commentarium in apocalipsin (1047): um manuscrito medieval
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Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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O COMMENTARIUM IN APOCALIPSIN (1047): UM
MANUSCRITO MEDIEVAL
THE COMMENTARIUM IN APOCALIPSIN (1047): A MEDIEVAL
MANUSCRIPT
Carolina Akie Ochiai Seixas Lima Universidade Federal de Mato Grosso
Resumo: Este artigo tem como objeto o Commentarium in Apocalipsin do Beato de Liébana, códice encomendado pelos reis Fernando I e D. Sancha, no ano de 1047. Este documento apresenta-se em letra manuscrita visigótica, em latim eclesiástico. O interesse por esta obra se explica pelo fato de que tal códice ganhou notada importância na Alta Idade Média e durante os séculos seguintes por suas fortes descrições e atraentes simbolismos relacionados ao Apocalipse. Sua linguagem apocalíptica vinculada ao Anticristo foi muito importante para os escritos patrísticos e para as homilias no medievo. Escolhemos o manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid, isso se justifica pelo fato de ser esta a mais importante de todas as cópias espalhadas por bibliotecas do mundo inteiro, a sua importância se dá pelo fato de que este códice é considerado o mais valioso dentre os 35 exemplares sobreviventes da referida obra. Palavras-chave: latim eclesiástico, letra visigótica, linguagem apocalíptica
Abstract: The aim of this article is the Commentarium in Apocalypsin of Liébana’s Beato, códex ordered by the king Fernando I and the queen D. Sancha, in 1047. This document is presented in a visigothic mansucript letter, in ecclesiastical latin. The interest in this work is explained by the fact that this códex gained importance in High Middle Ages and through the following centuries becauseof its strong descriptions and attractive simbolism related to the Apocalypse. The apocalyptic language of this work linked to Antichrist was very important to the patristic texts and the homilies in medieval. We chose the manuscript that is at the National Library of Madrid for being the most important copy through out the libraries all over the world, this códex is important because it’s considered the most valuable among 35 surviving examples of this work. Keywords: ecclesiastical latin, visigothic letter, apocalyptic language.
O códice iluminado, que é nosso objeto de pesquisa, foi escrito a pedido de
Fernando I e D. Sancha – Reis de Leão, em 1047, na região de Astúrias por um monge
hispânico que se apresenta como Beato de Liébana. O interesse por esta obra se
explica pelo fato de que tal códice ganhou notada importância na Alta Idade Média e
durante os séculos seguintes por suas fortes descrições e atraentes simbolismos
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relacionados ao Apocalipse. Sua linguagem apocalíptica vinculada ao Anticristo foi
muito importante para os escritos patrísticos e para as homilias no medievo1.
A respeito do Beato de Liébana, em ARAGUZ e MARTÍNEZ2, temos, Beato de
Liébana (? – 798), também conhecido como São Beato (nome que aparece no
calendário litúrgico de santos), um santo católico cuja festividade se celebra no dia
19 de fevereiro, foi monge do Monastério de São Martinho de Turieno (atual
mosteiro de Santo Toríbio de Liébana), viveu na comarca cântabra lebaniega na
segunda metade do século VIII. Posteriormente foi abade do Monastério de
Valcavado e, também, conselheiro e confessor da Rainha Adosinda (filha de Afonso
I, das Astúrias, rainha consorte das Astúrias até o ano 783).
A obra mais conhecida do Beato de Liébana é o ‘Commentarium in
Apocalipsin’, texto enormemente difundido durante a Alta Idade Média devido ao
seu enfoque de alcance teológico, político e geográfico, foi escrito para explicar o
mais complexo e hermético texto bíblico ‘Apocalipse’. Isto faz do texto do Beato um
texto de capital importância por sua riqueza iconográfica e por seu valor
testemunhal. Pouco se conhece da vida deste lebaniego, seu nome real era Beato
(masculino de Beatriz), foi um grande defensor da ortodoxia católica.
Ao Beato devemos também o hino ‘O Dei Verbum’, de onde pela primeira vez
na história se apresenta o apóstolo Santiago como evangelizador da Espanha,
1 Alguns estudos que fazem menção à importância do Beato: ROCHA, F. L. Arianos entre inimicos ecclesiae catholicae: um afrontamento nos comentarii liber apocalipsis de Apringio de Beja – séc. VI, 2009.; PARMEGIANI, R. F. Leituras imagéticas do apocalipse na alta idade média, 2011.; PARMEGIANI, R. F. O maravilhoso apocalíptico: representações do inferno e de seres diabólicos nas iluminuras dos Beatos, 2011.; PARMEGIANI, R. F. Leituras medievais do apocalipse: comentário ao Beato de Liébana, 2009.; KLEIN, P. K. Beatus a Liébana: In Apocalypsin Commentarius, Manchester, The John Rylands University Library, Latin MS 8, 1990.; COSTA, R. Beato de Lébana (730-785) e uma iluminura dos quatro cavaleiros do Apocalipse de São João: análise iconográfica, 2001.; IRUSTA, M e ANGUIS, F. El Beato de Liébana, 2013.; Factum arte: The digital recording: Beato de Liébana – Commentary on the Apocalypse of Sait John, 2005.; JIMÉNEZ, M. J. Beato de Liébana, profeta del milenio, 2009. ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, Las visiones apocalípticas de Beato de Liébana, 2003.; ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana y los terrores del año 800, 1999. GARCIA, E. R. Beato de Liébana: um testigo de su tempo (S. VIII), [pdf]; HERNANDEZ, A. C., ECHEGARAY, J. G., FREEMAN, L. G. e SOTO, J. L. C. Obras completas y complementarias II Documentos de su entorno histórico y literario, 2009. POOLE, Kevin. Beatus of Liébana: Medieval Spain and the Ohtering of Islam. In: KINANE, Karolyn& RYAN, Michael (ed.). End of Days: Essays on the Apocalypse from AntiquitytoModernity. Jefferson: MacFarlane&Co., 2009, p. 47-66. WILLIAMS, John. The Illustrated Beatus: The eleventh and twelfth centuries. Harvey Miller, 2002. CURT, J. The book of revelation: its historical background and use of traditional mythological ideas, 1973. Este códice tem sido muito estudado pelos mais diversos pesquisadores. 2ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, Las visiones apocalípticas de Beato de Liébana, 2003.
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criando uma devoção que facilitou o descobrimento de sua tumba por Teodomiro,
bispo de Iria Flavia. Este acontecimento foi fundamental para unir os cristãos do
Norte da Península Ibérica em uma causa comum, a do nascimento de um
sentimento nacional, a partir desse momento a Hispânia começou a ser conhecida
em âmbito internacional altomedieval. Provavelmente, o Beato foi o primeiro
escritor espanhol influente neste contexto europeu medieval. Gostaria de deixar
claro que utilizamos, para esta pesquisa, o códice de 1047, disponível na Biblioteca
Digital de Madri, em formato digital3.
O códice estudado por nós, foi encomendado, em 1047, pelos reis de Leão e
Castela, Fernando I e D. Sancha que reinaram entre 1037 e 1065. Nesse contexto, a
encomenda do códice iluminado testemunha o que Bloch4 chama de “prazer
universal” de contar ou a ouvir contar, pelo fato de que o texto escrito pelo Beato de
Liébana era lido e ouvido pelos cristãos.
Além disso, o texto contém histórias consideradas universais, como as
histórias dos povos da Judeia, a história do dilúvio, a história de Davi, a história de
Daniel e muitas outras histórias bíblicas somadas ao conteúdo apocalíptico que é o
tema universal e central do texto.
Tanto o texto escrito quanto suas inúmeras iluminuras contribuíram de
forma efetiva para a formação de uma leitura do texto bíblico Apocalipse, último
livro do Novo Testamento da Bíblia Cristã.
O texto escrito pelo Beato marcou profunda e duradouramente a cultura
eclesiástica medieval, notadamente da Península Ibérica. Seus ‘Comentários’
ecoaram nas visões sobre a história, na teologia da salvação e na eclesiologia
partilhada por bispos e monges ibéricos por inúmeras gerações. Sua obra é
diretamente constitutiva do que se pode chamar de tradição cristã.
Em 1995, um grupo de estudiosos5 do Beato publicou uma obra bilíngue,
aliás, única, do ‘Commentarium in Apocalipsin’, uma versão latino-espanhola
3 Este códice está disponível on-line no endereço http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/1806167 ou http://www.wdl.org/pt/. Último acesso em 27/agosto/2018. 4 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. São Paulo: Edições 70, Lisboa, Portugal, 1998, p.107. 5 HERNANDEZ, ECHEGARAY, FREEMAN e SOTO, 2009.
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acompanhada de estudos introdutórios e notas. Esta obra nos serve de inúmeras
informações a respeito da obra do Beato e de suas características.
Bem como afirma Collins “devemos também assinalar que um texto
permanece existindo e pode ser reutilizado em vários contextos e em ocasiões
diferentes”6 é o que podemos perceber no caso do códice por nós, aqui, estudado.
Escrito pela primeira vez no século VIII e encomendado novamente no século XI, em
circunstâncias de produção bem diferentes das quais havia sido escrito pela
primeira vez, a tradição apocalíptica é reutilizada em favor do reinado cristão de
Fernando I e D. Sancha.
Para ilustrar, apresentamos a árvore genealógica dos Beatos, ou seja, seu
stemma, as famílias em que os vários manuscritos ilustrados podem ser divididos:
6 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica – Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo, Paulus, 2010, p.46.
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De acordo com o stemma postulado por Klein7, podemos apresentar as
seguintes famílias nas quais se subdividem os manuscritos do Beato, nas bibliotecas
de vários países. Em destaque, na Família IIa, o códice utilizado para este trabalho:
Família I
1. Madrid, Biblioteca Nacional, Ms. Vtr. 14-1 (olim Hh 58); Kingdon of León, ca.
930-950 (=A1).
2. Paris, Bilbiothèque Nationale, Ms. Lat. 8878; Saint-Sever (Gascony), between
1028 and 1072 (= S).
3. El Escorial, Biblioteca del Monasterio, Cod. &.II.5; Castile, second half of the
tenth century (= E).
4. Madrid, Real Academia de la Historia, Cod. 33; San Millán de la Cogolla
(Castile), early and lat eleventh century (=A2moz and A2rom).
5. Santo Domingo de Silos, Archivo del Monasterio, Fragm. 4; Northern Spain,
late ninth or early tenth century (= Fc).
6. Burgo de Osma, Museo de la Catedral, Ms. 1; Northern Spain, 1086 (= O).
7. Rome, Biblioteca Cosiniana (Academia dei Lincei), Ms. Lat. 369; Spain,
eleventh – twelfthcentury (= C).
8. Lisbon, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cod. 160; Lorvao, 1189 (= L).
9. Lean, Archivo Historico Provincial, Perg., Astorga 1; Northern Spain (León?),
second half of the twelfth century (= Le).
10. Paris, Bibliothèque Nationale, Ms. Nouv. acq. lat. 1366; Navarre, about 1200
(= N).
Família IIa
1. New York, Pierpont Morgan Library, M. 644; San Miguel de Escalada, (León),
ca. 950-960, by the painter Magius (= M).
2. Valladolid, Biblioteca de la Universidad, Ms. 433; Kingdom of León
(Valcavado7), 970 (= V).
7 1990.
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3. Seo de Urgel, Archivo de la Catedral, Cod. 4; Northern Spain (Rioja ?), second
half of the tenth century (= U).
4. Madrid, Biblioteca Nacional, Ms. Vitr. 14-2 (olim B.31); San Isidoro at León,
1047, by the scribe Facundus, for King Fernando I of Castile-León (= J). [OBS:
Este é o manuscrito selecionado para este trabalho].
5. London, British Library, Add. MS 11695; Santo Domingo de Silos (Castile),
completed 1091-1109, by the painter Petrus (= D).
Família IIb
1. Madrid, Archivo Historico Naciona1, Cad. 1097 B (olim eod. 1240); San
Salvador de Tabara (Kingdom León), completed 968-970, by the painters
Magius and Emeterius (= T).
2. Gerona, Museo de la Catedra1, Ms. 7; Kingdom of León (Tabara ?), 975, by the
painters Emeterius and Ende (:::G).
3. Turin, Biblioteca Nazionale, Ms. I.II.l (olim lat. 93); Catalonia (Ripoll?,
Gerona?), earlytwelfthcentury (= Tu).
4. Manchester, John Hylands University Library, Latin MS 8; Castile, late twelfth
century (= R).
5. Madrid, Museo Arqueológico Nacional, Ms. 2 + Paris, Private Collection (olim
Marquet de Vasselot) + Madrid, Biblioteca de la Fundación Zabálburu (olim
Heredia Spínola) + Gerona, Museo Diocesano; from San Pedro de Cardeña
(Castile), late twelfth century (= Pc).
6. Paris, Bibliothèque Nationale, Ms. Nouv. acq. lat. 2290; from San Andrés de
Arroyo (Castile), early thirteenth century (= Ar).
7. New York, Pierpont Morgan Library, M. 429; from Las Huelgas, near Burgos
(Castile), 1220 (= H).
8. Mexico City, Archivo General de la Nación, Ilustr. 4852; Castile, mid-
thirteenth century (= Mex).
Partindo desta divisão em famílias e do stemma em que se encontram os
manuscritos é que podemos afirmar que o nosso objeto de pesquisa pertence à
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família IIa. Esta divisão pôde nos fornecer alguns dados fundamentais para o
desenvolvimento da pesquisa, tais como, a localização dos manuscritos e seus
iluminadores, e o fato de ser o manuscrito em melhor estado de conservação.
A escolha pelo manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid
justifica-se pelo fato de ser esta a mais importante de todas as cópias espalhadas por
bibliotecas do mundo inteiro, a sua importância se dá pelo fato de que este códice é
considerado o mais valioso dentre os 35 exemplares sobreviventes da referida obra.
Outro importante argumento para a escolha do códice em questão (ver
Família IIa – item 4) está relacionado ao fato de que este códice, conhecido por
hispanistas como ‘Beato de Fernando I y Doña Sancha’ (também chamado Beato
Facundo ou J de Neuss) seria já plenamente Românico e incluso no período Proto-
gótico8 – séculos XI e XII – considerado o mais interessante do ponto de vista
filológico.
Autores espanhóis como Araguz e Martínez9 no artigo Las Visiones
Apocalipticas de Beato de Liébana, Echegaray10 em seu artigo Beato de Liébana y los
terrores Del año 800, de forma incansável, tratam das representações imagéticas do
Beato como uma das mais extraordinárias manifestações da arte ocidental. Afirmam
estes autores, que os Beatos serviram de modelo para artistas de todos os tempos,
pois suas iluminuras constituíram um dos grandes valores da arte espanhola, legado
que deixou marcas até os nossos dias.
Jiménez11 em seu artigo, Beato de Liébana, profeta del milênio,afirma que o
Apocalipse é um dos livros mais difíceis de entender e mais enigmáticos dos que
compõem a Bíblia Cristã.Assim, a obra do Beato segue sendo um dos monumentos
8 ARAGUZ e MARTÍNEZ, 2003. 9 ARAGUZ, A. M.; MARTÍNEZ, C. B. Las Visiones Apocalipticas de Beato de Liébana. Ars Medica. Espanha: Revista Humanidades, 2003. 10 ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana y los terrores delaño 800, 1999. 11 JIMÉNEZ, Manuel González. Revista on-line Universidade de Sevilha. (institucional.us.es/revistas/rasbe/37art_8pdf) “... los Comentarios sobre el Apoclipses, de Beato de Liébana que, desde su redacción en los finales de siglo VIII hasta bien entrado el siglo XIII fue, junto con las Etimologías de San Isidro de Sevilla, uno de los libros de mayor circulación en Europa. Con sin miniaturas. Porque éstas –a pesar de su belleza sobrecogedora y de su indudable influjo sobre la iconografía románica y gótica- no se superponen o se sobre imponen al texto, sino que dimanan de él y son criaturas suyas. (...) La obra de Beato es todo un monumento impresionante de erudición e interpretación.”
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iconográficos românicos importantes para a compreensão do último livro revelado
da Bíblia e das leituras que se sucederam a ele até os nossos dias.
O que nos impeliu ao trabalho com esta obra do Beato de Liébana é o fato de
que, nas palavras de Zumthor12, “... a Idade Média – também – uma idade da
escritura...”, sendo, exatamente, a escritura que problematizamos como um
acontecimento de dimensões políticas, no final da década de 1047.
Movidos por essa preocupação, tomamos o que diz Elia, ‘há um aspecto culto
e outro vulgar no latim da Igreja. [...] é de Jos. Schrijnen a distinção entre latim
cristão, popularizante e latim eclesiástico, literário técnico. E o próprio latim cristão
popularizante como nota Devoto (Storia dela Lingua di Roma, p. 526) não é ao pé da
letra “popularizante” e sim um sistema onde abundam as construções “simples,
realistas, adaptadas a quem, tendo a convicção, deve atentar primeiro nas coisas,
depois nas palavras”.’13 Não faremos, aqui, um estudo detalhado das características
que nos levam a considerar o texto do Beato de Liébana um texto escrito em latim
eclesiástico.
Nesta perspectiva, investigamos aquilo queAraguz e Martínez14destacaram
como ‘as fascinantes visões apocalípticas’, que foram motivos de inspiração para os
monges artistas, ao longo de cinco séculos, criando e recriando escrituras e imagens
que se cristalizaram nas bases da arte medieval e, sobretudo, românica. O estilo
plano, colorido e abstrato dessas iluminuras conferiu um ar inusitado de
modernidade a estes códices, característica que permitiu realçar igualmente suas
implicações políticas. Os Beatos dos séculos IX-XI pertencem ao período hispano-
visigótico e são considerados os mais interessantes do ponto de vista histórico e
artístico. Eis um exemplo dentre as 116 iluminuras existentes no códice que contém
635 fólios:
12 ZUMTHOR, P. A letra e a voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. 13 ELIA, S. Preparação à Linguística Românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979, p. 54. 14Araguz, A. M. e Martínez, C. B. Las visiones apocalípticas de Beato de Liébana. In: Ars Medica. Revista de Humanidades, 2003, p.55-6.“Los beatos son, pues las copias iluminadas Del Comentario al Apocalipsis de Beato de Liébana. No ay ninguna otra obra altomedieval hispana ricamente ilustrada como este conjunto de códices, (...) cada beato suele tener un centenar de miniaturas – y calidad de las ilustraciones, que se difundieron ampliamente durante más de cinco siglos. Sus imágenes dieron lugar, según Umberto Eco, a las mas prodigiosas creaciones iconográficas de toda la historia del arte occidental.”
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Fólio 6r – Iluminura: Jesus Cristo dento do símbolo ‘alfa’, segurando o
símbolo ‘ômega’ que significam o início e o fim, temática central do Apocalipse,
assim como está na Bíblia Sagrada.
Fólio 6r – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Parmegiani15 considera que a circulação e as circunstâncias em que o
Commentarium in Apocalipsin circulou e foi lido, influenciaram os clérigos e a
15 PARMEGIANI, 2014, p.40.
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evangelização da época. Em contrapartida, defendemos a tese de que havia algo mais
sutil e elaborado no propósito pelo qual Fernando I utilizou o referido códice em um
jogo persuasivo que passava pela religião e culminava na política e, portanto, nas
disputas territoriais existentes na Península Ibérica do séc. XI.
Echegaray, um dos maiores estudiosos do beato, nos lembra que:
La figura del Beato de Liébana, consagrada por la difusión prodigiosa de su obra y la belleza extraordinaria de sus códices miniados (los “beatos”), debe ser considerada como la de uno de los personajes de mayor trascendencia en todo el alto Medievo.16
A obra de 1047 do Beato de Liébana apresenta 24 tábuas genealógicas da
ascendência de Cristo, apresentadas nas primeiras páginas do códice aqui estudado.
Lembramos que raríssimos trabalhos lidos e pesquisados até o momento fazem
menção às ditas tábuas.
Apenas a dissertação de mestrado de Borges17 é que faz uma breve citação,
afirmando que as tábuas genealógicas de Cristo, presentes no Comentário ao
Apocalipse do Beato de Liébana destinam-se à representação das seis idades da
Terra, expondo de forma esquemática toda a genealogia da humanidade desde Adão
e Eva até o nascimento de Cristo, reforçando uma ascendência sagrada.
E, também, o artigo de Favoreto afirma que “as tábuas genealógicas
expressam por meio de figuras ou esquemas a genealogia de numerosos
personagens bíblicos”18. Mas nenhum dos dois trabalhos fazem a transcrição,
tradução e análise das referidas tábuas genealógicas do Beato. Eis um exemplo
dentre as 24 tábuas genealógicas que abrem o Commentarium in Apocalipsin (1047),
apresentamos a edição, transcrição e tradução:
16ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana y los terrores del año 800. 1999. p. 94 In: dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/563027.pdf. 17 BORGES, Thiago J. Do texto ao traçado cartográfico: as representações das Sortes Apostolorum nos Mapa-múndi dos Beatos (séc. X-XIII) (Dissertação de mestrado, 2010.) 18FAVORETO, Fabiana Pedroni. A função moduladora e os diferentes graus de ornamentação no Beatus de Facundus. Revista Signus, vol. 15, n. 2, 2014, p. 10.
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Fólio 5r - Genealogia de Set, filho de Adão e Eva (1Cr: 1.1-54; Gn: 4.1-26; 5.1-32).
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Edição do fólio 5r:
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Tradução19 do fólio 5r que descreve a Genealogia de Set, filho de Adão e Eva
de acordo com os livros bíblicos 1Cr: 1.1-54; Gn: 4.1-26; 5.1-32.
Latim Português
(1)Seth/ filius/ adam;
(1(1)) Seth dum esset/ annorum [ccv]
ge/ nuit Enos. fiunt/ [oms] anni uite
sue/ [dccxii]/ et mor/ tuus est;
(1(2)) Abel/ filius adam/ factus est/
pastor ouium/ cain [aum]/ operarius/
terre et ob/tulit Abel/ de primogeni/
tu ouium/ et caindefru/ ctibus terrae/
et respexit/ [đs](deus)/
demuneracabel/ supmuneracain non/
respexiteo quod primitus/ gustabat. et
[iic] deo offere batprimis/ Honorabat
se et sic deum..;
(1(3)) adaquum esset annorum/
cxxAgenuit sed:/ Fiunt omnes
anniuite/ sue dccccxxxa et mortuus/
est sepultus que est locum/ urbe
xciimiliarioub [Ihrstm](Iherusalem);
(1) Set filho de Adão.
(1(1)) Set viveu cento e cinco anos e
gerou Enós. Foram novecentos e doze
todos os anos de sua vida até sua
morte.
(1(2)) Abel, filho de Adão, foi feito
pastor de ovelhas. Caim trabalhou a
terra e Abel levou à frente as ovelhas
do primogênito, e Caim dos frutos da
terra ofertou a Deus como
recompensa. Sobre a recompensa,
Caim não respeitou e não gostou
daquilo no princípio e a Deus
ofereceu sua honra.
(1(3)) Dos 130 anos que fosse Adão
gerado, todos os anos da sua vida
foram 930 e morreu e foi sepultado
na cidade de Jerusalém no ano 1102.
(1a) Enos/ filius/ seth;
(1a(1)) Enos dum esset/ annorum [xa]/
genuit cai/ nan Iste In/ ter
pretaturresu/ rectio eo quod/ In ipso
(1a) Enós, filho de Set.
(1a(1)) Dos dez anos enquanto
existisse Enós, gerou Cainã, este
interpretou a ressurreição daquele
19 Para a tradução, optamos pela tradução modernizada, respeitando as normas gramaticais vigentes. Para a edição da tábua genealógica, usamos uma metodologia própria, isto se explica pela falta de linearidade do texto. Assim, criamos a indicação número/letra para as sequências genealógicas. A barra inclinada indica a mudança de linha no texto do manuscrito.
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resusci/ tatum est senen/ Iustum.
Fiunt/ omnes anniuitae/ suaedccccu
(905) et/ mortuus est.
que foi ressuscitado na velhice. Tudo
foi feito nos 905 anos de sua vida e
morreu.
(1b) cainan/ filius/ Enos;
(1b(1)) Caina dum/ esset annorum/
2xxA genuit/ malaleel./ Fiunt
[oms](omines) annis/ uite sue dccccx/
et mortuus est..
(1b) Cainã, filho de Enós.
(1b(1)) Dos 220 anos de Cainã, gerou
Malaleel. Tudo foi feito nos seus 910
anos e morreu.
(1c) malaleel/ filius/ cainan;
(1c(1)) malaleel cum/ esset annos/
c2xv (135) genuit Ia/ resch. fuint/
[oms](omines) anniuite/ sue
dccc2xu(830)/ hulus anno/ centesimo
xxxi/ adam mortuus/ est Iarech dum/
esset annos cxiin(112)/ genuitEnoc.
fuint/ [oms](omines) anniuite sue/
dcccc2xii(932)/ mortuus est.
(1c) Malaleel filho de Cainã.
(1c(1)) Malaleel com 135 anos gerou
Jared. Sendo de todos os 830 anos de
sua vida, dos 131 anos que morreu
Adão, Jared com 112 anos gerou Enoc.
Sendo de todos os anos de sua vida
932 e morreu.
(1d)Iareth/ filius/ malaleel;
(1d(1))Enoch/ dum esset/ annos
2xxu(45)/ genuit ma/ tus alam./fiunt
[oms](omines)/ anni uitae suae/
ccc2xu(335). et/ trans latus est/ a
domino. hulus/ uicesimo anno/ sed
mortuusest/ sextageneratio/ ne.;
(1d(2))matusalamdum/ esset annorum
c2xxxvii (157)/ genuit lamex: Fiunt
[oms](omines) anniei/ dcccc
2xuiiii(939) et mortuus est quarta/
generatione lamech dum esset
annorum/ centum 2xxii(42) genuit
(1d) Jared, filho de Malaleel.
(1d(1)) Dos 45 anos enquanto viveu
Enós, gerou Matusalém, dos 335 anos
de toda sua vida, mudou-se para a
casa do Senhor ao vigésimo ano, viveu
até sua sexta geração e morreu.
(1d(2))Dos 157 anos enquanto viveu
Matusalém, gerou Lamec. Feitos 939
anos dele, morreu a quarta geração
de Lamec, enquanto fosse vivo, aos 42
anos, gerou Noé. Ao todo foram 847
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nohae. Fiunt [oms](omines) anni/ eius
dccc 2xxiii(847) et mortuus est hanc
genera/ tione lamec gigantes nam
sunt:
anos e morreu, pois durante a
geração de Lamec existiram gigantes.
(1d(3))Noe quum esset/ annorum. d
(500) genuit sem/ et fabricauit
arcam/per annos centum ante/2xx
(40) sexto annodilubii/ matusalam
mortuus est/ Uixit aumnoae. post/
dilubium ccc2 (320) annos et/ fiunt
[oms] (omnis) anniuitae suae/ dcccc2a
(920) et mortuus est/ et factum est
post uiim (septimum) dies post quam In
sub aqua/ dilubii Inundauerunt/
terram. hic finit prima eras [scti]
(sancti) A adam usque/ ad dilubium
anni/ [ii c2xii] (secundus 132);
(1d(3)) Noé com 500 anos gerou Sem
e fabricou a arca por cem anos antes
do 46º ano do dilúvio, Matusalém
morreu e viveu Noé após o dilúvio,
foram 310 anos da sua vida e morreu
com 920 anos. O fato é que no sétimo
dia após o dilúvio, sob a água do
dilúvio que inundou a terra por 132
anos, este foi o fim da primeira era
santa de Adão.
(1e) Enoch/ filius/ Iarech;
(1f)matusa/ lam filius/ Enoc;
(1g) lamech/ filius/ matusalam;
(1h)aran/ uxor/ lamec;
(1e) Enoc, filho de Jared.
(1f) Matusalém, filho de Enoc.
(1g) Lamec, filho de Matusalem.
(1h) Arã, esposa de Lamec.
[Intervenção 1] baribi/ beli/ dequa/
genitur est/ noe..;
[Intervenção 1] Baribibeli da qual foi
a genitora de Noé.
(2) [vazio]; (2a)[vazio];
(2b)[?]20ath/ filius/ enos;
(2c)[?]/ filius/ [?];
(2d)[?]/ [?] filius/[?];
(2e)matu/ saelfilius/ maalaleel;
(2f)Ada/ uxor/ lamec;
(2) [vazio]; (2a) [vazio];
(2b) Israt, filho de Enós.
(2c) Maalael, filho de Harat.
(2d) Matusael, filho de Harat.
(2e) Matusael, filho de Maalaeel.
(2f) Ada, esposa de Lamec.
20 Utilizamos “[?]” (interrogação entre colchetes) quando o termo ocorre no manuscrito de forma ilegível, mas sabe-se a tradução pelo contexto bíblico consultado na Bíblia de Jerusalém.
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
84
(2g)Iael/ filius/ lamec;
(2h)Iabal/ filius/ lamec;
(2i)sella/ secunda/ uxor/ lamec;
(2j)Tubalca/ filius/ lamec;
(2k)Noema/ filia/ lamec;
(2g) Iael, filho de Lamec.
(2h) Jabal, filho de Lamec.
(2i) Sella, segunda esposa de Lamec.
(2j) Tubalca, filha de Lamec.
(2k) Noema, filha de Lamec.
[Intervenção 2] Horum generatio
deletu est/ per dilubium.
[Intervenção 2] A geração de Horum
foi apagada pelo dilúvio.
Favoreto também afirma que “em nenhuma das cópias (do Commentarium in
Apocalipsin) aparece o nome de Beato ou de qualquer autoria”21.O que podemos
comprovar exatamente o contrário.No códice de 1047, após nossa pesquisa,
pudemos encontrar, apenas nas 59 páginas estudadas por nós,10 menções ao
Beato.Estas menções estão nos fólios 18r, 19r,19v (duas ocorrências), 25v, 26v, 28r,
28v e 29v (duas ocorrências). Deixamos em destaque o nome Beato contextualizado
nos recortes a seguir e na sequência, apresentamos a edição e tradução do latim para
o português dos trechos em questão:
Linha 1/ fólio 18r, o primeiro termo do primeiro parágrafo que aparece é “Beatos”:
Trecho do Fólio 18r – Commentarium in Apocalipsin (1047)
21 Idem, p. 7.
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Latim Português
Beatos esse quiseruaberint/22uerba
prophetae suae que/ scribsit ad septem
(e)clesias/ asye. et de [Christ]o qui est et
qui erat./ et de septem spiritbus et quod
tertis/ et primogenitus et princeps
sit[Christu]s/ qui ueniet cum nubibus et
plangent/ om(ni)s quia ipse. A. et W.
omnipotens.
É o Beato que serviu à palavra do
seu profeta que escreveu para as
sete Igrejas da Ásia. E por Cristo
que é o que era e a partir dos sete
espíritos e do terceiro príncipe
primogênito, assim seja como
Cristo que veio pelas nuvens e
lamentou por todos. Assim como
era no início e no fim do todo
poderoso.
Linha 4/ Fólio 19r, em que temos “beatos”:
Trecho do Fólio 19r – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Iuduciiet de alio Angelo qui dicit/
babilon cecidisse. et de tertio Angelo qui/
do julgamento e do outro anjo que diz
que se a Babilônia caminhasse, o
22A barra inclinada indica a mudança de linha no texto do manuscrito.
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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premonet non adorandam bestiam/ et
decaractere eis et beatos esse qui In/
[dño] (domino) moriuntur [s]. et de
Ângelo qui falcem/ meruit terram. et de
alii quiuindemiauit/ et de sanguine
usque ad freno sequorum:/
terceiro anjo não oprimiria os que
adoram a Besta pelo seu caráter. O
Beato que é o Senhor dos que padecem
e do anjo do qual a foice prestou
serviços a terra e de outros que
colheram do sangue até do freio dos
cavalos.
Linha 8/ Fólio 19v, em que temos “beatum”:
Trecho do Fólio 19v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Revelata haec. Ut manifestarentur/
hominibus beatum qui esse.
seruantem/ ea. et de Ângelo qui
reuertuit ado/ rari. Et qui nocet
noceat et quod/ cito ueniat sed
dereanicui. qui/ est alfa et a. et w. et
foriscanes. etceteros./ et quia [Ihr]
(Ihesus) est radix [d._d] (de deus). Et
quisitit/ ueniat: Explicit capitulatio:
Revelada esta, de modo que
manifestada pelo homem beato que
é este servo e do anjo que regressou
pela glória. E que eu prejudico e ele
prejudica e que depressa vem fixar-
se pelos anos a partir do qual Ele é o
Alfa e o Ômega. E pelo lado de fora os
cães e os outros, e por ter sido Jesus
a raiz de Deus e que vem e está seca.
Explicado o capítulo.
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Linha 21/ Fólio 19v, em que temos “Beatus”:
Trecho do Fólio 19v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Beatusquilegit. etquiaudiunt/ uerba
[ppħtae] (prophetae) et
seruanteaquae/ In eascribta sunt:
Tempus enim/ prope est:
Johannesseptemaectiis/ quae sunt In
asya: Gratia uobis et/ paxa deo qui est
et qui erat et qui/ uenturas est: et a
septem [spibs] (spiritbus) qui/
Inconspectu tronieius sunt./ et
[ablħaxpo]? qui est tertis fidelis/
primogenitus mortuorum et princeps/
O Beato que leu e que ouviu a
palavra do profeta e serviu a ele
como está na escritura. O tempo está
próximo sem dúvida. João é igual aos
sete que estão na Ásia. Graças a vós e
a paz de Deus que é e será e que é o
por vir. E dos sete espíritos que estão
presentes em seus tronos, e do
Cristo que é o terceiro fiel e o
primogênito dos mortos e o
primeiro
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Segunda coluna, linha 26/ Fólio 25v, em que temos “Beati”:
Trecho do Fólio 25v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Scribe: Beati mortuiqui in d(omi)ño/
moriuntur: A modo iam dicitsṕ(e)s:/
ut requiescant a laborib(u)s suis
opera/ enim illorum sequuntur illos:/
Escreva: Do Beato morto quem
entre o senhor sucumbiu. Neste
momento diz a esperança. De que
modo descansa pelo seu trabalho e
obra, certamente por aqueles que os
acompanha.
Primeira coluna, Linha 30/ Fólio 26v, temos “Beatus”:
Trecho do Fólio 26v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Latim Português
Sunt enim sṕ(e)s demonior(um)
facientes/ signa procedunt ad reges
totius terr(a)e/ congregare illos in
prelium ad diem/ magnamomni
p(oten)tis: Ecce uenio/ sicutfur:
Beatus qui uigilat/ ex custodit
vestimenta sua ne nudus/ ambulet et
uideant turpitudinem/ eius: Et
congregabit illos in locum/ qui
uocatur ebrayce armagedon:/
São sem dúvida as esperanças dos
demônios executores do sinal que
avança por todos os reis da Terra
para congregar com eles na batalha
para o dia do Todo Poderoso. Eis que
veio assim como um ladrão. O Beato
que vigia e protege a sua vestimenta
e certamente nu, anda e vê a desonra
(vergonha, infâmia) dele. E
encontrou com eles no lugar que foi
chamado em hebraico, o
Armagedom.
Primeira coluna Linha 19/ Fólio 28r, onde temos “Beati”:
Trecho do Fólio 28r – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Byssino splendens candido:
Byssinum/ enim orationes sunt
s(a)c(r)or(um): Et dixit/ mihi.
O linho sem dúvida é a oração
sagrada. E foi dito a mim, escreva: do
Beato que são chamados para ceia
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
90
scribe: Beatiqui ad cenamnub/ tiaru
magni uocati sunt: Et dixit/ mihi:
H(a)ecuerbauera dei sunt:/
nas núpcias do cordeiro. E foi dito a
mim: estas são as verdadeiras
palavras de Deus.
Primeira coluna, Linha 21/ Fólio 28v, temos “Beatus”:
Trecho do Fólio 28v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Latim Português
Beatus et s(a)ć(ru)s qui habet
partem in res/ urrectione prima in eis
secunda mors/ non habet potestatem.
sederunt/ sacerdotes dei et (Christ)i
et regnabunt/ cum illo Mille annis:/
O Beato e o sagrado que tinha uma
parte na primeira ressurreição e nele
a segunda morte não tinha o poder,
mas era o sacerdote de Deus e de
Cristo e reinaram com ele por mil
anos.
Primeira coluna, último parágrafo/ Fólio 29v, temos “Beatus”:
Trecho do Fólio 29v – Commentarium in Apocalipsin (1047)
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Latim Português
Beatus qui custodit uerba
p(ro)pħeti(a)e/ librihui(u)s: Ego
Ihoannes qui audiui/ et uidi há(e)c. et
post quam audissem/ et uidissem
cecidi. Ut adorarem ante/ pedes
angeli. Qui mihi h(a)ecos tendebat./
et dixit mihi: uide ne feceris:/
O Beato que protege a palavra da
profecia deste livro. Eu, João, que
ouvi e vi isto e depois quem ouvisse
e visse cairia. Para adorar diante dos
pés do anjo que revelou e disse isto
a mim. Veja o que não foi feito.
Segunda coluna, Linha 16/ Fólio 29v, em que temos “Beati”
Latim Português
Beatiquilabantstolas suas/ ut
sitpotestaseorum in lignouit(a)e:/ et
portisintrent in ciuitatem:/
Do Beato que doa as suas roupas
como se o poder dele estivesse na
madeira da vida, e da entrada
penetra na cidade.
Estes exemplos do Commentarium in Apocalipsin demonstram um pouco de
sua dimensão e sua riqueza textual. Nesse sentido, Eco afirma que:
caso se deva falar de código simbólico medieval, é preciso estar consciente
de que se trata de um código denso de bifurcações semânticas, um autêntico
dicionário de sinônimos e homônimos, em que uma imagem pode sugerir muitas
realidades, e uma coisa real, imagens diversas – todas verdadeiras, porque aquilo
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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que Deus tem a dizer é vasto e complexo, toda linguagem é inadequada, e se tenta
aprendê-lo como se pode, um pouco a cada vez.23
Finalizando, o que se interpreta de tudo o que temos dito até aqui, é que
temos um universo no qual as mentalidades estariam se realizando, mas para que
isso se realize precisamos necessariamente de um corpo social que será responsável
pelas atitudes coletivas, pelas rupturas e pelas mudanças que acontecem por
estarem atreladas a uma ideologia ou cadeia ideológica, que por sua vez, forma a
rede que liga o imaginário de um grupo social ao universo mental.
Desta feita, pensamos que um códice iluminado, como o Commentarium in
Apocalipsin, pôde compor um espaço simbólico da realeza ibérica e a difusão de suas
cópias, também iluminadas, pôde construir uma rede de relações políticas e
religiosas entrelaçadas pelo poder régio. Lembrando, como dissemos inicialmente,
que este códice foi escrito sob encomenda régia e é exatamente nesse aspecto que
visualizamos a ligação entre Igreja e monarquia envoltos nesse jogo de poder do
qual falamos.
Sobre a escrita, temos o conteúdo textual do códice em latim que é a língua
da Igreja e das escrituras sagradas. Segundo Bassetto24, o latim eclesiástico
caracteriza-se como herdeiro do literário no que ele tinha de mais útil ou necessário
para a expressão da nova mentalidade cristã, com fonética e estrutura um tanto
diversa da língua literária antiga, além de enriquecida pela contribuição grega e
popular.
Segundo MACHADO FILHO (2004, p.45) a história da escrita latina poderia
ser periodizada em três momentos: o período arcaico (do séc. I aos modelos gráficos
da Grécia); o período clássico (entre os séc. I e II por sua vasta produção literária) e
o período novo, conhecido como período pós-clássico, onde temos as novas grafias
e as modificações pelas quais a sociedade romana estava passando que,
necessariamente, refletiram na língua e no seu uso sistemático.
23ECO, 2013, p. 247. 24BASSETTO, 2001, p. 172-173.
Revista Signum, 2018, vol. 19, n. 1.
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Segundo STORIG (1987) “o latim é a língua da patrística, dos Padres da Igreja
do período romano, e da escolástica, e da filosofia da Idade Média. Tornou-se a
língua da pregação eclesiástica e da liturgia e um instrumento da autoridade papal”.
De acordo com BASSETTO (2001) a língua da Igreja primitiva foi o grego, mas
na busca pela expressão de novos valores, quando a comunidade cristã cresceu,
sentiu-se a necessidade de adequar os textos à língua que a maioria conhecia, o latim
vulgar. Surgiram assim, várias traduções da Bíblia e mais tarde surgiu o latim
eclesiástico, de caráter culto, a língua dos padres da Igreja. Mas o latim eclesiástico
não pode ser confundido com o latim vulgar, pois este era falado e deu origem a
diversos falares que mais tarde viriam a constituir as línguas românicas.
Neste artigo, nos detivemos apenas em algumas características de um
manuscrito medieval, como por exemplo, seu estema, ou seja, a divisão em famílias
das cópias existentes do Commentarium in Apocalipsin. Ainda demonstramos onde
encontrar as diversas cópias espalhadas pelas mais diversas bibliotecas do mundo.
E por fim, demonstramos, por meio de excertos do próprio códice, trechos onde
identificamos a voz daquele que se intitula autor do texto, Beato de Liébana.
Sabemos que muito ainda há que ser estudado a respeito desse códice, como
por exemplo, o estudo da estrutura de seu texto escrito em latim eclesiástico do
século XI, o estudo de cada um dos doze livros que compõem o códice, o estudo
discursivo existente nas vinte e quatro tábuas genealógicas da ascendência de Jesus
Cristo que estão dispostas no início do códice e muito mais. Deixo, aqui, esta
provocação para novos estudos.