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Page 1: COMO A LINGUAGEM PODE PERTURBAR NOSSA …pitangui.uepg.br/eventos/semanadegeografia/_PDFs/20141/oral/BARRETO... · O livro de areia - Jorge Luis Borges Introdução Este texto versa

6 Anais Semana de Geografia. Volume 1, Número 1. Ponta Grossa: UEPG, 2014. ISSN 2317-9759

XXI Semana de Geografia, III Semana e Jornada Científica de Geografia do Ensino a Distância da UEPG, XV

Jornada Científica da Geografia e VIII Encontro do Saber Escolar e o Conhecimento Geográfico

"Os desafios, as novas perspectivas e abordagens da Geografia"

COMO A LINGUAGEM PODE PERTURBAR NOSSA GEOGRAFIA:

UM POUQUINHO DE JORGE LUIS BORGES EM MICHEL

FOUCAULT E O REGISTRO SIMBÓLICO DO ESPAÇO

GEOGRÁFICO

BARRETO, Adriano Albuquerque

"Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço.

Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo".

O livro de areia - Jorge Luis Borges

Introdução

Este texto versa especialmente sobre a introdução do livro As Palavras e as coisas de

Michael Foucault. A experiência da leitura do mesmo nos mobilizou a elaboração alternativa

de uma leitura para Geografia a partir de elementos da linguagem trazidos por Foucault

quando introduz seu leitor na obra já referida. Como temos nos dedicado a explorar a obra de

Foucault a partir de um olhar próprio da Geografia, intentamos a partir destes apontamentos

perspectivar uma introdução ao que podemos chamar aqui de Geografia em Michael

Foucault. Nosso propósito tem sido visualizar a obra de Foucault sob o olhar de conceitos dos

quais a Geografia vem se apropriando ao longo de sua trajetória como ciência. Espaço, lugar e

território, são conceitos fundamentais da pesquisa geográfica, e nos orientamos por estes

conceitos para olhar com os olhos da Geografia para a obra de Foucault, em especial esta

leitura que apresentamos agora.

Objetivo

Nosso objetivo é explorar a percepção da linguagem e da representação do espaço geográfico

na introdução do livro de Foucault As Palavras e as coisas.

Metodologia

Este é um estudo eminentemente teórico onde em um primeiro momento avaliamos a noção

de linguagem empregada no texto de Foucault e em um segundo momento frisamos a relação

simbólica que esta linguagem tem com o espaço geográfico.

O lugar simbólico da linguagem em Foucault a partir da literatura de Borges

Em sua introdução do livro As palavras e as coisas, Foucault explora o espaço da

linguagem enquanto espaço hermético e espaço plural. Um espaço hermético seria um espaço

disposto por categorias de palavras mais ou menos próximas por uma ordem dada. Um

dicionário comum, por exemplo, se configura por uma ordem alfabética que aproxima

palavras que não necessariamente teriam alguma proximidade enquanto significado. Por outro

lado, alguns dicionários específicos aproximam outras categorias de palavras a propósito de

uma especificidade dimensionada por certa disciplina e ordem prevista. Um espaço plural,

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7 Anais Semana de Geografia. Volume 1, Número 1. Ponta Grossa: UEPG, 2014. ISSN 2317-9759

XXI Semana de Geografia, III Semana e Jornada Científica de Geografia do Ensino a Distância da UEPG, XV

Jornada Científica da Geografia e VIII Encontro do Saber Escolar e o Conhecimento Geográfico

"Os desafios, as novas perspectivas e abordagens da Geografia"

enquanto espaço da linguagem, daria margem a diversas possibilidades interpretativas para

ordenação de palavras, ou mesmo, tomaria palavras indistintamente de acordo com a vontade,

ou, o desejo, daquele que as ordena.

Para evidenciar esta leitura de espaço da linguagem, seja ela ordenada ou desordenada,

Foucault faz referência a um conto escrito por Borges onde este menciona uma enciclopédia

chinesa em que se apresenta a taxonomia de animais. Vejamos a própria:

“...os animais se dividem em: a)pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c)

domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos

na presente classificação, i)que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k)

desenhados com pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de

quebrar a bilha, n)que de longe parecem moscas” (FOUCAULT apud BORGES,

2007).

A leitura desta suposição nos provoca risos, assim como a provocou em Foucault, mas

que a interpretação e a mediação dada por essa figura, no que se refere a linguagem, nos

mobilize por instantes.

O absurdo de pensar em uma enciclopédia como esta pode nos encantar ou perturbar

significativamente. Isso decorrente da familiaridade de nosso pensamento quanto ao real e ao

imaginário. Foucault nos alerta que o abalo da ordem e as transformações das superfícies em

que pisamos enquanto linguagem pode nos incomodar, tanto pela estranheza de um encontro

improvável, bem como, pode nos encantar, em uma coexistência feliz no espaço do

impensável.

Ao longo da Modernidade tem sido comum pensar o absurdo, ou o que se pensa como

absurdo, como um desvio, enquanto pode-se pensar que este absurdo pode revigorar o

pensamento. A proposta moderna vem ordenando o pensamento por uma lógica de códigos

que vigiam o que se pode chamar de real. Uma ordem silenciosa disporia de grilhões

linguísticos, perceptivos e práticos (FOUCAULT, 2006), pelos quais o modo de ser das

coisas seria de alguma forma determinado. Todavia, as coisas estariam sem um espaço de

acolhimento e sem um espaço de encontro poético que haveria de dar substância a própria

linguagem e a vida.

Em toda obra de Foucault é possível acompanhar o desdobrar das afirmações

identificadas aqui. Se a linguagem se apresenta como ordem, todas as demais instâncias

estariam bloqueadas, ou seriam restringidas, em um registro determinado do real. A aposta de

Foucault é que possamos reconfigurar os ordenamentos, ou simplesmente, superarmos os

meandros dados pela cultura, isso por uma estética própria da vida onde subverteríamos a

tradição de nossas sociedades de controle e onde a autenticidade poderia ser vivida.

Segundo Foucault, seria preciso o desenvolvimento de novos espaços para falar, para

nomear e para pensar. Ir além do lugar comum, romper com as muralhas que se fazem surdas

aos acontecimentos, seria abrir espaços que solapariam as linguagens sobrecarregadas das

culturas voltadas a ordenação. Deste modo, os espaços solenes da ordem e dos códigos da

cultura e da vida, abririam lugar para as utopias que desabrochariam como flores, dando

margem ao percurso livre da linguagem.

O registro imagético do real é então um campo de lutas simbólicas onde a linguagem

tem um papel fundamental. Isso por prefigurar singularidades e particularidades que podem

restringir as possibilidades apresentadas pela multiplicidade humana. Os acontecimentos e as

representações destes acontecimentos evidenciam uma lógica à priori que reforça modelos

previstos por organizações sociais e instituições imaginárias dadas. Os campos que delimitam

a existência estão saturados de verdades e premissas que não necessariamente correspondem

ao real, por se configurarem enquanto discursos construídos por uma razão instrumental.

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Jornada Científica da Geografia e VIII Encontro do Saber Escolar e o Conhecimento Geográfico

"Os desafios, as novas perspectivas e abordagens da Geografia"

Estes registros do real influem em todo cotidiano, especialmente nos espaços que

partilhamos nossa vida diária. Vejamos agora como a linguagem registra seus espaços em

nossa Geografia e quais são as implicações de uma linguagem que restringe nosso cotidiano

enquanto discurso ordenador. No mesmo contexto, atentemos para as possíveis subversões

espaciais que nos permitiriam reconduzir a linguagem, não simplesmente a linguagem que

corresponde a um registro do real, mas ainda a uma estética espacial enquanto invenção de si

mesmo.

O espaço da linguagem e o registro simbólico do espaço na Geografia

Vimos que a linguagem expressa princípios ordenadores que de certa forma

coordenam a percepção do real. A hermética da linguagem, ou, por outro lado, a pluralidade

de vocalização, singularizaria o discurso e se reproduziria em nosso cotidiano. Entendemos

que o espaço da linguagem conforma também ao espaço geográfico. Uma perspectiva ampla

de linguagem é necessária para que se pondere sobre as referências espaciais da abordagem

geográfica. Nesse sentido, é justo questionar: Como a ordem do discurso se manifesta através

das linguagens que prefigurariam registros simbólicos no espaço geográfico?

O espaço geográfico é um espaço condicionado a restrições e possibilidades

simbólicas. A linguagem do espaço geográfico evidencia as particularidades do lugar e do

território ao qual nos referimos. O reconhecimento dos lugares é dado a partir da construção e

da constituição de linguagens próprias e específicas que ordenariam o real e o simbólico

dando-lhe conteúdo. Entendemos que o caráter e as disposições que ordenam as

manifestações no espaço geográfico podem hermetizar as relações sociais ou podem abri-las

para multipolaridade inventiva redescoberta na contemporaneidade.

Na órbita do espaço geográfico as manifestações que restringem a vocalização dos

sujeitos sociais são especialmente de ordem simbólica. A linguagem neste contexto se

ocuparia de impedir, dificultar e prejudicar, o livre acesso a determinados espaços através da

violência física e simbólica, visto que se orientaria para disciplinarização dos corpos e dos

espíritos. Dito isso, é possível perceber em vários contextos restrições que cerceariam os

sujeitos no sentido de uma política de partilha dos espaços. Há lugares em que não se pode

permanecer, mesmo que estes lugares, em alguns casos, sejam previstos como lugares

públicos.

O saber, enquanto ação política, apontaria para os modos de ser na cultura que

necessariamente precisariam ser subvertidos. Os ordenamentos simbólicos e discursivos

enquanto estratégias políticas no espaço geográfico precisam ser questionados, mesmo que

estes questionamentos sejam também silenciosos. Enquanto sujeitos sociais, dispomos de

recursos e dispositivos próprios da existência que podem nos instrumentalizar a uma estética

que nos permitiria vivenciar com mais propriedade o cotidiano, cotidiano este que muitas

vezes se coloca como adversário a ser superado.

Há uma ordem silenciosa em nossa geografia. Os espaços são simbólicos por natureza

e apresentam disposições que podem ser identificados somente pelos iniciados. Territórios e

lugares só se fazem ser o que são quando obedecem a linguagens que orientam e ordenam a

prática social no espaço. O primeiro desafio que colocaríamos para uma ciência geográfica

que se comprometa com estas afirmações seria reconhecer o espectro espacial que mediaria as

relações sociais em determinados contextos de linguagem. Entendemos que a linguagem

simbólica tem a dizer muito mais do que podemos dimensionar, mas ao reconhecer algumas

especificidades é possível vislumbrar as potencialidades de ação que subverteriam o

ordenamento político de uma linguagem que nos seria prejudicial.

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"Os desafios, as novas perspectivas e abordagens da Geografia"

Foucault identificava um espaço comum na órbita da linguagem que se achava

arruinado. Este espaço comum encerra também o espaço geográfico. Se o percurso da

linguagem do encanto tem sido impedido, é preciso superar os impeditivos perceptivos e

práticos tomando inciativas que reconduzam os registros do real e que mobilizem um

autêntico espaço de acolhimento. Sendo assim, os modos de ser seriam revigorados por um

espaço aberto ao impensável, o que quebraria o silêncio da nossa geografia, propiciando

novos lugares para falar, para nomear e para pensar. Isso abalaria nossas superfícies

ordenadas e abriria vias a um encanto exótico de um outro pensamento geográfico.

Considerações finais

Entendemos aqui que a linguagem pode mediar reflexões profundas com a noção de

espaço geográfico. Neste sentido, o registro simbólico, dado pela linguagem, de nosso ponto

de vista, tem efetividade espacial. Avaliar em que medida a linguagem carrega este potencial

e quais são os instrumentos teóricos na singularidade das múltiplas temáticas e formas das

pesquisas é o desafio que lançamos agora à pesquisa empírica.

Referências

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Ciências Humanas. São

Paulo: Martins Fontes, 2007.