homero num manuscrito inÉdito i

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HVMANITAS Vol. XLVI (1994) MANUEL DOS SANTOS ALVES Universidade do Minho HOMERO NUM MANUSCRITO INÉDITO i Tu leste a Ilíada? — Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada. Os olhos do meu príncipe fusilaram. — Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista, um desavergonhado dum sofista, que se gabava de não ter lido a Ilíada? Não. — Ergueu a mâo e atirou-lhe uma bofetada tremenda. Eça de Queirós, A Cidade e as Serras Encontram-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, no espólio literário de Eça de Queirós, sob a cota Esp. I/253-B, um manuscrito inédito, composto de 4 cartões de 11,5 X 15 cm. (segundo a ficha respectiva), todos escritos a lápis, apenas no anverso, excepto o ter- ceiro, escrito também no verso. A numeração — apócrifa — é a seguinte: 21, 22, 23, 23v, 24 2. O primeiro, o n.° 21, não contém mais que um esboço de argu- mento de narração e não se reveste de qualquer interesse para os objectivos deste trabalho. Já o mesmo se não pode dizer do segundo, i Este texto é uma refundição do Cap. I da Segunda Parte da nossa disserta- ção de Doutoramento intitulada Eça de Queirós sob o Signo de Mnemósine: Inter- texto, Interdiscwso, Dialogismo (de Tróia ao Lácio), vols. I-III, (policop.), Braga, Universidade do Minho, 1992, pp. 465-550). O itálico que se encontra no texto é, em geral, da nossa responsabilidade. Os casos em que o não é, são raros e de não difícil identificação. 2 Este manuscrito, que, como se pressupõe, conhecemos de visu, não faz parte do corpus estudado por Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989). Aliás, já nos tínhamos debruçado sobre ele, antes do aparecimento desse impor- tante trabalho de investigação.

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Page 1: HOMERO NUM MANUSCRITO INÉDITO i

HVMANITAS — Vol. XLVI (1994)

M A N U E L D O S S A N T O S A L V E S

Universidade do Minho

HOMERO NUM MANUSCRITO INÉDITO i

— Tu leste a Ilíada? — Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada. Os olhos do meu príncipe fusilaram. — Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista,

um desavergonhado dum sofista, que se gabava de não ter lido a Ilíada? — Não. — Ergueu a mâo e atirou-lhe uma bofetada tremenda.

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras

Encontram-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, no espólio literário de Eça de Queirós, sob a cota Esp. I/253-B, um manuscrito inédito, composto de 4 cartões de 11,5 X 15 cm. (segundo a ficha respectiva), todos escritos a lápis, apenas no anverso, excepto o ter­ceiro, escrito também no verso. A numeração — apócrifa — é a seguinte: 21, 22, 23, 23v, 24 2.

O primeiro, o n.° 21, não contém mais que um esboço de argu­mento de narração e não se reveste de qualquer interesse para os objectivos deste trabalho. Já o mesmo se não pode dizer do segundo,

i Este texto é uma refundição do Cap. I da Segunda Parte da nossa disserta­ção de Doutoramento intitulada Eça de Queirós sob o Signo de Mnemósine: Inter­texto, Interdiscwso, Dialogismo (de Tróia ao Lácio), vols. I-III, (policop.), Braga, Universidade do Minho, 1992, pp. 465-550). O itálico que se encontra no texto é, em geral, da nossa responsabilidade. Os casos em que o não é, são raros e de não difícil identificação.

2 Este manuscrito, que, como se pressupõe, conhecemos de visu, não faz parte do corpus estudado por Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989). Aliás, já nos tínhamos debruçado sobre ele, antes do aparecimento desse impor­tante trabalho de investigação.

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que apresenta um nexo lógico com os três últimos, e estes referem-se aos três primeiros Cantos da Ilíada. Eis a transcrição:

As lendas são, no espírito, o resíduo dos pensamentos exactos, das reali­dades intelectuais das gerações passadas. O que foi lei governando a alma, num século, torna-se, com o andar dos tempos, lenda, divertindo a imagi­nação. A imaginação é o depósito dos raciocínios escoados.

Este pequeno texto, de natureza prefaciai, constitui um documento valioso quanto ao modo de recepção de Homero na obra de Eça de Queirós. O realce nele concedido ao papel da imaginação aparece na obra editada do escritor português, por exemplo, no prefácio de O Mandarim (1880) e no texto «Positivismo e Idealismo» (1893), onde, preconizando um são equilíbrio entre razão e imaginação, chega a comparar a segunda a «essa Circe adorável que transforma os seus amigos, não em porcos — mas em deuses» (1909: 265). Esta alusão à metamorfose operada por Circe no Canto X da Odisseia mostra bem que, do epos homérico, o que mais lhe seduzia a sensibilidade artística era a porção de sonho que nele encontrava, conforme também se pode ver em certos passos da sua Correspondência e de A Cidade e as Serras. Contista exímio e imaginativo, considerava Homero sobre­tudo como um efabulador de histórias para crianças. Em carta de 8/2/1895 — bem dentro da «fase homérica» — chega mesmo a dizer (1925: 258-259): «Positivamente, contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o entendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos da carochina» 3.

Esta concepção lúdica do universo épico de Homero sobressai ainda mais do autógrafo que se segue imediatamente ao anterior e passamos a transcrever:

* 23. Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze, com o arco de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre o vasto acampamento dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e negros, no resplendor da lua, e coroados de escudos de bronze. O coração do Deus estava irritado-—porque o seu xacerdote Crises, o que no templo de Tenedos, entre os loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas das cabras, fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios, que lhe arreba- ' tara a filha, Criseis, virgem forte de seio resplandecente. E o sacrificador,

3 Taine já se tinha exprimido em termos muito semelhantes a propósito das fábulas de La Fontaine a quem ele chamava o Homero gaulês : «Ce sont de petits contes d'enfants, comme l'Iliade et 1' Odyssée, qui sont de grands contes de nourrice» (1860: 47).

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1. EI/253-B, fól. [22]

EI/253-B, fól.-[23]

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Ëlllililfllspi

'•ki'0

3. EI/253-B, fól. [23v],

4. EI/253-B, fol. [24].

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erguendo-se (*23v) junto ao mar ressoante, chamara Apolo Vingador. E o Deus viera, dos cimos olímpicos, com a aljava cheia, que, sobre as espá­duas do Deus, fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas estro-peadas. Primeiro ele ferira os cavalos, que, amarrados junto à tenda, comiam o lótus; depois ferira os molossos rápidos; por fim, trespassava os guerreiros, que tombavam, fazendo na areia um ruído de armas caídas. Sem cessar, as longas flechas silvavam através do acampamento: (* 24) agachados à som­bra das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia, os homens fortes, com os longos cabelos sob a face, e olhos no solo, sentiam o coração tremer; os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente, com as rodas enter­radas na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem cessar, entre os gritos de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta, as piras fumegavam, carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar ressoava em cadência4.

Para além da presença de Homero, o manuscrito constitui, pelas rasuras, emendas e entrelinhas que apresenta, um documento em nosso entender valiosíssimo quanto ao espaço percorrido pelo escri­tor entre o ante-texto e o texto, e também quanto à luta que teve de travar, ao ver-se apanhado nas malhas da intertextualidade 5. É que não se trata apenas de uma obra-prima de compositio: sem prejuízo da originalidade, é também um produto acabado de imitatio intertextual6.

4 Esta transcrição que, sem margem para graves erros, podemos considerar definitiva, é o resultado da leitura pouco fácil de um texto ainda menos legível em microfilme que no original ou em fotocópia. Procurámos torná-la tão fiel quanto possível ao texto original, incluindo a pontuação tão peculiar de Eça de Queirós em certos contextos, neste como noutros manuscritos do escritor. Mas só com esforços repetidos nos foi possível ir eliminando, uma a uma, as várias dúvidas sus­citadas pela primeira leitura. A única lectio que durante mais tempo resistiu a uma conclusão definitiva, foi a forma «rachavam». Porém, depois de um reexame atento da letra de Eça de Queirós, e atendendo ao contexto verbal em que tal lexema se insere, não vemos qualquer outra alternativa plausível. O Leitor, porém, poderá fazer a sua verificação no texto que deixamos reproduzido em fac-simile, no final deste trabalho.

5 Tal autógrafo terá feito parte de uma peça narrativa de mais longo fôlego. Tratar-se-ia, com toda a probabilidade, das «Viagens de Ulisses», que Eça de Queirós se havia encarregado de escrever para a projectada revista O Serão, nos números 2-6, conforme se pode 1er em outro manuscrito inédito, que faz parte do espólio de Eça de Queirós (Esp. 1/276). Esse abortado projecto não foi inútil : dele e do ciclo homé­rico a que pertence, viria a sair essa pequena jóia literária que é o conto «A Perfeição», elaborado a partir principalmente do Canto V da Odisseia, mas também de outros Cantos dessa mesma epopeia e da Ilíada. Tal conto, já o escritor o havia designado sob o título significativo de Ulisses. Como estes textos, também o presente manus­crito é o fruto de uma leitura atentíssima dessas epopeias homéricas.

6 O Leitor menos familiarizado com a teoria da intertextualidade, poderá 1er com proveito o Cap. 3, «Tradition and Poetry» de W. F. Jackson Knight (1966: 99-142).

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Contudo, e dado que Eça de Queirós desconhecia a língua de

Homero, no confronto a fazer, o texto mediador tem prioridade sobre

o texto grego. E o texto mediador (mesotexto), como se poderá

depreender sem grande esforço no decorrer deste trabalho, é precisa­

mente a tradução da Ilíada por Leconte de Lisle (1818-1894), um dos

grandes representantes da escola da arte pela arte e, num plano mais

geral, da tendência artiste que caracterizou a literatura francesa da

segunda metade do século xix 7. A sua obra, bem conhecida de Eça

de Queirós, funcionou para o escritor português como u m a das prin­

cipais janelas através da qual ele pôde contemplar e admirar a beleza

clássica, que lhe impregnou o imaginário de motivos, temas e reminis­

cências de matriz greco-latina.

Vamos, pois, proceder a uma análise intertextual, pondo em

confronto o texto queirosiano e a tradução da Ilíada por Leconte de

Lisle. Quanto ao primeiro, e por conveniências de método, vamos

7 Com efeito, esse mestre do parnasianismo francês não foi apenas o ídolo do jovem Fradique, «artista nobremente e perpetuamente insatisfeito», «o cinze-lador das Lapidarias» (1889:1, p. 273), notáveis por «uma forma soberba de plasti­cidade e de vida» (ibid., p. 263), compostas «na idade em que se imita sobre versos de Leconte de Lisle» (ibid., p. 278); nem a sua produção original se limitou a cerca de uma vintena de textos de doutrina estética, ou à forma impecável e marmórea dos Poèmes Antiques (1852), das Poésies Barbares (1862) — refundidas e aumen­tadas nove anos depois sob o título de Poèmes Barbares (1872) —, dos Poèmes Tra­giques (1884), de belas composições «helénicas», como «Niobé», «Khiron», «Hélène», «Hylas», «Thyoné», «Glaucé», «Klytie», «Kybèle», «Pan», «La Source», «Le Réveil d'Elios», «Hypatie», «La Robe du Centaure», «Chant Alterné», «Vénus de Milo», «Les Éolides», Les Erinnys (1873), VApollonide (1888) — todo um acervo de reali­zações poéticas por detrás das quais se perfilam os grandes vultos da épica, da lírica e da tragédia gregas; nem foi somente o artista de «Études Latines» que nos pôs em contacto com Horácio, Propércio, Teócrito e Virgílio. Não. Para além desta obra original em prosa e em verso, que se pode 1er nas excelentes edições de E. Pich (1971, 1976, 1977, 1977a e 1978), também autor de uma valiosa dissertação sobre a sua criação poética (1975), há outra faceta em Leconte de Lisle, ainda mais margi­nalizada pelos estudiosos: referimo-nos à sua actividade de tradutor. E, neste, aspecto, constitui, porventura, caso único, tratando-se de autores greco-latinos. Traduziu para prover à sua subsistência, por encomenda do célebre editor Lemerre, os Idílios de Teócrito e as Odes Anacreônticas (1861), Hesíodo, Hinos Órficos, Bíon, Mosco, e Tirteu (1869), Esquilo (1872), Horácio (1873), Sófocles (1877) e Euripides (1885). O seu nome está ainda ligado às traduções de mais dois autores, que não chegou a realizar: Virgílio e Aristófanes. Mas, quando, em carta a Alberto de Oliveira (6/8/1894), Eça de Queirós se assume como «um fiel ledor de Homero» (1925: 253), é sem dúvida na tradução dos Poemas Homéricos por Leconte de Lisle que está a pensar: Ilíada (1867), Odisseia, Hinos, Epigramas e Batracomiomaquia (1868).

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dividi-lo nos seguintes cinco fragmentos, a que correspondem out ros

tantos motivos: as flechas de Apolo, a ofensa de Agamémnon, a súplica

de Crises, o flagelo da peste e as vítimas do castigo.

1. As Flechas de Apolo

Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze, com o arco de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre o vasto acam­pamento dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e negros, no res­plendor da lua, e coroados de escudo de bronze.

Os elementos sublinhados são a tradução literal dos seus corres­

pondentes, feita a partir da tradução do Leconte de Lisle. C o m

efeito, o sintagma preposicional «durante nove dias» deriva do con­

junto «depuis neuf jours»; a proposição «Febus Apolo arremessava

flechas sobre o vasto acampamento dos Acaios» 8 resulta da associação

de microstruturas, como «Phoebos Apollon» (p. 2), «lança... des

flèches» (p. 3), «vers le vaste» (p. 15), «camp» (p. 175) e «des Akhaiens»

(p. 15).

Como estamos a ver, este primeiro período gramatical, centrado no

motivo das flechas, constitui um mini-quadro descritivo, que nos repre-

s Este lexema, «Acaios», constitui só por si uma espécie de bilhete de identi­dade ou deíctico da matriz intertextual de que derivou o texto de Eça de Queirós. Não se encontra em qualquer outro autor português, nem em qualquer léxico ante­rior ou contemporâneo de Eça de Queirós e, quanto aos posteriores, apenas o vimos dicionarizado pelo lexicógrafo José Pedro Machado (1948, 1967 e 1981). Quanto aos léxicos estrangeiros, também em nenhum deles se encontra lexema algum de que ele possa ter provindo. E, falando de escritores, apenas o empregou precisa­mente o referido Leconte de Lisle, que levou até às últimas consequências a remo­delação ortográfica dos nomes próprios, imposta pelo aprofundamento dos conheci­mentos mitológicos, religiosos e científicos da Antiguidade Greco-Latina. Assim, chegou mesmo ao ponto de transcrever o etnónimo helénico ''Ayaioi por «Akhaiens», em detrimento da forma «Achéens», já inserida no sistema linguístico francês. Ousa­dias como esta concitaram contra ele, nos meios científicos e literários, acesas polé­micas expressas em comentários para todos os gostos. Pois foi desse bizarro invento filológico, empregado ad nauseam por Leconte de Lisle nas suas traduções da Ilíada (609 ocorrências) e da Odisseia (126) que Eça de Queirós formou, com impecável rigor etimológico, o vocábulo «Acaios» (textualmente, no manuscrito: «Achaios»), cuja massa fónica o torna preferível a «Aqueus» e digno de figurar nos dicionários de português, até porque não se trata de um simples hápax legómenon inédito, pois já se encontra num outro texto de Eça de Queirós publicado em 1896, consagrado à memória de Antero de Quental, «Um Génio que Era um Santo» (1896: 497), redi­gido com toda a certeza pela mesma altura do presente manuscrito e derivado, sem dúvida, do mesmo hipotexto.

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senta uma situação bélica. Nele acumulou o escritor o maior número possível de pormenores que, tendo como único suporte verbal o iterativo «arremessava», aparecem expressos em estilo predominantemente nominal, mais apto para funções descritivas. E já por aqui se vê o espírito criativo de Eça de Queirós, que recusa hipotecar a textos alheios os seus próprios códigos técnico-literários. É que, na tradução de Leconte de Lisle, a descrição da guerra, ou seja, do flagelo da peste, encontra-se já bem no interior da «Rhapsodie I», a uma distância considerável do início do poema. Pois foi precisamente por aí que ele começou. Para isso, retirou desse contexto o sintagma «Depuis neuf jours» (p. 3) com que abria o parágrafo continuado em «...les flèches divines sifflaient à travers l'armée» — e deslocou-o, traduzido à letra {«Durante nove dias»), para o início de todo o seu texto, posição que lhe confere um realce ainda maior.

Outra inovação reside na posição de combate tomada por Apolo. Enquanto na tradução de Leconte de Lisle ele aparece sentado — «assis à l'écart» (p. 3) —, no texto de Eça de Queirós, combate de pé, o que sugere a ideia de uma intervenção mais activa. Esta inovação é tanto mais significativa, quanto é certo que no manuscrito se pode 1er, sob rasura, o lexema «sentado», o que implica um atitude mais activa do escritor face ao hipotexto, feita de reflexão, de hesitações, de luta, de recusa e de fuga, numa palavra, o nítido propósito de inovar. O sin­tagma foi sem dúvida sobredeterminado pelo seu correspondente daquele passo da «Rhapsodie V» : aí, os Aqueus esperavam os Troianos «de pied ferme, semblables à ces nuées que le Khrônion arrête à la cime des montagnes, quand le Boréas et les autres vents violents se sont calmés, eux dont le souffle disperse les nuages épais et immobiles. Ainsi les Danaens attendaient les Troiens de pied ferme» (p. 90). Também nas artes plásticas o deus deifico é representado a combater de pé.

Desse mesmo contexto, e como se pode ver pelo sublinhado, derivou também o sintagma preposicional «sobre nuvens», sem dúvida sobredeterminado pelo elemento «nuées», que aparece frequentemente na tradução francesa em alternância com «nuages». Como, porém, Apolo é um deus e não um guerreiro qualquer, à sua figura foram associados os metais preciosos, como emblemas nobilitantes do herói homérico. Ora eles pulalam em grande profusão ao longo de toda a Ilíada, cujo carácter bélico fazem sobressair, em numerosos sintagmas, como: «sceptre d'or» (pp. 2, 12, passim), «sceptre aux clous d'or» (p. 8), «throne d'or» (p. 19); «l'arc d'argent» (p. 3, 14, 41, passim), «épée aux clous d'argent» (p. 21), «pied d'argent» (p. 17); 26), «l'airain etincelant des hommes qui marchaient» (p. 33). Mas nem sempre os elementos apare-

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cem separados: por vezes ocorrem em coordenações, como: «nef d'or et d'airain» (pp. 154 e 158), «j'y conduirai l'or et le rouge airain» (p. 160). «riche en or et en airain» (p. 180), «sceptre d'or et d'airain» p. 409). A partir deles, Eça de Queirós formou belas associações com base na tríade ouro/prata/bronze, tornada assim comum aos dois intertextos, como marca de intertextualidade. Tal a génese do con­junto seguinte: «sobre nuvens cor de ouro e bronze». Embora nele o refe­rente do metal seja, como se vê, a cor e não a matéria dos objectos, nem por isso a segunda deixa de estar bem presente, porque intima­mente associada à primeira. Trata-se, além disso, de descrever o espectáculo de uma cidade sitiada, defendida por um numeroso exér­cito de guerreiros, como se pode ver pelo pormenor descritivo com que termina o parágrafo: «muros de Tróia ... coroados de escudos de bronze». Organizados em multidões compactas, de onde sobressaía o brilho metálico das múltiplas armas ofensivas e defensivas, os dois exércitos, pese embora o expressionismo da hipérbole, ofereciam aos olhos do espectador a imagem plástica de «nuvens cor de ouro e bronze». Sobre elas se levantava a figura protectora de Apolo, irritado contra os «Acaios». Outro conjunto digno de nota, é o sintagma «com o arco de prata na sua armadura». Interligado aos anteriores pela mesma isotopia do metal, aparece entre linhas no manuscrito e é, como se pode ver com clareza, uma tradução literal do conjunto correspondente «portant Vare d'argent»; este, na tradução francesa, aparece associado ao sintagma «sur ses épaules», que Eça de Queirós reservou para outro contexto e substituiu pela expressão «avec le plein carquois» (p. 3), em que decalcou o elemento «na sua armadura».

Quanto ao mitónimo Febus Apolo (no manuscrito: Phebus Apollo), é uma evidente transliteração de «Phoibos Apollon» que se pode 1er no texto de Leconte de Lisle, mas não sem a interferência da forma latina Phoebus Apollo. Optando pela forma alatinada, que, aliás, figura também em alguns dicionários portugueses do seu tempo 9, Eça de Queirós pretendeu, sem dúvida, preservar o aspecto exótico, original do mitónimo, tal como se encontra no hipotexto, obedecendo, por outro lado, a uma predilecção bem sua por nomes próprios de forma latina: sendo menos usados, tornavam-se menos banais e funcionavam como reservas estilísticas a que a subtileza artística do escritor não era indiferente.

9 Por exemplo, o Dicionário de Frei Domingos Vieira (1873), editado por Adolfo Coelho e Teófilo Braga, regista a forma «Phebus» ao lado de «Phebo».

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No que diz respeito ao lexema verbal («arremessava»), é digna de nota a manutenção do imperfeito que se lê no hipotexto francês e é mais apta para traduzir o carácter durativo de uma situação sem saída. Mas, em vez da forma «silvavam», correspondente literal de «sifflaient» reservada para outro contexto — «as longas flechas silvavam através do acampamento» —, Eça de Queirós optou, numa primeira fase, por um outro lexema verbal, «lançava», correspondente à proposição hipotex-tual «lança une flèche», de que está ausente o aspecto iterativo. Numa segunda fase, rasurou, no manuscrito, os elementos «lançava as suas» e escreveu a forma «arremessava» entre linhas, para, finalmente, nos deixar a redacção definitiva «arremessava flechas».

«Sobre o vasto acampamento dos Acaios»: trata-se de uma tra­dução literal da.série sintagmática «vers le vaste armée des Akhaiens» (p. 15), de que existem numerosas ocorrências ao longo do hipotexto francês, mas cujo lexema «armée» foi preterido em benefício do monossí­labo «camp» (pp. 159, 175, passim), que foi traduzido primeiro por «campo» (rasurado no manuscrito) e depois por «acampamento» (inse­rido entre linhas, tal como o epíteto «vasto», que o precede). Esta substituição do lexema esperado, «exército», por «acampamento», ou seja, de um elemento que releva do animado por outro que releva do inanimado —, não é um mero capricho : foi imposta pela própria estru­tura do texto, que determinou a deslocação para a parte final, do motivo das vítimas humanas de Apolo : é aí que a gravidade da situação atinge o seu clímax. Esta importante modificação revela bem a presença de uma consciência estruturante, de uma personalidade literária forte, em luta permanente com textos alheios que quase sempre consegue subju­gar. Esta concepção agónica, de que nem sempre é alheia a «anxiety of influency» (Bloom, 1973), constitui para nós um dos aspectos mais interessantes da fenomenologia da intertextualidade em Eça de Queirós,

Também o elemento locativo do cenário — «defronte dos muros de Tróia» — se deve explicar em relação com o hipotexto francês, onde se podem 1er muitas ocorrências de sintagmas, como «devant Troiè» (p. 157), «devant la ville» (p. 397), bem como os repetidos lexe-mas «mur» (p. 131), «murs» (p. 397), e «murailles», elemento inte­grante de epítetos homéricos como «Troiè aux fortes murailles» (p. 5), «Uios aux fortes murailles» (p. 23) e outros estereótipos de estrutura similar, bem próprios do texto homérico.

- A presença, nestes conjuntos, do lexema «fortes» sobredeterminou, sem dúvida, o emprego do adjectivo «pesados», que lhe é semântica-

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mente próximo, mas mais adequado para qualificar referentes inani­mados, como o do significante «muros». Por isso, optou pelo segundo, reservando o primeiro para referentes animados, como se pode 1er mais adiante nos conjuntos «virgem forte» e «homens fortes». Toda­via, para esta preferência contribuiu também decisivamente a presença, na tradução francesa, do qualificativo «lourds» em sequências sintagmá­ticas como «lourds de cadavres» (p. 3), «lourdes Keres» (p. 4), «lourd fardeau» (p. 6), «main lourde» (p. 8), «bouclier vaste et lourd» (p. 55), «lance lourde, grande et solide» (p. 144), etc.. Note-se ainda, que esta opção não foi feita logo de início, mas após um período de reflexão, pois o epíteto aparece entre linhas, como alternativa a «altos», rasurado no manuscrito e influenciado pelas expressões «hautes citadelles» (p. 23), «hautes tours» (p. 56), «haute citadelle d'Ilios» (p. 126), «haute Ilios» (p. 169) e outras. Porém, aquele adjectivo («altos») não aparece sozinho, mas emparelhado com «negros» e como ele separado do substantivo a que se refere, por travessão, em posição de relevo — «altos e negros». Este último, numa primeira fase, precede, no manuscrito, o substantivo «muros»; depois, foi rasurado e puxado para a frente, para emparelhar com o primeiro («altos», depois rasurado, como dissemos, e substituído por «pesados»). Ele foi sobredeterminado por uma longa série de conjuntos que aparecem na tradução de Leconte de Lisle, como «noire colère» (p. 4), «nef noire», (pp. 11, 14, 16, passim), «noire mort» (pp. 43, 44, 147, etc.), «noire poussière» (p. 45), «noires phalanges» (p. 66), «sang noir» (p. 150) e muitas outros exemplos não menos pertinentes. Este duplo qualificativo — «pesados e negros» — é imadiatamente seguido do conjunto sintagmático «no resplendor da lua», numa oposição contrastiva — escuridão nocturna vs brilho lunar — que mais faz sobressair, aos olhos do leitor, a imponência homérica dos muros de Tróia. Tal oposição encontra-se largamente representada ao longo de toda a Ilíada. Particularmente elucidativo é o passo seguinte (p. 149):

Et les Troiens, pleins d'espérance, passaient la nuit sur le sentier de la guerre, ayant allumé de grands feux. Comme lorsque les astres étincellent dans VOuranos autour de la claire Sélèné et que le vent ne trouble point l'air, on voit s'éclairer les cimes et les hauts promontoires et les vallées, et que l'Aithèr enfin s'ouvre au faîte de FOuranos, et que le berger joyeux voit luir tous les astres, de même, entre les nefs et l'eau courante du Xantos, les feux des Troiens bril­laient devant Ilios. Mille feux brillaient ainsi dans la plaine; et près de chacun, étaient assis cinquante guerriers autour de la flamme ardente. Et les chevaux mangeaient l'orge et l'avoine, se tenaient auprès des chars, attendant Eôs au beau thrône.

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Como se vê, esta bela paisagem nocturna é suficientemente rica de elementos e motivos, para inspirar a Eça de Queirós a sequência «no resplendor da lua», cujo lexema «lua» aparece como alternativa de uso corrente para o rebuscado «Selene» (correspondente a «Sélèné»), vocábulo que, neste contexto, repugnaria, pelo seu sabor arcádico, ao bom gosto do escritor.

Por outro lado, o referido conjunto sintagmático, «no resplendor da lua», ao situar os combates num contexto nocturno, introduz no hipertexto queirosiano uma nota de transgressão e ruptura, relativa­mente ao hipotexto homérico. Com efeito, na Ilíada, não se combate de noite: as noites são para comer, descansar, dormir e (eventualmente) vigiar e espiar o inimigo —, mas não para combater. Numerosos passos do poema, todos interligados pela isotopia da noite, podem documentar essa asserção. O Canto II, por exemplo, abre nestes termos: «Les Dieux et les cavaliers dormaient tous dans la nuit» (p. 21). «Todos», incluindo Agamemnon da parte dos homens, mas excluindo Zeus da parte dos Deuses, a fim de enviar ao Atrida «un Songe menteur» (ibid.), que o induziria a desencadear o ataque. No Canto VII, um dos arautos consegue interromper o duelo entre Ájax e Heitor, dizendo : «Ne combattez pas plus longtemps... voici la nuit, et il est bon d'obéir à la nuit». Heitor concorda e diz (p. 126):

Cessons pour aujourd'hui la lutte et le combat. Nous combattrons de nouveau plus tard, jusqu'à ce qu'un Dieu en décide et donne à l'un de nous la victoire. Voici la nuit, et il est bon d'obéir à la nuit, afin que tu réjouisses, auprès des nefs Akhaiennes, tes concitoyens et tes compagnons, et que j'aille dans la grande ville du roi Priamos, réjouir les Troiens et les Troiennes ornées de longues robes, qui prieront pour moi dans les temples des divins.

N o Canto VIII, são os Aqueus que, prestes a ser derrotados,

desejam ansiosamente a noite benfazeja, que venha interromper o

combate (p. 147):

Et la brillante lumière Hélienne tomba dans l'Okéanos, laissant la noire nuit sur la terre nourricière. La lumière disparut contre gré des Troiens, mais la noire nuit fut la bienvenue des Akhaiens qui la désiraient ardemment.

Intervém então Heitor, para dizer aos Troianos (p. 147):

J'espérais ne retourner dans Ilios battue des vents qu'après avoir détruit les nefs et tous les Akhaiens; mais les ténèbres sont venues qui ont sauvé les Argiens et les nefs sur le rivage de la mer. C'est pourquoi, obéissons à la nuit noire, et préparons le repas. Détalez les chevaux aux belles crinières et donnez leur la nourriture. Amenez promptement de la Ville des boeufs et de grasses

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brebis, et apportez un doux vin de vos demeures, et amassez beaucoup de bois, afin que, toute la nuit, jusqu'au retour d'Eôs qui naît le matin nous alumions beaucoup de feux dont l'éclat s'élève dans l'Ouranos et afin que les Akhaiens chevelus ne profitent pas de la nuit pour fuir sur le vaste dos de la mer.

Como se vê por estes exemplos, na Ilíada, durante a noite, os combates são interrompidos, enquanto, no hipertexto queirosiano, eles prosseguem. Nesta perspectiva, d pormenor descritivo «no res­plendor da lua» não se encontra apenas em relação contrastiva com o par adjectival «pesados e negros» (que, já por s>, apontam para o topos da noite). Para além disso, afecta não só todo o parágrafo inicial, centrado, como vimos, na situação presente, mas também o longo parágrafo final em que, após o patêntese analéptico, essa mesma situa­ção é retomada. E é precisamente neste último parágrafo, onde a expressão gerundiva «brilhando vagamente» confirma o contexto nocturno da situação bélica, que aparece o motivo da sepultura dos cadáveres. Ora o cumprimento deste piedoso dever é, no Canto VII, efectuado de noite, como se pode depreender do passo seguinte (p. 130):

De leur côté, les Akhaiens aux belles knémides amassèrent les cadavres sur le bûcher, tristes dans leur coeur. Et, après les avoir brûlés, ils s'en retour­nèrent vers les nefs creuses. Eôs n'était point levée encore et déjà la nuit était douteuse quand un peuple des Akhaiens vint élever dans la plaine un seul tombeau sur l'unique bûcher.

Assim, enquanto em Homero o motivo da sepultura aparece separado dos combates, em Eça de Queirós, os dois motivos surgem intimamente associados, do que resulta uma maior concentração do fragmento narrativo. Esta sobreposição só vem valorizar o hiper­texto queirosiano, sem qualquer prejuízo da coerência narrativa ou da ilusão referencial. Com efeito, este princípio não é posto em causa com a circunstância introdutória, «Durante nove dias», que remete para a contagem corrente do tempo do calendário, sem implicar que o combate se realize apenas de dia para ser interrompido durante a noite, como na Ilíada. Trata-se, além disso, de um combate sui generis — uma espécie de monólogo sem réplica, desencadeado por um deus e não por homens. Deste modo, foi privilegiado o cenário nocturno, já largamente representado em Homero. Aos exemplos já apontados poderíamos acrescentar outros, como aquela grandiosa comparação muito admirada pelos homeristas, em que Apolo «allait, semblable à la nuit» (p. 3), inúmeros estereótipos, como este, «Quand Hélios tomba et que les ombres furent venues» (p. 15) ou estoutro, «quand Eôs,

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aux doigts rosés née au matin, apparut» (ibid.), ou ainda aquela per­gunta de belo efeito que, no Canto X, Nestor dirige a Agamemnon, vagueando pela noite, insone, preocupado com a sorte do seu povo: «Pourquoi errez-vous seuls auprès des nefs, à travers le camp, au milieu de la nuit divine?» (p. 175). Eça de Queirós era demasiado sensível aos belos efeitos destes e de outros passos da Ilíada, para não dar ao espectáculo bélico o realce que merecia. E o facto de, diferentemente do hipotexto homérico, o combate se travar de noite, «no resplendor da lua», «defronte dos muros de Tróia — «pesados e negros» —, confere à descrição uma força épica que, só por si, bastaria para atestar a originalidade do escritor português. E, ante a imagem homérica de uma cidade sitiada como Tróia, cujos muros estavam guardados por um exército fortemente armado, não quis terminar o seu belo parágrafo introdutório, sem este acrescento ornamental — e bem queirosiano—, que lhe prolonga o fôlego: «coroados de escudos de bronze». A proliferação, na tradução de Leconte de Lisle, de lexe-mas como «boucliers» e «airain», constitui, como é óbvio, uma expli­cação genética suficiente para este derradeiro pormenor descritivo.

Achámos bem reservar para o fim desta primeira parte, uma das mais significativas modificações introduzidas no hipertexto queirosiano, face ao hipotexto homérico. E que neste há dois aspectos sobrepostos ou fundidos, que convém distinguir: a peste como motivo e o espectá­culo da guerra como descrição alegórica da peste. Esta aparece designada, na tradução de Leconte de Lisle, como «mal mortel» (p. 1) e «contagion» (p. 3), o que lhe confere o estatuto de único e verdadeiro referente, embora quase oculto sob as aparências de uma configuração bélica. Com efeito, armado de flechas, o deus Apolo persegue o exército dos Aqueus, que tombam aos milhares no campo de batalha. E é mesmo por isso que, em etimologias fantasiosas, de tipo cratílico, essencialista e especulativo, registadas em dicionários de mitologia e de que a obra de Santo Isidoro de Sevilha está repleta, aparece o nome de Apolo ('Anólkov), ligado ao verbo ãnóXXvfM, «destruir». Apolo seria esse deus funesto (ovkioç), que, lançando ao longe os seus dardos (éxrjfióÃoçJ, com o seu arco de prata (âgyvQÓtoioç), espalha a morte e o terror. Assim, esse quadro alegórico, em que o motivo real se esconde sob o motivo aparente, muito contribui para o reforço da unidade temática da Ilíada como poema bélico. Para tomarmos cons­ciência mais nítida desse efeito estético, bastaria referir dois lugares paralelos : um pertencente ao domínio do mito e também ligado ao deus Apolo — o Rei Édipo de Sófocles; o outro, pertencente ao domínio

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da história — a peste de Atenas, tal como aparece descrita por Tucí-dides no Cap. II da História da Guerra do Peloponeso. Num e noutro, o flagelo da peste surge como único e verdadeiro motivo central, que, em Homero, embora presente, está oculto sob as aparências de uma configuração bélica. Ora Eça de Queirós, apercebendo-se desta duali­dade, que seria prejudicial à unidade da narrativa, suprime pura e simplesmente o motivo da peste, já muito apagado no hipotexto homé­rico como descrição alegórica, e centra a narração no espectáculo bélico, que perde o seu valor de alegoria, para tornar-se único referente centra­lizador do discurso. Esta modificação aumentou a coesão unitária do hipertexto queirosiano. . ' ' • ' . .

Resumindo, salientemos as seguintes inovações: A) Quanto à forma do conteúdo: espectáculo nocturno e supressão do motivo da peste; B) Quanto à forma da expressão: derivação tautológica (tra­dução literal de sintagmas e de sequências sintagmáticas) ; estrutura frásica feita à base dos significantes mais expressivos e mais usados ao longo da tradução de Leconte de Lisle.

2. A Ofensa de Agamémnon

Após ter introduzido o leitor na situação presente, Eça de Queirós apresenta, em analepse, a etiologia dela, que passa pela ofensa de Aga­mémnon. Sem abdicar do estilo que tanto o caracteriza, nem por isso deixa de recorrer, quase integralmente, aos significantes concen­trados na tradução de Leconte de Lisle. É o que se pode depreender, num primeiro relance global, do confronto dos dois intertextos seguintes:

A < B

O coração do deus estava irritado —por­que o seu sacerdote Crises, o que no templo de Tenedos, entre os loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas das cabras, fora ofendido por Agamém­non, rei dos Acaios, que lhe arrebatara a filha, Criseis, virgem forte de seio res­plandecente.

...irrité dans son coeur... du dieu (pp. 2-3); parce que l'Atréide avait couvert d'opprobre Khrysès le sacri­

ficateur (p. 1); sur Ténédos... j'ai brûlé pour toi les cuisses grasses des taureaux et des chèvres (p. 2) ; Agamém­non roi des Akhaiens [...] avait enlevé [...] sa fille (p, 2), Khryséis aux belles joues (p. 10).

Tal como se apresenta, e com o auxílio do nosso sublinhado, este segmento não oferece quaisquer dúvidas sobre o referente inter-textual. É que, ao contrário dos segmentos textuais acima analisados,

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neste os elementos da intertextualidade não se encontram dispersos mas concentrados, pois pertencem ao mesmo contexto, tanto em Eça de Queirós, como na tradução de Leconte de Lisle —• Canto I («Rhap­sodie I») ; //. w . 9-42). É o que se verifica com a expressão da cólera de Apolo — «O coração do Deus estava irritado» —, correspondente a proposição participial homérica, «irrité dans son coeur» (p. 1), que tem por sujeito «Phoibos Apollon». Para além da evidente tauto­logia, sobre ele operou Eça de Queirós uma modificação substancial. Com efeito, tanto no texto grego como na tradução de Leconte de Lisle, o sujeito de atribuição é, não a parte do todo, o órgão, a sede, mas o todo, o indivíduo, a pessoa, a hipóstase. A própria língua grega, inclusive o grego de Homero (cf. Chantraine, 1981: 46-49), confirma com clareza esta ideia, ao exprimir a parte do todo pelo chamado acusativo de relação, reservando para o todo a função de sujeito gra­matical. Assim se compreende melhor porque é à filosofia grega que remonta o consabido princípio segundo o qual actiones sunt supposi-torum. Desta maneira, aquilo que, segundo as gramáticas gregas, se costuma chamar «acusativo de relação», traduz-se normalmente por um complemento circunstancial, como se vê na tradução de Leconte de Lisle, «irrité dans son coeur». Eça de Queirós subverte o princí­pio, destinando a função de sujeito, não ao todo — como no original grego e sua tradução francesa —, mas à parte, ao órgão desse todo e sede do sentimento de cólera: «O coração do Deus estava irritado». Como se vê, o elemento «Phebus Apollo», que, em posição forte, já comandava todo o longo parágrafo anterior, é gramaticalmente relegado para plano secundário: não só deixa de ser sujeito, mas é substituído pelo substantivo comum, «Deus» (embora com maiús­cula), para desempenhar a função de complemento determinativo. Com estas transformações de efeitos surpreendentes, conseguiu Eça de Queirós imprimir à frase um toque de originalidade que a situa a um nível muito superior ao da tradução francesa. Ao mesmo tempo, não tendo retomado o sujeito gramatical do primeiro parágrafo, evitou a desagradável monotonia que a repetição — explícita ou implícita — do mesmo sujeito viria, com toda a certeza, a provocar.

Após esta proposição inicial sobre a irritação de Apolo, segue-se uma longa explicação etiológica, salientada pelo travessão e intro­duzida pela conjunção causal, tradução anódina da locução equivalente «parce que». Continuando a servir-se da tradução de Leconte de Lisle como matriz da sua criação artística, substituiu a forma activa da pro­posição francesa: «l'Atréide avait couvert d'opprobre Khrysès le sacri-

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ficateur»; daqui derivou a proposição seguinte: «porque o seu sacerdote Crises ... fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios». Como é óbvio, modificações como estas não são irrelevantes. A forma passiva faz subir o «sacerdote Crises» a uma posição de destaque, à cabeça da proposição, e aproxima-o de Apolo, do «Deus» que se encontra no princípio da frase e cujas relações de afecto e estima são sublinhadas pelo possessivo «seu», do sintagma «seu sacerdote». O segundo lexema surge aqui como alternativa a «sacrificador», correspondente a «sacrificateur», elemento que é reservado para outro contexto, mas que se encontra implícito na longa expansão que se segue e realça ainda mais a importância de Crises e a gravidade da ofensa: «... o que no templo de Tenedos, entre loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas das cabras ...» (cf. 77. 1.41).

É curioso notar como esta expansão narrativa é formada quase integralmente por elementos transpostos de um género de discurso totalmente diferente, que valerá a pena transcrever, para melhor apreen­der as modificações operadas (p. 2):

— Entendez-moi, Porteur de l'arc d'argent, qui protèges Khrysè et Killa, et commandes fortement sur Ténédos, Smintheus! Si jamais j'ai orné ton beau temple, si jamais j'ai brûlé pour toi les cuisses grasses des taureaux et des chèvres, exauce non voeu: que les Danaens expient mes larmes sous tes flèches!

Como se vê, trata-se de um género particular do discurso rela­tado — a súplica (cf. //. 1.37-42). Eça de Queirós eliminou-o, ou, se se preferir, transformou-o em discurso narrativizado (Genette, 1972: 191 sqq.), aproveitando os elementos que sublinhámos no texto e rejeitando todos os outros. E já este contraste entre o que escolheu e o que rejeitou, nos dá uma ideia aproximada do seu fino tacto artístico. O estilo directo não poderia ter cabimento numa descrição compacta, em que a fuga à dispersão se revela como um dos maiores esforços do escritor. Daí a eliminação das marcas da linguagem apelativa, como os deícticos de segunda pessoa, as formas do imperativo e os voca-tivos; e igualmente as da linguagem emotiva: deícticos e formas verbais da primeira pessoa, as exclamações, as repetições anafóricas «si jamais ... si jamais», e, enfim, aquele acervo de elementos pertencentes à retórica do eu, em que se pode incluir, no presente contexto, a sobrecarga de lexemas maiusculados, como os toponímicos «Khrysè», «Killa» e o epíteto «Porteur de l'arc d'argent», que, imprimindo ao texto uma marca de erudição rebuscada e opaca, funcionariam como um ruído perturbador, impeditivo daquela transparência, leveza e comunicabi­lidade que fazem o encanto do estilo queirosiano.

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I>e todos esses processos retóricos de que o ancião se valeu para comover — «irritar» em seu favor — «o coração do Deus», Eça de Queirós apenas reteve o topónimo «Ténédos», que associou a um dos trunfos utilizados por Crises, a imolação das vítimas (mas apenas «chèvres», não «taureaux»!). De mais não precisava para acentuar a gravidade da ofensa, resultante dos laços íntimos que ligavam o sacer­dote a Apolo. Em compensação, inseriu no seu texto o sintagma «entre os loureiros», acrescento feliz que não tem um único corres­pondente em toda a Ilíada, mas, como planta consagrada a Apolo, pertence ao domínio tradicional da interdiscursivídade mitológica.

Por este complexo processo de elaboração, se adivinha o sério esforço que Eça de Queirós desenvolveu para se manter original e independente face ao modelo textual utilizado; Mas que o texto primeiro exercia sobre o texto segundo uma tutela avassaladora, de que o escritor só conseguia libertar-se após luta renhida, prova-o o predicado da primeira condicional «j'ai orné», por imposição do qual ele chegou a escrever «lhe adornava», para depois rasurar este conjunto, eliminando deste modo a primeira das duas actividades culturais men­cionadas na tradução francesa, e escrevendo entre linhas os elementos «lhe» è «em seu louvor», correspondentes ao sintagma francês «pour toi».

Digno de nota é também o mais-que-perfeito passivo «fora ofen­dido», que constitui a alternativa preferida a «fora insultado» (rasurado no manuscrito), e corresponde à expressão hipotextual «avait couvert d'opprobre» (p. 1; cf. //. v. 11), que reaparece mais adiante, ligeira­mente modificada, na mensagem do adivinho Calcas: «son sacrifi­cateur qu'Agamemnon a couvert d'opprobre» (p. 4). A presença, neste contexto, do nome do Atrida bastaria para que o escritor o uti­lizasse como agente da passiva, cujo aposto, «rei dos Acaios», é um evidente decalque do sintagma «roi des hommes», que aparece logo no início do- poema. Apercebendo-se de que a tradução literal seria insuportável, Eça de Queirós substituiu o substantivo comum «homens» pelo etnónimo «Acaios», que repetiu, para manter bem viva no espírito do leitor a ideia de que são os Aqueus as verdadeiras vítimas de Apolo.

Quanto à proposição relativa, «que lhe arrebatara a filha», trata-se de um fragmento do discurso narrativizado, em que, pondo de parte os elementos «lhe» e «filha», correspondentes exactamente a «sa fille» (p. 2), se destaca a forma verbal «arrebatara», sobredeterminada pela forma dp infinitivo francês «enlever», que ocorre com frequência naqueles contextos em que se encontram envolvidos os dois chefes rivais, Agamemnon e Aquiles, acompanhados do prudente Nestor: ameaças, interpelações e promessas. Na verdade, assim se, pode 1er

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na tradução de Leconte de Lisle: «Celles que nous avons enlevées des villes saccagées» (p. 5); «tu me menaces de m'enlever la récompense» (p. 6); «Phoibos Apollon m'enlève Khrysèis (p. 7); «il est beaucoup plus aisé... d'enlever la parte de celui qui le contredit» (p. 8); «Il n'est pas permis à Agamemnon... d'enlever au Pèléide la vierge que lui ont donné les fils des Akhaiens» (p. 9); «Et je... lui donnerai... celle que je lui ai enlevée» (p. 154); «Et il te donnera ... celle qu'il t'a enlevée, la vierge Breisèis» (p. 158); «à moi seul il m'a enlevé ma récompense» (p. 159). Perante tão numerosas ocorrências, em que a iteratividade enfeixa na mesma isotopia do rapto um leque significativo de passos hipotextuais da tradução de Leconte de Lisle, mais facilmente se com­preenderá a preferência dada por Eça de Queirós à forma «arrebatara». Na verdade, esta condensa um longo fragmento do texto homérico, em que é pormenorizadamente narrada a tentativa do resgate, o dis­curso proferido por Crises perante os Aqueus reunidos em assembleia, o bom acolhimento destes e a atitude agressiva do seu chefe. Todos estes pormenores, que prejudicariam sem dúvida a coesão unitária do hipertexto queirosiano, foram omitidos e de alguma maneira substi­tuídos pela simples forma verbal, a cujo emprego também não é alheio o código romanesco de Eça de Queirós.

«Criseis, virgem forte de seio resplendecente». O nome da filha de Crises é, ao lado do etnónimo «Acaios», já analisado, mais uma prova muito concreta da relação genética que liga os dois textos. Não passa, com efeito, de uma transliteração rigorosa da forma corres­pondente «Khrysèis», que se lê na tradução de Leconte de Lisle. Tra-tando-se de um patronímico, a forma correcta seria «Criseida», à semelhança de «Briseida», também transcrita noutro passo — mas este não inédito — por «Briseis» (1901: 138). Quanto ao conjunto «virgem forte», o lexema «virgem» aparece largamente representado na tradução de Leconte de Lisle: «la vierge Khrysèis» (p. 5); «En effet, je la préfère à Klytaimnestrà, que j 'ai épousée vierge» (p. 13); «la vierge que lui ont donnée les fils des Akhaiens» (p. 9); «Les Akhaiens aux sourcils arqués ont conduit la jeune vierge à Khrysè» (p. 13); «irrité au souvenir de la vierge Breisèis» (p. 39); cf. etiam pp. 154 e 158. Mais curiosa ainda é a nota sensual conferida à aparência da donzela pelo sintagma «de seio resplandecente». De matriz nitidamente queirosiana, foi, no entanto, modelada em muitas outras expressões de estrutura similar com que Homero mimoseia, com manifesta prodigalidade, as suas figuras femininas, mortais e imortais: «Athènè aux yeux clairs (p. 7), «Breisèis aux belles joues» (pp. 7 e 11), «Thétis aux pieds d'argent»

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(p. 17), «Hère au thrône d'or» (p. 19), «Andromakhè aux bras blancs» (p. 113). Quanto a Criseida, ele é «la jeune fille aux sourcils arqués» (p. 4), «Khrysèis aux belles joues» (pp. 5 e 10) e «jeune femme à la belle ceinture» (p. 114). Estes epítetos homéricos passaram para a o interdiscurso literário e mesmo jornalístico. Deles se encontram frequentes decalques na imprensa francesa contemporânea de Eça de Queirós, que também os empregou, sobretudo naqueles textos lite­rários que se seguiram à leitura de Homero. Mas aquele de que se trata agora é da sua exclusiva lavra, e convém aprofundar as razões que levaram o escritor a não aproveirar nenhuma das acima men­cionadas. É certo que os elementos componentes do sintagma estão bem representados no hipotexto homérico. Assim, o adjectivo tem o seu equivalente no epíteto «resplendissant», que tanto aparece associado a objectos inanimados, como animados: «Hektôr ôta son casque et le déposa resplendissant sur la terre» (pp. 115 sqq.); «le vieux Priamos l'aperçut... resplendissant» (p. 400); aparece ainda apoiado por formas verbais da mesma família etimológica: «les armes brillantes resplen­dissaient» (p. 71); «Hélios resplendit» (p. 210). Também o lexema «seio» aparece largamente representado em sintagmas como «sein de la nourrice», que aparece na cena da despedida de Heitor e Andró-maca (p. 114). Mas trata-se de uma última opção, bem de acordo com o gosto artístico de Eça de Queirós. Com efeito, o lexema «seio» surge no manuscrito queirosiano apenas entre linhas, como alternativa (finalmente) preferida ao lexema «braços», rasurado no texto e, aliás, também escorado no seu correspondente francês que integra o sin­tagma «aux bras blancs» (pp. 3, 48 e 113). No pensamento de Eça de Queirós, nem as «belas faces», nem a «bela cintura», nem os «braços brancos» constituíam, afinal, atracção suficientemente motivadora para Agamémnon e a violência deste expressa pela forma verbal «raptara». Além de «virgem forte», Criseida, para merecer as «honras» do rapto, tinha de impressionar, como uma destas cortesãs de recorte greco--latino que povoam o universo queirosiano e seus modelos franceses —, pelo seu visível «seio resplandecente»! Rasgo plástico e parnasiano dessa original organização «artiste» que era Eça de Queirós!

Digamos por fim e em resumo, que o escritor português continua a utilizar de preferência aqueles significantes que se encontram mais largamente representados na tradução de Leconte de Lisle. A fre­quência com que eles aparecem no hipotexto assegura a coesão do dis­curso e realça, como um refrão ou leitmotiv, a atmosfera homérica que Eça de Queirós procura acima de tudo imitar. Por outro lado, e como dissemos acima, tais significantes encontram-se mais concen-

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trados neste segmento do que nos anteriores, o que também favorece a utilização deles.

3. A Súplica de Crises

O fragmento relativo à súplica de Crises está intimamente ligado ao anterior através da função analéptica que ele continua, como se pode ver:

E o sacrificador, erguendo-se junto ao mar ressoante, chamara Apolo Vin­gador. E o Deus viera, dos cimos olímpicos, com a aljava cheia, que sobre as espáduas do Deus, fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas es tropeadas.

Tal função é assegurada por um par de formas verbais do mais--que-perfeito : chamara e viera. A primeira, que sobreviveu a uma outra, «implorara o», rasurada no manuscrito, não constitui apenas um eco do francês «.conjura», que funciona como elemento do discurso atributivo (cf. Gerald Prince, 1978: 305-313), na frase introdutória da súplica: «II conjura le roi Apollon que Lètô à la belle chevelure enfanta» (p. 2). Muito mais que isso, constitui uma palavra-chave, uma síntese, aquilo a que com Gérard Genette (1972: 191 sqq.), pode­ríamos chamar uma narrativização do discurso directo em que foi enunciada a súplica a Apolo. O escritor, na sua luta com o hipotexto homérico, acabou por sair vencedor, isto é, realizou um texto inteira­mente seu: retirou do seu contexto os significantes que integram o enunciado da prece e integrou-os no seu texto, para com eles realçar a gravidade da ofensa de Agamémnon. Quer dizer: enquanto em Homero eles funcionam como meios de persuasão, em Eça de Queirós têm como objectivo agravar o delito e intensificar a cólera de Apolo, para mais facilmente o fazer passar à acção. Tudo, afinal, vem a dar no mesmo, mas por caminhos outros — bem queirosianos —, e isto é o que importa realçar.

Quanto ao sintagma nominal «o sacrificador», é uma evidente tradução literal do seu correspondente francês «le sacrificateur». Porém, dada a posição estratégica em que se encontra no hipertexto queiro-siano, à cabeça da frase, mantém o realce já dado à actividade cultural e ao carácter sagrado da figura de Crises, circunstância agravante do crime. A participial gerundiva «erguendo-se junto ao mar ressoante» substitui, por um lado, a sua homóloga do hipotexto francês «se voyant éloigné», pertencente ao mesmo contexto, e constitui, por outro, uma afternativa para o período homérico: «Et il allait, silencieux, le long

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du rivage de la mer aux bruit sans nombre» (p. 2). Mas a preterição do acto de caminhar em benefício do acto de se erguer, confere mais dramaticidade e realce à decisão e à iniciativa do sacerdote. No que diz respeito ao conjunto «mer aux bruit sans nombre», dele derivou sem dúvida o sintagma «mar ressoante», fortemente escorado em outras variantes de sentido equivalente, como «la mer sonnante» (p. 6).

Mas um dos mais felizes achados de Eça de Queirós está na expres­são «Apolo Vingador», cujo ponto de partida é sem dúvida a frase já citada, «Il conjura le roi Apollon que Lètô à la belle chevelure enfanta» (p. 2). Dela extraiu os elementos «conjura» e «Apollon», para traduzir, adaptando, «chamara Apolo». Que esta redacção definitiva foi pre­cedida de um período de hesitação, prova-o a rasura que «inutiliza» os elementos «implorara o», a qual sugere a ideia de uma primitiva intenção de aproveitar também o sintagma «le roi», do que resultaria a frase «implorara o rei Apolo», que seria uma tradução literal do francês. Todavia, como prova do seu labor criativo, Eça de Queirós eliminou o substantivo comum e todo o resto da frase, para introduzir no seu texto um epíteto de primordial importância pela interligação que apresenta com a isotopia da vingança, a mola real da acção no poema. Trata-se do epíteto «Vingador», sobredeterminado pelo verbo «venger», de que há numerosas ocorrências disseminadas pelo hipotexto francês da tradução de Leconte de Lisle: «[Apollon] venge son sacri­ficateur» (p. 4), «pour venger Ménélaos» (p. 6), «venge-toi en paroles» (p. 7), «Et il espéra de se venger de celui qui l'avait outragé» (p. 46), «Je me vengerai de toi» (p. 400); finalmente, é o próprio Aquiles que surge diante de Heitor como «un vengeur» da morte de Pátroclo (p. 409). A presença da inicial maiúscula é uma boa indicação de que Eça de Queirós modelou o conjunto «Apolo Vingador» em estereótipos homé­ricos, como «1'Archer Apollon» (pp. 2, 4, 15, 52, passim), «Apollon l'Archer» (p. 3), cujo equivalente português, «Archeiro», aplicado a Apolo, soaria horrivelmente a falso. De resto, a expressão apresenta um parentesco muito próximo com outras já antes utilizadas pelo escritor como, por exemplo, «Deus Vingador» (1880: 375).

«E o Deus viera»: tradução literal do francês «était venu», que aparece no início do poema como predicado de «Celui-ci», quer dizer, «Khrysès». Esta forma francesa do mais-que-perfeito, a única que aparece em todo o Canto I, é digna de nota, pois sem dúvida foi ela que sobredeterminou toda a série de mais-que-perfeitos analépticos do hipertexto queirosiano : fora ofendido, chamara, viera, ferira, ferira. Corresponde, além disso, ao predicado entendit, da frase: «II parla ainsi en priant et Phoibos Apollon l'entendit», (p. 2). Esta forma

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verbal é, na tradução de Leconte de Lisle, correlata de «priant», de que exprime um efeito perlocutivo (cf. Silva, 1.991: 324), tal como, no hipertexto queirosiano, a forma «viera» relativamente a «chamara» (no sentido de chamar alguém para que venha em socorro: «E o Deus viera»). A. preferência por esta forma, aliás, imposta pelo contexto, explica a eliminação de outro verbo de movimento, «il se précipita», cujo complemento de lugar donde, a sequência sintagmática «du sommet Olympien» foi traduzido à letra por «dos cimos olímpicos», sob a influên­cia de variantes como «sur le plus haut faîte de VOlympos aux cimes nombreuses» (p. 16), «fe haiut Olympos» (p. 21), «elle se précipita des sommets de VOlympos» (p. 61) e outras. Ao complemento assim for­mado ligou a forma «viera», depois de a deslocar do início de um contexto diferente, e fazendo-a «sobrevoar» o longo texto relativo à iniciativa de Crises e à recusa de Agamémnon. Estas as opera­ções intertextuais mais complexas. As outras movem-se num espaço dialógico mais restrito. Na verdade, o complemento «com a aljava cheia» é tradução literal de «avec le plein carquois», tal como a sequência sintagmática «sobre as espáduas do Deus» o é de «sur ses ápaules... du dieu». Já o predicado e seus complementos — «fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas estropeadas» — representa uma variante originalíssima e estilisticamente muito rica do que a sua correspondente francesa: «les flèches sonnaient... à chacun de ses mouvements». O sintagma «a cada largo passo» é muito mais feliz que o seu homólogo «à chacun de ses mouvements». Para além da sua eficá­cia mimética, que o torna mais apto para sugerir o ritmo marcial do Deus irritados imprime ao texto aquela nota de clareza e de precisão, que o plural abstractizante do francês «mouvements» não pode assegurar. Quanto ao adjectivo «largo», particularmente adequado à expressão da marcha do deus, ele aparece no manuscrito entre linhas, como acrescento posterior, correspondente ao francês «large», que integra sin­tagmas como «larges rues» (pp. 20. 21, passim), «large manteau» (p. 21), plus largeáés épaules et dê la poitrine» (p. 51), enlarges murailles» (p. 60).

Mais complexa é a génese da sequência «fazia... um ruído de pratas estropeadas». Que ela foi elaborada a partir do francês «les flèches sonnaient», pertencente ao mesmo contexto, não restam quais­quer dúvidas. Mas não é menos certo que, enquanto essa proposição, mesmo considerando o contexto em que se insere, pouco se eleva acima do grau zero da escrita—, a redacção portuguesa, represen­tando um verdadeiro desvio, é-lhes estilisticamente muito superior. É a conclusão a que poderemos chegar, após.um confronto entre as

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duas. Antes de mais, o hipertexto queirosiano impõe-se ao hipotexto francês da tradução de Leconte de Lisle, pela sua clareza, pois atribui o ruído não ao conteúdo (as flechas), mas ao continente «a aljava cheia»< «le plein carquois»), o que é logicamente muito mais compreensível. Para clarificar melhor a ideia, o escritor introduziu um complemento em que o intertexto é omisso. Trata-se do sintagma «sobre o anel», sem dúvida sobredeterminado por expressões como «les anneaux d'or du baudrier» (p. 62) e «pointe d'airain retenue par un anneau d'or» (p. 147). Interligado à isotopia do metal, constitui uma adequada explicação do choque e do consequente «ruído», cujo qualificativo, «de pratas estropeadas», forma uma imagem bem original e bem quei-rosiana, tal como o conjunto «fazia ... um ruído de armas caídas», que analisaremos mais adiante. Com efeito, ela não foi concebida extrinsecamente, a partir de fora, mas intrinsecamente, a partir do conteúdo semântico desse mesmo contexto a que pertence, ou seja, do andamento marcial de Apolo, «com o arco de prata da sua armadura». Assim, o concentrado conjunto «de pratas estropeadas» é o efeito sinestésico de uma associação triádica — movimento/metal/som—•, dotado de grande eficácia mimética, que nos permite visualizar, na sua grandeza épica, a figura do divino herói no seu andamento marcial, pisando pesadamente — «estropeando» — um caminho coberto de objectos de prata. Ao mesmo tempo, se o plural denota, por um lado, os vários passos ("«mouvements») de Apolo, realça, por outro, a atmos­fera homérica na qual, como vimos nos exemplos acima apontados, a prata superabunda, associada à grandiosidade dos heróis. Neste aspecto, ousaríamos mesmo afirmar que este pormenor querirosiano chega a ter o sabor de uma subtil alusão irónica ao universo tão plasti­camente «prateado», como o da Ilíada.

4. A Vingança de Apolo

O fragmento do manuscrito em que são descritos os efeitos devas­tadores da vingança de Apolo, é, a nosso ver, um dos mais curiosos. Isto por várias razões. Uma delas — e não a menor — é que o res­pectivo hipotexto se impôs em bloco, e de tal maneira que o escritor se viu obrigado a consenti-lo no seu próprio hipertexto como um órgão, estranho sem dúvida, mas que se adapta perfeitamente ao novo organismo, de cuja vida passa a participar, sem encontrar qualquer rejeição. Nem podemos sequer dizer que estejamos perante um caso que em intertextologia se costuma designar por intertextualidade fraca (cf. L. Jenny, 1976: 262-263). Esta não existe na obra de uma per-

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sonalidade literária forte como Eça de Queirós, nem mesmo quando ele pareça ceder na sua luta com o texto primeiro. É que ele sabe sempre imprimir aos significantes rebuscados em referentes textuais alheios um quid, uma marca de originalidade que faz com que o enxerto pegue mesmo, para passar a respirar uma vida nova, que não tinha no hipotexto. Todavia, mesmo no caso deste fragmento, Eça de Queirós, que nunca se limita a traduzir, ou seja, à pura tautologia, nem suporta, sem os adaptar ao seu génio artístico, blocos textuais pré-estruturados —, inseriu no conjunto transposto outros elementos, também homéricos, mas derivados de contextos diferentes. Importa, por isso, estabelecer uma distinção liminar entre estes e o bloco que constitui propriamente o núcleo hipotextual, centrado sobre a vingança de Apolo, ou, por outras palavras, sobre o flagelo da peste, alegoricamente descrito em termos bélicos, como dissemos. Um confronto intertextual não deixará quaisquer dúvidas quanto à identidade desse elemento para­digmático :

A < B

Primeiro, ele ferira os cavalos que, Il frappa d'abord les mulets et les amarrados junto à tenda, comiam o chiens rapides; mais, ensuite, ilperça les lótus; depois ferira os molossos rápi- hommes eux-mêmes du trait qui tue. dos; por fim, trespassava os guerreiros Et, sans cesse, les bûchers brûlaient, que tombavam, fazendo na areia um lourds de cadavres. ruído de armas caídas. Sem cessar, Depuis neuf jours, les flèches divines as longas flechas silvavam através do sifflaient à travers l'armée, (p. 3) acampamento :

Como facilmente se poderá ver pelo nosso sublinhado, Eça de Queirós incorpora no seu hipertexto, um pouco mais longo, e traduzidos à letra, os elementos mais significativos do núcleo intertextual da tradução de Leconte de Lisle. Quanto aos outros, porém, não se pense que são postos de parte. Exceptuando o irrelevante inciso «... eux-mêmes du trait qui tue», que, a ser inserido no texto queirosiano, não passaria de um elemento parasita, todos são avaramente aprovei­tados, embora dispersos por outros contextos, segundo o plano pessoal do escritor, como, por exemplo, o já referido informante temporal «Depuis neuf jours». Tal como no seu modelo, também no texto queirosiano se nota uma espécie de escalada da guerra, pois nele as vítimas de Apolo encontram-se enumeradas por ordem:

A — cavalos B — cães C — guerreiros

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Mas essa ordenação não ressalta com clareza no texto mediador (mesotexto) de Leconte de Lisle, devido à sua estrutura diádica, que concentra, numa primeira fase, associando-os pela coordenativa, os elementos relativos aos animais: «... les mulets... et lés chiens...». Numa segunda fase, bem destacada pela pontuação (;), pela àdversativa que se lhe segue, «mais» e pelo advérbio «ensuite» —, é que aparecem «les hommes eux-mêmes». Eça de Queirós, pelo contrário, reparando bem no informante temporal «d'abord», que, posposto a «mulets», se refere apenas ao primeiro elemento — «les mulets d'abord» — notou que 0 segundo elemento — «les chiens rapides» —, precedido da copu-lativa «et», representava, afinal, uma segunda fase. Por isso, intro­duziu logicamente uma não irrelevante modificação, substituindo a estrutura diádica, pela estrutura triádica, aliás favorecida pela impor­tância que tem o número três na estrutura antropológica do imagi­nário, pois trata-se de um número perfeito, mesmo estilisticamente falando. Assim, às fases A + B do hipotexto francês sucedem as fases A + B + C do hipertexto queirosiano, pelo desdobramento de A em A + B. E é curioso notar que, para A e B, o escritor usou, respe-tindo-o, o mesmo e único verbo — «ferira... ferira» .— que corres­ponde à forma francesa «frappa», construída com complemento directo duplo, «les mulets... et les chiens».

Mas é óbvio que, respeitando a função analéptica do discurso, Eça de Queirós substituísse o «passé simple» («il frappa») pelo repetido mais-que-perfeito («ferira»). Já é mais significativo que outra forma do «passé simple» («perça») apareça representada no hipertexto quei­rosiano por uma forma do pretérito imperfeito («trespassava»), em nítido contraste com as formas verbais anteriores. É que estas, tendo, por um lado, uma função analéptica, mas denotando, por outro, aconte­cimentos sucessivos, escalonados no tempo, garantem a transição da história passada para a situação presente. Esta aparece adequada­mente sublinhada pelos iterativos «trespassava» e «tombavam», tal como o é, na tradução de Leconte de Lisle, pelos imperfeitos «brûlaient» e «sifflaient». Quer dizer: a oposição perfeito vs imperfeito que aparece no texto francês, é, no hipertexto queirosiano, substituída pela oposi­ção mais-que-perfeito vs imperfeito. Também não será irrelevante notar que ao lexema impreciso «hommes» o escritor tenha preferido o termo mais adequado «guerreiros», pelo mesmo motivo que já antes o tinha levado a optar pelo etnónimo «Acaios».

Perante um hipotexto cuja estrutura lhe não impunha alterações substanciais, o escritor poucas emendas introduziu no seu manuscrito. Apenas distinguimos duas rasuras: uma sobre o advérbio «depois»,

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que já tinha empregado antes, para o substituir agora pela locução «por fim», mais apta para introduzir o terceiro e último elemento da tríade, que representa também o clímax da escalada da guerra. Mas particularmente feliz foi a substituição do banalíssimo monossílabo «cães», que ele apresentou numa primeira redacção como correspon­dente (demasiado literal) do também banalíssimo francês «chiens» —, pelo menos vulgar e mais poético «molossos».

Tais são as observações que nos pareceram mais pertinentes, quanto ao núcleo intertextual do fragmento. No que diz respeito à introdução de elementos novos, a primeira observação que se nos depara é que se trata de duas expansões, com estrutura de proposi­ções relativas, uma espécie de recheio estilístico que facilita a transmi­gração dos significantes do texto primeiro para o texto segundo, pela sábia combinação ou entrelaçamento dos elementos de um e de outro.

Com efeito, depois de traduzir a proposição «Il frappa les mulets d'abord» por «Primeiro ele ferira os cavalos», apercebeu-se de que um período assim tão curto, quebraria o ritmo geral que comanda o discurso. Por isso, procurou prolongar-lhe o fôlego e alimentar a cadência frásica com uma expansão. Para esse fim, convocou outro passo, onde também aparece o cavalo como referente, e é descrita a «greve» do amuado Aquiles e seus solidários guerreiros, que recusam combater ao lado dos Argivos contra os Troianos. E, enquanto ocupam os seus tempos livres, brincando à guerra na praia, «les chevaux auprès des chars, broyaient le lotos et le sélinos des marais; et les chars solides restaient sous les tentes des chefs» (p. 41). Como claramente se pode ver, da proposição hipotextual «les chevaux ... broyaient le lotos», derivou, por tradução literal, o conjunto «os cavalos que comiam o lótus»; da mesma maneira, o informante locativo «auprès des chars... et les chars solides restaient sous les tentes des chefs» sobredetermi-nou, por adaptação interpretativa, o conjunto participial «amarra­dos junto à tenda». É significativo o desaproveitamento, neste con­texto, do lexema «chars», que o escritor reserva para a parte final do texto.

Quanto à segunda expansão — «...guerreiros que tombavam, fazendo na areia um ruído de armas caídas» —, ela representa uma elaboração mais original e também mais complexa. Foi modelada na mesma estrutura de profundidade que subtende o conjunto con­génere, «fazia... um ruído de pratas estropeadas», já anteriormente

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analisado. Há, com efeito, na Ilíada, numerosos passos interligados pela mesma isotopia da morte dos guerreiros, o que, aliás, não causa surpresa, atendendo ao leitmotiv bélico do poema. Entre eles, des-taca-se um amigo de Eneias que, atingido no ventre pela lança de Aga­memnon, «.tomba avec buit et ses armes résonnèrent sur son corp» (p. 91). Além deste há muitos outros exemplos, como aquele em que, tendo os Gregos irrompido contra os Troianos, um destes, atingido pela lança de Tideu, «tomba du char, et ses armes retentirent» (p. 140). Confrontemos agora as duas frases:

A —11 tomba avec bruit, et ses armes résonnèrent sur son corp.

B — Le Troyen tomba du char, et ses armes retentirent.

Não achamos necessário esclarecer o paralelismo estrutural destes enunciados paratácticos, tão evidente ele se apresenta. Mais rele­vante será sublinhar a identidade do mesmo paradigma semântico que os une. Com efeito, em ambos se encontra associado o ruído das armas ao acto da queda, embora neste aspecto a frase A, em que a ideia de ruído se encontra mais largamente representada, tenha servido melhor os desígnios estilísticos de Eça de Queirós. Desta associação derivou a participial gerundiva «fazendo na areia um ruído de armas caídas», da mesma maneira que já antes, da associação do ruído de prata com o acto de marchar («estropear») de Apolo, tinha derivado a proposição «fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas estropeadas». Um mesmo hipotexto as une. Quanto ao sintagma preposicional «na areia», que corresponde estruturalmente ao anterior locativo «sobre o anel», não faltam exemplos na Ilíada a apoiá-lo: «[les Akhaiens] tirèrent la nef noire au plus haut des sables de la plage» (p. 16); atingido por Antíloco, um guerreiro troiano caiu morto, «la tête et les épaules enfoncées dans le sable».

Também não podemos omitir um apontamento sobre a correcção introduzida por Eça de Queirós no seu manuscrito. Em vez de «tom­bavam» — forma demasiado decalcada no francês «tomba» —, tinha escrito primeiro «cahiam». Mas depois, já porque este vocábulo, prece­dido do relativo que, dava origem a um desagradável cacófato, já sobre­tudo porque formava repetição com o particípio «cahidas», em que ter­mina a frase —, rasurou aquela forma verbal e substituiu-a por «tomba­vam», escrita entre linhas. De qualquer forma, estamos perante uma espécie de figura etimológica, em que a imagem acústica «ruído de armas caídas» está já embrionariamente contida na forma verbal tombavam/

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caíam, tal como a sua congénere «ruído de armas estropeadas» se adivinha no caminhar de Apolo, adequadamente expresso pelo sintagma «a cada largo passo».

Quanto à frase final deste mesmo fragmento, «sem cessar as longas flechas silvavam através do acampamento», ela é, como se vê, uma tradução literal do francês «sans cesse... les flèches divines sifflaient à travers l'armée». Todavia, se o sintagma «sans cesse» se encontra repetido ad nauseam ao longo da tradução de Leconte de Lisle — «tu me soupçonnes sans cesse» (p. 18), «des essaims ... sortent ... sans cesse (p. 37), passim —, há transformações a ter em conta. Assim, para «flechas», o esperado qualificativo «divinas», que tem o seu equivalente no hipotexto, é preterido em favor do adjectivo «longas», mais apto a sublinhar a ideia de distância e o efeito de longo alcance também favorecido pelo sintagma «à l'écart», pertencente ao mesmo núcleo hipotextual e se encontra representado em expressões, como «longue pique» (p. 90). Também para o lexema «armée», ao correspondente literal «exército», preferiu o termo «acampamento», não só pela razão acima apontada, mas também porque, neste passo, aquele lexema não se harmonizaria bem com a locução preposicional «através de». Aliás, a opção está solidamente apoiada no hipotexto francês: «[les chefs] erraient à travers le camp (p. 41); « — Pourquoi errez-vous seuls... à travers le camp?» (p. 175).

Como estamos a ver, a análise intertextual destes processos, o estudo contrastivo entre um antes e um depois, entre a redacção primi­tiva e a redacção (definitiva?) do manuscrito, com a tortura das emendas, das rasuras, das entrelinhas e das entrelinhas das entrelinhas — intro-duzem-nos no labirinto oficinal, na génese da escrita queirosiana. E esta aturada luta pela expressão artística não deixa, por outro lado, de pôr em evidência a forte sedução do escritor português pela épica homérica.

5. As Vítimas do Castigo

O último fragmento do manuscrito destaca-se dos anteriores por uma intervenção elaborativa mais intensa. A consciência estruturante de Eça de Queirós revela-se no contraste entre a solidez do seu tecido hipertextual e a dispersão dos significantes, que se encontram num espaço muito mais dilatado da tradução de Leconte de Lisle (pp. 2-411). Isso constitui um desafio para o analista, tanto mais estimulante quanto mais complexa se torna a análise.

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Depois de nos descrever as flechas de Apolo, a ofensa de Aga­memnon, a cólera e a vingança do deus, Eça de Queirós pinta-nos o quadro cénico da situação presente:

agachados à sombra das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia, os homens fortes, com os longos cabelos sob a face, e os olhos no solo, sentiam o coração tremer; os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente, com as rodas enterradas na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem cessar, entre os gritos de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta, as piras fumegavam, carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar ressoava em cadência.

Como vemos, a descrição aparece estruturada em formas verbais exclusivamente do imperfeito, de que se podem contar oito ocorrências, se incluirmos o gerúndio «brilhando», equivalente pelo seu valor dura-tivo. Esta isotopia temporal é também um dos elos de ligação que prendem este fragmento ao anterior, em que já se destacavam as formas iterativas «trespassava», «tombavam» e «silvavam».

A estrutura deste fragmento, cujo referente principal são as víti­mas da guerra (e de Apolo), assenta na oposição classemática ani­mado vs inanimado: «os homens fortes» a tremer, «os chefes» a falar e «as mulheres esguedelhadas» a gritar constituem o primeiro pólo da oposição, face aos instrumentos de guerra, que, sob as flechas de Apolo, deixam de ser operacionais e constituem o outro pólo oposto : «as naves que se rachavam em seco», «os carros de combate» que jaziam inúteis, como inúteis luziam, de um luzir trágico, escudos e espadas. Os guer­reiros não oferecem a mínima resistência e, apesar de «homens fortes» portam-se como cobardes : não oferecem a mínima resistência — quem poderia resistir às flechas de «Apolo Vingador»? «—Ils ne combat­taient pont», diz Homero, na tradução de Leconté de Lisle (p. 41).

Embora partindo de Homero, Eça de Queirós efectuou aqui uma sobreposição ou contaminatio de dois planos, quer dizer: na Ilíada, os guerreiros recusam combater por solidariedade para com o seu ofendido chefe e aparecem associados ao motivo da vingança (de Aquiles), sobrevivem ao flagelo da peste ,e fazem exercícios militares: «sur le rivage de la mer lançaient pacifiquement le disque, la pique ou la flèche» (p. 41). Mas no hipertexto queirosiano, embora apareçam também abrangidos pelos projectos de vingança (mas de Apolo), con­tudo não combatem — não por solidariedade, mas por medo, pois as suas vidas correm perigo, o que contradiz a ideia contida no advérbio hipotextual «pacifiquement».

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Todavia, apesar desta transformação substancial, foi nesse núcleo intertextual que o escritor se baseou, sem qualquer dúvida. Aliás, e como já referimos acima, foi a partir dele que Eça de Queirós formou a relativa expansional «... os cavalos que, amarrados junto à tenda, comiam o lótus» <« . . . les chevaux, auprès des ... tentes, mangeaient le lotos» (p. 41). Outro elemento utilizado por Eça de Queirós per­tence a um conjunto hipotextual, cujo referente é o carro de guerra: «les chars solides restaient» (p. 41). Daqui derivou a frase «os carros de batalha jaziam acima», tal como do sintagma «sous les tentes» (p. 41) derivou a expressão «á sombra das tendas».

Outro núcleo é constituído por aquele passo da «Rhapsodie I», em que, aplacada a ira de Apolo com a hécatombe e a devolução de Criseida, a embaixada regressa ao «acampamento dos Acaios» : «tirèrent la nef noir au plus haut des sables de la plage; et, l'ayant assujettie sur de longs rouleaux, ils se dispersèrent parmi les tentes et les nefs» (p. 16). Do sintagma «au plus haut» resultou o informante espacial «acima», capaz de gerar, pela lógica das oposições, os deícticos «em baixo» e «ao longe», também favorecidos por interferências da inter-discursividade teatral e plástica. Da proposição «ils se dispersèrent parmi... les nefs» derivou a participial «Agachados à sombra das naves», a cuja formação não foram alheios outros elementos, como: «ceux-ci repoussent les Akhaiens... dans leurs nefs» (p. 13), e «couchés dans la poussière» (p. 74). É de notar que a locução à sombra de significa no presente contexto debaixo de (cf. Caldas Aulete, 1881). Este sentido, já exemplificado em Castilho, pode considerar-se como o ponto de chegada de uma evolução semântica efectuada a partir do modelo virgiliano sub tegmine fagi, que se encontra largamente representado no discurso queirosiano. Equivale, por outro lado, à preposição francesa sous, que se lê no hipotexto.

Por sua vez, o lexema «naves» é manifestamente um decalque do francês «nefs» e, portanto, um galicismo, até porque, na presente acepção, era já no tempo de Eça de Queirós um termo arcaico (cf. Caldas Aulete, 1881), em face do vernáculo «nau». Quanto à relativa «que se rechavam em seco nas abas da praia», ela descreve o que normalmente acontece a uma nau retirada do seu ambiente natural, o mar, e «arrastada» «au plus haut des sables de la plage». Note-se mesmo a proximidade fónica, não sem alguma relevância, entre «sables» e «abas», elemento de uma expressão -— «nas abas da praia» — que corresponde eficazmente ao estereótipo «sur le rivage de la mer». Trata-se, pois, de uma interpretação fiel das palavras de Agamemnon, quando o Atrida, na «Rhapsodie II», sob a influência do «Songe menteur» enviado por

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Zeus, procura incitar os Acaios ao combate, num discurso em que diz: «le bois de nos nefs se corrompt, et les cordages tombent en poussière» (p. 24). Ambos os textos se encontram interligados pela isotopia da destruição, mas o texto português é literariamente mais rico, devido à ambiguidade ou sobreposição de efeitos: as naus «rachavam-se», porque se encontravam «em secco», sem dúvida; mas também devido às flexas de Apolo dirigidas contra «os homens fortes», «agachados à sombra das naves».

Um terceiro núcleo se destaca no mesmo contexto, embora habil­mente disfarçado por modificações substanciais: é o que se encontra representado na sequência sintagmática «entie os gritos de dor de mulheres esguedelhadas e com a túnica aberta». Trata-se, sem dúvida, daquele passo da «Rhapsodie XXII», centrado na morte de Heitor. Ao vê-lo maltratado, coberto de pó, depois de Aquiles, para cevar a sua vingança, o ter arrastado no seu carro de guerra a alta velocidade, «dans un tourbillon de poussière» —, a velha Hécuba, «arrachant ses cheveux et déchirant son beau voile, gémissait en voyant de loin son fils» (p. 411). Eça de Queirós, para não concretizar demasiado o texto e o manter a um nível de suficiente generalização — pois trata-se, não de uma personagem individual, mas colectiva, uma comunidade, «os Acaios», «os chefes» —, transferiu a situação particular de Hécuba para um plano geral, assegurado agora pelo plural «as mulheres». Aliás, esse elemento encontra-se também presente ao longo desse mesmo Canto XXII, pois a dor não é nele apenas individual, mas colectiva e participada. A mãe de Heitor surge «parmi les Troiennes» e, quanto à desolada Andrómaca, «les soeurs et les belles-soeurs d'Hektôr l'entou­raient»; a viúva, depois de recuperar os sentidos, aparece «gémissant au milieu des Troiennes» (p. 413); enfim, o Canto termina desta maneira: «Elle parla ainsi en pleurant et toutes les femmes se lamentaient comme elle» (p. 414). Como se vê, a tradução de Leconte de Lisle e o hiper-texto queirosiano aparecem centrados no mesmo motivo do luto, expresso no pranto e na desordem exterior — cabelo em desalinho e as vestes rasgadas. Assim, o imperfeito durativo «gémissait» aparece metamorfoseado no conjunto de sentido equivalente «entre os gritos de dor», pela interferência de outros elementos, muito abundantes e interligados pela mesma isotopia: «les douleurs et les gémissements» (p. 21), «les cris montaient dans VOuranos» (p. 24), «les Troiens pous­saient des cris confus et tumultueux» (p. 71). As participiais para-tácticas «arrachant ses cheveux et déchirant son beau voile» aparecem plasmadas nas sequências de belo efeito, também paratacticamente ligadas uma à outra: «mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta».

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É curioso notar como Eça de Queirós, apercebendo-se do carácter primitivo, bárbaro e violento das duas expressões homéricas, tal como se encontram na tradução de Leconte de Lisle, apenas manteve a pri­meira, «mulheres esguedelhadas» (<«arrachant ses cheveux»), ate­nuando a violência da segunda com uma alternativa muito mais suave, «com a túnica aberta». Para este pormenor de intertextualização, bem revelador de uma sensibilidade artística extremamente requintada, contribuíram outros conjuntos, como «il revêtit sa tunique» (p. 21) e «les Akhaiens aux tuniques d'airain» (p. 130)10.

Chegados a este ponto da nossa análise, não podemos deixar passar em julgado, num texto, aliás tão bem estruturado como este, a presença de um elemento que entra em colisão com o princípio da verosimilhança, devido, sem dúvida a uma distracção de que Eça de Queirós se viria certamente a aperceber durante a fase de publicação do texto, se publicação viesse a haver. Referimo-nos à presença das mulheres no teatro da batalha, chorando os seus mortos junto às piras fumegantes. Com efeito, se; por um lado, a presença da mulher se faz fortemente sentir no universo épico da Ilíada, nem por isso será menos pertinente distinguir, quanto a esse referente homérico, duas formas de representação: a mulher aparece representada como elemento in absentia e como elemento in praesentia. Como elemento in praesentia, intervêm, não as mulheres dos «Acaios», mas as mulheres troianas, as únicas a serem efectivamente afectadas pela guerra nas cercanias de Tróia, onde elas viam cair, feridos e mortos, maridos e filhos. Aque­las, pelo contrário, são referidas como ausentes, pela boca do próprio Agamémnon, por exemplo, o qual, no passo acima referido da «Rhapso­die II», diz no fim do seu discurso em que tenta persuadir os «Acaios» a combater : «nos femmes et nos petits enfants restent en nous attendant

10 Não é esta, porém, a primeira vez que o motivo da morte de Heitor aparece na obra de Eça de Queirós. Na verdade, há um lugar paralelo em A Capital, inter­ligado pela mesma isotopia e com estrutura similar. Trata-se do sonho em que Artur vê o corpo de Aquiles a ser arrastado por três vezes em torno das muralhas de Tróia, «entre um pranto de viúvas subindo para a nudez do céu». Este passo deriva, porém, de um hipotexto diverso, de natureza provavelmente antológica. Não apre­senta quaisquer nexos intertextuais com o texto traduzido por Leconte de Lisle, que ainda não tinha lido, se levarmos em linha de conta a total ausência de dados comprovativos, em contraste com a posterior abundância deles a partir de 1889. Remete para o espaço dialógico mais vago e poroso da interdiscursividade: o pró­prio escritor o aponta com um exemplo de «todos esses morceaux de que todo o mundo fala sem ninguém ter lido» (1987: 37).

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dans nos demeures» (p. 24). A mulher helénica estava «isenta» de «serviço militar» e ficava em casa, ou a cultivar a fidelidade conjugal, iludindo os pretendentes com teias tácticas, como Penélope, ou, como Clitemnestra, a atraiçoar a lealdade do marido ausente, envolvendo-se em aventuras extra-conjugais com Egistos oportunistas. Portanto, se, no texto queirosiano, as vítimas fossem os Troianos, haveria lugar para prantos de mulher, como acontece na «Rhapsodie XXII» da Ilíada. Mas não é isso o que se verifica: as vítimas são os «Acaios», e estes, para carpir-lhes as mortes em volta de piras fumegantes, «defronte dos muros de Tróia», não podiam contar com suas esposas, que estavam ausentes, nem com as Troianas, que não iriam com toda a certeza desempenhar o papel de carpideiras oficiais face aos cadáveres do ini­migo agressor, que lhes matava maridos e filhos. Não há, pois, do ponto de vista da verosimilhança, lugar para femininos prantos, na «Pequena Ilíada» de Eça de Queirós.

Feita esta observação, concluímos a análise dos três núcleos inter-textuais que confluem, no hipertexto queirosiano, com significativa relevância: a «greve» de Aquiles, que constitui a matriz hipotextual de todo o fragmento, sendo este, no fundo, uma expansão da frase «ils ne combattaient point» ; o regresso dos embaixadores aqueus, que se haviam dispersado pelo meio das naus; e, enfim, a morte de Heitor, com que se prende o motivo das lamentações fúnebres.

A estes, devemos juntar um quarto núcleo, também muito impor­tante. Pertence à «Rhapsodie X» e apresenta-nos o retrato psicoló­gico e quase anti-heróico do mais poderoso dos chefes — Agamémnon. Consumido pelos cuidados ante a evolução desfavorável dos aconteci­mentos, o Atrida não era capaz de adormecer: «le doux sommeil ne saisissait point 1' Atréide Agamemnon, prince des peuples, et il roulait beaucoup de pensées dans son esprit» (p. 171). A sua angústia é descrita com intenso dramatismo, pois ele «poussait de nombreux soupirs du fond de sa poitrine, et tout son coeur tremblait quand il contemplait le camp des Troiens et la multitude des flûtes et la rumeur des hommes. Et il regardait ensuite l'armée des Akhaiens, et il arrachait ses cheveux, et il gémissait dans son coeur magnanime» (p. 171). Tendo-se dirigido à presença do avisado Nestor, para o consultar, mostra-se totalmente inseguro : «Je suis troublé, et mon coeur n'est plus ferme, et il bondit hors de mon sein et mes membres frémissent» (p, 174). Estas apreensões eram partilhadas pelo seu irmão Menelau: «la même terreur envahissait Ménélaos... et il tremblait en songeant aux souf­frances des Argives» (p. 174). Note-se ainda, que o mesmo motivo já

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aparece no início da Ilíada, centrado na figura de Crises, após a recusa afrontosa de Agamemnon: «le vieillard trembla et obéit» (p. 2).

Todos estes pormenores nos ajudam a compreender melhor a importância do motivo do medo ao texto homérico e, por essa via, a sua presença no hipertexto queirosiano : neste, em relação ao hipotexto, é efectuada a transferência do estado psicológico de um indivíduo par­ticular — Agamémnon, Menelau, Crises —, para o plano geral de um povo, de uma colectividade — os «Acaios». Esse estado psicológico aparece expresso de forma ao mesmo tempo semelhante e diferente, inovadora. Com efeito, a semelhança e a diferença, o semelhante no diferente e o diferente no semelhante constituem, a nossa ver, as duas grandes coordenadas de qualquer reescrita intertextualizante. É o que se verifica nos processos operatórios pelos quais da proposição matricial «Tout son coeur tremblait» derivou, com transparente tautologia, a proposição hipertextual «sentiam o coração tremer». O que as torna semelhantes é o imperfeito durativo («tremblait» < «sentiam»), a mesma reacção provocada por idêntico estado psicológico («sentiam tremer» < «tremblait») e a mesma sede dessa reacção («coração» < «coeur»). Mas há diferenças. Em Eça de Queirós, a tónica é posta, não no órgão, mas in supposito attributionis, isto é, no todo de que o órgão faz parte, no sujeito da sensação: o realce não é conferido ao coração que tremia, mas aos «Acaios» que o sentiam tremer; o fenómeno psíquico passa a ser encarado enquanto sentido, como uma sensação subjectiva. Esta modificação mostra-se mais adequada ao próprio contexto e até imposta por ele. Com efeito, Eça de Queirós apresenta-nos, em belos pormenores de ilusão referencial, uma situação em que os «Acaios, agachados à sombra das naves», «com os longos cabelos sob a face e os olhos no solo», tentavam abrigar-se das flechas mortíferas de «Apolo Vingador». Ora, nesta posição tão crítica e desconfortável, hão era apenas o seu coração que tremia: eram sobretudo eles que o sentiam tremer. A focalização está centrada no sujeito.

Esta situação psicológica — o sentimento de insegurança, de medo, de angústia — tão do agrado de um romancista como Eça de Queirós pelo seu elevado índice de vis dramática, é ainda realçado pelo contraste implícito no epíteto «fortes», que, lhe é antitético e tem valor (ironicamente) concessivo — apesar de «fortes». O adiectivo ajusta-se perfeitamente ao texto épico, quer a nível do significado — os sujeitos do medo são, de facto, fortes, como os chefes Agamém­non e Menelau—, quer a nível do significante, pois na tradução de Leconte de Lisle aparece, como vimos, o qualificativo «fortes», embora apenas aplicado a seres inanimados, como as muralhas de Tróia. Em

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relação aos heróis, há outros epítetos, como «braves», que é o mais frequente e surge, logo na «Rhapsodie I», no discurso em que o sensato Nestor tenta chamar à razão os dois chefes desavindos, Aquiles e Aga­memnon: «J'ai vécu autrefois avec des hommes plus braves que vous» (p. 9) ; «ils étaient les plus braves des hommes nourris sur la terre et ils combattaient contre les plus braves (p. 9) ; «si tu es le plus brave» (p. 9). Enfim, este epíteto aparece atribuído, quer a um indivíduo, como «le brave Ménélaos» (p. 173), quer a um povo, como na expressão «les braves Troiens» (p. 127). Outras vezes é substituído por «puissant», qualificativo aplicado a Agamémnon, «le plus puissant» (p. 9). Se aten­dermos ainda ao facto de que tal epíteto aparece, como vimos acima, associado ao substantivo comum «hommes» — «le plus brave des hommes», «hommes plus braves que vous» —, ficaremos a compreender melhor a génese do conjunto «homens fortes», em que Eça de Queirós optou claramente pelo substantivo comum, em detrimento do etnónimo «Acaios», que já ocorrera duas vezes no hipertexto queirosiano, e cuja repetição seria agora estilisticamente negativa.

Tal é a génese que propomos para o sintagma nominal «homens fortes», relativo ao predicado «sentiam o coração tremer». Mas com ela não esgotámos ainda a riqueza hipotextual da «Rhapsodie X». Basta dizer que ela constitui o único espaço intertextual em que tudo se passa de noite. E, se tivermos em mente que o manuscrito de Eça de Queirós nos descreve uma cena nocturna —- a situação precária dos Aqueus flagelados pelas flechas de Apolo—, não nos custará com­preender a força sobredeterminante do texto primeiro relativamente ao texto segundo. Ora, se o castigo é narrado logo no início da Ilíada, o contexto nocturno dele está ausente do texto homérico. Em parte alguma do poema se diz que o flagelo foi infligido de noite, e a grandiosa comparação homérica da marcha marcial de Apolo que «allait semblable à la nuit» (p. 3), não se nos afigura suficiente para explicar tão feliz inovação, que chega a insuflar no texto de Eça de Queirós um verdadeiro sopro épico. Além disso, se a «Rhapsodie X» aparece, como pensamos ter demonstrado, intertextualizada em outros pormenores, não nos parece descabido afirmar que, narrando aconteci­mentos inteiramente nocturnos, sobredeterminou o motivo da noite no texto queirosiano. E isso se vê logo pela comunidade de porme­nores que se prendem com esse motivo comum. Entre eles, destaca-se a dicotomia trevas vs luz, tão do agrado de um artista plástico de matriz parnasiana, como Eça de Que rós, sempre fascinado pelas sensações visuais. Trevas implícitas na noite, como se pode ver nos exemplos seguintes: «nuit noire» (p. 173); «dès que la nuit eut répandu ses téne-

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bres» (p. 177). Luz implícita no brilho metálico, que as trevas da noite realçam ainda mais, como no seguinte passo em que, depois de se separar de seu irmão Menelau, Agamémnoa se dirige para a tenda de Nestor (p. 173):

Et il le touva sous sa tente, non loin de sa nef noire, couché sur un lit épais. Et autour de lui étaient répandues ses armes aux reflets variés, le bouclier, les deux lances, et le casque étincelant [...]. Et, s'étant soulevé, la tête appuyée sur le bras, il parla ainsi à l'Atréide:

— Qui est-tu, qui viens seul vers les nefs, à travers le camp, au milieu de la nuit noire, quand tous les hommes mortels sont endormis?

À luz deste excerto, de que sublinhámos os elementos mais signi­ficativos, melhor poderemos compreender o texto português. O sin­tagma «na sombra da tenda» é uma tradução literal do seu correspon­dente «sous la tente», e o predicado «luziam» retoma os referentes de luz e brilho, expressos na tradução de Leconte de Lisle por conjuntos como «armes aux reflets variés» e «casque étincelant», e outros que se encontram dispersos por toda a «Rhapsodie», como : «bouclier éclatant» (p. 176) e «l'airain brillait comme l'éclair de Zeus» (p. 175). Mas a luz das estrelas e o brilho metálico das armas são elementos compo­nentes do mesmo cenário nocturno (p. 182): «Allons! la nuit passe; déjà Vaube est proche; les étoiles s'inclinent. Les deux premières parties de la nuit se sont écoulées, et la troisième seule nous reste».

Esta dicotomia trevas vs luz aparece igualmente no texto de Eça de Queirós. Ao conjunto já citado, «defronte dos muros de Tróia — pesados e negros no resplendor da luz», junta-se o seguinte: «na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas de pregos de prata». Mas, para a composição desta bela frase, foram convocados outros referentes intertextuais. Assim, o sintagma «escudos redondos», para além de corresponder literalmente (excepto na substituição do sin­gular pelo plural) a «bouclier bombé» (p. 402), apresenta um lexema, «escudos», larguissimamente representado na tradução de Leconte de Lisle (cf. pp. 9, 49, 55, 93,125 — quinquies! —173,175,190,402, passim), o que até se compreende, pois é de um poema bélico que se trata. Quanto à sequência «as espadas de pregos de prata», é uma tradução literal, embora pluralizante, como acontece sempre nesta compositio intertextual de Eça de Queirós —, do francês «Pépée aux clous d'argent» (p. 21).

No que diz respeito à frase «Os chefes falavam em baixo», temos de regressar à já convocada «Rhapsodie X», a que se encontra genetica­mente ligada. Com efeito, se é certo que o deíctico «em baixo» se

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pode explicar numa perspectiva sintagmática, por oposição a outros informantes espaciais («acima» e «ao longe») e, numa perspectiva paradigmática, em relação com a interdiscurso teatral e plástico—, já os outros elementos representam uma mtertextualização operada a partir daquele espaço dialógico. E que, embora não tenhamos encon­trado nem nesse núcleo, nem em toda a Ilíada qualquer modelo para tal frase, a verdade é que o sintagma nominal «os chefes» aparece nesse mesmo núcleo com muita frequência, nada menos que em seis ocorrên­cias: «nous appellerons les autres chefs» (p. 174): «il devrait lui-même exciter tous les chefs» (p. 174): «Et bientôt ils arrivèrent tous au milieu des gardes, dont les chefs ne dormaient point» (p. 176); «les chefs qui commandent sur nos nefs» (p. 177); «il avait convoqué les plus illustres des chefs» et des princes» (pp. 179-180); «O amis, princes et chefs des Argiens» (p. 186). Como se vê, Eça de Queirós, na sua actividade intertextual, usa de preferência aqueles significantes que estão mais largamente representados no hipotexto e, pela frequência das ocorrências, chegam quase a atingir os efeitos do refrão ou leitmotiv, traduzindo bem aquela atmosfera homérica que Eça de Queirós mais deseja captar. Neste aspecto e uma vez provado por meios mais concludentes o diá­logo intertextual, não podemos excluir dele os próprios lexemas, o que até se compreende: se o escritor incorpora no seu texto unidades já antes estruturadas no texto alheio, é lógico que privilegie também o uso dos significantes que nele encontra, quando os considere eficazes para os objectivos em vista.

O mesmo se diga da forma verbal «falavam», que, embora de uso corrente, não pode ser interpretada apenas como elemento da prática interdiscursiva, nem do léxico pessoal do escritor, mas como elemento sobredeterminado pelo diálogo intertextual. Na verdade, a tradução francesa encontra-se saturada de formas do verbo «parler», e o elevado número de ocorrências é imposto pela própria estrutura do diálogo nos Poemas Homéricos. Com efeito, no discurso directo, que Gérard Genette. num comentário à análise platónica do diálogo em Homero, designou por «discours reporté» (1972: 192-193), a fala de uma perso­nagem aparece sempre demarcada da narração propriamente dita, isto é, do discurso na terceira pessoa, por duas formas verbais declara­tivas, pertencentes ao chamado discurso atributivo acima referido, como êeme, Tlooariiôa /AETrjvôa, etc., e colocadas, respectivamente, antes, como introdução, e depois, como recapitulação, e equivalendo aos actuais dois travessões (o anteposto e o posposto), ou ao abrir e fechar de aspas. Assim se compreende que, no longo percurso de toda o texto, apareçam, repetidas à saciedade, tantas formas daquele verbo.

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Só na «Rhapsodie X», que continua a ser o nosso ponto de referência, aparecem nada menos que vinte e três occorrências : «Le brave Méné-laos parla ainsi» (p. 172); «Et le roi Agamémnon parla ainsi» (p. 172); «il parla ainsi» (pp. 173, 175, 177 etc.); «Ayant ainsi parlé» (pp. 173, 175, 178, 181); «[Nestor] lui parla rudement» (p. 175); «Ils parlèrent ainsi» (p. 179); «Et le Troien parlait encore quand la tête tomba dans la poussière» (p. 184); «il avait à peine parlé» (p. 186).

A persistência, neste núcleo intertextual, da isotopia da fala impôs-se ao escritor com demasiado peso, para que a não mantivesse no seu texto. Aliás, ela harmoniza-se perfeitamente com o sintagma «Os chefes», quer a nível de significante, como vimos, quer a nível de signi­ficado, pois os interlocutores do diálogo homérico ocupam, de facto, postos de chefia, como Agamémnon, Menelau, Nestor, Ulisses e outros.

Não se pense, porém, que a esta atitude conformista se limita a operação intertextualizante de Eça de Queirós: o seu texto opõe-se ao texto homérico, através de transformações relevantes, ditadas pela estrutura do seu enunciado e pelo seu código tecnico-narrativo. Assim, a pluralidade homérica dos interlocutores individualizados com antro-pónimos, aparecem no hipertexto queirosiano absorvidos no plural sintético e abstactizante — «os chefes». E a pluralidade das vozes e das falas surge concisamente concentrada na forma verbal — «falavam». Desta maneira, todo um Canto de Homero cabe numa frase de Eça de Queirós, e a variedade dos seus discursos reduz-se a um só discurso, o discurso narrativizado, já referido — «os chefes falavam em baixo».

Eis, pois, a interferência intertextual — mais relevante do que parecia à primeira vista — da «Rhapsodie X» no hipertexto queirosiano.

Quanto ao segmento «com os longos cabelos sob a face e os olhos no solo», nele sobrevive, como vestígio palimpséstico, o epíteto homé­rico «les Akhaiens chevelus», cujo elevado número de ocorrências na tradução de Leconte de Lisle (cf. pp. 20, 21, 29, 32, 33, 131, 142, 147, 151, etc.) faz dele um verdadeiro estereótipo, agora plasmado no texto português em «longos cabelos». Digno de nota é o cuidado com que Eça de Queirós evitou toda a aspereza do texto francês, eivado de arestas iónicas — bem sugestivas de «la poésie des vieux Rhpsôdes connus sous le nom d'Homère», que o tradutor francês procurou tra­duzir «dans son caractère héroïque et rude», como diz ele no polémico «Avertissement». No que diz respeito aos outros elementos do mesmo conjunto, temos de convocar um quinto núcleo intertextual, para tornar inteligível a sua génese. Referimo-nos àquele passo da «Rhapsodie V», em que um guerreiro troiano, atingido pela espada de Antíloco, «tomba

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du beau char, la tête et les épaules enfoncées dans le sable qui était creusé dans cet endroit» (p. 92). Os lexemas relativos ao corpo do guerreiro — «la tête et les épaules» — aparecem substituídos, no hiper-texto queirosiano, por elementos que lhes são semanticamente justa­postos — «cabelos», «face» e «olhos» —, para exprimir uma posição similarmente incómoda. O sintagma «no solo», equivalente ao francês «en terre» — «enfoncées en terre» (p. 182), «s'enfonça en terre» (p. 182), «couchées en terre» (p. 185)—, foi sem dúvida sobredeterminado pelo sintagma «dans le sable», do conjunto «enfoncées dans le sable», que aparece literalmente traduzido por Eça de Queirós, para designar as rodas paralisadas dos carros de combate: «enterradas na areia».

Menos complexa é a génese dos restantes elementos, «e sem cessar... as piras fumegavam, carregadas de cadáveres» é uma tradução quase literal da sua correspondente proposição francesa «Et sans cesse les bûchers brûlaient, lourds de cadavres» (p. 3). Assim, numa espécie de regresso da capo, o escritor retoma a «Rhapsodie I», que constitui o mais extenso e o mais rico núcleo intertextual, onde o escritor foi mais insistentemente «chercher son bien», como Molière e outros geniais «voleurs de mots» (M. Schneider, 1985) de todos os tempos. Se, porém, examinarmos bem os interstícios do texto queirosiano, neles poderemos surpreender marcas bem reveladoras do génio artístico de Eça de Queirós. Neste aspecto, é notável a finura que o levou a pre­ferir a lexemas como «fogueiras» e «ardiam», correspondentes literais de «bûchers» e de «brûlaient» respectivamente, signos de conotação menos bárbara, como «piras» e «fumegavam», irradiando assim, do seu texto, aquela sugestão de violência que caracteriza e pour cause a tradução de Leconte de Lisle. Por outro lado, a expressão «sem cessar», sur­gindo como repetição anafórica, associa num conjunto binário os dois períodos por ela introduzidos, transformando o segundo num eco do primeiro — mas um eco ampliado por ressonância advindas da incorporação de novos elementos:

A — Sem cessar, as longas flechas silvavam através do acampa­mento ;

B — e sem cessar, entre gritos de dor de mulheres esguedelhadas e com a túnica aberta, as piras fumegavam, carregadas de cadáveres.

Como se pode ver, o elemento comum — «sem cessar» — condu­zindo à associação das duas frases, semanticamente interligadas pela relação causa/efeito, e fazendo da segunda um prolongado eco da

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primeira, reforça a coesão textual e sugere eficazmente o adensamento de uma atmosfera trágica, numa situação de impasse.

«Ao longe, o mar ressoava em cadência». Considerado em si mesmo, este período é até bastante banal, modelado em estruturas que pertencem ao foro da prática interdiscursiva de um povo de mari­nheiros, como o nosso n. Por outro lado, constitui uma variante da sequência já analisada que se encontra no texto queirosiano — «o mar ressoante». Porém, quer isoladamente, quer no seu conjunto, nenhuma destas motivações nos autoriza a excluir essa frase do intertexto homé­rico, não só porque é parte integrante de um texto a ele umbilicalmente ligado, como temos visto, mas também pelos vestígios homéricos que nela sobrevivem. Os motivos do mar e do som obrigam-nos a encará-la como uma composição intertextual, realizada a partir de elementos homéricos, como «la mer aux bruits sans nombre» (p. 3) e «ses armes ressonnèrent sur son corp» (p. 91).

Recapitulando, diremos, para terminar, que da leitura inter­textual do manuscrito de Eça de Queirós em confronto com o seu modelo homérico, resultam as seguintes conclusões:

1. Uma tão flagrante semelhança dos dois intertextos no plano da expressão que quase todos os elementos que se lêem no texto de Eça de Queirós se encontram no texto de Homero. Tal semelhança vai desde proposições inteiras até ao simples lexema — sobretudo o que no texto homérico ocorre com mais frequência —, passando pelos sin­tagmas e sequências sintagmáticas.

2. Tal semelhança no plano da expressão só pode ser devida­mente entendida em conexão dialéctica com a diferença, que se verifica também no plano do conteúdo, de acordo com a visão global de um macrotexto que nós não conhecemos, mas em que o fragmento narra­tivo em questão se deve inserir e a que já nos referimos na Nota 5 (p. 3).

3. Essa diferença resulta de um complexo processo de derivação, de uma espécie de «gramática transformacional», coenvolvendo todo um jogo de supressões, substituições, adições, expansões e paráfrases, que confere ao intertexto queirosiano uma feição marcadamente agonís-tica e é imposto pelo código técnico-narrativo de Eça de Queirós.

11 Na célebre «Serenada» de Antero de Quental, de que existe partitura e ainda hoje é cantada, há mesmo um verso de estrutura afim: «Murmurava ao ionge o mar» (Martins, 1985: 294-295).

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Neste aspecto, é digna de nota a substituição do discurso directo pelo indirecto e indirecto livre; e da oposição temporal perfeito/imperfeito pela oposição imperfeito/mais-que-perfeito. Trata-se agora, não tanto de narrar factos sucessivos, mas sobretudo de descrever uma situação bélica de impasse, num cenário nocturno que não se encontra em Homero. O texto queirosiano, impõe-se ainda por uma íntima coesão dos elementos que o constituem e é conseguida em grande parte pela fusão num só, dos dois motivos que aparecem distintamente no texto de Homero — a peste e a guerra. Enfim, substituindo o concreto pelo abstracto e vice-versa, optando por significantes próprios de um registo nobre e culto da língua, como «molossos» em vez do esperado «cães» e «piras», em vez de «fogueiras», e ainda por uma inteligente selecção de nomes próprios de lugares e de personagens como «Tenedos», «Febus Apolo», «Criseis», etc. — a dar ao texto uma tonalidade de cor local e de discreto exotismo —, Eça de Queirós deixou-nos no frag­mento acabado de analisar um documento bem elucidativo, por um lado, da sua escrita oficinal e do seu estilo inconfundível e, por outro, da perenidade de Homero — uma das matrizes mais significativas em que foi moldada a cultura do Ocidente.

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