada e o galo de prmio por ter sobrevivido a mais um diade trabalho. Com a sensao de dever contratual cumprido, deixei-me relaxarna conversa com a Ana.

    Ento conta-me l o que se passa contigo. Voltou ela carga.Nada, porque que dizes isso?Tens umas olheiras enormes e ests cheia de ndoas negras nos braos.

    Eu estranhei o reparo porque ia jurar que tinha vestido uma camisola de

    mangas compridas. Rita, o que que se passa?Est tudo bem, j nem me lembro de como fiz isto.Saste de casa ontem noite? Caste? Tropeaste? Algum te bateu?!Na volta sou sonmbula, s vezes sinto-me a dormir acordada.Se calhar devias marcar uma consulta num desses mdicos da terapia de

    sono...No tinha pensado nisso, mas se calhar tens razo... Vou ver se trato

    disso. E tratei de mudar rapidamente de conversa. E finalmente fim desemana!

    Mal posso esperar por dormir at segunda-feira.

    Ena, ena! Que planos malucos so esses?Oh a srio Rita, estou to cansada! S quero papas e descanso para verse recupero destas ltimas semanas.

    Tem sido duro sim, queres ficar l em casa? Podamos fazer pipocas, verum filme e depois dormir durante o fim de semana todo - como se fssemosumas velhas a planear um fim de semana brutal!

    Porque no?... Mas olha, toma as chaves e conduz tu porque euadormeo se me sento.

    Eu adorava conduzir! Peguei nas chaves contente da vida e fui a correr

    para o lugar do condutor, antes que ela mudasse de ideias. Samos dolaboratrio e eu decidi que podia poupar uns cntimos e ir pela estrada de baixo, em vez de voltar a pagar a portagem da autoestrada. A meio docaminho, as luzes da polcia mostraram-me que nem sempre uma aparente

    boa ideia se revelava uma boa ideia.

    M*rda!O que foi? A Ana estava a dormir e ao mesmo tempo a tentar perceber o

    que se passava.Uma operao STOP ali frente.

    No d para voltarmos para trs?Nops, eles j nos viram e est ali aquele tipo a fazer-nos sinal para

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    encostar. Pode ser que ele no pea para ver a mala do carro.Espero bem que no!

    Encostei o carro e repeti mentalmente o discurso que tinha preparadodesde que comemos a andar com metanfetaminas no carro. Ao mesmotempo tentei convencer a Ana de que estava tudo bem, seno bastava polciaolhar para a cara de culpada dela para pensar que tnhamos um morto namala.

    Eles s querem ver os documentos, a carta e o seguro, cenas assim.Relaxa rapariga, consigo ouvir o teu corao daqui e ainda nem desliguei ocarro!

    Tenho um mau pressentimento acerca disto A Ana era a fatalista deservio.

    O teu horscopo dizia que hoje era um bom dia para no sair de casa?A piada ficou perdida no ar porque um polcia bateu ao de leve na minha

    janela. Abri alegremente o vidro e entreguei-lhe os documentos todos que elemal leu. Depois pediu-me para sair do carro para fazer o teste de alcoolemia, edurante o percurso despejou toda aquela lengalenga do costume sobre a lei,tubos novos embalados, etc, etc. Soprei e at fiquei admirada da mquina noacusar Esta pessoa no tem vida, quanto mais lcool no sangue. E foi nestemeu momento de distrao que um pastor alemo chegou perto do carro da

    Ana e sentou-se para assinalar o local. Comecei a praguejar mentalmente, o

    meu corao entrou em arritmia e vi que a Ana estava prestes a desmaiar.Tentei manter a calma e falar como se no tivesse uma preocupao nomundo.

    O co parou ao lado do nosso carro porque temos substnciaspsicotrpicas no porta-bagagem. Temos identificao que prova que somoscientistas num laboratrio que trabalha com estas substncias e que...

    Nem consegui acabar a frase porque dois polcias agarraram-me por trse outro apontou uma arma Ana. Para comear, o nosso fim de semana snior

    estava a sofrer de excesso de agitao.

    Calma, eu posso explicar! Ns temos autorizao para manusear etransportar esta substncia pois estamos a desenvolver uma teraputica commetanfetaminas...

    Ouvi um grito, senti uma pancada seca e ca ao cho. A minha visoadquiriu uma imagem um bocado desfocada, mas eu estava deveras furiosa!Isto era violncia policial! Eu era conhecida por falar demais, mas no dar-mesequer hiptese de falar tinha que ser ilegal! E aparentemente tambm era

    doloroso. Depois de mais umas pancadas que me deixaram sem sentidos,acordei na esquadra algemada a um banco. A Ana estava ao meu lado, mas

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    no estava algemada - o que era claramente discriminao. Ela estava toaterrorizada que a polcia deve ter pensado (e bem) que ela nem conseguiaaguentar-se de p sozinha.

    O que que aconteceu? Porque que eu estou algemada e tu no? Jlhes explicaste porque que andamos com aquela porcaria mala? Que dor decabea, porra!! Isto violncia policial e tu s minha testemunha!

    Eu expliquei e telefonei ao nosso chefe, essa parte est esclarecida sim.Ento?Antes de me deixarem falar, tiraram-nos as impresses digitais e parece

    que encontraram uma correspondncia na base de dados.Ena, temos bases de dados em Portugal?! Estou maravilhada! Ela

    ignorou-me e continuou.As tuas impresses coincidiram com umas que l estavam. No sei o que

    se passa, mas isto est num alvoroo desgraado desde que chegmos.Por causa de mim?O que que fizeste Rita? Ela ps uma cara de compreenso espera

    que eu confessasse qualquer coisa.Eu?! Eu no fiz nada! Mas isto um pesadelo ou qu? Eu nem nunca fui

    presa! Houve um erro qualquer com a base de dados com sorte a porcariado algoritmo de reconhecimento que funciona mal!

    No precisava de ouvir os pensamentos dela para saber que a Ana ficavado meu lado, mesmo achando que eu estava a esconder qualquer coisa. No

    podia propriamente pedir mais do que isso, os meus braos eram a prova deque escondia coisas dela e ela nem tinha visto o estado das minhas pernas.Mas isto no fazia sentido nenhum! No havia qualquer razo para ter asminhas impresses digitais numa base de dados de criminosos e muito menospara todo aquele tumulto. Olhei para os polcias que tentavam disfarar acuriosidade enquanto tentavam perceber quem eu era, e tentei perceber o quese estava a passar ali. Era bvio que no valia a pena perguntar nada aningum, mas pareciam estar todos espera que alguma coisa acontecesse.Bem, eu no ia com certeza levantar-me e arrancar as algemas do banco ouparti-las para soltar as mos. Eu at conseguia fazer isso, mas deixei-me ficar

    no papel de mida assustada - at porque estava verdadeiramentepreocupada. O que que se estava a passar ali?

    Ana, avisas os meus pais de que estou contigo? No quero que elesachem que fui presa por posse de drogas e muito menos que venham c

    buscar-me.Certo, mas ningum falou com os nossos pais porque j somos as duas

    maiores de idade. No evitei um sorriso.Tens razo, que parvoce! Pensei que fossem as primeiras pessoas que

    eles iam contactar.

    Tu e os teus pais... um dia destes tens que resolver isso.Como diz o Antnio Variaes: pr amanh, deixa l no faas hoje.

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    E ele tambm diz: bem podias fazer hoje porque amanh sei que voltasa adiar.

    No devia ter-te dado o CD. Ela sorriu, finalmente.Ai Rita, que confuso que arranjaste desta vez? Mas eu vou ficar aqui

    contigo, no te preocupes.

    Eu engoli em seco e no consegui dizer nada de jeito. Estava a pensar quese calhar devia ser uma melhor amiga e retribuir dignamente a amizade da

    Ana quando a esquadra foi tomada de assalto por homens vestidos de negro. As armas que eles carregavam tinham canos que podiam embaraar ocomprimento de algumas canas de pesca. Eu e a Ana tivemos a mesma reao:encostmo-nos o mais possvel s costas do banco para ver se passvamosdespercebidas - pelo menos durante mais cinco minutos. Quem seriam estes?Os bons, os maus ou os assim-assim?

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    Como esperar o inesperado

    (Vicente)

    Assim que entrei na esquadra senti logo a presena dela, mas no olheidiretamente para no dar a entender o que eu j sabia. Habituei-me de talforma aos falsos alarmes ao longo dos anos que fui apanhado de surpresa: esteera a srio! O choque causou-me uma amnsia momentnea e tive que fazerum esforo para lembrar-me de quais eram os procedimentos a seguir, aindapor cima tinha sido eu a escrever o regulamento. Primeiro que tudo, nochamar a ateno e prosseguir com o palavreado de rotina - era prefervelapanh-la desprevenida. Fiz sinal equipa de que este no era um exercciomas sim uma razo real para alarme e todos eles reagiram com normalidade,ainda que eu soubesse que tambm no estavam espera daquela novidade.Curiosamente, nenhum deles parecia saber que ela era a razo para estarmosali e olhavam volta procura do foco de toda aquela comoo. Enfim,estvamos todos um pouco aturdidos pela possibilidade de, pela primeira vez,estarmos perante uma situao perigosa. Ajeitei a capa e dirigi-me aoresponsvel para acertar os detalhes da extradio. No ia ser fcil convenc-loa deix-la ir, afinal apanhar a mida podia dar-lhe uma promoo. Mas eraesse o meu papel: dar-lhe um pequeno incentivo para fazer o que eu queria eao mesmo tempo agir naturalmente para no levantar suspeitas. Comecei pormostrar-lhe toda a documentao que tinha comigo e que podia porventurafazer sentido quando apresentada em conjunto. Ele parecia satisfeito com as

    minhas acreditaes - cuidadosamente recolhidas ao longo dos anos - econvenceu-se de que estava perante agentes da INTERPOL e que aquele casoera mesmo uma possvel falha de segurana a nvel europeu. Se calhar eratudo um pouco teatral demais, mas a equipa de capacete e vestida de pretoajudava a montar o cenrio. O problema que se a coisa desse para o torto, asarmas eram completamente inteis e isso fazia-me alguma comicho. Mas poragora estava tudo a correr bem, a ver se a coisa continuava num bom caminho.

    Assinei a papelada toda que me puseram frente e o sentimento de que aevoluo tinha falhado em qualquer stio voltou: como que era possvel que

    ao fim de milhes de anos acabssemos todos afundados em burocracia? Eem jeito de vingana, apresentei-lhe tambm outra bblia de papel e fi-lorubricar as pginas todas. Duas horas depois dei-me por satisfeito eentregaram-me finalmente a chave das algemas. Virei-me, fingi que no sabiaonde ela estava e esperei que me levassem at ao banco onde olhei para ela asrio pela primeira vez. A mida era muito bonita e talvez mais pequena doque eu estava espera, mas o cabelo castanho comprido atado atrs da cabeacom um elstico azul mostrava a bonita cara em toda a sua plenitude: a pelesuave, as faces ligeiramente rosadas, um nariz desafiante e uns lbios queestavam provavelmente fechados com fora. Os olhos dela eram dourados e

    apanharam-me de surpresa - eu nunca tinha visto nada assim. Alm damaneira como ela levantava o nariz, o olhar dela tambm era desafiante ser

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    que ela sabia quem eu era? Ser que ela sentia que eu era diferente? Retornei omesmo olhar fixo e ela acabou por desviar o dela, sem nunca baixar os olhosou mostrar submisso. No pude evitar um sorriso disfarado - esta mida iadar luta. Aproveitei para confirmar que ela continuava algemada ao banco,segurei-a pelo brao algemado - era sempre melhor jogar pelo seguro - eexpliquei-lhe que amos lev-la para as instalaes da INTERPOL de modo aconfirmar a verdadeira identidade dela - o que at era parcialmente verdade.Os olhos dela brilhavam de raiva e no tinham nada de humano que belomistrio que estava ali. No entanto, s os olhos que a traam porque elapermanecia imvel e no fazia qualquer tentativa para libertar-se de mim oudas algemas. A amiga que parecia horrorizada com a situao e era melhorresolver aquilo depressa antes que ela tivesse um ataque cardaco. Fiz sinal aosguardas para levarem a outra mida dali.

    O que isto?! Eu no fiz nada! Deixem-me em paz!! Rita, o que que sepassa? Rita??

    Portanto o nome dela era Rita nome simptico. A tal de Rita pareciaestar a ignorar a amiga, mas no enganava ningum porque tinha fechado osolhos com demasiada fora e estava claramente a sofrer para manter-se emsilncio. Bem, nem tudo era mau, assim j sabamos quem usar para garantirque a Rita cooperava connosco - caso fosse necessrio. Chamei o Ezequielnuma voz praticamente inaudvel e dei-lhe indicaes para seguir os guardas e

    vigiar a amiga. A cara da Rita iluminou-se de repente e no pude deixar de

    notar que ficou muito mais tensa. Pois bem, ela tinha ouvido o que eu tinhadito e a concluso que eu podia efetivamente riscar humana da lista. Oaspeto dela que continuava a intrigar-me: como era possvel que parecesseto humana? Tinha a pele bronzeada e um forte batimento cardaco: era odisfarce perfeito! Sempre de sobreaviso no fosse ela tentar fugir, inclinei-mee soltei-a das algemas. Estranhamente ela no tentou nada e manteve apostura direita, mas sussurrou-me ao ouvido: Se lhe tocas s um homemmorto! Eu no evitei uma gargalhada, tanto pela ironia como pelo facto delaestar a revelar-se. No tirei o sorriso dos lbios e nem me lembrava da ltima

    vez que tinha estado assim to contente. Os meus homens deitaram-me um

    olhar desconcertado e eu encolhi os ombros. Atirei as algemas ao polcia maisprximo, levantei-a do banco e comemos a nossa retirada. Mantive sempreuma mo no ombro direito dela para garantir que ela no tentava fazernenhuma parvoce. Por outro lado, a atitude dela mostrava que no tinha nadade estpida. Ah, tnhamos muito que conversar! E a noite ainda era umacriana.

    (Rita)

    No falei enquanto percorramos os corredores da esquadra e j estava

    arrependida do pouco que tinha falado. No esperava a gargalhada, e o pior que a falta de preocupao dele parecia deixar-me a mim ainda mais

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    preocupada. Ele sabia mais do que eu e, apesar de no saber porqu, sentiaque ele era diferente e mais forte do que eu. Por outro lado no podia sequertentar uma fuga, eu no fazia ideia do que se estava a passar e eles tinham a

    Ana. Parte dos homens que me acompanhavam entraram numa carrinha earrancaram sem esperar por ns. Eu parecia destinada ao grande carro pretoque estava minha frente. Olhei uma ltima vez para a rua e desejei queaquela no fosse a ltima noite da minha vida. Os pelos do meu braolevantaram-se num arrepio ominoso e respirei fundo para ganhar coragemantes de baixar a cabea e entrar no grande carro preto - de novo sem oferecerqualquer tipo de resistncia.

    Na verdade no entrei num carro, mas sim num cruzamento de jipe comcarro que os americanos gostam de apelidar de SUV. O interior era forrado acabedal e tinha uma espcie de alcatifa preta no teto e cho. Os estofos eramcor de vinho e tudo o resto era negro, assim como os vidros que eram fumadose portanto proibidos por lei. Apesar de duvidar que os meus raptores tivessemqualquer ligao INTERPOL, duvidava ainda mais que a polcia mandasseparar aquele veculo. Sentei-me no lugar do meio no banco de trs e fuiprontamente acompanhada por duas bestas, uma de cada lado. Assim quefecharam as portas senti o calor horroroso que estava dentro do carro - oaquecimento devia estar no mximo! Eu de chateada j no passava, masagora estava tambm a ficar cheia de calor e ligeiramente enjoada. Comeceium debate interior sobre se devia ou no reclamar e pedir para baixarem atemperatura do carro quando o eu-sou-claramente-o-chefe entrou para o

    lugar do pendura e eu juro que o carro inclinou ligeiramente para o ladodireito. Um pouco surpreendida com a reao do carro, j que ele me pareciaperfeitamente em forma e no um futuro concorrente ao peso pesado, observeicom mais cuidado para ver quanto do que eu via era realmente msculo. E ele

    virou-se exatamente quando eu me cheguei frente para v-lo melhor eficmos a centmetros um do outro.

    Boa noite Ritinha! Nem imaginas o prazer que ter-te connosco estanoite! Como ele no se mexeu, encostei-me eu para trs.

    O prazer todo vosso! E o nome Rita. Ele ignorou-me

    completamente.Temos muito que conversar, mas primeiro vamos sair daqui para umlocal mais seguro. Ests bem a atrs? No te esqueas de pr o cinto.

    Por acaso no estou no e quero ir para casa! Esta acusao de trfico dedrogas absolutamente inverosmil porque j provei que trabalho com elas nolaboratrio. J para no falar que impossvel que as minhas impressesdigitais estejam numa base de dados da INTERPOL e portanto aposto que oalgoritmo que esto a usar uma porcaria, se quiserem eu programo um comodeve ser! Posso poupar-vos uma ida senhora da asneira porque isto claramente um engano! Ser que no podem deixar-me ali naquela passadeira

    que perto da minha casa?Pois, infelizmente no podemos fazer isso mais algum pedido?

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    Sim, liguem a porra do ar-condicionado! Este carro parece um forno e adecorao baseada no inferno com certeza!

    Continuei a reclamar, mas acabei por dar parte fraca e tirar a camisolaantes que tivesse uma quebra de tenso. Ele abriu muito os olhos e eu repareipela primeira vez que eram azul safira, nunca tinha visto um azul to

    brilhante. Enquanto me preparava para analisar o resto da cara - eledefinitivamente no precisava de operaes plsticas - ele fez-me uma careta.

    O que que te aconteceu?!

    Olhei para os meus braos mais porque achei que era isso que devia fazerdo que por no saber do que ele estava a falar. As vrias ndoas negras, cortese arranhes decoravam-me a pele do ombro at ao cotovelo. Suspirei, cruzei os

    braos e endireitei-me no meu lugar sem apertar o cinto.

    Ah, vais fazer-te de difcil? Muito bem, eu ganho isto facilmente! Asmulheres nunca esto caladas durante mais de dez minutos. Rolei os olhos erespirei devagar para no ficar tonta com o calor, mas passados uns minutosno aguentei e, contra a minha vontade, tive que dar-lhe razo.

    Mas ningum desliga a m*rda do aquecimento?! Vocs nasceram todosno Equador ou qu? Estamos em Portugal! No propriamente um pastropical mas tambm no a Islndia! Esto uns 13C l fora e a temperaturaambiente aceitvel est entre os 18 e os 22 graus, como que possvel que

    no estejam a suar com o calor que faz aqui dentro?!Como fui totalmente ignorada - nem um suspiro consegui - e estava

    desesperada por uma lufada de ar fresco, tomei a liberdade de saltar de joelhospara o colo do homem enorme que estava minha esquerda e abri finalmenteo vidro. Ele gritou, mas eu ignorei-o e pus a cabea fora da janela paraconseguir respirar. O ar da estrada precisava de ser desinfectado, mas naquelemomento parecia-me o ar puro da Serra da Estrela e inspirei fundo.Infelizmente a montanha negra que me suportava demorou menos de umsegundo a trazer a minha cabea de volta ao inferno. Debati-me e mordi-lhe a

    mo que ele tinha usado para tapar-me a boca, mas ele era incrivelmente forte- era escusado, eu no ia ganhar aquela luta. Parei de lutar e olhei para a janelapara dar a entender que no queria fugir, s queria o ar fresco.

    Calma Arzel, ela est realmente com calor. No ests a tentar fugir, poisno Ritinha?

    O outro decidiu-se finalmente a deixar-me falar, mas s depois deexaminar o estado da mo dele e deitar-me um olhar de vais pagar por isto.Eu olhei bem para ele, a fraca luz dentro do carro dava apenas a entender que

    a pele dele tinha um bonito tom de chocolate e provavelmente uns dentes brancos muito certinhos se ele se dignasse a mostr-los. Decidi ento que

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    podia muito bem levantar o queixo e ignorar o olhar raivoso dele. Voltei-mepara o senhor dos olhos azuis brilhantes e respondi.

    Fugir pela janela realmente um plano bestial, mal posso esperar por tera minha cabea contra o alcatro e ser atropelada por um carro qualquer!

    Ele esboou um sorriso amarelo e eu comecei a achar que j tinha faladodemais novamente, queria-me c parecer que tinha acabado de dar-lhe ideias;ele estava claramente a imaginar a cena que eu tinha acabado de descreverem detalhe.

    Interessante Arzel, troca de lugar com ela e deixa a janela aberta. Ah, eno a deixes fugir.

    O tal de Arzel fez o que lhe ordenaram, claramente a contragosto. Eu nopodia deixar de regozijar-me com a minha pequena vitria: ar fresco! Depoisde mais uns minutos com a cabea fora da janela, a minha tenso voltou aosnveis habituais e relaxei um pouco no assento. O Arzel continuou a segurar-me no brao com mais fora do que a necessria, mas eu decidi ignor-lonovamente. No ignorei tanto quanto queria porque me pareceu que ele estavaarrepiado - seria frio? Seria sequer possvel que ele estivesse a tremer de frio?!Mas de onde tinha sado aquela gente?! Voltei a olhar para o lugar do pendura,o outro l continuava na pose de chefe concentrado a olhar em frente, mas erafcil de perceber que no estava minimamente interessado na estrada. Para

    onde que me levavam? E quem era aquela gente?! Eu nunca tinha conhecidoningum mais forte do que bem, mais forte do que eu.

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    Como decidir por quem combater

    Chegmos finalmente a lugar nenhum, coisa que tinha suspeitado assimque samos da estrada alcatroada e comemos a fazer corta-mato. A lua j iaalta e sem a companhia das nuvens era possvel ver o descampado que merodeava com alguma preciso: erva alta, algumas rvores e um balouopendurado num ramo mais baixo de uma delas. Achei o balouo deverascurioso mas no me atrevi a formular um interrogatrio, a minha curiosidadeestava escondida debaixo de uma enorme capa de medo. Iam matar-me aqui?Parecia-me o stio ideal para deixar um cadver a apodrecer. Pensando bem,se calhar morrer era o melhor que podia acontecer-me naquele momento, eleseram quatro e tinham mais fora do que eu - podiam fazer o que quisessemcomigo. A questo era se eu tinha fora suficiente para correr e fugir dali assimque a oportunidade se oferecesse?

    Ento, o que achas da nossa base? Eu gosto de espaos abertos.

    Olhei para ele e foi com algum espanto que vi que ele no estava a gozarcomigo - ele gostava mesmo daquele local. Encolhi os ombros e limitei-me aobservar o caminho de volta, seria possvel seguir os rodados do carro at

    voltar a encontrar um stio conhecido?

    No ests a olhar para o stio certo.

    Ele chegou-se perto de mim, pousou um brao nos meus ombros e ocontacto fez-me estremecer. Depois voltou-me gentilmente at que os meusolhos seguiram o indicador dele.

    Olha nesta direo com cuidado. Vs?

    Olhei com ateno para onde ele estava a apontar e no vi nada.Continuei a olhar e quando os meus olhos ameaavam encher-se de lgrimasse eu no pestanejasse, vi finalmente um reflexo. Incapaz de controlar asurpresa, soltei um Ah! que indicou aos restantes que eu tinha realmente

    visto qualquer coisa. Era uma espcie de pirmide e o vrtice soltava unsreflexos estranhos com o luar. Semicerrei os olhos e toda a estrutura tornou-seto bvia que parecia impossvel que a tivesse falhado quando cheguei - eracomo ter um tigre branco num desfile de ursos pretos. Uns segundos depois,sacudi a cabea para libertar-me do torpor gerado pelo excesso de uso de ums sentido e encaminhei-me para a entrada do edifcio, assim como os outros.Reparei que o chefe dos olhos azuis era o mais alto e que se eu meaproximasse mais podia at ser ntima do umbigo dele. O condutor do carroparecia ter evaporado e estvamos apenas os quatro na entrada. Resignada,entrei no edifcio e fiquei com a sensao que tinha chegado NASA. Aquele

    aparato todo fazia de facto parte de uma base operacional, mas tal como eutinha previsto, no havia um nico letreiro que indicasse que aquilo fazia parte

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    da INTERPOL. Havia imensa gente de um lado para o outro, muitoscomputadores de aspeto futurista que no fundo eram iguais ou piores ao que oque eu tinha em casa, mas toda a sala estava rodeada por um vidro espelhadoe o luar l fora fazia com que me sentisse parte de uma experincia extra-corporal: estvamos ali no meio do campo mas ao mesmo tempo noestvamos. Procurei o balouo e no o encontrei, ou estava baralhada quantoao stio dele ou o balouo era um ngulo morto. Para no variar, estava umcalor anormal dentro do edifcio e a temperatura podia rivalizar com qualquerrua de Kuala Lumpur ao meio dia. O medo de que me assassinassem alicomeou a desaparecer e a curiosidade foi aumentando em proporo inversa.

    Uau, o que isto? Onde estamos? O que que estas pessoas fazem?Porque que eu estou aqui? O governo sabe da existncia disto? E no queinteresse muito mas e o Vaticano? Isto tem a ver com os cavaleirostemplrios? Cruz de Cristo?!

    Ele riu-se com vontade e olhou para mim com o primeiro olhar que nome inspirou medo. O nariz dele era giro e tinha os dentes certinhos,rinoplastias e ortodontia eram coisas que no constavam da lista de afazeresdele. Era lindssimo com aquele ar bem-disposto, e eu no consegui desviar osolhos dele.

    Duvido que consiga responder-te a todas essas questes, masprecisamos que faas uns testes porque queremos avaliar ao certo o que s e

    entretanto metemos a conversa em dia.O que que eu sou? Eu sou igual aos outros todos! Cus, parecia quetoda a minha adolescncia passada a fazer aquela mesma pergunta no tinhaqualquer interesse agora e estava capaz de jurar a ps juntos que nunca tinhareparado nas minhas diferenas.

    O teu ADN no pode ser humano. marciano? Ele suspirou mas continuou.Tu s diferente Tens com certeza algumas mutaes subtis que podem

    alterar muita coisa mas at termos os resultados no sabemos ao certo o qu.

    Parei por momentos para pensar, andava h anos a tentar descobrir o queeu realmente era e agora que tinha essa hiptese, no queria saber. Ou melhor,queria saber sim mas no queria partilhar esse meu segredo com gente queno conhecia de lado nenhum e muito menos com os meus trs raptores.Decidi ento continuar a jogar a carta da ignorncia - afinal a estupidez agudaainda no era proibida por lei.

    Eu confesso que passei por essa fase e obriguei os meus pais adesenterrarem-me a certido de nascimento. Mas agora acredito na minhame quando jura a ps juntos que o meu pai nunca saiu de perto dela durante

    o parto e portanto impossvel que eu tenha sido trocada na maternidade.Enchi o peito de ar e rematei: Sendo assim, sou mesmo filha deles e ningum

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    me livra do sobrenome Rebola Amlia.

    Apanhei-o claramente desprevenido e ele tentou disfarar a surpresa e oinevitvel riso com um tossico - nunca falhava! Ao fim destes anos todos, eutinha finalmente aprendido a saborear as reaes que o meu nome completoprovocava. Longe ia a minha negao e vontade de rebentar a boca a quemgozava comigo porque tinha chegado concluso que devia divertir-me comisto. Quem era a adulta aqui, hem?

    No achas que deselegante da tua parte opinar sobre o meu ADN enem sequer saber o meu nome?

    Ele fitou-me durante um momento e eu vi o gozo desaparecer-lhe da cara,parecia de algum modo incomodado com a falha que lhe apontei. No sei

    porqu, reagi da forma mais parva possvel e comecei a desculpar-me.Estava a brincar, eu gosto de dizer o meu nome completo para observar

    as reaes das pessoas. Se tu j soubesses tinha perdido a piada.

    Ele inclinou a cabea para o lado direito como que a tentar perceber o que que eu queria realmente dizer com aquilo e alguns farrapos de cabelo negrocaram-lhe para a testa. Pisquei os olhos duas vezes e se pudesse tinha tiradouma fotografia para imortalizar aquele momento. Se continuasse assim, aindaia acabar por admitir que ele era o homem mais bonito, e provavelmente o

    mais alto, que tinha conhecido na minha vida. Vida essa que parecia ter osdias contados.

    Portanto o meu nome Rita e o teu ?Vicente.

    Em vez de estender-me a mo, fez-me uma vnia. No sei se fiquei maissurpreendida porque ele respondeu ou pela vnia, mas a minha reao foimesmo a minha falta de reao. Ele voltou a sorrir - adorvel - e encaminhou-me para uma sala que parecia uma enfermaria. Suspirei e entrei com alguma

    relutncia, apostava que aquilo ia meter agulhas e eu nunca tinha gostado deagulhas. Na verdade nunca tinha passado muito tempo entre mdicos, assimque comecei andar os meus pais deixaram de conseguir levar-me onde querque fosse porque era mais rpida e forte do que eles. E a dada altura elescomearam a achar que o melhor era mesmo evitar os mdicos A sala ondeentrmos estava praticamente vazia, as paredes eram brancas e haviamalgumas luzes de observao no teto e uma maca a meio. Sem saber comofugir dali e tambm sem querer estar amarrada com um colete de foras,sentei-me na maca.

    Quero que fique registado que estes exames vo ser realizados comigosob protesto.

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    Muito bem, est registado. D-me o teu indicador direito, se faz favor.

    Obedeci e estendi o dedo que ele colocou dentro de um aparelhopequenino. Senti uma pontada e recolhi o brao por reflexo, mas aquele teste

    j estava - s faltavam uns cinquenta. O teste a seguir foi mais esquisito: elecomeou por encher-me o cabelo de um gel manhoso para fixar umas pontasmetlicas. Alguns momentos depois, olhei com algum fascnio para o monitorque mostrava as minhas ondas cerebrais e deixei que ele me ligasse o resto docorpo s vrias mquinas que nos rodeavam. Se calhar eu queria saber maissobre quem eu realmente era do que eu pensava. Impaciente - como sempre -resolvi comear a chate-lo mesmo sabendo que ele ainda no tinhacompletado nenhum teste.

    Ento esse diagnstico para hoje? Ele olhou para mim com alguma

    curiosidade, mas definitivamente divertido com a pergunta.Ainda no posso dizer-te nada, temos que fazer mais testes. Estes so osiniciais, depois h os fsicos e os mentais, portanto de momento tens umprognstico reservado. E sorriu.

    Mentais?! Ando h anos a evitar psiclogos, psiquiatras e atmentalistas! E depois de ser raptada que vou descobrir que sofro dealguma psicose rara ou assim? Ele soltou uma gargalhada que pareceusurpreend-lo e eu aproveitei para voltar carga. Tu s diferente tambm? Eusinto que s. s como eu? O olhar dele escureceu de repente e fitou-me muitosrio - parecia estar a ter um debate interior um bem aceso.

    Eu sou diferente sim, tu no sabes o que sou? Ou o que tu s?No. Abanei a cabea com veemncia. Eu sei que oio melhor do que amaioria das pessoas, tenho mais fora e alguma dificuldade em ficar doente,mas no sei porqu. No era a verdade toda, mas pelo menos tambm no eramentira.

    Dificuldade em adoecer? Ento como fizeste essas ndoas negras?!Ah isso foi ontem num bar. Um dos rapazes estava com dificuldades

    em entender o no da mida que estava com ele e antes que as coisasaquecessem meti-me entre os dois e levei um murro. Nem doeu muito porqueeu respondi com um pontap a meia altura e ele voou uns metros para trs. O

    pior foi mesmo quando os amigos resolveram ajudar o pobre donzelo indefeso.E eu vencia-os na boa, mas quando eles viram que no tinham hiptesecomearam a atirar-me com mesas, cadeiras e tudo o que havia solto no bar.Suspirei ao lembrar-me da quantidade absurda de mobilirio que me tinhamatirado na noite anterior. Quando sa finalmente de baixo daquela pilha dedestroos, eles j se tinham pisgado e eu fiz o mesmo antes que a polciachegasse.

    O olhar que ele me deitou era indecifrvel. No percebi se aprovava asminhas aes ou se achava que eu gostava de sarilhos. Pior ainda era a

    sensao de ter contado aquilo pela primeira vez e, por alguma razo, precisarde uma pancadinha nas costas para assegurar-me de que eu tinha agido bem.

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    O silncio prolongou-se durante alguns minutos e comeou a ficardesconfortvel quando o meu corao acelerou os bips do monitor. Ele ia adizer-me finalmente qualquer coisa quando ouvi uma grande agitao do ladode fora da sala e as ondas cerebrais do meu outro monitor dispararam.

    O que que se est a passar?! Porque que aquele monitor est assim?Que barulho este?

    Tu nunca fazes uma pergunta de cada vez?!

    Ele acabou por no responder a nenhuma das minhas perguntas, mascomeou a retirar os cabos, pinas e outros metais que tinha colados ao corpocom uma velocidade impressionante. Os meus olhos gravavam apenas borresdo que eram as mos dele em movimento e dei por mim a olhar para a minhaprpria mo e a tentar mex-la velocidade dele.

    Fica aqui, eu vou ver o que se passa.

    O barulho l fora tornou-se ensurdecedor e eu percebi finalmente queaquele piso tinha-se transformado num terreno de batalha. Ouvia gritos,moblia e metal a serem atirados e partidos, urros estranhos e o que pareciaser o som de uma luta de espadas?! A terceira guerra mundial tinha chegadoao descampado e eu ia aproveitar aquela confuso para fugir! Olhei minha

    volta e no havia outra maneira de sair sem ser pela porta, portanto ignorei asordens do Vicente e fui at l. Abri uma nesga da porta e espreitei de lado: o

    que quer que estivesse a acontecer era a srio porque haviam uns tantosmortos no cho. E se no estavam mortos, estavam definitivamente muito maltratados. Tentei focar-me nos movimentos mas no consegui perceber nada doque se estava a passar - aquela guerra era demasiado rpida para mim. Noentanto, eu corria depressa e se calhar conseguia atravessar a sala sem queningum desse por mim, at porque pareciam estar todos muito ocupados unscom os outros. Abri um pouco mais a porta, fixei-me na sada e tenteiconcentrar toda a minha fora num sprint at l. Nem tinha chegado a meiodo caminho quando fui brutalmente atirada contra uma parede de vidro queestava minha esquerda. Um cabeudo atacou-me vindo da direita e a

    pancada foi to grande que me partiu algumas costelas e eu fiquei semconseguir respirar. No segundo seguinte senti o peso a sair de cima de mim e vi o Vicente a atirar o cabeudo pelo ar. No evitei um uau silenciosoenquanto os meus pulmes voltavam lentamente sua funo. O Vicenteestava em modo de guerra e brandia uma espada enorme que pingava sangue.Se bem que aquele sangue tinha uma consistncia estranha, parecia maisplasma do que lquido e a cor era extremamente escura parecia sangue

    venoso depois de uma overdose de dixido de carbono. Ele estava de costasvoltadas para mim e parecia estar a proteger-me de novos ataques.

    Eu disse-te para ficares na sala! Ok, ele estava chateado.E tu achas mesmo que eu ia ficar sozinha naquela sala sem tentar

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    fugir?!Tu estavas a cooperar muito, estavas Era bom demais para ser

    verdade.Vocs raptaram-me! Eu s quero sair daqui e fingir que isto nunca

    aconteceu!!

    Custava-me imenso respirar e portanto discutir naquele momento erademencial, mas a raiva fazia-me falar. O Vicente continuava a fazer de muro eenviava de volta as pessoas que se atiravam contra ele e mesmo pedaosgigantescos de mobilirio de escritrio, enquanto defendia ataques vindos detodos os lados. O meu crebro no tinha velocidade para registar o que seestava a passar, exceto que o Vicente parecia imune a balas - o homem erafeito de qu?! Enquanto tentava perceber o que se passava minha volta, asminhas dores pareciam estar a melhorar - provavelmente consequncia dasubida de adrenalina. Aproveitei estar a sentir-me melhor para levantar-mecom cuidado, mas sempre numa posio de defesa. J com uma viso maisglobal do que se passava, apercebi-me de que eles no estavam a atacar o

    Vicente mas sim a tentar passar pelo Vicente para chegar at mim.

    Eles esto atrs de mim?No sei, diria que sim mas ainda no tive tempo para perguntar a

    ningum! Parou de falar por momentos para transformar uma secretria emmilhentas lascas de madeira. Porque que tinhas de sair e expor-te assim?!

    Eu ignorei a pergunta e virei-me para a parede de vidro que tinhaestilhaado momentos antes. Avaliei a estrutura de ferro que segurava os vidros e arranquei-lhe o maior pedao que consegui tirar sem cortar-memuito; dobrei-o de forma a agarr-lo melhor e coloquei-me atrs do Vicente,preparada para defender-me sozinha. Enchi o peito de ar, que estavamilagrosamente sarado, e aproximei-me das costas do Vicente antes de fazer omeu ultimato.

    Tens cinco segundos para explicar-me o que se passa aqui! No podeslutar contra eles e contra mim ao mesmo tempo.

    Ele virou a cara por momentos e viu-me de p. No s de p sem dorescomo tambm com uma arma que era uma espcie de faca de ferro bem torta.O brilho azul dos olhos dele intensificou-se e eu tive que esforar-me paraaguentar o olhar que ele me atirou - ser que ele podia transformar-se noHulk?!

    Cinco segundos?! Como vs eu estou a defender-te e no a atacar-te,garanto-te que do lado deles no vais ter este tipo de mordomias!

    Somos educados a distinguir o bem do mal de forma a podermos tomar adeciso certa nos momentos decisivos. Mas no momento da verdade fazemos

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    sempre o mesmo: mandamos a razo ver se est a chover e deixamos o coraoescolher. Com um urro que saiu de uma garganta que no parecia ser a minha,comecei a limpar todos os que me apareciam frente enquanto deixava o queparecia ser um banho de adrenalina subir-me cabea. Os meus olhoscomearam finalmente a focar e comecei a ver os movimentos com nitidez, eassim sabia como defender-me e atacar. Saltei, gritei, no olhei a cabeas e fizos possveis para sobreviver. Conforme os meus olhos se habituavam

    velocidade daquela batalha campal e eu entrava no ritmo, comecei acompreender que todos ali tinham os olhos estranhamente brilhantes e queatacavam tambm a morder. Depois de vrios ataques assim, olhei para o meuantebrao que mostrava claramente as marcas de uma dentada de um cogrande. Confusa, olhei para a cara do meu ltimo agressor e no evitei umgrito de horror quando vi o tamanho dos caninos dele. Ele achou piada minha reao e eu aproveitei o momento para recompor-me e responder namesma moeda: levei o meu brao atrs e acertei-lhe na boca com o pedao demetal que tinha nas mos. Eu tinha feito pontaria aos dentes dele e o som dosossos a partirem deram-me uma satisfao incrvel, ainda que tivessefraquejado depois daquele golpe. Deixei-me cair de joelhos e o nicopensamento que me ocorreu dizia-me que eu era muito nova para morrer.Especialmente depois de ter conhecido o homem mais bonito do mundo e dereparar que conseguia lutar contra homens com o dobro do meu tamanho,dentes caninos extremamente longos e demasiada fora bruta. Seria algumadroga nova? Administrada por dentistas? Se sobrevivesse, o segundo item daminha lista de prioridades era saber que raio de experincia humana era eu.

    Sem pensar muito mais no assunto, levantei-me e fui luta.E sobrevivi mesmo. No sei como sabia que estava viva porque sentia-me

    morta, mas sabia que estava deitada no cho e mal conseguia respirar. Osmeus pulmes no conseguiam acompanhar a velocidade com que o meucorao bombardeava sangue. O rudo da luta continuava em pano de fundo,mas o meu corao fazia um barulho incrvel! Eu estava longe do rudo da

    batalha agora, mas onde que eu estava? Dei por mim a ser levantada do choe o movimento fez-me soltar um lamento de dor.

    Desculpa! Respira devagar. Isso devagar, relaxa. Ests a salvo comigo eningum vai encontrar-te. Engoli algum do sangue que tinha na boca esussurrei.

    O que que eu sou?No sei. Uns momentos depois voltei carga, apesar de estar a gastar as

    poucas foras que tinha para respirar.E o que s tu?Eu sou um vampiro, agora cala-te e respira! No te atrevas a morrer!Um vampiro E desta vez no vi tudo branco porque desmaiei em tons

    de carmim.

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    Como renovar a segurana pessoal

    (Vicente)

    Peguei na Rita ao colo e apressei-me a fugir dali. A palavra fugircausava-me comicho e o meu corpo queria ficar e lutar como um homem.Ha! Ao fim deste tempo todo tivemos finalmente um reconhecimento positivoe tropemos logo nalgum queria que isto corresse mal, muito mal. E o pior que a nica maneira de saber da existncia da Rita era atravs de um traidorno seio da nossa organizao. Como que era possvel?! Anos e anos juntos atrabalhar em prol de um objetivo comum e agora um de ns, v-se l saberquem, vira-nos costas e cai-nos o Terceiro Reich em cima! Por mais que desse

    voltas cabea no conseguia apontar o culpado e s confiava em dois nomes: Arzel e Ezequiel. Por agora estvamos os trs sozinhos a lutar contra umfantasma.

    Mas no topo das prioridades estava a Rita: tinha que deix-la num stioseguro e esperar que ela se restabelecesse para ter a certeza de que sobreviviae de que no fugia - ia ser uma dor de cabea. O Ezequiel tinha que esperarpara saber das boas novas. Corri o mais direito possvel para evitar balan-lanos meus braos, tinha a certeza que ela tinha umas quantas costelas partidase era chato mat-la ao tentar salv-la. Depois de correr durante um tempoindeterminado, olhei minha volta e fiquei agradavelmente surpreendido por

    ver que me tinha afastado tanto da base. Melhor ainda, estava no stio ideal!

    Eu conhecia aquela zona como a palma da minha mo porque tinha vivido alih umas dcadas atrs. Entrei pelo jardim e pareceu-me que a minha ex-manso estava abandonada, a sorte parecia estar a sorrir-me de novo. Deimeia volta e entrei na garagem - estava tudo como tinha deixado. Pousei a Ritano cho com cuidado e apressei-me a partir a parede falsa que dava acesso sescadas do piso subterrneo. Sem querer pensar muito no facto dela no semexer h demasiado tempo, peguei nela e suspirei de alvio quando ouvi que ocorao dela ainda batia, baixinho mas batia. Depois de descer as escadas,quase que assobiei apreciativamente quando vi que a sala estava precisamentecomo a tinha deixado. A sensao caseira que o local me inspirava relaxou-me

    e dirigi-me para as celas que estavam ainda mais abaixo. Tentei deit-la comcuidado, mas aquelas celas no tinham sido feitas a pensar em conforto, bempelo contrrio. As paredes tinham vrias camadas de cimento e kevlar, e anica abertura estava desenhada numa estrutura em rede em vez das tpicas

    barras de ferro. A rede ainda era mais forte do que as paredes e era compostapor uma fibra sinttica mais resistente do que o kevlar. Confesso que senti umn na garganta ao deix-la no cho assim, parecia to indefesa que no resistia afastar-lhe o cabelo dos olhos e a limpar-lhe o sangue da cara. Mas foi amemria dos olhos dela que me trouxe de volta realidade: as imagens quetinha gravadas na memria mostravam-na a lutar com uma destreza incrvel!

    Ningum ali contava com o apoio dela - bolas, eu no esperava que elasoubesse lutar logo para comear! E os olhos os olhos dela tinham passado

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    daquele tom de mel a um amarelo vivo. Nunca tinha visto nada assim - o queseria ela? Obriguei-me a sair da cela e a afastar-me da Rita, agora tinha queavisar o Ezequiel e arranjar maneira de perceber o que se tinha passado. Edepois planear a vingana.

    Havia uma discoteca ali perto e fui para l, no sem antes pedir umtelemvel emprestado primeira pessoa que encontrei. verdade que cadaum como cada qual, mas por norma qualquer um aquiesce a um tom mais

    violento vindo de algum que tem o dobro do tamanho. Resumindo: foi fcilarranjar um telefone e avisar o Ezequiel para sair de onde quer que eleestivesse e para levar a amiga da Rita com ele. Ficvamos com mais pontassoltas por atar ao ficar tambm a cargo dela, mas no podia arriscar: no faziaideia da quantidade de informao que tinha escapado do nosso lado. OEzequiel estava bem e no tinha havido qualquer problema com a amiga daRita, o que era uma boa notcia. E agora s faltava arranjar uma ou duaspessoas para guardarem a Rita. Normalmente prefiro confiar nas pessoas queno correm a fazer o que eu mando, mas que pensam um bocadinho no quemandei fazer. Infelizmente no tinha ningum de confiana que estivessedisponvel - nenhum dos dois - e tinha mesmo que hipnotizar algum, apesardo meu receio de provocar um tumor cerebral sempre que recorria quelepoder. No havia outra soluo para encontrar duas pessoas de confiana, omelhor era mesmo sugestion-las a serem de confiana. Entrei na discoteca eescolhi rapidamente os dois homens que me pareciam mais capazes, incluindoo segurana que estava porta a controlar a fila. E sem segurana, fiz muita

    pita feliz quando puderam entrar de rompante na pista de dana. Peguei nosmeus dois homens e chamei-lhes de Antnio e Jos porque os nomes verdadeiros no me interessavam para nada e T Z era giro. Trouxe-os devolta para a garagem de olhos vendados. Afinal, nunca se sabe quando queum hipnotizado desenvolve uma cabea dura e comea a ter vontade prpria.Expliquei-lhes o que tinham a fazer e ficaram ambos de guarda cela. Tireifinalmente um momento para avaliar a situao em que a organizao estavaenquanto procurava uma cadeira. Mesmo sem precisar de respirar, suspireiquando encontrei finalmente um banco e deixei-me cair nele. Apesar dos anosde prtica, as batalhas ainda cansavam. Quem estaria por trs da destruio da

    base? Quantos teriam sobrevivido ao ataque? E quem seria ainda leal?Tantas perguntas e to poucas respostas. Escondi a cara nas mos e planeei osprximos dias: ali estvamos a salvo mas havia que reunir as tropas einvestigar a fundo o que se tinha passado. Tirei a capa, a camisola, uma camisae a camisola interior. Como esperado, um arrepio atravessou-me rapidamenteo corpo - tinha que comprar um aquecedor para ali. Examinei os braos emos ao pormenor, e foi com alvio que percebi que no tinha cicatrizes eportanto no tinha sofrido nenhum golpe a srio. Era um truque bem fixe veras cicatrizes a fecharem sozinhas, ainda no me tinha cansado de ver. Suspireipor hbito e voltei a vestir a minha roupa toda, enquanto pensava no estado da

    Rita. Mesmo sem fazer ideia do que ela era, esperava que ela tivesse asmesmas capacidades de regenerao que eu tinha, ou pelo menos umas

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    parecidas.

    O meu dilogo interior foi interrompido quando me pareceu que a Rita setinha mexido. No quebrei a minha posio, mas concentrei-me nela efinalmente ouvi a confirmao: ela estava viva e conseguia mexer-se! Relaxeicompletamente at que ouvi o palavro dela e a tive que mesmo que reprimiruma gargalhada. Oh, ela ia recuperar totalmente e ainda bem porqueprecisvamos dela! Ainda a sorrir, reparei que me tinha rido mais naquelanoite do que nos ltimos trinta anos - ou o meu sentido de humor tinhaaumentado exponencialmente ou estava uma hecatombe por acontecer.

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    Como preparar um bom pequeno-almoo

    Quando acordei da segunda vez permiti-me a alguns minutos paraorientar-me e separar os pesadelos da realidade. Depois de uma fase inicial denegao, reconheci que o horror era bem verdadeiro e estava registado a corese em Dolby Surround na minha memria. Onde estava uma amnsia quandose precisava dela? No voltei a desmaiar, mas sentia-me estranhamente bem -no me doa nada - o que era extremamente duvidoso. Levantei-me comcuidado at ter a certeza que conseguia mexer os membros todos e respetivasextremidades, e acabei sentada de joelhos no cho com uma mo na cabeapara ampar-la dos efeitos da gravidade. Consegui coragem suficiente paraabrir os olhos mas continuava tudo escuro - a hiptese de estar cegacontinuava de p. Timidamente chamei pela Ana, mas ningum merespondeu. Desenrolei os nomes todos da minha famlia por ordemcronolgica, provavelmente a inventar uns nomes e a saltar outros, at que aoquinto Jos da minha famlia - o meu segundo primo por parte da minha av -algum me respondeu:

    Ele disse que j voltava.Ele quem? Passados uns valentes minutos voltei a tentar. Ol? Jos?

    E dali para a frente s ouvi silncio, nem o cri cri de uma cigarra seouvia. Voltei a tentar forar o dilogo, mas no consegui arrancar maisnenhuma palavra de quem quer que estivesse ali comigo. No fazia ideia de

    onde estava, mas conseguia ouvir perfeitamente o batimento cardaco e arespirao de outras duas pessoas. Evitei pensar se os vampiros precisavam ouno daqueles rgos porque ainda estava em processo de aceitao das minhasmemrias mais recentes. Virei-me ento para o sentido que me restavaavaliar: a viso. Concentrei-me e tentei discernir alguma coisa na direo da

    voz. Nada preto como o breu, no via nada. Como no tinha mais nada parafazer, respirei fundo e concentrei-me nos sons de respirao que ouvia numatentativa de forar os meus olhos escurido e ver uma luzinha que fosse paraaqueles lados. Quando estava prestes a ter uma enxaqueca, conseguifinalmente ver uma silhueta recortada por uma espcie de rede. Enchi-me

    felicidade: no estava cega! A luz era ligeiramente amarelada e eu no percebiamuito bem de onde vinha, portanto aproximei-me de gatas da silhueta queconseguia ver. Conforme me ia aproximando, vi que estava uma rede metlicaa separar-nos; tentei avali-la com uma unha mas fiquei na dvida sobre o querealmente seria. Desisti dessa tarefa e resolvi espreitar pelos intervalos darede. Foi ento que reparei que a luz amarela estava a refletir na rede, ou seja,a luz vinha de dentro da cela. Levantei as mos ao nvel dos olhos e vi-asperfeitamente iluminadas em tons amarelos e esverdeados. Dei um grito efechei os olhos com fora. Tentei controlar-me e respirar devagarinho, masestava agitadssima e no sabia o que fazer. Comecei ento a respirar como

    ensinam s grvidas: basicamente a bufar a cada dois segundos para tentarcontrolar-me. Na minha agitao no ouvi nem senti o Vicente a agachar-se ao

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    meu lado e a pr uma mo sobre o meu ombro.

    Ests bem? O que que se passou? Porque que gritaste?!

    Abri os olhos novamente e desta vez consegui ver o que se passava comcores normais, o Vicente estava ao meu lado e tinha provavelmente acendido aluz. Os meus ouvidos - os senhores do sentido em que mais confiava demomento - confirmaram-me que as outras duas pessoas j no estavam ali.Olhei apreensiva para as minhas mos mas estavam da cor habitual. Voltei aolhar minha volta e s ento percebi onde estava. No contive a surpresa e odesdm que saram num tom demasiado estridente:

    Eu lutei ao teu lado, e tanto quanto sei dei a minha vida por ti, e tudeixaste-me a dormir no cho de uma cela?!

    E disse tudo isto com um indicador acusador ao nvel do peito dele. Eleabriu a boca com inteno de responder-me letra, mas depois apareceu umasombra de arrependimento ou dvida e ele decidiu-se por outra abordagem.

    Tu vais fugir primeira oportunidade que tenhas e eu no posso deixar-te ir at saber o que se passa. At era verdade - eu queria fugir dali mais doque tudo - mas resolvi aproveitar o que parecia ser um debate interior paraforar a confiana dele.

    Ah, bom. Quer dizer que no faz diferena nenhuma por quem lutei

    ontem? Boa!Claro que sim! Tens razes para no confiar em mim, mas eu no voufazer-te mal e depois dos exames clnicos de ontem que no chegaste a fazer, omais provvel era ires descansada para casa.

    O mais provvel? O que que isso quer dizer? Ele passou as mos pelocabelo e levantou-se.

    Tens fome? Eu podia comer um boi.A srio? isso que tens a dizer?!

    Ele olhou-me de lado e abanou a cabea num gesto de incredulidade. Saiu

    da cela e deixou-me a porta aberta, eu no hesitei e levantei-me a correr atrsdele. A zona das celas no era realmente a mais confortvel, havia ali uma salacom uma mesinha e uns bancos que podiam muito bem ser dos anos 60 outalvez fossem uma moda nova qualquer, v-se entender os designers. Olheipara as escadas e depois para os ltimos degraus at ao cho que estavamcobertos dos mais variados itens de mercearia. Haviam vrios ovos partidos eum sumo que rebentou, mas as restantes embalagens de bebida e comidapareciam estar inteiras, ainda que no cho.

    Tropeaste? Aventurei-me a perguntar.

    No. Ouvi-te gritar e pensei que estavas perigo ou que te doa algumacoisa a srio

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    Sorri para mim mesma, podia ser uma prisioneira valiosa sem saberexatamente porqu, mas ao menos tinha algum que se preocupava comigo eno se chamava Ana! Ainda que no tivesse gostado da parte do doer a sriotss! At parecia! A realizao sbita de que a minha leve inclinao pelo

    Vicente podia ser justificada pelo sndrome de Estocolmo entrou de repente nomeu crebro - ser que eu batia mesmo mal?! Tinha morrido uma carrada degente na noite anterior, provavelmente por minha causa, e eu no s noestava preocupada com isso como estava antes preocupada por ter dormido nocho! Devo ter feito uma careta porque ele reparou.

    Ests bem?No. Fui raptada, depois espetada com agulhas e finalmente lutei

    literalmente at morte. Estou provavelmente em estado de choque. Perceboque se passa alguma coisa estranha comigo, mas no fao ideia do que . Eontem foi uma carnificina e morreu mesmo algum?

    Os olhos dele abriram tanto ao processar o que eu tinha dito que tivemedo que saltassem das rbitas. No sabia se entendia a razo para tantasurpresa. E ser que os vampiros eram como o GI Joe e aceitavam os rgosde volta? Caso os olhos dos vampiros pudessem mesmo saltar das rbitas, isto.

    Yeah, eu consigo preocupar-me com os outros de vez em quando, uma

    caracterstica que s aparece uma vez na lua cheia.No esperei resposta e comecei a apanhar as coisas do cho e a coloc-las

    em cima da mesa. Ele acabou por ajudar-me mas terminou a tarefa em menosde trs segundos. Olhei ento para a mesa que estava com srias dificuldadesem aguentar aquele peso todo: baguetes e pezinhos mais pequenos (farinhade trigo e integral), croissants, pastis de nata, donuts, leite com chocolate,sumo de laranja, ma, manga, uva e pera, coca-cola, manteiga com e sem sal,pelo menos cinco variedades de bolachas, cinco tipos de queijo, fiambre, paio,chourio, trs tabletes de chocolate, duas caixas de After Eight, vrias

    conservas e caixas de cereais de quatro marcas diferentes, trs paletes de leite(gordo, meio-gordo e magro), oito tipos de ch e toda a fruta que podia existirnaquela altura do ano.

    Eu tenho duas hipteses para explicar este fenmeno: ou vais tornar istonum bunker para os prximos meses porque o apocalipse est para chegar ouests cheio de fome e comes o equivalente a um pequeno regimento que est apassar fome h um ms? Ele olhou-me divertido enquanto limpava o sumo eos ovos do cho com uma esfregona.

    No sei do que gostas e queria ter a certeza de que gostavas de alguma

    coisa.

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    O meu queixo perdeu a capacidade de vencer a gravidade. Felizmente voltei a ganhar controlo sobre ele a tempo de evitar que uma quantidadeembaraosa de baba comeasse a escorrer pelo canto da boca. No sei quantas

    vezes um homem lindssimo aparecia a limpar o cho sem que algum lhetivesse pedido pelo menos dez vezes para fazer isso. J para no falar quelimpou o cho depois de ter esvaziado uma mercearia para trazer-me opequeno-almoo. Digo j que no coisa que me acontea frequentemente ede momento um ataque de riso despropositado e alguma histeria a fazer-lhecompanhia seriam tomados como reaes adequadas situao. No entanto, o

    Vicente parecia estar espera de uma reao minha que no era a que queriasair instintivamente.

    E ento? Gostas de alguma destas coisas?Gosto de tudo. Quer dizer, no gosto de After Eight.

    A minha resposta deixou-o claramente chocado, mas ele recuperoudepressa o sangue frio (ha ha) e depois de guardar a esfregona e o balde pegounas duas caixas do referido chocolate e levou-as no sei para onde. No mepreocupei muito com a estranheza do gesto e sentei-me mesa sem saber poronde comear. Como estava cheia de fome, resolvi experimentar um

    bocadinho de tudo o que gostava. O Vicente voltou pouco depois e sentou-se minha frente, embora eu mal o visse. Ele era realmente muito alto, mas eutinha o meu horizonte bloqueado por vrias caixas de cereais, sumos e queijosempilhados. Para meu espanto, ele comeou a barrar queijo da serra num

    croissant.Os vampiros comem? Isto , comem comida? Ele levantou a sobrolho

    e foi tudo o que consegui ver.Claro, querias que morrssemos de fome?Ento e aquela cena toda do sangue?Pensa no sangue como um fortificante. No precisas dele para sobreviver

    mas sentes-te melhor quando o tomas.Como leo de fgado de bacalhau?No, bolas, isso nojento! O sangue mais como um suplemento de

    vitamina C: bem doce e agradvel.Ento aquilo dos vampiros sugarem o sangue todo dos humanos treta?No precisam dele para nada?

    No precisamos, mas to bom que difcil de resistir. como teressempre mas para sobremesa, difcil recusar quando te oferecem cerejas.

    Hum O sangue sabe diferente de pessoa para pessoa?Claro, cada pessoa tem as suas pequenas especificidades.H pessoas mais doces que outras? E como sabem quem mais doce?

    Ou melhor dizendo, como sabem distinguir as pessoas que tm o sangue maisdoce?

    Hum um truque que ns temos. Ignorei a falta de resposta econtinuei o meu interrogatrio.

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    Ento tirando os dias de festa, vocs s comem comida como ns?Arrependi-me logo da minha construo frsica, mas ele ignorou e respondeu-me.

    Eu sim, mas o sangue to, to bom que h vampiros que preferem viverapenas dele.

    assim to bom?Oh, timo! como algodo doce mas ficas a sentir-te mais forte. bvio que preferes sangue a comida, porque que ests sempre a

    compar-los?Para entenderes o que eu quero dizer.J reparaste que tens um bocado a mania de escolher as coisas por

    mim?Como assim? Agora no posso voltar ao supermercado.No podes voltar? Ok, eu no quero saber. A comida est tima, acho

    que esta mesa envergonha qualquer buffet de um hotel de cinco estrelas, masno disso que eu estou a falar. Raptaste-me na esquadra e podias muito bemter inventado uma histria qualquer e pedir-me para ir convosco. Depoisresolveste usar-me como cobaia hospitalar sem me dar qualquer hiptese paraconfessar que morro de medo de agulhas e agora trouxeste-me para aqui e nome deixas ir para casa!

    Tu no tinhas feito nada do que eu te pedisse. Ests a esquecer-te de queeu vi-te na esquadra: estavas pronta para saltar e destruir aquilo tudo parafugir se no tivesses a tua amiga ao teu lado.

    No interessa, podias ter perguntado!

    verdade, mas sabemos os dois que no levava a lado nenhum e aindaia perder tempo.

    E depois da resposta dele, fiz o que qualquer pessoa adulta faria na minhasituao: amuei.

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    Como deitar fora um bom pequeno-almoo

    Infelizmente o Vicente no pareceu minimamente incomodado pelo meusilncio, bem pelo contrrio. Comeu feliz da vida e nunca levantou os olhospara ver se eu estava a comer ou no. Ou se levantou eu no vi, primeiro porcausa da montanha de coisas na mesa e segundo porque eu estava a olhar parao cho a planear a minha fuga. Quando acabou de comer, o Vicente levantou-se e olhou em volta como a avaliar a situao.

    Bem, j l vai o tempo em que isto estava apresentvel tenho que fazeraqui umas modificaes se vamos ficar por c.

    Ficar aqui??Sim, pensavas que esta noite j dormias em casa? Lamento, mas no.

    Ele olhou para mim com os olhos semicerrados e eu voltei a sentir medodele a srio. Algumas imagens que tinha empurrado para o abismo da minhamente voltaram: o Vicente de espada em punho a cortar inimigos com talferocidade que nalgumas das estocadas no entrava s a espada como tambmo punho da arma e a mo dele. Senti um ligeiro arrepio na espinha, masquando levantei a cabea decidi olh-lo bem nos olhos e ser sincera.

    Eu no quero nem tenciono ficar aqui!Ha! Como se isso dependesse de ti! O sorriso de desdm feriu-me

    gravemente o orgulho. H duas maneiras de fazermos isto: a que tu colaboras

    e a que tu colaboras. No h a menor dvida de que eu estou em claravantagem se isto acabar numa luta fsica, e se preferires ir pela via psicolgica,acredita que tenho uns sculos de preparao em cima.

    Todas as opinies que tinha formado sobre ele at ali esfumaram-se no ar.Juntamente com a teoria do sndrome de Estocolmo. H dois segundos atrsele tinha parecido simptico e preocupado comigo ou pelo menos com o queeu poderia ser. A realidade da indiferena dele doeu-me mais do que eu estavadisposta a reconhecer, afinal conhecia-o h menos de vinte e quatro horas.Mas a verdade que doeu, e olhar para aquela incrvel mesa de pequeno-

    almoo ainda doa mais. Eu tinha mesmo que sair dali e fugir, depois logo sevia para onde e o que fazer em relao Ana. E pensar eu que todas as minhaspreocupaes no dia anterior se resumiam ao transporte de substncias ilcitasno porta-bagagem!

    A Ritinha fala-barato no vai comentar? Pois bem, eu tomo o silnciocomo prova de que entendeste o que eu disse. Agora vamos embora porquetemos muito que fazer e o Ezequiel j deve estar seca.

    Continuei sem dizer nada, mas franzi o sobrolho quando ouvi a expresso

    estar seca. Um vampiro com centenas de anos e um vocabulrio atual - quesalada russa. Segui-o sem reclamar, j que a minha outra hiptese era

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    claramente ficar fechada naquela cela esquisita. Subi as escadas e no possodizer que tenha ficado chocada por ver que o andar de cima era umagaragem. Na verdade tinha imaginado um armazm abandonado ou assim,mas quando samos da garagem e vi a manso fiquei boquiaberta. O jardim jtinha visto melhores dias, mas as rvores estavam estrategicamente colocadas,assim como as pedrinhas na relva que davam acesso entrada principal dacasa. Havia tambm um pequeno lago que acabava num banco de pedra e sfaltava mesmo uma fonte para compor o ramalhete. A casa tinha pelo menostrs andares e era lindssima em branco e verde - de novo, a cor j tinha vistomelhores dias. A armao cuidada das janelas em madeira, uns pequenos

    vitrais nas janelas que no abriam e a ltima janela a acabar numa espcie desto tornavam a casa adorvel. Eu pagava para viver ali, sem pensar duas

    vezes. Como o meu forte nunca foi disfarar os meus sentimentos, naquelemomento a minha cara devia gritar a minha admirao por aquele achadoarquitetnico e o Vicente reparou nisso mesmo.

    Gostas?

    Fui apanhada de surpresa porque voz dele estava muito perto - ainda que vrios decmetros acima - e porque parecia genuinamente interessado naresposta. Tentei responder o mais vagamente possvel e saiu-me um yeahsem grande emoo. Ele olhou-me com alguma curiosidade, talvez a tentarentender a diferena entre a minha reao inicial e a indiferena na minha voz,mas no disse nada. O jipe/carro preto que eu j esperava ver estava

    estacionado em frente ao porto que dava acesso garagem - at o porto deferro forjado era giro! O Vicente abriu-me a porta de trs e eu aproveitei paraengolir uma ltima golfada de ar fresco antes de entrar naquele inferno sobrerodas. Para minha surpresa, embora tivesse lgica, o Vicente entrou comigopara a parte de trs do carro. Suspirei de tdio e deixei-me deslizar noconfortvel assento do lado esquerdo do carro. Bom, ainda tinha mais unssegundos de ar puro porque o carro no estava ligado. Eu e o Vicente fizemos a

    viagem quase toda em silncio, mas o mesmo no se podia dizer do motoristaque sabia praticamente as letras todas de cor de todas as msicas que estavama passar na rdio. Eu desconfio que at asplaylists ele devia ter memorizadas

    e, apesar de cantar horrivelmente mal, eu no conseguia desligar. Ele estavacontinuamente fora de tom e eu suspeitava que ele fazia de propsito parafugir ao tom quando a msica finalmente se encaixava no tom dele. Asmsicas sucediam-se em catadupa e ele assassinava sem piedade lendas comoElvis Presley, Frank Sinatra ou Nina Simone. Tambm tinha interpretaesrealmente tenebrosas de Bee Gees, Whitney Houston, Cline Dion e at dosagudos mais altos da Mariah Carey. O meu maxilar inferior deixou de serntimo do superior assim que comeou o espetculo e manteve-se assim a

    viagem toda. E infelizmente estava demasiado absorvida naquele assassniocoletivo de grandes e no to grandes obras musicais para reparar no

    caminho. Claro que s dei conta quando chegmos e amaldioei-me vriasvezes por no estar a prestar ateno a nada do que interessava. Se alguma vez

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    o laboratrio fechasse, o melhor era considerar opes de carreira que nopassassem por detetive ou diretora musical daquele vampiro em particular.

    Saltei do carro um pouco sem pensar e s quando ouvi plof que olheipara o cho e para o local onde nos encontrvamos. O meu estmago deu logoali trs mortais retaguarda e eu tive a confirmao de que o meu pequeno-almoo queria mudar de residncia. Corri para a rvore mais prxima e tenteino pensar nos sons pegajosos que os meus tnis faziam ao correr. Assim quecheguei arvore, apoiei-me com o brao esquerdo no tronco e despejei todo ocontedo do meu estmago e uma quantidade absurda de saliva no cho.

    Aqueles pedacinhos de croissant, po, cereais, queijo e mais umas quantascoisas irreconhecveis eram mesmo assim uma pintura de Dali quandocomparadas com o que eu tinha acabado de ver. O descampado que eu tinha

    visto na noite anterior banhado pelo luar era agora um lago de sangue commuitos membros flutuantes. Haviam vrios corpos esquartejados e rgos aoar cobertos de moscas e outros animais necrfagos. No me atrevi a olhar paratrs e fiquei a examinar com extremo interesse a rvore que me tinha apoiadonaquele momento de fraqueza. Como era possvel que eu tivesse participadonaquela chacina?! Eu tinha imagens vvidas das minhas aes e sabiaperfeitamente que alguns daqueles corpos eram da minha inteiraresponsabilidade. No queria ser hipcrita, mas no conseguia conciliar aideia que tinha de mim com as imagens que mostravam que desprezei a vidade vrias pessoas - ainda que estivessem mortas para comear. Nocompreendia como podia coexistir com algum assim to violento - ser que o

    instinto de sobrevivncia era assim to forte dentro de mim? Encostei devagara testa ao tronco da rvore e deixei-me ficar ali de olhos fechados a recuperar.

    Ento Ritinha? Tambm no preciso exagerar, o Arzel no canta assimto mal!

    Ignorei a piada que no tinha piada nenhuma e tentei lembrar-me de ondeconhecia o nome. Ah claro, o vampiro que eu tinha atropelado para conseguirabrir a janela do carro na noite anterior. Sem abrir os olhos, mostrei-lhe oterceiro dedo da minha mo direita e continuei a tentar equilibrar a rvore que

    parecia querer fugir. O Vicente soltou uma gargalhada rouca e eu ignorei-o.No fazia ideia do que estvamos ali a fazer, mas tive curiosidade para saberquem tinha chegado quando ouvi algum perguntar:

    Ela est bem?Sim, mas no reagiu muito bem ao ver este cenrio.No a censuro As minhas lutas so mais virtuais e passadas ao

    computador. vergonhoso reconhecer isto, mas at estou agradecido de meteres mandado vigiar a outra mida.

    Os meus ouvidos arrebitaram - ele s podia estar a falar da Ana! Voltei-mena direo deles e observei o recm-chegado: era tambm alto, embora no

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    tanto como o Vicente, e estava em excelente forma fsica - s para variar. Aomesmo tempo era quase o oposto em termos de imagem porque era muitolouro de olhos verdes. Deus nos salve de existir um vampiro feio ou gordo!Depois de ouvi-lo confessar que estava feliz de ter estado longe dali, simpatizeiautomaticamente com ele. E ia simpatizar muito mais se a Ana estivesse emsegurana e de boa sade. Queria perguntar-lhe mais coisas, mas deixei-meficar a observar e a ouvir distncia, era um bocado rude mas eu no sabia seeles sabiam que eu podia ouvi-los. No custava nada arriscar e ouvir aconversa toda sem dar bandeira.

    Como que ela est? A noite continuou tranquila?Sim, a noite foi muito tranquila. Acho que chegmos a tempo esquadra

    no que toca a apagar informaes sobre a Ana, agora como que elessouberam da enjoada ali No paro de pensar nisso e no tenho a mais plidaideia! Enjoada?! J no gostava dele.

    Foi um dos nossos.Ests a falar a srio?! Will, acreditas mesmo nisso?Tens alguma explicao melhor? Algum descobre a Rita exatamente ao

    mesmo tempo que ns, sabe para onde a trazemos e ainda tem aqui umexrcito nossa espera?!

    Ep, mas custa a acreditar! Eu conheo a unidade toda de trs para afrente e at a famlia de alguns!

    Eu sei, acredita que isso tambm est a comer-me por dentro. E o pior que eu s me atrevo a ilibar-te a ti e ao Arzel, e a alguns dos mortos. No fao

    ideia em quem posso confiar.E ela?

    Ele indicou-me com a cabea e eu fitei-o feita parva. Como que era eu eraestpida o suficiente para dar-lhes entender que conseguia ouvi-los?!Definitivamente a faixa de miss estupidez e paz na Terra vinha para mim hoje.O louro reparou na minha indiscrio, claro.

    Achas que ela consegue ouvir-nos?Tenho a certeza que sim, impressionante no ?

    Sabias disso desde o incio da conversa?No sabia, mas suspeitava. Ela no muito boa a disfarar.

    E com isto sorriu e acenou-me. A capacidade daquele vampiro para irritar-me estava a atingir valores astronmicos. E o pior que a culpa era minha,parecia que eu no conseguia perceber que ele estava sempre um passo minha frente e isso s me fazia detest-lo ainda mais.

    Ela parece gostar de ti.Sim, estou sempre espera que ela me arranque um olho ou assim.

    Ena, tu no perdes tempo a fazer amigas! No achas esquisito estarmos afalar dela e saber que ela est a ouvir-nos? No melhor cham-la e falar

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    tambm com ela?Faz como quiseres.

    Mas que homem mais presunoso, irritante, horrvel, armado em bom,chato e anormal! Era assim to difcil ter-me calhado outro raptor?! Umdaqueles normais?! Afinal em sete bilies de pessoas - sete mil milhes depessoas, ateno - tinha-me calhado um vampiro na rifa. E quantos vampirosexistiam no mundo? Uma mo cheia?! J para no falar que deviam estar em

    vias de extino depois da matana na noite anterior. Ainda a remoer naminha falta de sorte, dirigi-me para o local onde eles estavam e estendi a moao nico que parecia ter os meus sentimentos em considerao.

    Ol, eu sou a Rita.E eu o Ezequiel, muito prazer.

    Ele deu-me um sorriso lindssimo e legtimo. Eu confesso que me derreti etentei oferecer-lhe o meu melhor sorriso em troca, at porque queria muitoque ele me respondesse ao inqurito que eu estava prestes a despejar.

    Como est a Ana?Est bem, muito simptica a tua amiga e faz umas tostas divinais! Eu

    nem sabia do que pensar da Ana e de um vampiro a comerem tostas mistas,mas sorri na mesma porque ela estava obviamente bem - a Ana detestavacozinhar e s sabia fazer tostas de qualquer modo.

    Ela cozinha realmente bem! Menti eu, ao menos podia elogi-la osuficiente para ele ter a certeza que valia a pena proteg-la. Ela continua emcasa? Ou mudaram-na para um stio mais seguro? Ela sabe o que tu realmentes?

    Ena, interrogatrio! E riu-se divertido, o que fez com que subisse maisuns pontos na minha considerao por no ter ficado ofendido. Bem, eu nolhe disse o que ramos porque normalmente as pessoas no reagem bem. O

    Vicente olhou-me como se eu fosse um claro exemplo disso. Ento disse-lheque era do FBI, inventei uma histria enorme e convenci-a a ficar num hoteldurante uns dias.

    Os meus pais esto vivos e de boa sade, achas que eles correm perigo?Tinha-me debatido vrias vezes sobre se devia ou no fazer esta pergunta

    porque dava muita informao sobre mim. Sem dvida que ficava (ainda)mais na mo deles, mas este parecia um tipo simptico e a Ana confiava nele.

    A Ana nunca confiava nos meus namorados e o tempo acabava sempre pordar-lhe razo.

    Pois, uma boa pergunta. S lemos o teu ficheiro com cuidado depois doque se passou aqui e decidimos que se a Ana estava a salvo depois de ter

    estado contigo na esquadra, provavelmente os teus pais tambm estariam. Dequalquer modo, nos prximos dias melhor mud-los tambm. Achas que

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    podem ficar com a Ana?Sim, eles conhecem-na bem e assim sempre ficam com algum conhecido.

    E eu? Quando que posso juntar-me a eles e dizer-lhes que est tudo bemcomigo?

    O Ezequiel olhou para o Vicente como que a dizer-me que ele no tinhaqualquer poder de deciso sobre esse assunto - eu estava nas mos do peixegrado. Suspirei deveras irritada, estava merc daquela esttua de Davidandante. Fiz uma careta ao Ezequiel que encolheu os ombros e continuei afalar diretamente para ele, e a ignorar o vampiro mais poderoso com tudo oque tinha.

    Porque que voltmos aqui?O Will achou que podamos encontrar alguma pista por aqui, reconhecer

    algum ou entender alguma coisa da trapalhada de ontem.Trapalhada um eufemismo grande! Ele sorriu de novo.Tens razo. E tu, como sobreviveste a isto? E abriu o brao direito como a

    lembrar que estvamos beira de um lago de sangue e lama, restos de umedifcio, rgos e demasiados insetos.

    Ela fez como todos os que esto entre a vida e a morte: lutou pela vida delae fez melhor trabalho do que os que ficaram aqui e muitos dos quesobreviveram e ainda andam a monte.

    O Ezequiel observou-me com redobrado interesse e eu no evitei olhar para

    o Vicente. Aquilo tinha sido um elogio? A cara dele continuava de pedra e cal eno se lia ali qualquer emoo. Desisti e voltei a concentrar-me no meu novoamigo que parecia estar a rebentar de curiosidade.

    Tu lutaste mesmo contra vampiros?! Ele est a gozar ou a falar a srio?Lutei mas o Vicente defendeu-me da maior parte. O meu estmago deu

    outra volta.Mas lutaste mesmo ou ele fez o trabalho por ti? No tens uma nica marca

    no corpo!

    Eu fiquei simultaneamente divertida e apreensiva porque ele pareciagenuinamente interessado, mas obviamente no tinha ideia das minhascapacidades ou do que eu era. O Vicente parecia saber mais qualquer coisasobre mim. O pior que eu tambm no fazia ideia do que tinha acontecido sminhas marcas de guerra, eu sarava depressa mas nunca da noite para o dia etinha a certeza de ter partido muita coisa no dia anterior. Quando eu ia aresponder ao Ezequiel, o Vicente cortou-me a palavra.

    Ela lutou sozinha e fez um excelente trabalho mesmo sem ter uma armaadequada. E agora toca a bater terreno: Arzel ficas com o lado esquerdo e

    Ezequiel, tu ficas com o lado direito e eu vou pelo meio. Rita, tu ficas aqui.

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    Aquele ar empertigado irritava-me profundamente e foi com algum esforoque mantive a minha lngua guardada na boca. O Ezequiel olhou para mimcomo quem ainda tinha um milho de perguntas a fazer, mas eu fiz questo desair dali. No s porque o Vicente tinha ordenado que eu ficasse, mas tambmporque queria afastar-me dali. Sem pensar, caminhei at ao balouo queparecia ter sobrevivido so e salvo ao desastre da noite anterior. Sentei-me,abanei-me um pouco e enumerei as hipteses que tinha para fugir e que mepermitiam viver para contar a histria: nenhuma. Todas as que eu seguia vivaacabavam com a minha captura. No tinha para onde fugir e eles sabiam dosmeus pais e da Ana. A parte boa que o Ezequiel fez-me voltar a acreditar queeu estava do lado dos bons, a parte m que o olhar do Ezequiel fez-meperceber que o vampiro que estava a guardar-me no era um qualquer, massim um chefe todo-poderoso. Suspirei e rolei os olhos, que raio de sorte aminha! Por outro lado, se eles estavam mesmo a proteger a minha famlia e eusabia que eles queriam manter-me viva - e bem alimentada - provavelmenteningum ia morrer hoje e eu podia viver para fugir noutro dia.

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    Como identificar o inimigo

    (Vicente)

    O cenrio era desolador: no meio daquela mistela de sangue e lama pareciaque via mais cabeas do que restantes partes do corpo, o que era impossvel.Conhecia tantas das caras ensanguentadas e desfiguradas que via Quecarnificina! Algum ia pagar muito caro por isto. O Arzel e eu ramos osprincipais responsveis pelas cabeas cujas caras no conhecia, mas umnmero assustadoramente grande pertencia Rita. No evitei olhar de relancepara o balouo onde ela permanecia encostada a uma das cordas e a balouardevagarinho. Assim parecia to indefesa e estava a dormir?! Por este andarno ia ser capaz de prever nenhuma das reaes dela que no fosse fugir assimque visse a oportunidade. No conseguia perceber se queria proteg-la ou sequeria mant-la distncia. Quando a vi na esquadra pela primeira vez penseique era uma de ns com algumas variaes muito promissoras, mas agoraestava positivamente baralhado. Tambm no podia tortur-la para obter umaresposta, primeiro porque provavelmente no tinha coragem para fazer-lheisso e depois porque no servia de nada. Ela parecia no saber o quodiferente era, apenas que tinha mais fora do que o normal. Por outro lado, elasabia lutar e defender-se a srio, aquilo envolvia treino de combate e portantoa histria dela no batia certa. Por muito que eu quisesse acreditar nela,ningum matava uma dzia de vampiros em quinze minutos por muitaadrenalina que lhe corresse nas veias. O poder de combate dela era

    impressionante e felizmente parecia ter apanhado toda a gente de surpresa. Eno meio daquela confuso toda, ainda tinha sido um milagre ela ter tomado onosso lado e realmente feito a diferena. Bem, a Rita era um mistrio muitolonge de estar resolvido. E pensando no verdadeiro causador daquela sangria:estaria ali o traidor? Tinha as minhas grandes dvidas, os cobardes tendem aestar ocupados nos momentos decisivos. Saber que tinha sido um dos meushomens era mau, mas pior ainda era no ter sequer suspeitado do caso. Eachava eu que avaliava bem as pessoas! A Rita era apenas outrocontraexemplo. Como que podia voltar a confiar nos vampiros que tinhamsobrevivido? Aquelas perguntas sem resposta s me irritavam ainda mais. Ao

    menos no me restavam grandes dvidas sobre quem estava a puxar oscordelinhos do ataque da noite passada. Infelizmente no tinha provas, masessa podia ser tambm uma bno porque iniciar uma guerra contra eleseria bem, seria provavelmente a minha morte definitiva.

    Fartei-me de procurar pistas no meio daquele cenrio desolador, masinfelizmente no restava nada que no fossem restos mortais ou armas.Ordenei ao Arzel que recolhesse e limpasse as armas - iam ser teis comcerteza. O Ezequiel tinha desistido antes de mim, mas eu no disse nadaquando ele se afastou j que a cara dele oscilava entre o verde enjoado e um

    luto forado por ver a expresso assustada e sofrida de amigos de muitos,muitos anos. Tambm me afetava, mas eu tentava ver aquilo como um alvio

  • 8/3/2019 Como as metanfetaminas eram o menor dos meus problemas

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    final: passvamos demasiados anos a viver s porque sim e a morte tinha queser libertadora de algum modo. Eu era bastante mais velho do que o Ezequiel ea experincia no me ensinava melhor, enquanto ele aproveitava paraconhecer toda a gente e viver tudo ao mximo, eu preferia no criardemasiados laos desnecessrios. Estratgias diferentes que levavam aomesmo resultado: inevitvel dor e uma grande dose de incompreenso ao veros nossos mortos. Tapei os olhos com a mo direita, como se isso ajudasse amudar o cenrio quando voltasse a abri-los. Ouvi o Arzel a aproximar-se e

    voltei a abrir os olhos.

    Quantas armas?Umas quarenta em bom estado, vou ver se consigo fazer alguma coisa de

    outras vinte que me parecem recuperveis.Muito bem, mete tudo no jipe. Eu vou buscar o Ezequiel, onde que ele

    est?Est ali ao fundo com a castradora.

    No evitei um sorriso quando ele voltou costas. sada da esq