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Dedico aFrancisco, meu pai;Irene, minha esposa e crítica salutar de minhas crônicas;Rodrigo, Gustavo. Alexandre, Izabela, Flávia, Viviane, Mariana e Nadia, meus lindos filhos;Vitória, Cecília, Rafaela e Sofia, minhas princesas;Aos personagens reais e irreais que povoam minhas crônicas;E a você, caro leitor.

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INTRODUÇÃO

1. MIJANDO NO BALCÃO DA PRIVADA .O SAPATO SAGRADO

3. O PRIMEIRO LIVRO

4. UM CONTO DE AMOR

5. BARQUINHO DE PAPEL

6. MEUS NATAIS

7. UM VAPOR, UM RIO E UMA SAUDADE

8. LEMBRANÇAS DE UM TEMPO

9. CAVALGANDO UMA BICICLETA MUITO LOUCA

10. JURITI

11. MINHA MÃE E O SISTEMA KANBAN

12. PERDIDO NO TEMPO

13. BUSCAPÉ SEM RABO NA IGREJA

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14. FOGO NO PALCO

15. A SOBREMESA CONSUMIDA

16. UMA GALOINHA DESTRONCADA

17. DESCARGA NO VASO SANITÁRIO

18. UM CERTO SARGENTO

19. ELETRECISTA DESASTRADO

20. UM AVIÃO ATEU OU NACIONALISTA

21. A VESPA E O RIO

22. O ESPELHO RETROVISOR

23. O BÊBADO E O BUEIRO105

24. AGUA DE COCO E COCÔS PELAS PERNAS

25. CUECA QUEIMADA EM CORDOBA

26. CONTO - OS TRES MORRINHOS

27. O CAVALO DESLIZANDO

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28. HEMORROIDAS E A FILA DE BANCO

29. A GALINHA PEDREZ

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INTRODUÇÃO

Sou sem pudor, extravagante, irreverente, e não ponho panos mornos quando escrevo. Que vá a merda quem não gostar, porque comigo é assim, com meus irmãos eu não sei.

Eu sou a ovelha negra. Meus irmãos são quase santos. Minhas crônicas mostram de tudo, por onde vivi e como

vivi, e revelam um pouco de minha revolta quando mijo no balcão da privada ou engraxo de preto um sapato marrom de meu pai. Mostram um pouco de meu jeito afobado e desastrado e incendiário quando quase coloco fogo na casa de minha vó, ou quando coloco fogo no palco na primeira vez que trabalhei no teatro, e também da vez que foi acionado o corpo de bombeiro em Córdoba. Mostram o meu lado inocente querendo o retrovisor do ônibus sob meu controle. Outras tantas crônicas sobre o Rio Iguaçu, São Mateus do Sul e Presidente Venceslau.

As crônicas sempre registram as coisas que já vivi.Leia-as que em muitas delas você vai se encontrar.Se você gostou ótimo e se você não gostou ótimo também

porque para gostar ou não gostar você se deu ao trabalho de ler.

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1. MIJANDO NO BALCÃO DA PRIVADA

Bem, antes de escrever a minha crônica acho legal dar uma voltinha pelo mundo nojento da latrina para saber como foi sua merdamorfose desde os primórdios.  A história das privadas é bem mais velha do que se pensa. Com certeza tem a mesma idade do aparecimento do homem no planeta terra, e é por uma razão muito clara, pois o primata, como qualquer vivente deste pontinho do imenso universo, tinha e tem para sobreviver que comer, beber, e por necessidade fisiológica, logo a seguir, tinha e tem que esvaziar o tubo digestivo, e o condutor urinário. Fazia a coisa ali na caverna mesmo.O mau cheiro, provocado pelo bolo fecal e pela urina, obrigou os primeiros habitantes da terra a ir atrás de algum local adequado, fora e afastado da caverna para depositar esta coisa nojenta e mal cheirosa. Resistiram no começo, mas começaram a praticar a coisa a céu aberto.

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Começaram a defecar em terreno seco e plano perto do seu habitat, mas logo perceberam que era além do incomodo, aquela coisa começava a ocupar um espaço muito grande do terreno. Quando iam caçar ou lutar acabavam pisando ou escorregando nos excrementos. Experimentaram fazer a defecção então nas grandes elevações que havia por perto e constataram (talvez aí esteja o início da pesquisa científica) que as fezes rolavam morro abaixo e eram depositadas tranquilamente ao sopé da montanha. Evidenciaram, logo a seguir, que esteticamente não era adequado, além do que, o sacrifício de subir o morro, principalmente para os mais velhos e doentes, era fatigante. Cansativos estudos, e muitos debates na caverna, acabaram por descobrir os atributos do rio, e como a princípio, alguns ensaios deram positivos, resolveram então fazer a coisa nojenta na água corrente. Aproveitavam sempre algum tronco de árvore caído sobre a água. O som do pluft do dejeto mergulhando na água para nossos antepassados era muito engraçado e curioso. Existem relatos destes episódios gravados em muitas cavernas. Tão logo o troço era conduzido pela correnteza aproveitavam para lavar a bunda. Isto ficou usual por longo período da história, (Com certeza desta prática surgiu o bidê, bacia oblonga que hoje serve para lavar as partes inferiores do tronco)

E o mundo foi evoluindo a passos largos, e a merda se avolumando nos rios. Tal qual um formigueiro na terra, o número de habitantes foi crescendo violentamente, mas a prática de defecar no rio continuou, e isto acabou por contaminar seriamente as águas. Então começaram longos, e profundos estudos, a fim de desenvolver formas, e mais formas, de como depositar os excrementos fora dos rios. Começou então o nascimento dos esgotos.

Se formos voltar ao tempo verificamos que já há 4000 anos antes de Cristo na Mesopotâmia se tem início a construção do sistema de irrigação. O sistema de irrigação tanto era para separar a água que conduzia os dejetos como a água que era destinada à população como também para irrigar as plantas.

A história está cheia de relatos da preocupação do povo com a merda. Até que na Alemanha os políticos bundas sujas, não agüentando mais o rio Danúbio fedendo e transportando aquela sujeira toda, pelos idos de 1500, obrigaram o uso de fossas sanitárias. O aparecimento da água encanada e das peças sanitárias com descarga hídrica fez com que a água passasse a servir com uma nova finalidade:

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afastar propositadamente dejetos e outras impurezas indesejáveis ao ambiente de vivência. A sistemática de carreamento de refugos e dejetos domésticos com o uso da água, embora fosse conhecida desde o século XVI, quando John Harrington (1561-1612) fez um manual de procedimentos de uso ao instalar a primeira latrina no palácio da Rainha Isabel, - esta latrina não tinha descarga, pois era instalada diretamente em cima de um córrego - sua disseminação só veio a partir de 1778, quando Joseph Bramah (1748-1814) inventou a bacia sanitária com descarga hídrica, inicialmente empregada em hospitais e moradias nobres. A generalização dos sistemas de distribuição de água e as descargas hídricas para evacuar o esgoto, provocaram a saturação do solo, contaminando as ruas e o lençol freático. Como nem todos poderiam ter um córrego debaixo da bunda a coisa foi resolvida com valetas que conduziam as porcariadas pelas ruas. A extravasão para os leitos das ruas criou, também, constrangimentos do ponto de vista estéticos, levando a necessidade de criação de esquemas para limpeza das vias públicas das cidades grandes. Na realidade a invenção das tamancas foi exatamente para que as pessoas ao andar pelas ruas pisando nos troços não sujassem os pés.No Brasil a coisa aconteceu pelos idos de 1850 no Rio de Janeiro.

Como os vasos e sistemas de esgoto eram todos importados da Inglaterra o povo brasileiro resolveu de uma maneira bem mais simples a coisa. Fazer um buraco e construir em cima uma pequena casinha para evitar olhares curiosos quando o indivíduo estivesse fazendo aquelas caretas todas tentando dar saída ao quibe. No início era apenas um buraco com um pedaço de pau atravessado onde os necessitados se equilibravam de cócoras. Como era freqüente o desequilíbrio e os indivíduos irem se misturar com as fezes no fundo do buraco resolveram construir um assoalhado com uma pequena abertura por onde as fezes eram despachadas. Para maior conforto, tempo mais tarde, pensando num lugar mais reservado levantaram paredes.

Normalmente a casinha era em madeira com uma porta. Seu tamanho não passava de um metro por um metro. Sempre coberta em telha para evitar que, quando alguém estivesse no sufoco, alguma chuva repentina não viesse esfriar os seus intentos.

Como a privada sempre foi um lugar ideal para pequenas leituras e a posição “de cócoras” jamais foi a mais apropriada para tal prática lá se foram horas e mais horas de estudos e pesquisas ergonométricas para se

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chegar à construção do balcão de assento. O balcão era como se fosse um banco com um orifício de certo tamanho que não permitisse você ser engolido pelas ancas, mas, por outro lado que permitisse perfeitamente que os excrementos fossem transferidos e depositados no buraco.

A privada, ou a casinha como usualmente e carinhosamente era chamada, tinha seu lugar reservado no fundo do quintal – longe da casa e longe do lençol freático.

A casinha de nossa casa era por demais cuidada. Minhas irmãs mantinham-na areada e lavada todos os dias. O assento do balcão era uma belezinha. Era como se fosse a mesa da cozinha de tão limpa e asseada. Tinha uma razão para isto, meu pai quando chegava para o café da tarde gostava de ir até lá para ler algumas notícias enquanto fazia suas necessidades fisiológicas. Com aquela limpeza toda, meu pai se sentia a vontade tal qual um rei no seu trono. Este cerimonial para meu pai era sagrado, acontecia todos os dias.

Minha tarefa caseira era recolher lenha e tirar água do poço. Tinha verdadeiro pavor e ojeriza só em pensar de lavar a privada, e ficava puto da vida quando me locomovia para a casinha e minhas irmãs em coro me diziam:

- não vá mijar no balcão; Se mijar vai limpar.Todo dia era a mesma ladainha quando para lá eu me dirigia:- não vá mijar no balcão; não vá mijar no balcão.Certo dia, logo após o almoço quando as manas terminaram a

famosa limpeza da privada lá vou eu para fazer minhas necessidades e ainda ouço as duas gralhando no meu ouvido:

- Não vá mijar no balcão; não vá mijar no balcão.Entrei, fechei e taramelei a porta; Lá dentro desabotoei a calça e

saquei o bruto e mirei no buraco do assento do balcão e escutei, puteado como um eco:

- não vá mijar no balcão, não vá mijar no balcão – por momentos isto foi atormentando minha cabeça; fui ficando alucinado e não tive dúvida, deixei que a urina corresse solta de um lado para outro balançando freneticamente o meu órgão mijador; Quase tive um orgasmo, mas saí satisfeito de dentro da privada, vendo o assento do balcão todo urinado; Aquilo foi a minha vingança.

Sai satisfeito, mas fiquei logo em seguida deveras preocupado quando vi meu pai chegando para o café da tarde. Rezei para todos os

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santos do céu e para Deus para que meu pai naquela hora, num lampejo de amnésia esquecesse a leitura do jornal e não tivesse vontade de ir até a privada. Os malditos santos estavam ausentes e Deus, para me sacanear, por certo, se pôs do lado de minhas irmãs.

Fiquei atrás do galinheiro espiando apreensivo o meu pai que a passos largos, de jornal na mão encaminhava-se ao destino privado. Eu queria que alguma coisa acontecesse neste percurso. Alguém que chamasse; Um tropicão e meu pai caindo; Que a vontade dele ler, e ir ao banheiro passasse, enfim que alguma coisa ocorresse, e impedisse de chegar naquele momento a casinha. Fui olhando seus passos e apavorado vi que a distância entre ele e a latrina foi rapidamente diminuindo. A cada passo que meu pai dava meu coração acelerava mais e mais. Ah! Se uma onda de calor violenta viesse nessa hora secar a urina que depositei em cima do assento do balcão. Quando já estava levando a mão para abrir a porta, quis gritar por socorro para que ele viesse me acudir, mas meu grito ficou sufocado na boca. Fiz o sinal da cruz quando meu pai abriu a porta, entrou e imediatamente saiu gritando:

- Quem fez esta sujeira toda no balcão da privada? Seu grito foi ouvido do outro lado da cidade e o povo em pavoroso saiu pelas ruas. As gotas de urina que restaram na minha bexiga acabaram se acomodando na minha calça. Não sei se meu pai ficou zangado por não ter podido ler o jornal sentado prazerosamente naquele assento da privada sempre limpo, ou por não ter sido ele o primeiro a urinar em todo o balcão; Só sei que me deu uns safanões, e me fez como escravo lavar a maldita privada, e ainda por cima ouvindo minhas manas às gargalhadas em coro gralhando:

- Eu disse, não mije no balcão!

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2. O SAPATO SAGRADO

Nos tempos idos em que era guri não atinava muito com estas coisas de obediência, de temor a Deus. Queria ter meu próprio reinado. A bíblia, no entanto, é muito severa quanto a isto, e deixa a criançada a mercê dos seus progenitores. Ela coloca a falta de submissão à vontade dos pais, na mesma latitude e longitude de outros terríveis pecados que pululam soltos por aí, tais como o de tráfico de drogas; pedofilia; corrupções; sonegação ou apropriação indébita com dinheiro em cueca, meia, e dos diários secretos da câmara dos deputados.

Eu acho que Deus por preguiça, ou por falta de controle, colocou nos ombros dos pais estas leis para se ver livre da molecada. Veja em Efésios: Honra teu pai e tua mãe para que te vá bem e tenha vida longa. Meu pai com seus 99 anos deve ser o exemplo disto. Tenho có minhas dúvidas se viverei tanto! Na bíblia está escrito que os pais devem orientar seus filhos na disciplina e na admoestação do Senhor. Tarefa cruel esta!

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No meu tempo de piá, Deus era mais moço e muito severo. Não me afinava muito com Ele. Eu ia com meu pai a Igreja e enquanto ele rezava eu ficava de olho naquele olho cruel dentro do triângulo onde se lia que Deus tudo vê e castiga. Isto me deixava puto da vida, e um tanto apavorado. Nunca quis conversar com Ele, mas se fosse conversar iria dizer umas boas. Hoje o meu Deus é mais velho, e mais experiente, assim me permito bater uns bons e saudáveis papos com Ele. Tenho aprendido muito com a Sua experiência e Ele tem sido mais compassivo, mais tolerante e até mais humano.

Bem eu vivi nesta severidade toda onde a lei de proteção ao menor não era observada, e o trabalho menor escravo corria solto sem qualquer fiscalização.

Dentre muitas atividades que tinha que fazer, a contra gosto, em casa, era tarefa odiosa de engraxar o sapato de meu pai. E aí eu ficava mais, e mais encanado com Deus, pois sempre o sapato engraxado aos finais de semana era para ir visitar a Sua casa aos domingos.

No final de semana minha mãe sempre me lembrava:- Já engraxou o sapato do seu pai? E lá ia eu furioso, com

Deus e com meu pai, executar a terrificante, impiedosa e laboriosa tarefa. - Por que será que Deus exige que meu pai tenha os sapatos

engraxados para ir visitá-lo? Perguntava isto resmungando furioso para mim mesmo enquanto me desgastava, me acabando todo nesta labuta.

Um dia ao iniciar a fatigante e terrível tarefa de engraxar o sapato verifiquei que não tinha a graxa marrom. Não sei se por espírito criativo, ou por revolta mesmo, peguei a graxa preta e fiz o processo tranquilamente.

- Meu pai nem vai perceber e até vai gostar, pensei cá com meus botões.

O sapato ficou com uma cor toda atrapalhada que variava do marrom ao preto. Ficou da cor de vão de cerca. Talvez uma nova cor tenha sido criada. Não gostei muito, mas a tarefa foi cumprida.

No dia seguinte é que fui sentir as conseqüências do inconseqüente ato. O sapato da cor marrom era de exclusividade para a casa do Senhor e o da cor preta para trabalho. A cor que elaborei e compus no sapato, certamente seria para conduzir à casa do capeta, pois meu pai quando viu aquilo virou o bicho, e como servo obediente daquele Deus rigoroso, fez sua oração ali mesmo. Não pode ir a Igreja, e me aplicou

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umas lambadas na parte posterior traseira amaciada. Passei o dia todo sem poder sentar removendo a graxa preta do sapato sagrado.

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3. O PRIMEIRO LIVRO

Tudo o que acontece, ou surge pela primeira vez em nossa vida, fica indelevelmente marcado. É o primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira vez, bem... Tudo fica registrado e lá de vez em quando recordamos e nos deliciamos com isto.

O que me traz um gozo íntimo e suave é a lembrança do primeiro livro que ganhei. Tinha eu aproximadamente de seis para sete anos e a nossa família morava em uma casa, de parede e meio, bem próximo de onde hoje se assenta a igreja matriz de Arapongas.

Eu me encantava vendo, ao entardecer, logo após o jantar, meu pai desfolhar o jornal que ele recebia, não sei de quem, mas que sempre era colocado por debaixo da porta da sala de casa. Ele me punha sentado em

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sua perna para eu ver e admirar a figura de um lindo cavalo que era reproduzido em tamanho quase total da página do jornal. Era uma propaganda impressa naquele jornal, mas para mim aquilo era real, e tinha o fascínio de me transportar para uma viagem a um mundo de fantasias. Eu ficava embebido na figura majestosa do animal ouvindo meu pai contar mil e umas maravilhosas histórias sobre o tal cavalo. Meu pai me envolvia no conto, e eu adorava isto. Estas histórias ficavam povoando na minha memória, e isto fazia com que eu sonhasse dia e noite cavalgando este belo animal. Nos meus devaneios o meu lindo alazão era parecido ao do jornal. Eu cavalgava sonhos e vencia barreiras. Meu alazão conversava numa conversação animada comigo, e nós riamos muito fazendo nossas traquinagens, nossas estripulias, correndo soltos pelo campo sem o compromisso com a realidade. Era meu amigo inseparável.

Ainda bem que a nossa memória tem a capacidade de armazenar e evocar informações ao momento que desejamos. Este cavalo ainda está vivo em minhas recordações. Já não é um alazão novo e nem estamos por aí fazendo confusões, e nem mais eu mantenho um diálogo como dantes com ele, mas ainda lhe tenho grande estima. Às vezes sentamos nós dois, lado a lado e falamos, recordando das coisas que fazíamos naqueles tempos. Ele relincha tristemente ao meu lado num relinchar saudoso, e eu lhe afago a cabeça.

Um dia meu pai, ao entardecer chegou como sempre chegava, e logo após o jantar disse-me que tinha alguma coisa para me mostrar. Não pegou o jornal como de costume, mas trazia na mão um livro. Lembro-me que era bem colorido. Sentei na sua perna e ele leu, de cabo a rabo uma bonita história de um cavalo. Lembro-me ainda bem que em cada página tinha um potrinho e um menino em diversas situações empinando e correndo por belas paisagens, e logo abaixo das figuras algumas linhas escritas que por certo era de onde meu pai fazia a leitura.

- Ah! Esta é a história de meu alazão, pensei acreditando ser verdadeira ao ouvir a leitura que meu pai fazia.

A história era quase real. Narrava a vida de um cavalinho que nasceu numa fazenda e fez amizade com um menino e etc., etc. e tal. - Sim, esta é a minha história com o meu alazão, pensei comigo. Eu me coloquei vivenciando as aventuras do personagem menino do livro.

Meu pai terminou de ler a emocionante narrativa e me disse:

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- Amanhã vamos levar este livro para a biblioteca da escola. Você vai fazer uma doação dele.

No momento fiquei p. da vida e perguntei:- Mas por quê? Ele é meu.- Não meu filho, o livro na biblioteca irá proporcionar e incentivar

muita gente à leitura, e você vai ser o agente participando ativamente desta atividade configurada na doação deste livro. Muitos meninos vão poder ao lê-lo sentir as mesmas sensações, as mesmas emoções que você vivenciou e sentiu.

- O livro é o invólucro do espírito transformado em caracteres e figuras, continuou ele para mim. Quanto mais pessoas abrirem e folhearem suas páginas, mais e mais vivo, e penetrante ele estará em outras mentes.

Meu pai deve ter escrito alguma dedicatória na página inicial em meu nome; No dia seguinte lá fomos nós entregá-lo na escola.

O meu primeiro livro tão rapidamente se foi como veio. Ele trazia a história de meu alazão num mundo imaginário. Entregando o livro, naquele momento, estava me sentido como um pai, num campo de concentração, vendo seu filho ser arrastado ao holocausto do banho, no forno a gás. Meu pai, segurando-me pela mão, e a passos largos se afastava cada vez mais da biblioteca. Experimentei olhar para trás, e lá estava ainda o livro no balcão da biblioteca, que sorriu e me deu um adeus com suas folhas em revoada. Uma lágrima correu sem vergonha pela minha face.

Nunca mais vi o livro, mas guardo na memória a sua narrativa na voz de meu pai.

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4. UM CONTO DE AMOR

Eu sempre achei minha mãe muito linda, não pelo olhar místico de um filho, mas pelo olhar severo de um homem que sempre soube distinguir o garbo sutil nas mínimas atitudes. Ela era demais.

Minha mãe tinha o dom da elegância não extravagante, da elegância desobrigada, solta; da elegância que flutua, que encanta, se encarna independentemente do traje que seu corpo traz sobre si. Ela era muito mais anjo que mulher. Ela era divina.

Minha mãe não andava, ela flutuava. Seus gestos eram finos, requintados que me embebiam de prazer com sua presença.

Minha mãe tinha uma visão generosa do mundo, pois nunca reclamava de nada e nos ensinou a agradecer a Deus a todo o momento pelo dom da vida. Suas atitudes sempre gentis marcaram muito para mim a

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elegância amável de minha mãe. Sabia ouvir com paciência e com sabedoria orientar. Não deixou desafetos. Tinha um semblante sereno e extravasava seus conselhos numa voz mansa e suave.

Dona Maria como de costume eu a chamava, era fantástica, inimitável no seu jeito generoso de nos tratar. Ela era de ferro, nada a abatia ou a tornava exausta. Mesmo doente seu sorriso era autentico e sempre preocupado conosco.

Lembro-me de suas delicadas mãos até ao nos bater quando traquinas transgredíamos os limites permitidos. Suas mãos postas nos ensinando a rezar. Sim me lembro! Suas ágeis mãos elaborando rendas de crochê. Suas incansáveis mãos costurando na Singer manual nossas fatiotas. Como eu amava estar ao seu lado quando no seu trabalho de costura. Ficava fascinado admirando sua destreza. Lembro-me de suas mãos nos afagando, suas mãos nos orientando, suas mãos nos banhando, suas mãos desenhando figuras, paisagens e nos mostrando assim a arte da pintura. Quem teve uma mãe como eu , já nasceu privilegiado, nasceu abençoado.

Ela era nobre de espírito. Não era presunçosa, mas sabia da sutileza que tinha em cuidar de si sem estroinice. Era uma menina que enfeitava nossa casa.

Ela era meiga e sensível.Eu era pequeno, mas me lembro bem da faceirice dela ao receber

um dia de presente um corte de seda de meu pai. Seus olhos azuis brilharam de uma maneira inexplicável. Lembro-me bem também da imensa tristeza que seus olhos mostraram nas lágrimas tantas escorridas ao cortar acidentalmente o tecido de seda. Olhou-me e como se eu entendesse falou:

- Não vai sair como planejei, mas vai ficar muito mais lindo, enxugou as lágrimas e continuou seu trabalho.

Ela era corajosa, firme e decidida uma verdadeira estrategista.Neste pretenso ensaio que descrevo em rápidas pinceladas tenho

orgulho de mostra a grande mulher que tive o privilégio de ter como mãe.Minha mãe não morreu, pois a morte no sentido real ceifa a vida e

consome a carne; o vivente simplesmente desaparece; ela por misericórdia e vontade deste Deus amoroso se ausentou corporalmente de nós, e assim ela graciosamente nos vela com sua nobreza de espírito.

Minha mãe é então a saudade boa que tenho

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5. BARQUINHO DE PAPEL

A tarde caia preguiçosa e se arrastava serpeando por entre os montes indo morrer negra nos baixios e vales distantes. O Rio Iguaçu estufava fora de seus sulcos cavados no chão e derramava suas águas como lágrimas de súplica pelas cercanias. O Porto Amazonas estava apinhado de gente que esperava ansiosa a chegado do Vapor Peri para recepcionar quem chegava de Porto União ou de São Mateus ou então para o embarque. Eu brincava o meu brincar de cinco anos e ficava admirando aquele fervilhar de final de tarde como se fosse num sonho lindo desenrolando alegremente.

Eu ansiava por chegar a São Mateus e me perdia em contemplações seduzido pelas coisas que jamais tinha visto.

Mais sonhava que brincava e lembrava.

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A viagem de trem de Curitiba até Porto Amazonas foi de uma beleza inexplicável. Praticamente desenrolou-se o dia todo e não me cansava de ver pela janela a paisagem que verde e densa corria em sentido contrário; observava lá adiante a Maria fumaça que gemendo, se contorcendo vomitava rolos de fumo e fagulhas pela chaminé engolindo pouco a pouco os trilhos a sua frente. O povo que entrava e saia a cada parada sempre alegre, falando línguas estranhas carregando malas de couro, sacos e caixas despertavam em mim a curiosidade. Tudo tão estranho, tudo tão belo.

De repente um apito surdo e meu pai avistando na curva do rio o vapor que surgia grita para mim:

- Mario vem pra cá, o vapor está chegando.Minha mãe, com a Laura no colo tratou de reunir a Inca e

eu e deixar perto de si os apetrechos da viagem.O povo, como num formigueiro mexido se alvoroçou.

Como se fosse numa festa festejou alegremente aguardando o vapor Peri que ao som do seu apito rasgando as águas do rio preparando-se para acostar parecia que feliz também festejava. O povo do vapor fazia acenos loucamente; As mulheres, lindamente vestidas movimentavam de um lado para outro os seus lenços brancos e os homens segurando pelas abas os seus chapéus ramenzoni acenavam também. O povo em terra respondia com a mesma alegria. Chapéus e lenços brancos num quadro místico se misturavam ao entardecer que veio tomar parte da grande festa.

Que cerimonial demorado. Mais de uma hora para o desembarque do povo; Para retirar dos porões pelas escotilhas e colocar em terra firme a erva mate, os couros, as crinas, a madeira e os charques e para depois embarcar no lugar o sal para gado, o querosene, os tecidos, as bebidas, as comidas e as quinquilharias. Por fim lá fomos nós medrosamente passando na prancha para entrar no convés do vapor.

Fiquei na popa do vapor sob os cuidados de minha mãe enquanto o pai arrumava o camarote onde passaríamos a noite.

Permaneci ali por longo tempo absorto naquela pintura de cenário nunca imaginado. Vi lá no alto do barranco o trem chegando à estação e todo aquele povo, na plataforma embarcando. Olhava aqueles operários que incansáveis recolhiam nos vagões as mercadorias chegadas pelo vapor. Quase no lusco fusco, ouvi o apito estridente da locomotiva que dizia àquela gente que estava na hora da partida. Admirei aquele colosso de

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ferro comprido, que resfolegando soltava fumaça se esgueirando vagarosamente e novamente engolindo os trilhos. Tudo me fascinava. O clec cleque clec cleque de suas rodas de ferro foi rapidamente aumentando de ritmo e aos poucos como num sonho de criança o trem desapareceu devorado pelas matas, pela noite, ou... nem sei mais.

A barulheira de agora pouco foi se aquietando. No céu em revoadas a passarada buscava seus ninhos, seus recantos. O povo, no interior do vapor foi se acomodando aos poucos. Reinava a ansiedade, pairava a angustia e a solidão da noite e o balouçar da nau amedrontava as entranhas do Peri. De repente o cheiro gostoso de um feijão, de um toucinho frito com arroz e da batatinha impregnou o ambiente trazendo o ânimo e o apetite.

A vozearia então inflou novamente o convés.Achei engraçados aqueles marinheiros todos; pareciam

noivas. Vestiam calças e camisas brancas. Usavam quepes brancos que adoraria ter um. Davam ordens. Recolheram a prancha e desamarraram as cordas que prendiam o vapor no cais. Conferiram e ajeitaram toda a palamenta para poder zarpar.

A noite sem pedir licença chegou e abraçou tudo que encontrou.

A máquina a vapor aliviou um pouco a pressão de sua caldeira num apito rouco indicando o início da viagem. A passarada assustada ou alegre abandonou incontinente seus aposentos dos altos dos arvoredos.

Aquela enorme roda começou vagarosamente a girar, batendo cada uma das paletas na água fazendo o vapor aos poucos se afastar da margem desviando dos parceis em busca do canal de navegação.

Quase mais nada se via apenas o ruído borbulhante da água.

- Venha jantar, minha mãe me chamou.Dormi tranqüilo ao som das orações pedindo ao Bom Deus

uma viagem sem problemas e acordei todo molhado quando o dia se fazia presente.

Meu pai, como sempre acertou o ocorrido dizendo:- A água do rio deve ter entrado no camarote pelas vigias

mal embaçadas.

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Voltei para a popa e fiquei vendo hipnotizado o borbulhar das águas do rio fazendo rendas que ficavam estendidas e perdidas para trás.

Um marinheiro chegou e vendo o meu entretenimento fez de um jornal um barquinho e amarado a um barbante soltou na água e me deu para segurar. Aquele barquinho era lindo singrando as águas espumantes deixadas pelo vapor. Parecia o filho pequeno seguindo feliz os passos do pai. Eu conversei longamente com ele no meu conversar de gente pequena; Segredei mil coisas e no seu jeito desajeitado, mas lindo confesso que me entendeu e até me disse alguma coisa que hoje não sei. Quis estar lá dentro dele no balançar das ondas. Nossa amizade casou-se ali no véu de espumas que o vapor e ele faziam.

São Mateus aos poucos foi surgindo na curva do rio. Foi crescendo, foi crescendo e o apito rouco do Peri deixou no convés o povo feliz acenando para o povo do cais.

Deixei tristemente o barquinho amarado na popa e pela mão desembarquei com minha mãe. Implorei para que minha mãe esperasse o vapor zarpar no que fui atendido. Algumas mercadorias desembarcadas e outras tantas embarcadas e novamente o apito rouco do vapor dizendo adeus e ele começou a navegar.

Uma tristeza imensa invadiu o meu coração de menino.Vi de longe o meu barquinho feliz deslizando no embalo

das ondas que o vapor deixava. Mais adiante, antes de desaparecer na curva do rio o vapor deu rouco seu último apito e me pareceu ouvir o meu barquinho de papel imitar o Peri e apitar também e no seu apitar dizer:

- Adeus meu amiguinho, até qualquer dia. Uma lágrima incontida deslizou infame pela minha face indo morrer no canto de meus lábios. Ergui meu braço num adeus saudoso virei-me e segui os passos de minha mãe. Quedo de quando em quando me ponho a lembrar do meu barquinho de jornal

No vapor Peri que se encontra recuperado em São Mateus se você olhar com atenção na popa dele encontra o sinal de um barbante amarado.

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6. MEUS NATAIS

Universal, abrangente, calorosa e cheia de amor assim é a festa de Natal, que inebria e povoa de fantasia a mente das crianças e adultos. É uma data esperada, cantada por todos, e é uma das mais coloridas celebrações da humanidade. É uma época em que toda a fantasia é permitida.

Meus natais eram doces cheios de esperança e ansiedade. Dava a impressão que entre um e outro decorria um século, tal o tempo de espera.

Eu sempre sabia que a data natalina estava próxima porque minha mãe sinalizava ao retirar de seus guardados o presépio, e o pai ao trazer, nem sei de onde, um pé de cedrinho que era bem grande; Eu acho que era do tamanho dele.

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Lá no canto da sala minha mãe ajeitava cuidadosamente, com pregos na parede o pé de cedrinho, e então, eu e minhas duas irmãs começávamos felizes o trabalho manual de preparar as correntinhas em papel celofane coloridas, os origamis de balões, fazendo cestinhas de papel onde minha mãe colocava os docinhos e bolachas que ela mesma fazia. Ela era muito hábil neste tipo de dobradura de papel. Ela delicadamente distribuía os algodões pela árvore, fazendo com que eles ficassem enroscados ou derretendo por entre as folhas como se fossem a neve. Eu nunca entendi o porquê destes algodões, mas também nunca perguntei. Achava fascinante e era o que bastava.

As velinhas, finas em cera, em delicados castiçais eram dependuradas, uma a uma com cuidado, presas por presilhas.

O presépio cuidadosamente disposto do lado do cedrinho dava o ar da devoção e da fé. Do outro lado um espaço reservado para os presentes.

Eu acho que minha mãe conseguia deixar tudo arrumadinho e organizado uns dez dias antes do natal. Após o jantar, todas as noites que antecedia o

tão esperado dia vinte e cinco, as velas eram acesas e meu pai, minha mãe e nós de joelhos rezávamos ao menino Jesus agradecendo pelo dia e pedindo

saúde e muito amor para a família.Eu rezava, mas meu agradecimento era para este tal Jesus

por ele permitir que no dia de seu aniversário a gente ganhasse presentes. Eu achava muito legal este tal menino deus e por isto acompanhava com entusiasmo meu pai e minha mãe nas orações. Meus joelhos às vezes doíam, mas eu agüentava firme até o final. Nas minhas orações eu prometia a este tal menino que iria me comportar, seria obediente a meus pais, e que não brigaria mais com minhas irmãs.

Os dias passavam lentos parecendo séculos se arrastando.Lembro-me que quando chegava a tão esperada noite era de

muita festa e de muita alegria lá em casa. O comportamento meu e de minhas irmãs neste dia era exemplar; Nenhuma briga, nenhuma desobediência. Eu acho que minha mãe gostaria que todos os dias fossem natais. O dia vinte e quatro de dezembro era mágico, fascinante, pois além de trazer o amor, a paz, trazia os tão esperados presentes.

A gente nunca pedia, mas sabia que vinha.O presente sempre representou um momento ímpar que era

trazido pela magia da primeira estrela surgindo na amplidão celeste.

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A oração da noite de natal me parecia não ter fim, mas ao seu término minha mãe sempre pedia para que eu e minhas irmãs fossemos para fora para esperar e anunciar a primeira estrela no céu.

O céu era um grande palco e o breu da noite era uma cortina enorme que se abria para mostrar a sua principal estrela; A primeira que surgisse. Eu acho que às vezes o céu era trocista conosco ao demorar em abrir sua cortina.

Naquela época, a escassa iluminação das ruas permitia um céu mais escuro revelando imediatamente a primeiro ponto luminoso ao aparecer de repente na amplidão.

Às vezes me colocava deitado de costas para facilitar fiscalizar o surgimento da tão desejada e esperada primeira estrela no infinito céu.

De repente, alguém de nós grita apontando com o dedo um ponto brilhante no céu:

- É ela, é ela!E nós, em louca correria entrávamos estabanados na sala

gritando para nossa mãe:- Ela apareceu! Ela apareceu!Minha mãe sorria, com aquele sorriso lindo para nós,

meigamente nos abraçava e apontava para os presentes ao lado do presépio.Ah! Como meus natais eram lindos.

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7. UM VAPOR, UM RIO E UMA SAUDADE

Era uma daquelas madrugadas fria, final de primavera. As flores em profusão, respingadas do suor da serração, ainda em êxtase, exalavam mil perfumes pelo ar. As borboletas ainda dormiam embriagadas ou dopadas pelo néctar roubado nos jardins. Tudo era maravilhosamente deserto em descanso profundo, e assim, maculando este cenário, caminhava eu a esmo no ritmo da dança das recordações.

Mais adiante avistei o solitário vapor Pery. Ele me viu e feliz, bocejando, acenou para mim. Mecanicamente acenei também.

Cheguei, como quem não quer nada, e me postei encostado nele como puta velha buscando soluções para coisas impossíveis e insolúveis.

- Oi! Velho camarada, disse a ele batendo várias vezes com a palma da mão no seu casco.

- Oi, respondeu-me ele parecendo um pouco triste e saudoso.

- O que acontece? Algum problema? Sempre o vi alegre e esperançoso?

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Ele suspirou, num suspirar de imensa tristeza e como se estivesse num divã desfiou suas mágoas em torrentes sem fim.

O Pery estava ali, preso, estaleirado como um corpo inerte numa cirurgia completa de restauro. De onde ele estava tinha uma visão privilegiada do rio, e por isto, perdia-se em tantas ferrugens almejando desesperadamente o singrar por aquelas águas como dantes navegara. Tinha esperança e, de qualquer forma, isto alentava a sua vida metal.

- Há tempo não vejo meus amigos vapores Leão, Paraná, Iguassu, Sara, Vitória e tantos outros! O que é feito deles? Perguntou-me em voz rouca.

Bateu-me a saudade e uma imensa tristeza invadiu minha alma.

Pensei um pouco e disse que estavam felizes aguardando a volta dele nas águas do rio.

Foi para ele uma gota de alento esta informação.Contou-me da alegria quando, rio acima ou rio abaixo,

cruzava com seus amigos. O silvo rouco, a chaminé soltando fumaça e fagulhas era o conversar deles na solidão do rio, que feito uma serpente, com suas águas deslizando transparentes e lépidas lambendo sôfregas as margens que as continham. Ele, numa voz quase sumida, contou-me dos lenços brancos nas mãos dos passageiros ao cruzar das embarcações.

Subi até ao convés para melhor conversar com ele.Para não desanimá-lo completei dizendo que os amigos

dele estavam também sendo preparados para a grande festa da volta. A certeza que todos tinham é de que sem tardança aquelas águas novamente estariam felizes acolhendo todos os barcos e vapores; E no vai e vem das ondas espumantes provocadas pelas rodas d’água, transportariam felizes mercadorias e pessoas. Seria tudo como dantes.

Ele sorriu!Fui até a proa, passei a mão nela, e sentado por alguns

momentos olhei o rio que se perdia numa curva mais adiante. Olhei demoradamente, e colocando-me no lugar dele pude perceber a angustia que meu querido vapor passava, estaleirado ali, e tanto tempo sem o contato com as águas.

O gigante estava no ancoradouro, quase inútil preso, um tanto carcomido pela ferrugem, sendo aos poucos restaurado, apenas para servir de deleite para alguns curiosos que se postarão junto a ele para fotos

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futuras de recordação. A condenação para a inutilidade do Pery estava numa situação irreversível. Ninguém tinha mais paciência para estas viagens de prolongado tempo, e o rio maculado pela imundície e de leito aterrado pelo areal não se prestaria para qualquer tipo de navegação.

E o pobre Pery isolado, triste desconhecia tudo isto.Estava ali, tal qual um moribundo que lhe escondem a

doença, acreditando que ainda navegará pelo rio Iguaçu.E continuei meu conversar.Lembrei com ele a beleza e o encantamento da procissão de

Nossa Senhora dos Navegantes. O Rio ficava apinhado de barcos e vapores enfeitados que deslizavam graciosos pelas águas do rio. Sumiam na curva da nascente e apareciam logo mais para o delírio, com palmas e vivas, gritadas pelo povo que se aglomerava na margem direita, na entrada do porto.

Lembramos dos momentos festivos, e o burburinho buliçoso do povo no embarque e desembarque. Da retirada das entranhas dos vapores as mercadorias, e da cena bucólica das senhoras de vestidos longos e chapéus enfeitados e de seus homens em terno e gravata. A chegada do vapor no porto, anunciada pelo seu silvo rouco, era motivo de festa. A população se enfeitava, e feito criança descia para ver, para saber, para fofocar, e para participar.

Ele riu um pouco do jeito dele, matutou por alguns segundos e perguntou depois de um longo suspiro:

- Você acredita mesmo que eu posso novamente singrar todos estas milhas de água novamente?

O sol já aparecia despertando as borboletas, os entregadores de pão, as fofoqueiras de plantão e tantos outros viventes.

O campanário lá mais para o alto tocou o sino do nascer do dia.

Não respondi. Apenas fiquei olhando condoído para aquele gigante e confesso que vi lágrimas em profusão nas suas feições.

Mudei de direção o meu lacrimejado olhar e olhei saudoso para aquele rio podre, lodoso; Muitas lembranças boas me vieram; Voltei-me então para o Pery, e mais uma vez contemplei condoído o vapor enferrujado; E para não chorar com ele, afastei-me dali no meu passo mole, de um passar incerto que me levou para a realidade nua e crua que me vestia do agora cruelmente.

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8. LEMBRANÇAS DE UM TEMPO

Eu sempre fui fascinado pelos barcos e vapores. Em gerações passadas devo ter sido um Viking.

Vê-los singrando de um lado ao outro, graciosamente fazendo ondas, e por onde passavam despejando aos montes espumas nas águas do rio, era alguma coisa que me fazia viajar além da imaginação.

Meu passatempo preferido, quando guri, era construir barcos de papel e fazê-los navegar na bacia d’água, no tanque de lavar roupa ou pelas valetas nas enxurradas após as tempestades. Ficava matutando, e me via dentro deles divertindo-se a valer.

Alguns bons tempos atrás...

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São Matheus mudava de nome; Era o mesmo santo, mas com a escrita diferente, com sobrenome, e agora para São Mateus do Sul; isto acontecia em 1943. Eu guri, com quase 4 anos de idade, estava por lá para conferir a festa.

A cidade, embora pequena, era um importante e movimentado porto fluvial, principalmente para o escoamento de erva mate e madeira, mas bucólica na sua singeleza de viver. O Rio Iguaçu, que vinha de longe, tortuoso fazendo turbilhão para lamber barrancos por entre a mata, era a grande estrada líquida que a ligava à Capital do Estado. O patrimônio contava na época com pouco mais de duas mil almas. E a coisa mais chique da época era estar no porto, ponto turístico da cidade, para ver as embarcações chegar e sair. Os homens a caráter com seus Ramenzonis na cabeça e a mulheres exibindo seus trajes e chapéus da moda faziam passarela, pelo porto, na chegada e saída dos vapores. As chaminés fumegantes e os apitos das embarcações pintavam de rara beleza esta tela incomum na beira do rio.

O rio, os vapores e a multidão, tudo aquilo exercia um fascínio enorme em mim

Minha mãe não permitia que me aproximasse do rio e por isto, de cócoras, na frente da casa ficava observando, lá mais para baixo, aquele torvelinho. O apito soava anunciando a chegada de um vapor e eu corria, para frente da casa, para tomar minha posição de observador. Ficava

me imaginando no lugar de um daqueles marinheiros, vestido de branco, viajando em um naqueles vapores.

Quase todos os dias era dia de festa. Sempre tinha um vapor atracando no porto.

De todos, aquele dia foi um dia especial, um dia diferente.Muitas carroças, milhares delas, enfeitadas em mil cores,

vinda das colônias se acomodavam em torno da Igreja. Alguma coisa muito importante estava para acontecer. Perguntei para minha mãe e ela de pronto respondeu que era a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, e que uma grande procissão levaria a santa até o rio para uma pequena navegação.

Todo aquele povo se enfileirou, e como uma cobra gigante, contorcendo-se de um lado para outro, em rezas e mil cantorias, deslizou em cantorias, passando pela minha rua, até se desmantelar no rio.

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Minha mãe rápida, curiosa ou religiosa, não sei, pegou pela minha mão, e quase que de arrasto fui parar lá no porto.

Fiquei feliz, porque estava no meio daquele povo, usufruindo de tudo aquilo. Todos os vapores multicoloridos tal quais as carroças enfeitadas que ficaram lá ao lado da Igreja, rebolavam de um lado ao outro, no marolar das águas, esperando pela santa. Colocaram a imagem em um deles e aos poucos, um a um, apitando sem parar, vomitando fogos de artifícios, foram em fila rio acima até quase desaparecer na curva.

Que visão maravilhosa! Lá mais adiante, os barcos e vapores fizeram a curva, e vieram em fila, cuspindo espuma pelo rio, até a atracação no porto. Desceram a santa, que parecia feliz pelo passeio, e o povo entoando hinos sacros a conduziram em procissão até a Igreja.

- Vamos ficar mais um pouco?Eu pedi enquanto a procissão deslizava preguiçosa de volta.

Minha mãe amava aquilo também, e assim, eu e ela ficamos um longo tempo, silenciosos, contemplando os vapores se preparando para suas viagens de volta à Capital ou ao Porto União. Alguns apitos roucos, e aos poucos o porto melancolicamente se vestiu solitário,

Subimos, eu e ela de mãos dadas até em casa, e vi que, ao lado da Igreja não havia mais nenhuma carroça enfeitada. Tudo voltou bucólica como dantes.

Eu então me perguntei:- Por que será que todos os dias não é dia de Nossa Senhora

dos Navegantes?Naquele dia fui dormir feliz sonhando com os vapores da

imaginação.

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9. CAVALGANDO UMA BICICLETA MUITO LOUCA

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Quem, quando guri não morreu de vontade de andar de bicicleta? Pois sou um destes indivíduos que quando imberbe ainda, e não pubescente sonhava com a magrela dia e noite. Implorava insistentemente uma para meu pai, mas ele impassível ignorava as minhas doridas súplicas. No meu tempo, lamentavelmente não tinha ainda a grande motivação de –“Não esqueça de minha caloi”.

A bicicleta povoava meus sonhos. Era uma coisa boa e um tormento ao mesmo tempo. Eu sonhava com aquelas lindas propagandas de bicicletas que apareciam nos jornais e revistas. A sueca Monark, por

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exemplo, era considerada a rainha das bicicletas e era feito em aço de primeira, acabamento esmerado e cores lindas. Era a preferida do Brasil segundo a propaganda. Era a minha preferida também. A danada vinha com dínamo Hackel para os faróis Riemann e estava acoplada com a bomba pneumática Progress. Uma belezinha. Eu vivia fazendo coleções de recortes destas propagandas. Nos meus sonhos eu já havia andado milhares e milhares de quilômetros deslizando ruas, estradas, vielas e campos. Eu estava perito no assunto em botar a bunda no selim.

Para mim, um estilingue no pescoço, um picuá carregado de pedras na cintura, um pião, umas bolinhas de gude e uma magrela para me carregar era o máximo de minha ambição. Nada mais eu queria. O estilingue, o picuá, o pião e as bolinhas de gude eu os tinha, mas a bicicleta em meio a névoas ficava turva em meus anseios. Quando eu a teria? Martelava constantemente em meu cérebro esta pergunta. Quando?

Um dia vou possuir uma, pensava otimista olhando demoradamente aqueles recortes de propaganda.

Este dia não demorou a chegar.No meu tempo, todo bom moleque que já sabia ler e escrever tinha

que procurar alguma ocupação ou ofício para desenvolver. E lá fui eu aprender o ofício de marceneiro. Tinha 12 anos de pura inocência e muitos sonhos a realizar. Muito mais sonhos e pouca realidade.

Na marcenaria trabalhavam alguns marmanjos, eram os meus professores e a um canto, lá mais para o fundo do barracão, tal qual uma princesa encantada permanecia sempre uma linda e indescritível sueca. Pareceu-me, algumas vezes que ela dava umas piscadelas para mim. Eu acredito que foi amor à primeira vista.

Minha iniciação na arte de construir tranqueiras em madeira estava indo muito bem, mas minha paixão pela sueca aumentava desesperadamente dia a dia. O percurso de casa até a oficina de artes em madeira era bem longo, mas minha motivação em estar lá antes da hora e sair depois da hora era esta linda e graciosa sueca que impassível permanecia lá como se estivesse obcecadamente me esperando. Era uma atração fatal.

Dois tímidos. Eu de um lado fazendo minhas tarefas, jogando de quando em quando um olhar furtivo e enamorado e ela de outro lado, calada, linda me espreitando.

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Um dia o dono da oficina me surpreendeu passando a mão nela. Fiquei sem jeito, esperei uma bronca, mas ele simplesmente me disse:

- Cuidado com ela, moleque, ela é minha e sou muito ciumento, mas como sou bastante liberal, se você quiser um dia eu o deixo sair com ela.

Minha alegria foi tanta naquele momento que quis gritar, dar um abraço nele, mas apenas timidamente agradeci.

Isto nos fez, eu e a sueca mais próximos um do outro. O nosso namoro estava cada vez mais forte. Ela era caladona, mas me permitia que eu ficasse ali ao seu lado falando qualquer coisa, sobre mim, sobre meus amigos; Era um bla bla danado sem fim.

A minha paixão pela sueca estava em proporções descomunais. Quando em casa não via a hora de retornar ao trabalho para estar ao lado dela. Os finais de semana me pareciam longos e intermináveis.

O grande momento de realizar o meu sonho chegou! Meus lindos sonhos seriam realidade agora. Vou finalmente andar de bicicleta.

Alguém da oficina precisaria ir fazer uma entrega de uma encomenda qualquer do outro lado da cidade. Eu fui o escolhido.

- Você sabe andar de bicicleta? Perguntou-me o dono da Marcenaria.

Esperei um pouco dei um tempo para responder. O treinamento que fiz nos meus muitos e variados sonhos me pareciam reais. Eu sabia, é claro que eu sabia andar de bicicleta e muito bem. Recompus-me não acreditando ainda na pergunta e de imediato, meio gaguejando respondi.

- Sim, sim eu sei.Colocaram com cuidado a obra de arte restaurada no bagageiro da

bicicleta dizendo-me:- Cuidado com esta peça, ela é antiga e de muito valor.- Sim, gaguejei.- Guri, cuidado com a minha Monark, ela é uma coisa preciosa que

tenho, acrescentou o dono da marcenaria.Finalmente a sueca estava em meus braços e logo logo estaria sob

minhas pernas. A minha alegria era tanta que acabei acreditando que sabia realmente bicicletar e com isto tive um orgasmo precoce.

Olhei aquela formosura toda reluzindo de impecável pintura preparada para a missão quase impossível.

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Os primeiros 100 metros eu os fiz apenas empurrando a sueca. Fui num monólogo tranqüilo com ela. Queria estar longe das vistas do dono dela no memento sublime de dar à primeira trepadinha. A cidade até parecia que parou para me permitir andar sem problema. Suas ruas em colossal areal se estendiam desertas por quase todo o trecho. Até os cachorros vadios se recolheram.

Criei coragem, mas tremendo de medo frente a uma enorme descida me encavalei desajeitadamente em cima dela. Pareceu-me ouvi-la dizendo:

- Vá com calma meu amor!Eu estava tarado, estava afoito, na realidade eu era naquele

momento o noivo virgem doido pela primeira foda e não atendi ao seu reclamo, comecei a descida em desembalada corrida. Ela gemia sob meu corpo que quase solto queria escapulir.

Meus cabelos soltos ao vento acenavam felizes e eu em início de operação radical começava a suar frio. O medo estava solto correndo lado a lado comigo. Meu anjo da guarda suplicou aos céus e me abandonou. A Monark desgovernada, zig zagueando doida engolia a distância, gritando frases desconexas. Meus pés soltos não encontravam os pedais e o selim fazia bolhas na minha bunda.

A sueca gritava frases de ordem, rebolava toda, mas eu juro que ela estava feliz pela liberdade incondicional que eu estava lhe proporcionando.

Como um peão nos corcovos da mula xucra eu tinha presa apenas uma mão no guidão da desgovernada Monark.

Pouco mais de 50 metros, nada mais do que isto foi palco da mais ousada e radical desembalada corrida ciclística que se tem notícia coroando ao final com um fenomenal acidente.

Um banco de areia ao nos ver doidamente se aproximando gritou, acenou, gesticulou, quis sair do lugar e nos seus braços espetacularmente fomos parar.

A sueca quando colocou seu rodado dianteiro no areal, deu um espetacular corrupio no ar, xingou largando-me em pleno vôo. Planei por alguns segundos e vertiginosamente de cabeça cai. A minha fuça foi a primeira a chegar ao areal vindo logo em seguida a Monark que num baque se enrolou toda em mim para amaciar sua queda.

A logística da entrega foi estancada neste ponto. Apenas 50 metros de adrenalina pura. Foi uma experiência incrível cavalgar numa xucra

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sueca que acabou culminando na realização do meu sonho – Andar de bicicleta. Desastrosa experiência, mas foi o início. Finalmente andei de bicicleta.

No local uma boa alma me ajudou a se desvencilhar da magrela que toda retorcida prendia-me a ela num abraço funeral; juntou cuidadosamente os pedaços da obra de arte que levava na garupa e me entregou com cuidado.

Eu estava todo empoeirado e sangrando, mas estava muito mais feliz que preocupado.

De repente, recompondo-me um pouco bateu loucamente em minha memória a recomendação:

- Cuidado com esta peça ela é uma obra de arte e de muito valor. Cuidado com a minha bicicleta, ela é bla e bla e mais bla.

Comecei a chorar desesperadamente reunindo os restos mortais da obra de arte e juntando do areal maldito a linda sueca toda retorcida.

- O cara vai me matar, pensei eu, enquanto caminhava de volta.Pensei em fugir, desaparecer deste mundo, mas criei coragem e

continuei o meu regresso. Como um bom empregado, ao emprego estou retornando.

Ao chegar de volta com aquele monte de ferro e lata retorcida disse ao dono da marcenaria:

- Fui atropelado e não me lembro de nada.A sueca, no seu último suspiro teve forças e me deu um beliscão

pela mentira. O dono da marcenaria, esbravejou, vomitou impropérios e quando quis me bater desmaiou caindo espetacularmente ao chão.

Mudei de cidade, fui para o seminário e até hoje não tive coragem de ir lá receber o meu salário.

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10. JURITI

Até prova em contrário, eu sei que toda criança gosta de animais. Um cachorro, um gato ou um pássaro são os mais comuns do afago interesse das crianças, e eu fiquei nesse comum, pois tive um cachorro como animal de estimação. Na realidade era uma linda cachorrinha vira lata.

Juriti era o nome dela. Apareceu no portão lá de casa ainda pequenina, ganindo de fome e frio. Olhei confuso para ela, por entre as fendas das balaustres do portão, e ela olhou para mim com aquele olhar de

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súplica que só os cachorros sabem fazer, e eu acredito que isto foi amor à primeira vista.

Catei-a do chão, enlaçando com meus braços acomodei-a no meu peito, e corri feliz, gritando, mostrar o achado para minha mãe.

- Posso ficar com ele? Perguntei num misto de alegre e ansioso.

Minha mãe pegou o animal de minha mão, olhou com cuidado virando-o de um lado para outro como que no desejo de descobrir algo, falou:

- Não é ele, é ela.- Como é que minha mãe consegue descobrir o sexo dos

animais? Pensei admirado, naquele momento. Minha mãe é maravilhosa e competente nisso, ela sabe se é galo ou galinha, se é boi ou vaca, se é cabrita ou bode, se é cavalo ou égua. Quando guri, muitas vezes quis perguntar o segredo disso tudo a ela, mas me contentava simplesmente em acreditar. Ela falou, está falado!

- Eu acho que seu pai não vai gostar, completou ela.Depois de muitos “deixa me ficar com ela”, “deixa me ficar

com ela”, a Juriti finalmente foi adotada pela família. Foi uma festa geral.Foi crescendo rápida e sapeca, mas morava no quintal,

amarrada a uma cordinha para cuidar da casa.Já adulta sua raça lembrava um pouco de Collie. Tinha uma

pelagem média mesclada em branco e marrom que dava a ela uma aparência agradável. A mãe dela deveria ser uma cadela com pedigree, que com certeza, andou em más companhias, de vira latas vadios e sarnentos.

Desta vadiagem toda nasceu a Juriti que por certo foi abandonada por aí, e veio parar no portão de casa.

Eu acho que a Juriti nunca se importou muito com isto, em casa ela era bem tratada e parecia muito feliz.

Eu e Juriti nos dávamos muito bem. Ela era um grude, pois onde eu estava, lá ela queria estar também. Latia, mordia meu calcanhar, lambia meus pés. Ela era toda festa.

Era a companheira dos meus folguedos em casa e na rua. Gostava de sair, quando eu saia para brincar. Lembro-me perfeitamente como ela toda alegre, presa àquela corda, olhava para mim e de seu rabo em movimento quase gerando um tufão, quando de manhã eu levantava para ir buscar o leite na chácara. Era um bom trecho a ser percorrido.

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Soltava-a da cordinha e lá íamos nós, eu assoviando e ela latindo, em desembalada correria. Ela cheirava os postes, corria afoita e inutilmente atrás de borboletas e de passarinhos, tal qual uma doidivanas latia feliz para coisa alguma. E eu me divertia com isto. Pelo caminho, muitas vezes além das borboletas e passarinhos cruzavam vadios cachorros enormes e ela com medo se enroscava medrosa em minhas pernas pedindo meu colo.

Nem sempre as coisas boas duram para sempre.Uma noite, nossa família foi acordada por um barulho

infernal de briga entre cães dentro de nosso quintal. Tarados cachorros, vadios vira-latas, aos milhares deles quebraram o portão e atacaram a inofensiva, pura e virgem Juriti dentro de nosso quintal.

O que vi naquela noite foi alarmante.Meu pai aos berros conseguiu com pedaços de paus e

pedras afugentar aqueles miseráveis, mas apenas um deles permaneceu e nele, engatada estava a Juriti.

Meu pai sentenciou:- Não podemos ficar com esta cachorra aqui em casa.Voltei para cama e triste quase não consegui dormir.

Levantei-me de manhã para fazer a minha tarefa de buscar o leite e não encontrei, como de costume, me esperando no quintal a cachorrinha que tanto amava. Chamei-a em vão. Fui, então sem assoviar e sem correr, cabisbaixo buscar o leite. As borboletas e passarinhos pelo caminho voavam desnorteados procurando pela Juriti. Até os vira latas, ao cruzarem por mim, ladrando perguntaram pela medrosa cachorrinha.

- Talvez, engatada tenha, aquele miserável cachorro, levado-a de arrasto para outro quintal. Pensei muitas vezes isto.

Procurei-a em vão por muitos lugares e por muitos dias.O tempo passou, dois anos talvez, mas a imagem alegre da

Juriti nunca me saiu da cabeça. Abatia-me uma tristeza infinda quando de manhã, ao ir buscar o leite não a encontrava ali toda faceira e alegre me esperando.

Certa vez, quase ao romper da madrugada ao passar por uma viela mal iluminada, como numa visão maravilhosa vejo uma cadelinha, magra, maltratada, com as tetas grandes que pelo seu porte e pelagem em cores branco e marrom lembrava a minha cachorrinha. Meu coração acelerou. Não me contive, parei e chamei:

- Juriti!

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Aquela cachorra parou de chofre de remover o lixo, virou-se para mim, fez menção de abanar o rabo e com olhar lânguido e triste caminhou cabisbaixa até perder-se na escuridão.

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11. MINHA MÃE E O SISTEMA KANBAN

O sistema Kanban, segundo vários autores consultados é um dispositivo sinalizador visual, um cartão que fornece instruções para que a produção inicie a fabricação dos itens marcado no cartão ou então para mostrar quanto de material está em estoque e quanto deste material vai ser preciso comprar. É um sistema largamente usado pelas indústrias e pelos supermercados. A palavra é de origem japonesa e significa, na língua deles etiqueta ou cartão; O sistema se utiliza de um quadro, estrategicamente localizado para colocar estes cartões que servirão de aviso ou de lembrete para as compras ou fabricação.

Por que é dado o privilegio da invenção do sistema Kanban aos japoneses? Somente pelo nome Kanban? Não só por isto. Então vamos ver.

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Conta a história que na década de cinqüenta o Japão pós-guerra estava faminto por organizar e deixar com qualidade seu parque fabril. Dependia desta organização para se ter um custo reduzido aos seus produtos fabricados e se ter um controle refinado sobre o terrível desperdício principalmente no chão de fábrica.

A indústria automobilística americana pela pujança e mecanização despertava muita a atenção e muitas vezes servindo de exemplo. para o mundo.

Um grupo de empresários japoneses desesperados por organização nas suas empresas resolveu fazer uma espionagem industrial. Viajaram disfarçados de turistas para os Estados Unidos – óculos escuros, binóculo e máquina fotográfica dependurados no peito, chapeuzinho de pano com aba, ar de besta com suas camisetas e bermudas floridas e um caderninho de apontamentos. Eram os verdadeiros calçudos da época.

Chegaram e cada um foi para a porta de uma fábrica. Disfarçados de operários entraram e conferiram a organização. À noite, no hotel cansados, estropiados, pois tiveram que trabalhar para não despertar a atenção, chegaram a um acordo de que nada do que viram não estava sendo praticado no Japão. Desanimados começaram a fazer as malas para o retorno.

Como naquela época era muito comum quem visitasse os Estados Unidos desse uma chegadinha e fizesse umas compras na Sears, foram então, para cumprir este cerimonial no dia seguinte antes do embarque comprar algumas quinquilharias para suas esposas, filhas ou namoradas ou mesmo amantes. Quando estavam passando pelo caixa verificaram que a atendente retirava uma parte da etiqueta dos presentes e colocava num recipiente. Curiosos perguntaram qual o significado daquela ação. A atendente gentilmente explicou que a etiqueta seria recolhida por alguém que daria comando para repor na gôndola aquele material que eles estavam levando.

- Kanban, gritaram felizes em coro os japoneses. Beijaram a atendente, deixaram um monte de gorjeta e saíram felizes para o aeroporto. A atendente não entendeu nada, mas ficou feliz com a gorda gorjeta recebida. E dizem as más línguas que a partir desta data os japoneses inventaram o sistema kanban.

Mas... Continuemos a história.

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Muito antes deles minha mãe, de origem polonesa já tinha inventado este maravilhoso sistema que ela chamava carinhosamente de grepel. Ela quis um dia registrar em marcas e patentes, mas os organismos internacionais recomendaram a ela que desistisse do intento porque achavam de pouca importância o assunto e também, segundo eles causaria um conflito internacional em vista da palavra em japonês já ser de domínio público.

Os malditos filhos de uma puta enganaram minha mãe.Então vamos aos fatos em defesa do invento desta

simpática polonesa.Ainda quando pequeno, na década de quarenta tenho na

memória bem registrado de que maneira minha mãe comunicava ao meu pai a necessidade da compra da casa, principalmente dos mantimentos.

Como ela não gostava muito de verbalizar o pedido, porque sempre esquecia alguma coisa criou um sistema muito legal que visualmente informava ao meu pai o que de imediato precisava comprar para a casa. De tantos vou apenas descrever um.

O café era comprado em grãos verdes que torrávamos em casa. Era acondicionado em uma lata mais ou menos na quantidade de 5 quilos. Minha mãe deixava no fundo uma quantidade de 1 quilo colocando o cartão (grepel) em cima e cobria com o restante dos quatro quilos. Usava, dia a dia até chegar ao cartão. Pegava o grepel e pendurava num prego perto da porta de saída. Meu pai olhava, anotava e trazia o café na quantidade solicitada. O grepel registrava o nome do item e a quantidade que deveria ser comprado. Minha mãe de posse do café comprado procedia religiosamente da mesma forma. O ciclo se repetia sem erro para o café como para todos os outros itens controlados.Assim, esta polonesa graciosa, geria tanto o estoque de mantimentos como os itens de produtos de limpeza para que não sobrasse e nem tão pouco faltasse nada na despensa de casa.Por esta razão a minha querida mãe é a verdadeira criadora do sistema controlado por cartões e que vá a merda os japoneses.

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12. PERDIDO NO TEMPO

O trem preguiçosamente deslizava, rebolando de um lado para outro pelos trilhos carregando em seu bojo uma multidão que dormia a sono solto.

A madrugada morna desvanecia-se rapidamente de seu tom escuro como se a tinta fresca estivesse escorrendo da amplidão e lá no céu equilibrada a lua em festa, esboçando canseira já declinava para seus aposentos. Bem lá no fim do mundo, onde o céu se funde com a terra, alguns clarões anunciavam que o sol se espreguiçava, e estava pronto para sair de sua toca. Já se podia ver o contorno das árvores ou dos casebres que desfilavam pela janela do trem.

O trem se contorcia todo feito uma cobra gigante no seu clec clec pelas curvas tantas, engolindo sôfrego os trilhos e ganhando distância.

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A saudade que em meu peito eu tinha era enorme e não podia me conter de ansiedade. Meus olhos sonolentos se perdiam pela janela na imensidão que aos poucos ia amanhecendo. Queria chegar. Queria estar em casa que há tanto tempo não via.

Algumas luzes ainda acesas e eis que da curva começa aparecer a cidade. O trem apita e a estação de braços aberto se prepara para recebê-lo.

Enquanto deslizava nos trilhos fui com saudade observando cada ponto, cada lugar.

Do lado esquerdo a cancela fechada e ninguém para atravessar. A cidade ainda dormia. Logo a seguir a imensa esplanada com seus dormentes empilhados. Meus olhos dançaram curiosos mais um pouco por entre os dormentes e chegou até a torre da Igreja. Tudo estava como antes.

O ruído das rodas freadas me avisou que era hora de descer.

Peguei a pesada mala de couro sanfonada e com sacrifício arrastei-a até a plataforma.

Algumas pessoas desceram e umas tantas estavam na plataforma para embarcar.

Ninguém me esperava. Era uma surpresa.Tomei ali mesmo na estação um cafezinho no boteco do

compadre do meu pai. Ele me reconheceu e me deu boas vindas.Chamei o charreteiro. O patear do cavalo no seu plac plac perdeu-se na imensidão

silenciosa do cenário que estava vendo.A praça do lado direito com suas imensas árvores

acomodava uma multidão de aves que já ensaiavam seus primeiros gorjeios. O prédio solitário do correio ao lado esquerdo me fez lembrar de quantas cartas ali postei e de tantas outras que recebi.

Ganhei a avenida, e a charrete dobrou a esquerda. O calçamento com seus blocos sextavados fez aumentar o ruído do patear. Uma quadra apenas e mais adiante dobrou a direita para pegar a minha rua. A minha rua era singela não tinha calçada, mas ela era inigualavelmente linda. Ela era o portal de meus sonhos, de minhas esperanças, de meus desejos, de meus amores, de minha infância, de minha vida.

O ploc ploc das patas ficou frouxo no chão batido.

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Meu coração disparou quando passei pela casa do meu amor secreto. Mais adiante passei pelo bosque de eucaliptos. Quanto medo eu tinha quando garoto de por ali passar. Eu via mil fantasmas que queriam me pegar, me estrangular. Passei pela quadra dos alemães. Lembro-me da fúria do Dr. Brill só porque eu jogava pedras para derrubar as mangas amarelas que se sustentavam no alto da mangueira, que ele tinha na esquina da casa dele. Mais uma quadra vencida e eis que o charreteiro me avisou:

- Pronto, chegamos.A ponte que o pai fez para vencer a valeta da rua até o

portão lá estava feliz por me ver. Pareceu-me que toda a cerca em balaustre se mexeu numa dança doida para me receber.

Cruzei a ponte e não entrei. Fiquei observando atentamente tudo do lado de fora do portão de madeira. Coloquei a mala em cima do banco de madeira que ficava do lado de fora ao lado do portão.

Como são lindas as coisas que gostamos!A casa toda em madeira, com a varanda, que a gente

chamava de varandola, estava numa quietude grande. Não tinha acordado ainda. Do lado direito no quintal algumas flores e um pequeno tanque ao pé de uma jabuticabeira que nunca deu frutos. Um enorme sapo olhava-me curiosamente.A frente da casa muitas flores que a mãe gostava de plantar. Uma flor de cera, toda florida teimava em ficar grudada nas grades da varanda. Lá no fundo, contíguo a casa estava o banheiro e em cima dele planava ainda o avião em madeira com sua hélice em movimento. Lembro-me bem, que este banheiro, o pai muitas vezes usava-o para defumar toucinhos e lingüiças. Um pouco do lado dele vi o jirau de uvas; vi alguns cachos. Logo abaixo do jirau a grama baixa acolhia algumas roupas que a mãe colocou para quarar. Mais ao fundo, pude ver as galinhas que já estavam em atividade ciscando debaixo dos arvoredos. Cada um de nós tinha um pé de fruta no quintal e lá estava o meu pé de fruto do conde todo carregado.

Algumas lágrimas começaram a turbar minha visão e antes que a emoção completa tomasse conta de mim abri o portão e entrei.

Bati palmas.Aguardei um pouco e bati novamente.Ninguém me atendeu e quando estava batendo com

bastante força a Irene me acordou de madrugada assustada perguntando:- O que deu em você?!!!

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13. BUSCAPÉ SEM RABO NA IGREJA

Sempre me encantou, mas tinha um medo danado dos fogos de artifícios. Aquele céu colorido das mil lágrimas e das estrelinhas, o barulho do estampido e o rastro riscado no céu pelas mil fagulhas como cuspidas do rabo de um cometa deixava-me um tanto extasiado e medroso. Já até corri apavorado de busca-pé.

Segundo Roberto Benjamin o busca-pé está classificado como fogos de tiro juntamente com o rojão, salva, foguete de vara e pistola. Precisa ter cuidado e habilidade para solta-los para não se tornarem perigosos

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O busca-pé consiste em um pequeno cilindro de papelão grosso carregado de pólvora fraca, dotado de um orifício de escape e uma vareta estabilizadora, ordinariamente feita de taquara. Uma vez aceso o seu pavio, o busca-pé, por efeito do peso da taquara, desloca-se velozmente e rente ao chão, sempre na mesma direção sugerindo buscar os pés dos circunstantes; daí o seu nome.

Lembro-me que a molecada, não gostando da tecnologia do busca-pé sempre cortava uma parte do comprimento da taquara. Com a vareta cortada e o fogo no rabo o artifício saia feito um filho da puta sem direção certeira apavorando quem estivesse por perto. Era divertido, mas inconseqüente.

O padre da paróquia, um ex prisioneiro de guerra não suportava qualquer estampido e ao ouvi-los se jogava incontinente ao chão; por conta disto tinha excomungado todos os fabricantes de bombinhas e também todo aquele que comprava ou soltava estes malditos artifícios.

No início da noite a Igreja estava lotada principalmente das senhoras do Sagrado Coração, das mocinhas filhas de Maria e dos homens Congregados Marianos. O padre de costas para o altar, ao centro do corredor principal da nave, sentado confortavelmente em uma poltrona conduzia fervorosamente a oração do terço.

Os moleques na frente da Igreja, provavelmente filhos daqueles que em oração se encontravam no interior da nave conversavam, riam e brincavam despreocupadamente. Para aqueles meninos o mundo dos pecados, da morte, do inferno e das excomunhões pertencia aos adultos. Era tudo balela.

Quando tudo parecia paz, abençoada pelo vozeio que vinha do interior da Igreja pelas ave-marias repetidas de forma lamuriosa apareceu um moleque trazendo um picuá com dezenas de taquaras a vista. Deus atendia pacientemente aquelas preces e anotava os pedidos de graça de cada um e não estava com muito tempo para atender a molecada e com isto deu brecha para o capeta fazer a festa.

- Eu descobri uma forma mágica de melhorar o busca-pé, dizia o chegante todo faceiro para a turba.

A molecada fez um círculo para ouvir a palestra e participar de uma oficina de como construir um busca-pé potente. Explica daqui e explica dali e a conferência teórica foi finalizada com o início da demonstração prática.

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Retirou cuidadosamente do picuá dez artifícios que já estavam caseiramente preparados em pólvora forte para dar maior volume ao estampido e as colocou alinhadas no chão. As varetas de curta metragem não passariam pela inspeção do IMETRO.

O capeta, agrupado com os seus possíveis futuros clientes do inferno estava atento e dando maior apoio a tudo isto.

- Vocês devem ficar de costas enquanto eu coloco fogo no rabo dos busca-pés, ordenava o moleque.

O capeta se materializando implorou para ele esta responsabilidade ao que foi atendido.

Rindo a gargalhada solta, não precisou de fósforos, trouxe um pedaço do inferno e iniciou o tumulto.

Os artifícios acesos pegaram rumos diversos provocando uma gritaria infernal na frente da Igreja. Os fieis pararam com as orações e por segundos dentro da nave ficou em suspenso um silêncio sepulcral. Deus antevendo a encrenca se mandou para o céu.

Enquanto alguns busca-pés regidos pelo capeta se divertiam voando de um lado para outro entre as pernas da apavorada molecada três deles, conduzidos pelo chifrudo adentravam a nave vomitando uma labareda enorme pelo orifício traseiro. Depilavam as pernas peludas das velhas, lambiam despudoradamente as virilhas das moças e chamuscavam as pernas das calças dos homens.

Os fieis em terror deixaram de lado as lamuriosas orações para com palavrões se juntarem aos estampidos dos busca-pés; Desesperados se apinhavam tentando sair pela porta central. Na falta de Deus o capeta fez da Igreja um inferno.

O padre de bruços, com a batina chamuscada desfiava maldições e distribuía excomunhões.

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14. FOGO NO PALCO

O Padre Justino achou por bem que eu levava jeito para o teatro. Eu era um palhação em quase tudo que fazia e gostava de estar sempre aprontando alguma.

O Seminário com 100 seminaristas necessitava da ajuda dos benevolentes contribuintes para comprar alimentos e roupas. Imagine você um bando de moleques na idade entre 13 e 16 anos comendo feito uns

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filhos de uma puta e se escorneando todo por todos os cantos estragando roupas e sapatos... Imaginou? Os padres precisavam de muita paciência e muita grana para alimentar a tropa e muita grana para comprar vestimentas para todos.

O teatro, a música e as quermesses faziam parte da maneira mais fácil e segura de arrecadar as benesses deste povo. Desta maneira a sacanagem e o roubo não faziam parte do plano.

O Padre Justino achou por bem convocar os melhores artista entre os seminaristas. Planejou, organizou e meteu a mão na massa ensaiando todo o elenco, pacientemente um a um. A qualquer momento e em todos os cantos se encontrava alguém compenetrado decorando sua parte ou ensaiando uma música ou treinando algum instrumento. Tudo teria que sair às mil maravilhas pois o povo já estava sendo avisado de que deveriam vir, ver, aplaudir e principalmente pagar o espetáculo. As horas voavam e a galera cada vez mais nervosa aguardava o grande dia.

Eu estaria em dois espetáculos – tocaria uma música na harmônica e faria parte da peça teatral. O nome da peça me fugiu completamente da memória. Bem, na época o que eu sabia com certeza e me recordo até hoje de que a minha participação na peça era muito importante. O nome da peça não era importante o importante era a minha participação.

Eu entraria apenas uma vez, mas o suficiente para abafar; para fazer o público delirar.

O Pe. Justino, sempre muito preocupado chegava para mim e dizia:- Mario, fique atento e preste atenção quando eu der o sinal para

você entrar.A minha grande preocupação era apenas com o maledeto sinal que

ele iria me dar. Quem estava trabalhando na peça; do que se tratava a peça; quantas cenas e etc e tal nada disso me interessava. Nada seria mais importante do que a minha interpretação. Eu seria o espetáculo à parte. Fiquei até imaginado, no final o povo todo invadindo o palco me pegando nos braços e em coro gritando:

- O Mário é o maior... É o nosso herói... viva o Mario!!!Passa um dia; passa mais outro dia; e um montão deles passam e a

peça estava tinindo. Todos os ingressos vendidos e muita gente reclamando a falta deles.

Finalmente o grande dia chegou, ou melhor, a grande noite chegou.Naquele dia foi um corre-corre danado.

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- Aonde vamos apresentar a peça? Era a grande questão que pairava no momento...

Muitas sugestões e o Pe. Justino resolve arrumar o dormitório que ficava no segundo andar como a sala de apresentação. As camas todas foram removidas para o corredor e o palco foi montado lá no fundo do dormitório. Este dormitório era retangular de 8 metros por 20 metros e tinha duas portas de 0,80 metros de largura que davam para o corredor; uma em cada ponta dos 20 metros. Acotovelavam-se, entre bancos e cadeiras umas 200 pessoas entre juiz, delegado, corporação do corpo de bombeiro e fieis em geral.

O Pe. Justino abriu a cortina; o povo aplaudiu; ele disse algumas coisas agradecendo a presença de todos pegou sua acordeona e tocou algumas músicas e assim o tão esperado e decantado espetáculo teve inicio.

A peça corria solta e chegava o grande momento... O momento delirante e tão esperado da minha apresentação. Tudo estava preparado. Eu deveria entrar ao sinal do Pe. Justino. Estava deveras nervoso.

O Padre deu-me um tapa na cabeça e um empurrão pelas costas. Entrei em cena!!! Ou melhor, fui jogado em cena. Não ouvi nenhum suspiro nem uma exclamação tal meu estado de nervosismo. Por certo o povo estava se urinando todo de orgasmo tal a felicidade pela minha presença em cena. Para não ofuscar o brilhantismo de outros artistas e nem aquela grandiosa festa o Padre sabiamente cedeu, apenas um instante breve para minha apresentação. Eu deveria tão somente entrar em cena, acender um fogo num fogão de taipa que eu mesmo tinha preparado e sair rápido de cena. Uma fugaz aparição, mas de enorme efeito.

Tudo estava correndo muito bem. Risquei um fósforo que teimava em não acender e quando aceso tentava atear fogo no fogão até que o filho de uma puta do espírito diabólico de Nero entrou em cena. O fogo começou mansamente lambendo as cortinas mais próximas, gostou das mais distantes e se alastrou poderoso lambendo impiedosamente todo o palco.

Alguém, que não estava dormindo na platéia gritou:- Foooogo! E saiu correndo, feito um possesso até a porta onde já

estavam mais 200 pessoas possessas, apinhadas tentando passar. A parede não resistiu e veio abaixo abrindo um rombo suficiente para as 200 pessoas passarem ao mesmo tempo. Alguns voltaram para reclamar a devolução do ingresso e outros, com baldes de água para apagar o fogo junto com o corpo de bombeiro que apareceu rapidinho.

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O delegado e o juiz, entre fumaça e fogo, a um canto elaboravam um documento interditando o dormitório por tempo indeterminado.

Por falta de ambulância o hospital teve que alugar um caminhão para levar amontoado, na carroceria mais de 50 pessoas em estado grave.

Pe Justino, chorando desesperadamente, com a batina na mão tentava abafar o fogo gritando:

- O puto do Mario acabou com o meu teatro. No dia seguinte, já bem cedo arrumei as malas e fugi do seminário.

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15. A SOBREMESA CONSUMIDA

Quando a gente é criança sempre tem aquela iguaria muito apetitosa, super gostosa que deixa os parasitos intestinais em verdadeira revolução quando lembramos ou quando estamos frente a frente com estas iguarias. Eu sempre fui doido por uma sobremesa de clara em neves.

Minha mãe era, além da inigualável mulher em tudo que fazia a mestre cuca na confecção de bolos e sobremesas. Uma em especial, com clara em neves era a paixão minha e da mana Inca. A mãe sabia disso.

Certo domingo nós levantamos e a mãe já estava com a casa quase pronta nas faxinas. Trocou a toalha de centro da mesa da sala alinhou as cadeiras tirou o pó dos móveis e estava varrendo o assoalho. Parecia que viria alguém nos visitar.

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Pediu para que arrumássemos a cama. Mexemos as palhas deixando o colchão bem fofinho e a cama impecavelmente em ordem.

O clec clec da espumadeira contra as paredes da tigela louçada nos chamou atenção e corremos para cozinha.

Quando nossa mãe nos viu se acercando dela falou toda prosa cantarolando:

- Estou fazendo a sobremesa para vocês.Pela quantidade de cascas de ovos na mesa só poderia ser

aquela sobremesa deliciosa que tanto amamos e que satisfaz os nossos ardentes desejos de glutões inveterados. Corremos felizes brincar lá fora, mas com a atenção voltada para a cozinha.

O tempo passou e quando a sobremesa estava sendo despejada da panela ao pirex pegamos a panela para com o dedo indicador remover o que ficou nela. É uma verdadeira delícia este cerimonial de limpa fundo de panela.

O almoço ainda estava sendo preparado e iria demandar certo tempo. A nossa angustia e gula fazia com que os minutos se arrastassem preguiçosamente.

- A sobremesa que a mãe fez para nós já está pronta vamos comer? Não me contendo mais sugeri isto para a minha mana.

- Vamos, de pronto ela aceitou.A mãe estava envolvida com os últimos preparos do

domingo. Sintonizava o rádio para ouvir as horas e olhava impaciente pela porta a espera do pai.

Eu e a Inca, pegamos a enorme travessa de sobremesa e a colocamos no centro da mesa da cozinha. Pegamos duas colheres e nos acomodamos um de frente para outro. Com a colher demarcamos o meio da sobremesa para que ninguém pegasse mais que outro. Iniciamos tranquilamente o consumo do conteúdo da travessa.

Não levamos mais que meia hora para esvaziar a vasilha. Eu lambi a minha metade e a Inca lambeu a metade dela, devolvemos, então o pirex limpo ao guarda-comida e fomos satisfeitos, estufados de pança cheia brincar novamente.

Algum tempo depois o pai chegou com um casal de visitas e o almoço foi servido.

A mãe estranhou que eu e a Inca estivéssemos comendo tão pouco, mas a coisa passou batida.

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- A Marina faz uma sobremesa em clara em neves que é uma delícia, comentou meu pai aos visitantes enquanto já terminavam a refeição.

- Vocês vão experimentar; é uma delícia! Concluiu ele fazendo a maior propaganda dos dotes da mãe e em especial para a sobremesa que seria servida logo depois da refeição. Percebi então que o pai também gostava daquela mesma sobremesa. A mãe deve ter feito igual para o nosso pai, pensei cá com meus botões.

A mesa foi tirada e a mãe, toda satisfeita começou a distribuir os pratinhos e colheres para a sobremesa. Não deixou de colocar um para mim e outro para a Inca.

- Será que é outra sobremesa? Pensei eu.Meu pai lambendo os lábios ajeitou-se melhor na cadeira

como se estivesse acomodando o estomago para reservar um espaço à sobremesa. Os convivas, com as mãos nos talheres seguiam com os olhos curiosamente os passos de minha mãe. Pelo jeito deles o pai deve ter criado uma expectativa muito grande e um desejo físico ainda maior de consumo alimentar.

Aquela sobremesa por certo estaria coroando com êxito o trabalho de minha mãe e proporcionando uma grande alegria para meu pai.

Meu pai e os convidados não viam à hora de comer a sobremesa e eu e a Inca não víamos à hora de sair da mesa.

- Será a mesma sobremesa? Cutuquei a Inca perguntando baixinho.

Ela deu de ombro dizendo que não sabia.Quando vi minha mãe se dirigindo para o guarda-comida

um frio, nem sei por que percorreu minha espinha desde a saída do tubo digestivo até a base da nuca.

Minha mãe, toda faceira abriu-o, pegou o pirex e quando o viu vazio gritou:

- Quem fez isto? E caiu desmaiada.

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16. UMA GALINHA DESTRONCADA

Em qualquer circunstância, aprendi quando em casa, que devemos obedecer e respeitar as ordens dos mais velhos e superiores, e acreditar naquilo que eles ensinam ou dizem.

Quando estive no seminário, além dos estudos normais de formação e conhecimento, tinha que desenvolver e ajudar nas tarefas da casa. Dependendo das habilidades, conhecimento e vontade alguns cuidavam da horta, outros da limpeza e aqueles mais veterinários cuidavam da alimentação e no tratamento dos coelhos. Eu era muito bom no manejo do machado e por isto fiquei encarregado do abastecimento da lenha na cozinha. Era lenha prá caralho para cortar e eu, vapt e vupt deixava a coisa empilhada ao lado do fogão.

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A Igreja que ficava contigua ao prédio do seminário estava sendo erigida pelo esforço financeiro das boas almas da região e pelo esforço operacional dos seminaristas. Algumas festas, as ditas quermesses, eram realizadas no pátio do seminário para arrecadar o numerário necessário para a continuação da obra. Nós, os seminaristas, apenas executávamos a parte bruta – barracas, matar e preparar os frangos, mas na hora da festa apenas ficávamos, do dormitório, ouvindo o burburinho do vozeio misturado com alguma música vinda de uma eletrola qualquer.

A festa rolava solta lá no pátio e às vezes na enxovia do dormitório, curioso eu tinha vontade de espiar pelo vão da janela, mas o padre ficava à postos não permitindo qualquer ato pecaminoso deste.

Foi numa destas festas que fui escalado para sacrificar as penosas. Eram tantas, quase incontáveis, que o método que aprendi com minha mãe não seria eficiente. O instituto de proteção dos galináceos, o IPG estava atento ao morticínio. Era necessário que o abate fosse o menos dolorido possível, e se, por ventura, houvesse qualquer reclamação por parte das galinhas a multa seria pesada.

No papel de carrasco fui conversar amigavelmente com as galinhas, que em fila contritas esperavam a morte. Conversa vai, conversa vem, muitos palpites, mas por fim tive que prometer a elas que o serviço seria executado rápido e indolor.

Sempre fui criativo e prático. Resolvi de uma maneira bem racional, com praticamente zero de dor para as penosas. Pedi ao colega que segurasse a galinha com o pescoço espichado rente ao tronco, e eu, com o machado, iniciei a operação. Galinha de um lado e cabeça de outro. Elas não chegavam nem piscar.

Estava rolando tudo conforme planejado quando o padre chega; E chega chegando em altos brados:

- Vocês são loucos!Nós interrompemos assustados o holocausto, e o padre continuou.- Isto é desumano! Quem é que teve esta maluca idéia?É claro que foram apontados para mim, tanto os dedos trêmulos dos

colegas como as asas das galinhas que em fila esperavam a sua vez para a degola. Encolhi-me humildemente e esperei o desfecho com a possível expulsão do seminário.

O padre furibundo pegou o machado ensangüentado olhou as galinhas decapitadas e aos berros disse:

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- Vou mostrar como é que se mata uma galinha humanamente!O IPG ficou atento registrando o episódio.Olhei curioso, duvidando que o método que ele iria ministrar fosse

mais rápido, e de menor sacrifício do que aquele que eu estava utilizando.Pensei comigo: -para meu bem, devo acreditar e obedecer.Pegou a primeira penosa da fila, prendeu-a por entre as cochas e

com as duas mãos deu uma violenta torção no pescoço da galinha e todo convicto jogou-a no chão ao lado. Quando ia prosseguir a operação pegando a próxima, viu que, às cegas, às tontas, completamente sem rumo a galinha que deveria estar morta saia, com o pescoço tipo rosca sem fim, em disparada, trombando entre as pernas dos seminaristas, e se debatendo pedindo clemência.

O horror funesto se implantou no local.As galinhas desesperadas num cocoricó danado, olhando para mim

como que pedindo ajuda, choravam vendo a colega de pescoço em rosca agonizando.

Num instinto de misericórdia peguei o machado e desferi certeiro golpe separando do corpo a cabeça da galinha sofredora.

As galinhas que em fila esperavam aplaudiram meu ato, e o IPG mandou prender o padre nazista.

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17. . DESCARGA DO VASO SANITÁRIO

Eu acho que em algum momento da vida sentimos vergonha, embaraço ou constrangimento por alguma coisa que tenha sido feito por nos e que por acidente veio a público. São momentos vexatórios, humilhantes que fazem parte de nossa bela existência.

A vergonha, segundo Wikipidea é uma condição psicológica consistindo de idéias, estados emocionais, estados fisiológicos que nos leva a ter o conhecimento ou consciência daquilo que nos levou ao vexame.

A vergonha difere do embaraço, principalmente quando o ato praticado vem a público. Isto é terrível!

E eu passei, certa feita por um hilário embaraço deste.

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Freqüentava, em Venceslau o primeiro ano da Escola Técnica de Comércio. Em tudo me pautava por uma conduta toda regrada no vestir, no me apresentar, no respeito com meus semelhantes e superiores, na dedicação as tarefas, no zelo as coisas públicas e ao meio ambiente e por isto não admitia e exprobrava as coisas executadas fora desta linha filosófica.

A privada para mim deve ser publica e por isto respeitada e cuidada por todos.

Um dia, em sala de aula não me sentindo muito confortavelmente com o rebuliço intestinal solicitei minha saída e apressadamente fui ao destino apropriado. Quando lá cheguei pude perceber a imundície que pairava por tudo, muito mais provavelmente pelo uso inadequado do que pela falta de limpeza. Fedia e por toda a parte os excrementos estavam placidamente acomodados.

A lâmpada que pendia do bocal estava também emporcalhada por mãos imundas que mal e parcamente iluminava o recinto. Nas paredes, que mais parecia um painel escuro trazendo burlescas frases e poesias indecentes estavam também sacrilejadas por dedos emporcalhados.

Mesmo na penumbra pude ver que o vaso sanitário que originalmente era branco portava entupido um monte de excremento e papeis.

Enojado e com os dedos, o indicador e o polegar de tampão no nariz fiz um diagnóstico geral. Constatei muita sujeira e frente a isto o meu sistema digestivo trancou a possibilidade de qualquer operação naquelas condições ambientais.

Antes de sair desta pocilga quis, como um bom cidadão deixar minha contribuição para amenizar tudo aquilo.

- Uma descarga, por certo seria bem vinda, pensei cá com os meus botões.

Tal qual um detetive perscrutei minuciosamente o local no desejo incontido de encontrar a tal válvula hidra. Com certa dificuldade encontrei-a. Aproximando-me dela, olhei-a enojado e não tive a coragem de meter o meu dedo para pressioná-la, resolvi então fazer a operação usando o meu pé. Meu sapato já estava esmagando e dançando em tudo aquilo e por isto, conclui que mais uma porcaria agregada em sua sola não iria fazer nenhuma diferença. Ergui a perna e direcionei o meu pé na tal

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válvula. Pressionei e ao invés do barulho característico da descarga recebi um jato de água na área de junção de minhas coxas com o abdômen. Por alguns momentos eu pensei que o mecanismo de descarga estivesse se negando a executar o processo e vomitou em mim alguma coisa líquida. Ou então, pensei a água não quis se misturar aos excrementos e veio se aninhar por entre as minhas pernas.

Olhei pasmo para o vaso sanitário e pude constatar que o tubo condutor de água estava violentamente enferrujado e apresentava um enorme furo por onde a água escapulia mais facilmente.

Abri a porta e sai de dentro daquela imundície e olhando por entre as pernas fiz uma ligeira avaliação. Não estava emporcalhado, mas estava todo molhado dando a entender para quem olhasse que fiz o serviço nas calças. Esgueirei-me por entre as colunas para me safar de olhos curiosos, mas inutilmente, pois fui visto pelos malditos gazeteiros que imediatamente riram de minha desgraça gritando.

- Mijou na calça,! mijou na calça! E seguiam em galhofas apontando para minhas calças molhadas.

Puto da vida, disfarcei a frente prejudicada com alguma coisa e apressadamente entrei na sala para pegar o material e ir embora. Ao sair, ainda escuto o professor sarcasticamente perguntar:

- Não deu tempo?

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18. UM CERTO SARGENTO

Você já, nas andanças que fez por aí, deve ter cruzado com pessoas que são pretensiosas, presunçosas, arrogantes e acabam se dando mal naquilo querem fazer ou exibir. Deve ter cruzado com pessoas assim e se divertido a beça. Pois bem, uma destas pessoas acabou convivendo obrigatoriamente certo tempo comigo.

Eu cumpria o serviço militar.

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O sargento era um troncudo, e pernóstico pau mandado do exército que pretendia fazer de um grupo de jovens suburbanos, bem do interior do país, em pessoas salvadoras da amada pátria quando se fizesse necessário.

Vivia transpirando bílis por todos os poros, sempre de mau humor, principalmente quando a mulher dele dormia de calça. Nas ordens unidas ele era um terrível nazista tratando dos jovens soldados como que se eles pertencessem à classe dos minoritários indesejados. Um verdadeiro holocausto pós segunda guerra.

O seu comando ultrapassava aos limites da racionalidade, não tendo a menor compaixão ou critério quando alguém fraquejava ou sucumbia durante as manobras. Era cruel e urrava com toda a força de seus potentes pulmões:

- Vocês são umas normalistas! Não são homens, são uns covardes, são uns bananas!

Ninguém ousava retrucar tanto amor, tanto carinho, mas por dentro, remoendo tudo num ódio profundo, queria era meter um pau no cu deste filho de uma puta.

Eu acho que ele conseguia ler o pensamento pornô do pelotão, e mais raivoso ainda uivava feito uma cadela estuprada por um jumento tarado.

- Vocês não são homens! São um bando de vagabundos! Gritava feito uma doidivanas no cio, e se punha em posição

de combate apontando para o grupo dizendo:- Podem vir todos, seus imbecis para a briga que eu

massacro um a um!O ódio carcomia as entranhas de cada um, mas o medo

racionalizava a coisa.Todos controlavam o tempo que restava para finalizar o

holocausto. Muitos, infelizmente, não conseguiram chegar ao final. Um foi preso por tentar matar o sargento, outro foi recolhido ao Pinéu e dois debandaram por este mundo de deus que até hoje não se tem notícias deles.

Um dia, depois de uma marcha castigante, o pelotão foi fazer treinamento de tiro ao alvo. Mosquetão da primeira guerra mundial, completamente descalibrado e sem manutenção adequada foram usados para o dito treinamento.

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O primeiro ensaio seria com o alvo plantado a trinta metros em um corte no terreno. A tropa estava localizada no sopé deste local. O sargento passou as orientações gerais e organizou o grupo para a queima inútil de cartuchos.

O primeiro que fez uso da velharia quase acertou um muar que pastava tranquilamente no pasto ao lado. O sargento imediatamente tomou conta da posição esbravejando impropérios com a pretensão de mostrar como é que se pratica um tiro de mosquetão.

Senhor absoluto da situação, abraçou a arma e disse:- Prestem atenção no que faço, seus incompetentes!Fez uma demorada apontaria e bum, o projétil foi vomitado

pelo cano com destino sabe deus aonde, visto que o alvo continuou virgem.A tropa viu aquilo e num mortal silêncio permaneceu

medrosamente pregada no chão. Ninguém ousou ousar.Como se nada tivesse acontecido, ele, o nazista

pretensioso, examinou a arma como que tentando encontra uma desculpa para o ocorrido, acomoda novamente a arma, aponta e click, e La sai a bala feito uma filha de uma puta com o fogo da pólvora na bunda, sibilando rumo ao destino que não foi novamente o alvo.

O alvo desesperado, se arreganhando todo, parecia que gritava:

- Estou aqui, quero ser desvirginada!A tropa num sacrossanto e mortal silêncio assistia impávida

ao melo drama.O sargento mais embrutecido ainda joga a arma

violentamente ao chão e diz:- Isto que fiz foi simplesmente para mostrar o que vocês

não devem fazer.É claro que a tropa não concordou com a tese, mas como o

espetáculo não poderia ser interrompido e nem era participativo, permaneceu gélida e em mortal silêncio.

O animal prepotente pegou outra arma e na certeza de que não iria errar pela terceira vez, gritou:

- Seus imbecis, prestem atenção de como se faz!A tropa engoliu suavemente o elogio e esperou ansiosa

pelo desfecho.Quase sempre o arrogante peca pela falta de humildade.

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O sargento escolheu dentre muitas uma arma que lhe pareceu abençoada. Colocou o projétil, apontou cuidadosamente e... Eu juro que nessa hora a tropa estava rezando para que desse tudo certo; Nem respirava para que o movimento do ar não desviasse o traçado da bala. A tropa na realidade não queria confusão, queria paz.

Todos os olhos fixos na tela em branco que tinha os círculos e o ponto negro no centro. Aquela tela parecia uma vagabunda de pernas abertas, toda escancarada esperando a penetração.

Ouviu-se o click e o estampido em seguida.Os animais no pasto pararam de pastar para olhar a cena.

Os passarinhos que gorjeavam ficaram em silêncio e até o vento que soprava incômodo desceu suave em brisa para assistir e torcer. Eu acho que até o mundo todo parou.

E a bala sapecada pela pólvora na bunda voava sibilando doidona em direção ao alvo.

Foram milésimos de segundo que congelados no tempo pareceram séculos intermináveis.

Quis o destino que o miserável projétil se distanciasse do alvo, atravessasse um pau de cerca e fosse se perder no barranco.

O batalhão olhou horrorizada a poeira que o impacto fez no barranco e incontinenti virou a cabeça deitando os olhos no sargento. Minutos de silêncio e a gargalhada se fez ouvir em estardalhaço.

Por desacato a autoridade, por desrespeito, por algazarra, o grupo todo teve que cumprir três dias de trabalho forçado quebrando pedra para a prefeitura, enquanto isto o sargento treinava tiro ao alvo

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19. ELETRECISTA DESASTRADO

A importância hoje da eletricidade em nossas vidas é inquestionável. Com ela fazemos de tudo desde a comida até o nosso lazer.

Eu vivi numa época em que apenas a iluminação era importante, e era fornecida pelos lampiões, pelas lamparinas ou por velas de cera. A eletricidade era para poucos, e era coisa de luxo.

Hoje, além de iluminar nossos lares ela movimenta nossos eletrodomésticos, televisores e outras parafernálias. Sem ela não vivemos.

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No meu tempo nada disso existia, e o rádio, tão comum na época, era tocado através de baterias.

É claro que a eletricidade, tanto hoje como no meu tempo de jovem, oferece um perigo monstruoso se for mal empregada ou instalada.

Naquela época morava com minha avó, e na casa dela não existia nada de eletricidade, ou melhor, na cidade a iluminação só era liberada a partir das 19 horas e se estendia até às 22 horas. Sustentando dolorosamente pares de cabos, de braços estendidos alguns poucos postes, bêbados enfileirados eram encontrados por algumas ruas da cidade.

Perto da casa de minha vó, por sorte, havia um destes bêbados postes.

Naquela época não possuía a mínima idéia ou conhecimento de corrente elétrica, tensão ou potência. Era um analfabeto primário em eletricidade. Se me dissessem que a tensão elétrica é a força que empurra os elétrons ordenadamente e que isto forma a corrente elétrica necessária, por exemplo, para acender uma lâmpada eu ficaria boiando mesmo. Pensaria que estavam dizendo asneira.

Toda esta imensa ignorância não foi capaz de impedir ou me desencorajar do projeto eluminatório para a casa de minha vó.

Toda a noite eu, condoído a via, de passos estreitos, arrastando sua chinela de copo de água em uma mão e na outra sustentando o castiçal que parcamente iluminava o assoalho a sua frente. Chelec, chelec, chelec lá ia ela misturada na escuridão projetando enorme sobra que bailava trêmula na parede até se perder quarto a dentro.

- Vou iluminar a vida desta doce vozinha, pensei certo dia cá com meus botões.

E fui para luta. O projeto elétrico era simples. Uma lâmpada na sala, uma

no quarto dela e outra na cozinha. No meu quarto, eu dispensei, uma vez que sempre usava a iluminação do meu querido e velho lampião após as vinte e duas horas.

Comprei no armazém os metros de cabos necessários, três bocais, três lâmpadas uma pêra para apagar e acender a potência luminosa das lâmpadas. Fiz o famoso gato no alto dos braços do poste e estendi em paralelo os cabos até a entrada da casa.

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Minha avó preocupada com a movimentação toda, vendo-me subir e descendo da mesa; puxando os fios de um lado para o outro dizia:

- Marinho, cuidado para não cair! E acrescentava com cuidado num polonês arrastado:

- Você sabe o que está fazendo?Levei o sábado todo para concluir o projeto antes das

dezenove horas.Consegui finalmente, e perto da hora de chegar a luz disse

para minha avó, que toda aflita estava do meu lado:- Minha vòzinha, a partir de hoje a senhora vai abandonar o

seu castiçal. Enquanto dizia isto uma maldição nojenta se achegou solta

em casa. A maldita potência se fez presente fazendo o maior estrago.

Os elétrons em gritinhos histéricos escaparam dos fios e fizeram a festa. Pipoco para todos os lados; chispas ricocheteavam, e as lâmpadas se explodindo em cacos, faíscas e gargalhadas.

Minha avó atônita, grudada em mim, deu um grito quando uma chispa doida lambeu o seu vestido.

Ela, com o vestido em chamas, apavorada, caiu desmaiada ao chão, e eu bestificado com tudo aquilo não sabia se apagava os princípios de incêndio que estava por toda casa, ou acudia minha pobre vozinha no chão. Tudo foi muito rápido.

Abri a janela e a pleno pulmões clamei por socorro, e a vizinhança incontinente se achegou, alguns com baldes de água, e outros com remédios caseiros para reanimar minha avó.

Os elétrons se acomodaram finalmente, mas a fumaça reinava impertinente dentro de casa.

Pelo estrago feito, resolvi fazer um curso por correspondência de eletricidade básica, e enquanto isto, minha querida avó, bastante traumatizada continuou, até minha formatura, usando seu seguro e querido castiçal na mão, com seu andar lento, fazendo aquele barulho de chelec, chelec, chelec do chinelo até perder-se no silêncio do quarto dela.

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20. UM AVIÃO ATEU OU NACIONALISTA

Eu só preciso confirmar a data, mas isto não vai invalidar o que vou narrar aqui. Vou registrar, então, que foi em 1918.

A Europa vivia numa situação econômica extremamente adversa, imersa na pobreza com grandes conflitos, intolerância religiosa e sob a pressão do nacionalismo irracional, aforante, é claro, a guerra.

A pequena cidade de Maria Augusta, próspero porto do Rio Iguaçu, crescia harmoniosa sob a batuta dos imigrantes, principalmente poloneses que vinham fugidos das agruras de seus países de origem. Vinham em busca do paraíso para seus familiares. Vinham despidos de tudo, trazendo apenas seus conhecimentos, suas práticas e uma vontade ímpar, próprio dos primeiros empreendedores.

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Eram, na sua grande maioria, católicos, e extremamente religiosos respeitando as tradições, costumes e ritos do catolicismo.

A sexta feira santa era o ponto alto da servidão a Deus.O povo vestia a melhor fatiota, enfeitava suas carroças,

seus cavalos e vinham com a família para a cerimônia e procissão do senhor morto.

Naquele tempo as formas de diversão não eram tão perigosas quanto as que existem hoje. Rachas e outros esportes radicais ainda não faziam parte do cotidiano da simplicidade da cidade, mas existia na época um sujeito, que por certo forçou a coisa, lá no além com os espíritos, e acabou nascendo fora do tempo dele. Nasceu muito antes, e aprontou e se deu mal.

Ele gostava de brincar e se divertir com a forma simples e natural de viver do povo. Foi piloto de guerra, mas um acidente fez com que ele recebesse baixa e voltasse puto da vida para casa. Para ele a guerra era um esporte para lá de radical. O filho de uma puta, que Deus o tenha agora em um bom lugar, não chegou a viver para ver o final da primeira grande guerra mundial.

Sexta feira da paixão.A cidade se aquietou e se vestiu de luto pela morte de

Cristo. Nas Igrejas os santos se cobriam de roxo e o povo, falando baixinho, contritos se aglomeravam ao lado da Igreja para a procissão. E a procissão saiu da porta da capela para percorrer algumas ruas e retornar a Igreja.

O piloto era ateu e detestava esta quietude. Detestava a cidade vestida de luto. Resolveu dar um corretivo no povo.

Arquitetou um diabólico plano e enquanto o revia se divertia com antecedência.

Emprestou um teco-teco de um amigo que conheceu na guerra e deixou-o preparado para a cerimônia da sexta feira santa.

Faria vôos rasantes sobre a procissão para ver os cavalos em disparadas e o povo em polvorosa.

A cidade toda compareceu. Com velas nas mãos, muitos com lágrimas nos olhos, contritos acompanhavam a procissão.

De repente, quebrando aquele sacro-santo momento, ouviu-se o ronco de um motor de avião.

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A concentração já não era a mesma e os fieis, com seus semblantes carregados, demonstravam contrariados com aquilo.

O avião fez um rasante quase decepando as cabeças dos cavalos e das pessoas. O povo se dispersou mudando o tema da oração - rogavam pragas e amaldiçoavam o piloto. O padre arregaçou a batina e bateu em retirada. Os cavalos assustados, em disparada, relinchando desesperados levavam atrás deles as carroças vazias.

Abandonaram o esquife no meio da rua, e Jesus não teve outro jeito, saiu correndo também.

A balburdia estava implantada.O avião fazia os rasantes e dava para ouvir as gargalhadas

do energúmeno e encapetado piloto.Muita gente se jogou ao chão imaginando que os terríveis

nacionalistas húngaros estivessem ali para dizimá-los.Foram momentos cruéis - ronco do avião sem o silencioso,

relinchos, gritos e barulhos das carroças se quebrando.De repente um estrondo.Seguiu-se um silêncio sepulcral.Lá na esquina, em meio a uma intensa poeira, um avião

beijando o chão era consumido por labaredas enormes que subiam altas lambendo o céu.

Cristo voltou, deitou no esquife, e o povo retornou à cerimônia.

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21. A VESPA E O RIO

Uma multidão curiosa se aglomerou em volta e muitos admirados comentavam:

- Como é linda! Que beleza de máquina!Lá estava, rodeado pela turba em vozearia, o meu

primeiro veículo motorizado. De duas rodas? E daí; não importa era motorizado e totalmente meu. Bem... Na verdade, no fundo, no fundo não totalmente meu e sim apenas um trinta e seis avos, pois os outros avos pertenciam à concessionária que me vendeu a Vespa. Com muito esforço,

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muita economia, aos trancos e barrancos consegui fechar o negócio. Era linda; Era minha paixão. Era meu sonho acalentado por muito tempo tornando-se realidade agora. Lá finalmente estava ela, maravilhosamente linda me esperando pacientemente.

Estava na moda e dava status na época ao indivíduo ter uma Vespa e principalmente importada da Itália. Muito mais mulheres aos seus pés e muitos amigos interesseiros a caça destas migalhas sociais e sexuais. E lá estava a minha linda e inigualável Vespa sendo admirada pelo pessoal à saída do expediente. Todos estavam babando nela. Verdadeira enxurrada de baba estava se formando ali.

Naquele final de tarde eu estava bastante impaciente e não era para menos, pois quase ao final de expediente na Petrobrás recebo o recado de que a transportadora estava deixando na portaria o caixote contendo uma moto. Será que era a minha? É claro que era a minha. Finalmente chegou. Desde que fechei o negócio na concessionária contava nos dedos, na folhinha, nos pêlos do bigode os dias que faltavam para receber a minha preciosidade. Eu sonhava todas as noites com minha moto. Eram sonhos engraçados e alguns esquisitos. Eu delirava, tinha febre, tinha falta de ar e até tentei fazer sexo com ela. A danada tem um traseiro muito bem feito e lindo.

O chefe do recebimento, meu amigo e sonhador e apaixonado por moto também, entendido e prático em receber mercadorias foi lá de pronto para dar vistas e iniciar ao processo de abertura do caixote e conferir a mercadoria.

Bate daqui, arrebenta dali e a madeira toda cai sem resistência inerte por terra e minha belezinha, toda pura, virgem e reluzente se exibe graciosa para todos. Eu juro que a vi rebolando e toda coquete piscando para o povo a sua volta.

Eu fiquei deveras nervoso. Todo mundo admirando, passando a mão, apertando aqui, apertando ali e eu de longe enciumado puto da vida; Minha vontade era botar toda aquela gentalha para correr.

Meu amigo, depois que deixou a vespa completamente pelada, descascada do madeirame todo que a envolvia deitou seus olhos brilhando de paixão para ela, olhou com cobiça um pouco mais demoradamente e todo festivo grita pra mim:

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- Pode vir que ela está em ordem, está prontinha, eu verifiquei tudo.

Assinei a papelada e fiquei paralisado, petrificado diante desta maravilhosa máquina.

- O que faço agora? Foi meu primeiro pensamento. Como é que vou levar isto para casa? Meus neurônios em rebuliço no meu cérebro perguntavam para mim e eu não conseguia ter uma solução, uma resposta adequada. Quando já estava no maior desespero meu amigo, chefe do recebimento atropela meu devaneio perguntando:

- Você vai ou não vai experimentar a moto? - Vou é claro, respondi de imediato.Como é que eu vou experimentar eu não sei, só sei

que cheguei e me coloquei confuso e nervosamente sentado naquela máquina. No momento até me pareceu que eu ouvia a moto toda coquete me questionando: - Ô cara! Você sabe me pilotar? Vê lá o que vai fazer sou toda novinha; Sou toda delicada.

- Que faço agora meu santo Deus? Tremia feito uma vara verde ao vento com esta maldita pergunta me martelando desesperadamente a cabeça.

- Vai ou não vai? Gritou o meu amigo.- Sei andar muito mal de bicicleta, respondi para

ele.- Não tem problema eu vou ensinar você,

prontificou-se ele.- Você liga aqui, aperta ali, torce isto, com a mão

direita isto, com a mão esquerda aquilo, com pé você faz assim, e bla, bla, bla e eu desta forma em poucos minutos estava pronto para pilotar a minha poderosa máquina nova.

Pensei mais um pouco, olhei para todos os lados e com receio de cair e estragar a minha lindeza conclui decidido:

- Não sou capaz; amanhã eu tento; vou levá-la empurrando para casa.

- Vamos lá cara, é fácil eu vou na garupa te dando as coordenadas e o apoio necessário. Assim muito animado o calhorda de meu amigo foi me enconchando por traz na garupa da moto. O cheiro de nova deve ter deixado-o muito alucinado, doidão mesmo.

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Não tive outra saída. Tentei desesperadamente recordar a aula que ele me passou.

Não é que deu certo; A lazarenta da máquina se colocou em movimento, meio em zigue zague no começo, mas foi com os dois marmanjos em cima pés apoiando de um lado, pés apoiando do outra estrada adiante deixando uma linda e festiva poeira para traz.

Meu medo, ou melhor, meu pavor era tanto que meu traseiro foi mordendo violentamente o selim.

A estrada era larga, mas para mim naquele momento e naquela situação era muito estreita. Apavorado arregalei os olhos ao ver que a ponte de madeira que passava sobre um afluente do rio Paraíba se aproximava numa velocidade assustadora.

- Diminua um pouco a marcha, gritou ao meu ouvido o meu amigo. Eu corria, corria cada vez mais.

Na realidade estava tentando frear desesperadamente, mas só encontrei o acelerador.

Os cabelos longos de meu amigo desfraldavam-se desfiando ao vento e quando ele na tentativa inútil de suplicar alguma coisa fazia suas bochechas se inflarem de ar quase à explosão.

E a ponte rindo feito uma rameira, fazendo micagem se sacolejando toda, arreganhadamente se aproximava velozmente em nossa direção.

A estrada fazia uma pequena curva para direita indo se afunilar nesta maldita ponte. O rio caudaloso e sonolento passava por debaixo dela e eu teria que fazer a grande magia de minha vida naquele momento atravessando-a por cima. Clímax total para ela – levando por baixo e levando por cima.

Meu pensamento corria solto feito um moleque travesso bem à frente nossa. Meu anjo da guarda e com certeza o de meu amigo ficaram para traz perdidos no meio do poeirão na estrada.

Como mais nada tinha a se fazer inclinei ligeiramente a máquina para a direita, pedi a proteção dos céus, mirei a maldita ponte, fechei os olhos e fui.

O tempo me pareceu uma eternidade nestes poucos metros entre nós e a ponte. Fui ficando desesperado e meu amigo desmaiou grudado no meu pescoço.

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Quando estava para adentrar a ponte o pânico se instalou em meu esqueleto e incontinente inclinei a moto para o lado esquerdo buscando uma estrada inexistente.

Por alguns segundos a moto eu e meu amigo flutuávamos tranquilamente no espaço. O vento que recebíamos fez meu amigo voltar a si que imediatamente encomendou a alma aos berros e eu, todo emporcalhado solicitei contrito a proteção de algum santo poderoso e forte que por acaso estivesse de folga por ali para nos agarrar e nos proteger antes de cair no rio. Foi tudo em vão. A alma de meu amigo continuou instalada em seu esqueleto e pelo que me pareceu não havia nenhum santo de folga vadiando por ali.

Foi um baque brutal despertando o sonolento rio que em violentas ondas nos engoliu.

Os berros animalescos de meu amigo trouxe o IBAMA que me multou por estar poluindo o rio. Fiquei muito puteado porque no talão de multa o lazarento do policial colocou um x no quadrinho lixo. A bem da verdade o guarda só viu a mancha de gasolina, o lixo ficou por conta e imaginação dele. A moto submersa muito furiosa jogava bolhas para superfície com seu glu glu glu.

O corpo de bombeiros veio imediatamente e salvou o meu amigo que estava no fundo do rio preso debaixo da moto.

Foi uma epopéia e tanto. Voltei sozinho, emporcalhado, desolado, sujo e molhado para casa empurrando a vespa toda enlameada e amassada que resmungava doida para mim.

- Seu bostão, seu incompetente veja em que estado você me deixou.

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22. O ESPELHO RETROVISOR

Meu pai sempre diz que na vida a gente aprende as coisas de duas formas; pela observação atenta, numa aprendizagem paulatina, mas vigorosa ou então levando porrada na tentativa incontrolada do erro e acerto. Eu muitas vezes não observei, por ser apressado ou simplesmente por não ter tido oportunidade de me familiarizar com a matéria e por isto acabei levando na cabeça.

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Por exemplo, nos idos dos anos 60 eu não sabia que o espelho retrovisor era um acessório obrigatório, segundo a legislação brasileira de trânsito, utilizado nos veículos para dar visibilidade aos motoristas.

Hoje em dia, nos carros modernos o motorista acerta o posicionamento adequado do retrovisor sem muito esforço utilizando apenas botões do painel a sua frente. Nos carros antigos o sistema era bem mais complicado e muitas vezes necessitava de uma terceira pessoa para agilizar esta operação.

Em Taubaté, entrei num ônibus que me levaria a São Paulo. Antes de entrar vi um individuo, no lado de fora do ônibus acertando cuidadosamente o espelho que hoje eu sei que é um retrovisor. Parecia um Michelangelo dando os últimos retoques na sua Pietá. Olhou, admirou, cuspiu na flanela e limpou esmeradamente o vidro. Olhou para o motorista, fez um sinal de positivo e foi embora.

Ao entrar fui sentar no primeiro banco do lado oposto ao do motorista. Teria toda a visão da estrada e me senti tal um co-piloto. Pus-me confortavelmente. Estiquei os braços para o alto num alongamento demorado. Bocejei ruidosamente e olhei para o interior do carro. Já estava lotado aguardando apenas o início da largada.

Olhei para frente e tinha uma ótima visão, mas do meu lado direito alguma coisa estava errada; o espelho não me permitia ver absolutamente nada. Abri o vidro da janela e estendi a mão direita até alcançar o espelho.

Com alguma dificuldade consegui realocá-lo de posição. Coloquei meu esqueleto comodamente na poltrona, mas verifiquei que precisaria de mais alguns retoques o acerto do posicionamento do espelho. Alguns toques daqui, outros toques dali e pronto, o espelho estava proporcionando para mim a maior visão traseira do ônibus. Teria condição nesta viagem de ver o que estava por vir e ao mesmo tempo ver o que já veio e já se foi.

Pensei cá com meus botões:- Que sorte tive eu em ter chegado mais cedo e conseguido este

assento. Sou um privilegiado!O movimento na rodoviária estava enorme. O ônibus precisaria

conseguir uma brecha e sair da sua posição e se locomover rapidamente para não engarrafar o trânsito. Conseguiu a brecha e estava saindo rapidamente quando de chofre o motorista freia o veículo de transporte coletivo.

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Quis dar uma bronca, pois quase meti a cabeça no para brisa, mas me contive ao ver o motorista, um cara mal encarado parecendo um quarda-roupa no tamanho e um demônio espumante na atitude.

- Quem foi o imbecil que mexeu no retrovisor? Feito um animal enlouquecido ele questionou isto em altos berros fazendo o ônibus estremecer violentamente.

Fiquei calmamente no meu lugar, pois o assunto não me dizia respeito. Olhei para aquele monstro transfigurado e pensei comigo.

- Este motorista deve ser um insano, ou alguma coisa deve ter prendido os grãos deste vagabundo.

Formou-se uma fila enorme de carros numa buzinação que jamais se ouviu.

A multidão enfurecida lá fora entre muitas coisas colocou a mãe do motorista na zona

Queriam botar fogo no ônibus. Começaram a apedrejar. Fiquei com medo, fiz algumas orações e pensei.

- Que motorista irresponsável! Deveria ser preso imediatamente. Estamos correndo risco de morte.

Quis dar à bronca a fim de colocar um ponto final naquela palhaçada toda, mas me contive, pois o motorista continuava aos berros querendo saber quem mexeu num tal de retrovisor.

- Será que o tal de retrovisor é o apelido dado a bunda deste imbecil? Fiquei matutando calmamente em meu lugar.

O tumulto fora estava perigosamente grande e não sei por que cargas de água, dentro também a situação esquentou.

Como na vida alguém sempre tem que ser o culpado de alguma coisa, -Tem que ser o Cristo ou o Tiradentes - o povo inteiro do ônibus, como se tivesse combinado entre eles, em uníssono gritou apontando para mim.

O motorista recebeu uma multa por estar estacionado em lugar inconveniente, e para se vingar agrediu-me violentamente dando-me uns sopapos, pegando-me pelos colarinhos e me colocando quase a pontapé para fora do ônibus.

Fiquei desolado ao perder a viagem sem entender o que realmente aconteceu.

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23. 0 BEBADO E O BURACO

Eu acho que o bêbado, de um modo geral tem, ao lado dele, um séquito anjo da guarda zeloso e de muita habilidade. Por certo este anjo deve ter sido um bêbado qualquer, quando em vida encarnado, e quando morreu, Deus arrumou para ele, como função obrigatória um serviço social

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- a servidão junto aos bêbados vivos - como forma para que ele possa pagar os pecados do tempo em que viveu encharcado.

A cidade não tinha calçada e muito menos calçamento nas ruas.

O aguaceiro que tinha descido do céu, finalmente deu uma trégua, mas o lamaçal infernal, pegadiço e escorregadio que ficou estava presente para o bailado dos menos avisados.

A tarde se mostrava cansada, e perdia o brilho rapidamente desmaiando no horizonte.

A conversa na esquina era, entre muitos deliciosos assuntos, com certeza, uma crítica ferrenha ao mandatário da cidade, principalmente porque o filho de uma puta não punha calçada e pavimentava as ruas.

Era uma vergonha o estado lastimável do lugarejo. Com a chuva o lamaçal se fazia presente, e com a seca aparecia a poeira castigante.

Embora o lamaçal não fosse de todo ruim, visto que se apresentava como um delirante palco de danças e imundície para quem estivesse vendo, proporcionava prazer. Sempre tinha alguém que entrava desavisado em cena, muitas vezes de passos curtos, medrosos, mas que de repente, como se estivesse recebendo uma entidade qualquer, começava a executar uma dança completamente maluca. As pernas se desencontravam, e os braços tentavam a todo custo planar, mas o corpo, num desequilíbrio infame levava pernas e braços a chafurdar no lamaçal.

Suspense da platéia no momento da ação, mas muito riso na seqüência ao ouvir os palavrões do inconformado enlameado.

De repente paramos o bate papo para observar alguém especial que entrava em cena. Estava a uns cinqüenta metros e vinha em nossa direção. O borracho era de todos conhecido.

Vinha milagrosamente equilibrado num zigue zague danado. Dava dois ou três passos para frente e como se perdesse a força voltava um passo para trás. Parava, dizia alguma coisa em alta e descontrolada voz, respirava, reclamava, dizia coisas desconexas e novamente o mesmo processo. A calçada era estreita para a situação dele, mas o equilíbrio era inenarrável. Parecia uma marionete, de pernas e braços moles, mas sempre de pé. Com certeza o anjo dele deveria estar movimentando as cordinhas.

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Ele se aproximou. Apagamos os cigarros pelo perigo eminente.

No zigue zague e no vai vem dos passos parou junto do grupo.

Estava tão encharcado que simplesmente não nos enxergou, e ficamos momentaneamente embriagados.

Logo a frente tinha uma enorme valeta e um bueiro a céu aberto. Uma prancha de madeira servia de pinguela para atravessar a vala.

Olhamos a valeta, olhamos o bêbado e se entreolhamos e sem que ninguém tivesse combinado coisa alguma, partimos para segurar o infeliz.

Foi inútil! Lá foi cambaleante o tonel. Parecia ter adivinhado as nossas intenções e por isso ganhou força, e mirando a pinguela passou célere por ela como banana na goela de velho.

Em coro dissemos:- O anjo deste filho de uma puta é poderoso mesmo!Ao atravessar a ponte foi parar no meio da rua. Balançou

de um lado para outro. Gritou, resmungou, cantou alguma coisa. Ficou como que plantado ali.

Eu acho que o anjo dele acabou se borrando todo, e por momentos, pegou algum cantinho para se limpar, e aí então a coisa se desgovernou completamente.

Com a ausência momentânea do anjo o corpo ébrio perdeu completamente a noção de direção. Balançou, rodopiou e veio com tudo de ré para o lado da valeta.

Um pé conseguiu acertar a prancha, mas outro ficou perdido no espaço, e com isto fez o corpo dar um rodopio no ar, e se projetar de ponta cabeça no bueiro.

Petrificados pensamos:- O filho de uma puta deve ter quebrado o pescoço!Momentos se seguiram de suspense, de angustia fúnebre

até que fôssemos rápidos para resgatar das profundezas do bueiro o cadáver embebido de cachaça.

Quase caímos de costa quando vimos o desgraçado, todo enlameado, surgindo como um monstro fantasmagórico do fundo do buraco, e ao nos avistar dizer de boca mole:

- Nunca viram um bêbado cair num buraco?

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Com certeza o anjo tinha retornado à tempo!

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24. AGUA DE COCO E COCÔS PELAS PERNAS

15 de janeiro de 1988 sentamos e cuidadosamente fizemos os planos de nossa viagem e assim, com toda a família resolvemos de carro com a carretinha anexada barraquear de Nova Esperança até Fortaleza. A viagem foi ótima com alguns lances de certa comicidade. Um destes lances com um enredo cômico dramático foi ter abusado em demasia do gostoso e irresistível líquido que contem o coco.

Dia 21 de janeiro acampamos em Mundaí. Que lugar lindo! Mar calmo de água transparente e areia grossa margeada por coqueiros

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compondo o cenário da Praia do Mundaí. Fica apenas 4 km do centro de Porto Seguro. O Rodrigo e Gustavo não levaram mais que 10 minutos para montarem a barraca. Visitamos de manhã o centro de Porto Seguro e fomos então para Ilhéus.

Ilhéus é uma cidade pequena salpicada de casarões palacetes e igrejas que em estilo neoclássico emolduram o Centro Histórico.

Dentre os muitos lugares bonitos resolvemos dar um passeio mar adentro para se deliciar em piscinas naturais. Pelo caminho, antes de pegar a embarcação a molecada quis tomar água de coco. Paramos numa barraquinha, destas de beira de estrada toda enfeitada de coco por todos os lados. Cada um se apossou de um coco e bebeu e eu para exagerar e pecar por gula tomei dois. Estavam deliciosos.

Até chegarmos ao barco não demorou mais que 5 minutos de estrada e eu já começava a sentir uns reboliços impertinentes na parte média do meu esqueleto que eu chamo de barriga.

Pegamos o barco e rumamos mar adentro. O rebuliço na barriga começou a gerar cólica que por sua vez trouxe uma vontade doida de peidar. Comecei aos poucos sentir uma ligeira necessidade de defecar. Olhei desesperado por todos os lados e naquela porcaria flutuante não pude ver a presença de nenhum banheiro, nenhum cantinho, nenhuma porta entreaberta; Comecei assim a ficar apavorado. Tive a impressão de que o barco havia percebido esta pequena angustia em mim e se pôs a rebolar de um lado para outro ao sabor das ondas que já se faziam bravas e isto fez com que aumentassem mais e mais os malditos reboliços e a vontade doida de cagar.

- Se demorar muito este passeio estou fudido, pensei eu cá com meus botões.

Em quinze minutos chegamos ao ponto. O lugar era lindo; Águas calmas e cristalinas; podia se ver ao fundo cardumes de multicoloridos peixinhos. O calor era enorme e a água convidativa, mas eu sem condições físicas e psicológicas para aproveitar tudo aquilo. Todos pularam na água. Qualquer esforço que fizesse seria fatal desta forma, optei por ficar ali no barco.

O pessoal todo nadando, pulando na maior algazarra e eu ali, no barco, arcado com uma mão na bunda e outra no abdômen tentando conter a tremenda dor de barriga e rezando para que o tempo voasse.

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Suando feito um desesperado na tentativa de segurar as merdas devo ter perdido o sentido, pois de repente estávamos atracando terra firme. Aquilo era o paraíso. Desci feito um lazarento e corri, curvado, com as pernas cruzando de um lado para outro esmagando os bagos em direção ao carro. No caminho, já não agüentando mais resolvi aliviar um pouquinho a pressão que estava na barriga e o fiz. Foi o peido mais molhado e quente que já tive notícia. A merda, quentinha, molinha, fedendo carniça passeou do tubo digestivo até meus calcanhares lambuzando desgraçadamente as minhas pernas. Olhei desesperado de um lado, olhei de outro e todo melecado recolhi meu esqueleto para dentro do carro. Tinha que ser rápido porque mulher e filhos se aproximavam velozmente. Comecei então a operação limpeza. Foi quase um rolo de papel higiênico consumido para remover a merda que povoava as pernas e parte da bunda. A operação ficou meia boca, pois o pessoal na maior algaravia começou a entrar no carro e assim rapidamente tive que jogar disfarçadamente para fora a papelada emporcalhada.

Liguei o carro para ir então rumo ao centro histórico de Ilhéus quando um dos moleques, rompendo aquela algazarra toda grita desesperado:

- Pai, alguém deve ter pisado na bosta.- Eu acho que cagaram no mundo, observou outro.Começou então a verificação frenética e inútil em cada sola

de sapato. Todas as janelas do carro permaneciam abertas sem qualquer resultado. A fedentina era presente e eu rezando para que não descobrissem a minha cagada.

Até chegar ao museu o calor infernal fez com que a merda restante que teimou em permanecer nas pernas, cueca e bunda azedasse ainda mais de maneira assustadora. Nem mesmo eu todo fedegoso estava suportando. Queria revelar a verdade. Queria estar em casa. Queria um chuveiro abençoado para terminar este suplício.

Pelo caminho só os malditos mosquitos nos acompanhavam; O resto dos viventes fugia da gente. Pelos pastos o gado se atropelava mugindo atabalhoadamente. A passarada em revoadas fugia desesperadamente; Até o sol quis se esconder, mas não encontrou nenhuma nuvem. O caos tomava conta por onde a gente passava.

Chegamos finalmente ao centro histórico. Alucinados os viventes dali abandonaram o local como se tivessem visto o demônio.

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Procurei ficar longe da molecada dentro do museu para amainar um pouco o sofrimento deles. Lá dentro um quadro clássico me interessou; Tinha muita gente aglomerada à sua frente. Fui chegando para apreciá-lo, mas à medida que me aproximava o povo assustado, olhando de um lado para outro e para seus próprios pés foi incontinenti saindo. Fiquei desesperadamente só. As flores que faziam parte da pintura murcharam rapidamente e as pessoas que faziam parte do quadro saíram correndo aos berros também. Apenas um bando de impertinentes mosquitos fazia companhia para mim.

Convidei a molecada para sair e tirar uma foto fazendo de fundo o lindo museu. Dei a máquina fotográfica para um turista qualquer para tirar a foto. A molecada gritava se abanando toda para espantar a mosquitada:

- Tira logo esta foto, pois defecaram no mundo.O turista com enorme sacrifício tirou a foto, deixou a

máquina ali mesmo no chão e saiu correndo como que fugindo fosse de um bando de leprosos.

Voltamos rapidamente para o camping com a galera toda reclamando da fedentina e da mosquitada. Eu ria nervosamente com medo de revelar a verdade.

Chegamos finalmente. Quando entramos no camping nem o porteiro quis ali permanecer saindo correndo feito um filho da puta com os dedos tampando o nariz. O camping estava lotado quando estacionamos o carro, mas estranhamente, em apenas alguns minutos permanecia lá apenas o nosso carro envolto numa cortina espessa de mosquitos.

Descemos do carro, abrindo com as mãos uma passagem por entre a mosquitada insuportável quando o Alexandre gritando aponta para minha bunda:

- Mãe, o pai ta todo cagado.Tentei explicar, mas nada disto adiantou. Aquela noite fui

dormir pra fora bem longe da barraca.

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25. CUECA QUEIMADA EM CORDOBA

Eu sempre gostei de cuidar das minhas roupas principalmente das cuecas, pois por mais que você se cuide a ventosidade emitida pelo ânus sempre vai mostrar na parte traseira interna da cueca um sinal como se fosse de freada. É um peido aqui outro acolá e no fundo da cueca vão se acumulando os resíduos inconvenientes; Embora, diz a lenda que isto é normal, eu considero simplesmente deprimente aos olhos dos outros.

Estava eu em julho, na linda cidade Argentina de Córdoba realizando um tour e aproveitando para fazer um curso avançado da língua espanhola. O maldito frio lá, todos os dias, era simplesmente cruel. Ainda

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bem que o quarto do hotel era bem aquecido por poderoso aquecedor a gás. Acima do aquecedor tinha um cartaz enorme co letras que chamavam a atenção e que dizia em espanhol: - Por favor, não seque roupas em cima do aquecedor.

Nos finais de semana, sempre arrumava algum passeio para conhecer as cercanias e os costumes do povo argentino destes locais. Os passeios se prolongavam por quase todo o dia.

Foi ao realizar um destes passeios que ao final dele quase acabei ficando preso.

O passeio foi programado para conhecer um convento jesuíta famoso dos idos de 1580.

Na noite anterior preparei todas as minhas coisas, lavei minhas meias e cuecas e deixei tudo bem estendidinho secando ao calor do quarto.

Despreocupadamente fiz meu passeio usufruindo de tudo. Fui admirando toda a paisagem por onde passava e as antigas construções jesuítas. As paredes de quase um metro de largura, pedra sobre pedra se erguiam, algumas cobertas de musgo e outras de era, majestosas sustentando seus telhados. Fiquei admirando a arte medieval e imaginando como devia se desenrolar a vida no dia a dia naqueles conventos. lindos por fora mas macabros por dentro. Pude até ver e fotografar a sala de tortura ou flagelo, não sei bem. Fui admirar, neste convento a engenharia maquiavélica das privadas sobre o leito dos córregos.

O dia avançou rápido, com uma pressa incrível sinalizando, pelo céu avermelhado que já a tarde linda daria imediatamente lugar à noite. O sol olhou o vale e os montes com ar cansado e cada vez mais avermelhado escuro se pos sonolento por trás dos montes deixando que a noite estendesse seu manto escuro num sinal de proteção total a terra.

Bem, como a noite chegou e minha vista já não mais podia apreciar a pintura linda daquele local me vi forçado a retornar para o hotel.

De longe avistei no centro da cidade um clarão de labaredas que consumiam famintas alguma coisa. É um incêndio, pensei cá com meus botões. À medida que me aproximava pude constatar que realmente era um incêndio principalmente pelas sirenes do corpo de bombeiro e das ambulâncias. O centro estava um tumulto só.

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Quando cheguei mais para perto pude verificar com preocupação e tristeza que se tratava de um incêndio no prédio do hotel aonde acomodava meu esqueleto.

Com muito custo e trabalho os bombeiros conseguiram debelar o fogo.

De repente comecei a escutar comentários dos bombeiros aos repórteres:

- O fogo deve ter sido provocado por cuecas e meias estendida no aquecedor a gás e já estamos verificando quem foi o culpado. A análise do dna da bosta indicará o culpado. Temos algumas pistas, mas no momento não podemos revelar para não atrapalhar as investigações, dizia o bombeiro chefe ao repórter.

Preocupado com a situação sai de perto e num bar próximo acompanhava apreensivo o desenrolar da história. Não demorou muito e em edição extra a TV Argentina noticiava através de uma maldita repórter, o seguinte: - A polícia já conhece o culpado do incêndio do hotel, é um brasileiro enfatizava ela. Já os jornais sensacionalistas estampavam em edição extra na primeira página. – “Brasileiro põe fogo em Hotel com cueca cagada”. “Polícia da Interpol está à caça do brasileiro que pos fogo em hotel com cueca freada”.- A polícia já sabe e não quer revelar o nome do culpado. Eu estava ficando famoso em toda Argentina como “O incrível homem da cueca furada”.Uns achavam que foi por causa da bosta na cueca a combustão outros que foi por causa de um poderoso peido que ficou preso no quarto. Todos os comentários eu os escutava calado morrendo de medo.Nesta hora eu já estava todo melado de merda, apavorado sabendo que já não mais poderia voltar de avião pois todos os aeroportos já estavam controlados. Deixei a barba crescer, fiquei todo maltrapilho e como andarilho peguei a estrada de volta levando uma semana para chegar ao Brasil.Dias depois, quando já estava bem mais calmo e restabelecido recebi pelo correio um pacote. Conferi apenas o endereço não conferindo o remetente. Abri sofregamente a caixa e dou de chofre com uma cueca toda furada e chamuscada por fogo acompanhada de um bilhete em espanhol que traduzi: - Você não sabe ler aviso seu filho de uma puta?

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26. CONTO - OS TRÊS

MORRINHOS

Por alguns momentos tive o dom sublime de me locomover no tempo. Quis então saber dos índios Xetá a história do aparecimento dos três morrinhos de Terra Rica.

Os Xetá, antecedentes dos Kaingang falavam o Karajá língua do tronco lingüístico Jê.

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Eu acredito que era pelos idos do ano de 1200. Estava eu sentado ao lado da Oca conversando karajá animadamente com a velha índia Yerecê.

A nossa frente, por cima da floresta via-se os três morrinhos. A visão muito bonita e que causava certo fascínio aos índios daquela região.

Quis saber da velha índia alguma coisa sobre aqueles morrinhos que os índios reverenciavam e chamavam de montanhas do amor. E ela olhou longamente para os três morrinhos e começou a me contar.

- Aqui há muito tempo era uma planície imensa que se estendia dos grandes rios até se perder de vista para o sul. Em todo este vasto terreno as coisas mais altas aqui encontradas eram apenas estas perobeiras grossas e altas.

Yarandu era um jovem índio que se preparava para ser um guerreiro. Tinha corpo atleta e um coração apaixonado pela índia Aracy. Era costume da tribo que a união entre um jovem índio e a jovem índia só seria permitido após o pretendente ir à caça e trazer o coração de um animal feroz e de grande porte. E por muito tempo ele se preparou incansavelmente para este dia.

A jovem índia Aracy, lindos olhos negros e longos cabelos que lhe cobriam seus belos seios passava os dias tecendo a rede nupcial e aprendendo a arte do cultivo.

Era lhes permitido apenas trocar longos olhares e dirigir, junto ao Pajé algumas palavras.

Ela suspirava de amor enquanto aguardava o tempo lentamente passar.

Um dia Yarandu se sentiu preparado e foi pedir permissão ao Pajé para ir à caça e disse a sua bela Aracy depois de olhá-la apaixonado e demoradamente:

- Um dia voltarei aos seus braços com o coração da minha caça.Yarandú saiu feliz andando até desaparecer embrenhando-se na

floresta. Aracy todos os dias perdia horas a fio até o anoitecer esperando seu

amado. Qualquer movimentação da ramagem na entrada da floresta

colocava a jovem índia em sobressalto.

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Um dia recebeu uma visão e nesta visão Yarandú pedia que ela fizesse um morro alto para recebê-lo e assim ela começou, dia após dia cavar um buraco e transportar a terra amontoando em outro lugar.

Já não mais voltava para casa na ância de terminar sua tarefa. Os anos foram passando, passando e ela continuava cavando até que um dia uma luz muito brilhante vindo do céu veio de encontro onde Aracy estava e num estrondo violento apareceram os três morrinhos.

Diz a lenda que nesta luz brilhante veio cavalgando Yarandú com um enorme coração na mão. Como recompensa pelo grande amor que um tinha pelo outro os dois ficaram muito tempo lá em cima nos três morrinhos e depois foram carregados pelo grande deus para uma tribo distante só de amor e farta caça.

A velha índia Yerecê ao terminar ficou contemplando longamente os três morrinhos como se estivesse perdida no tempo e por fim, olhando para mim completou:

- Quando queremos muita caça e muito peixe subimos a pé até o alto e oferecemos ao grande deus alguma coisa e como recompensa temos o que desejamos.

E continuou:- As jovens índias sempre vão até lá para pedir proteção aos seus

jovens pretendentes em suas caçadas.Ao terminar de contar levantou-se e me convidou para subir a

montanha do amor. Subi até o alto do moro com a velha índia Yerecê e contemplei maravilhado aquele mar verde avistando mais distante o grande rio. Pedi paz para aquela região e voltei no tempo.

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27. O CAVALO DESLIZANDO

Em Campo do Jordão estávamos com a Marilu e o Gustinho passeando pelas cercanias. Tudo estava muito lindo. Aqueles prados serpeados por pequenos rios vistos lá do alto era uma verdadeira poesia. As asas deltas alçando vôo para o infinito era de uma beleza indescritível. Fomos então para a pedra do Baú.

Lá por perto tem uma linda cachoeira e outros lugares lindos para se olhar. De carro nem pensar. Ou é a pé ou então a cavalo. O Gustinho muito animado já foi adiantando: - Pode escolher cada um o cavalo da sua preferência que eu pago o passeio. Todos procuraram escolher o mais manso, o mais sonso, o mais morto para não ter qualquer risco de vida ou saúde. O Gustavo já foi gritando a todo pulmão com aquele ar de matefísico: - O meu tem que ser o melhor, tem que ser turbinado.

O dono dos cavalos ainda tentou persuadir o Gustavo: - Você não sabe andar a cavalo e o melhor seria pegar algum desses mansos que tenho aqui na cocheira.

Os cavalos que estavam em exposição eram magros, olhos baixos e tristes, caolhos, orelhas caídas e atrás, por cima da bunda uma bela de uma forquilha separava o rabo magro sem pelo que não chegava a cobrir o enorme orifício todo lambuzado de merda. A Bela montou em um deles e o animal arriou ao meio e ela logo gritou: - Esta bosta de animal está doente e

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o dono imediatamente replicou: - É só dar uma ajudazinha e você terá um belo passeio. O Glauco tentou subir em um deles e ficou com o calção enroscado na forquilha dos ossos traseiro do animal.

O Gustavo queria por que queria um cavalo todo elegante, fogoso e conseguiu.

Quando a tropa partiu, olhar o cenário por trás foi uma verdadeira comédia. O cavalo que a Bela montava parecia ter seis pernas, pois ela montada tropicava nas pedras gritando ui, ui ui. Os cavalos do Glauco e da Nádia num trote vadio só reclamavam que até àquela hora ainda não tinham comido nada. Mais pareciam uns bêbados, trôpegos na estrada, de um lado para outro cercando ganso. O Gu ia num papo gostoso com o alazão dele e a certa altura disse: - Vamos dar uma corridinha para humilhar a garotada? O cavalo, um cara vivido e malandro velho da região replicou: - Oh meu, esta trilha tem muita pedra e é possível a gente se foder. – Vamos, encorajou o Gu. Eu sou bom cavaleiro e garanto a coisa aqui de cima. Conversa vai, conversa vem até que por fórmulas matemáticas e físicas provou ao cavalo que poderia perfeitamente deslocar aquele corpo de quase trezentos quilos descida abaixo numa velocidade razoavelmente boa sem qualquer perigo eminente. O cavalo deu uma empinada, relinchou e com a força do relincho peidou e isto foi o suficiente para que os dois descessem feito uns filhos da puta morro abaixo. Pedras salpicando para todos os lados ao som do ploc ploc desordenado. A poeira não se fez de rogada cobrindo toda a região e de repente o que se viu? Dois corpos soltos no espaço num vôo espetacular tentando de qualquer forma agarrar alguma coisa.

O cavalo pisa numa pedra solta no caminho e grita para o Gu. – Segura aí que dessa vez tomamos no cu. O cavalo no vôo colocou as patas dianteiras no olho para não ver a cagada e o Gu, alguns metros acima fazia as contas para ver como é que uma massa x em determinada velocidade ficaria após receber o impacto de recepção. O resultado dos cálculos não se sabe como é que ficou mas o corpo do Gu e do cavalo, num emaranhado só ficaram irreconhecíveis. Ficou tão feia a coisa que o Gu soltou um relincho de dor e o cavalo fazia cálculos e analisava fisicamente como ficou a sua massa corpórea.

Com a freada e o tombo os grãos do cavalo vieram se alojar na garganta e ele suplicava meio afogado ao Gu: - Seu físico filho de uma puta saia de cima de mim.

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Tivemos que chamar o pronto socorro e o guincho para os curativos finais.

O cavalo é famoso em Campo do Jordão pelos cálculos que faz de física e matemática e o Gu é famoso na USP pelos peidos e relinchos que solta.

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28. HEMORROIDAS E A FILA DE BANCO

Toda e qualquer operação ou processo nos tempos atuais se moderniza numa velocidade incrível. O que era antes basicamente operacional agora é mais e muito mais intelectual. Com um toque sutil na tecla e uma senha você é capaz de se tornar mais rico ou mais pobre dependendo é claro de que operação esteja fazendo na sua conta bancária. Você se comunica com pessoas até de outros planetas ao vivo e a cores. A sua fala, em algumas situações é grampeada e de repente você estará sendo escutado por milhares de telespectadores. Você na fila está sendo

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observado, está sendo filmado, está sendo gravado. A modernidade não tem limite; é um negócio de louco mesmo, mas as intrépidas e malditas filas sonolentas e mal queridas estão aí para enfrentar e desafiar toda e qualquer modernidade que se apresente.

A fila deve ser alguma coisa muito poderosa, muito misteriosa, muito mística talvez, pois a ciência com toda sua parafernália ainda é suficientemente incapaz em conseguir algum resultado promissor contra elas. As malditas filas se proliferam a olhos vistos. A fila deve ser uma peste brava incurável ou talvez algo muito lucrativo para algum grupo de interesse. Elas estão em todos os lugares imagináveis e que foge completamente da nossa razão. É fila no banco; é fila para pagar; é fila para receber; é fila para ser atendido no hospital; Fila para comer. Fila até para ir a um banheiro... Será que tem fila para morrer ou conversar com Deus? Eu acho que deveria se elaborar uma lei prátea assim como a lei áurea para abolir definitivamente as filas.

Eu sofro de fila fobia. Jamais consegui encarar ou então engolir a cultura doida das filas. É uma cultura sem pé nem cabeça. Esta cultura, ela tem a duração da fila. Tem dias que é mais rápida e tem dias que é mais demorada. O indivíduo que engrena um assunto jamais tem a intenção de permanecer para ouvir a sua conclusão. São informações inúteis e opiniões desencontradas e absurdas sobre economia; sobre futebol; sobre a violência; sobre a marginalidade; sobre religião. É tão absurda a cultura filana que se os técnicos de futebol as ouvissem e as colocassem em prática seus times seriam campeões invictos; se os governantes levassem a sério o que se discute e se propõem nas filas o nosso país seria o protótipo do céu.

Bem a contra gosto eu freqüento estas filas. Fico na minha impassível só escutando e observando aquela vozearia infernal inútil. Fico impaciente, fico suando, mas fico firma na minha só auscultando.

Um dia destes estava eu enfrentando uma destas terríveis e maldita fila num banco qualquer a fim de executar alguns pagamentos. A fila era gigante e poderosa com aproximadamente 100 espécimes de todas as raças e credos. Com a finalidade de aproveitamento de espaço a fila se estendia preguiçosamente num vai e vem tal qual uma jibóia enorme enrolando mortalmente a sua presa. Aqueles seres se acotovelavam uns nos outros tendo apenas como referência para sua direção as marcas amarelas mau traçada no piso. Ali era uma verdadeira universidade de conhecimento.

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Tinha assunto sendo discutido a todos os gostos e sabores. O vozeio era tão alto que se fosse medido passaria dos 90 decibéis.

Neste momento toca o meu celular e eu atendo a minha filha.

- Oi paizinho... Tudo bem com você? Do outro lado da linha minha filha iniciou a inquirição.

Antes que eu pudesse manifestar qualquer emoção ou reação ela me pergunta.

- Pai.... Você se lembra de como eram suas hemorróidas?Fiquei sem ação; respirei profundamente, me desconcertei

e me dirigi ao companheiro de fila logo atrás de mim:- Por gentileza, você guarda este lugar pra mim? Tenho que

atender uma emergência.Para não perder o fio da meada do assunto filano o cara

sem olhar para mim apenas meneou a cabeça de cima para baixo concordando com a ação.

Procurei um lugar mais discreto para tentar persuadir minha filha de que no momento estaria impossibilitado para dar tal informação.

Olhei de um lado; Olhei de outro e acabei encontrando um lugar bem discreto bem longe da turba da fila.

- Minha filha, não posso dar esta informação agora para você.

- Ah meu paizinho, eu preciso saber; é importante para mim.

- Minha filha, por favor, agora não. Tentei em vão convencê-la de que ali, dando este tipo de informação eu estaria talvez pagando um terrível mico.

Antes que eu pudesse desligar o celular ela contou-me que estava com dificuldade para evacuar e com muito medo de que fosse início de hemorróidas.

Aquela vozearia toda, como num passe de mágica se extinguiu e mais de 100 pessoas de chofre viraram se para o meu lado e ao mesmo tempo, num só clamor pediram:

- Conte pra ela, conte como foram as tuas hemorróidas.O filho de uma puta que monitora e fiscaliza a

movimentação da fila a me ver afastando, falando baixinho ao celular

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olhando de um lado para outro entendeu como uma atitude suspeita e desta forma colocou o áudio para todo o banco escutar.

Foderam-me assim com a modernidade.

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29. A GALINHA PEDREZ

A busca da segurança é uma ilusão permanente. A solução deste dilema está na sabedoria da insegurança ou da incerteza. Na realidade a busca da segurança é um apego ao conhecido, àquilo que já vivemos, que já experimentamos, e assim o conhecido nada mais é que o nosso passado. O bom ou o mau passado, isto não importa. Se vivermos apenas do conhecido estaremos regredindo, estaremos cometendo uma tragédia, em

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vista de que o conhecido nada mais é do que a prisão de velhos condicionamentos. Não existe evolução no conhecido, porque ele já foi revelado e será apenas a estagnação e pode gerar desordem. Acredito piamente que a incerteza do que fazer, que o sufoco que muitas vezes enfrentamos, é um terreno fértil para a criatividade.

Por estas e outras eu vivo o presente na expectativa da incerteza do depois, no alegre cenário do antes que faço repetir muitas e muitas vezes.

Kierkegaard escreveu: A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se adiante.

Eu gosto de reviver as cenas de quando era criança para me divertir, e muitas vezes, para refletir. Vou até lá e assim tal qual criança sapeca crio e recrio, invento e reinvento, pinto e repinto com o poder de minha mente.

Se me permitem vou levar vocês até o meu primeiro dia de aula.

Minha mãe teve o cuidado de confeccionar o jaleco branco e o embornal para acondicionar caderno, lápis, borracha e o livro Cartilha Sodré.

Antes de sair para a minha aventura radical de buscar conhecimentos além das quatro paredes de casa, minha mãe deu uma bela olhada nas minhas unhas e nas minhas orelhas, penteou meu cabelo e me deu a sua preciosa benção.

Naquele momento eu era o orgulho da família, estava ingressando na escola primária. Por certo meu pai contou para seus colegas de trabalho, deve ter escrito uma carta para seu pai dizendo que seu neto era um cara de grande sucesso. Minha mãe deve ter ido às vizinhas para contar a grande novidade. Ela deve ter rezado algumas ave-marias para pedir proteção a virgem santíssima, pois seu filho estaria, a partir de agora no meio de gente estranha.

Eu fui todo paramentado para escola, feliz e orgulhoso, mas angustiado pelo desconhecido que estaria enfrentando a partir daquele momento.

Quase chegando à escola ainda estava na lembrança o insistente tchau que minha mãe dava e as lágrimas que vi correr pela sua face.

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Chamaram pelo meu nome e indicaram a sala. Tremi nas pernas ao entrar nela.

Minha primeira vez foi cruel e sufocante.Era uma sala provisória, pequena e de poucos alunos.

Sentei-me na fila da direita e era o terceiro da frente para o fundo. A professora entrou, ficamos de pé e eu gelado, angustiado,

de goela seca parecendo boi assustado na fila do matadouro.Aqueles poucos colegas de sala se agilizavam, cumpriam

as ordens da professora sem pestanejar e eu feito um bocó, perdido queria somente um buraco para sumir.

A professora deu a ordem da leitura. Cada aluno deveria levantar e ler um trecho. Começou desastradamente exatamente pela minha fila. O primeiro da fila levantou, empunhou o livro a sua frente e começou a leitura da tal galinha pedrez. Achei bonita e engraçada a história que ele lia. Terminou a leitura e a professora ordenou que o da minha frente fizesse o mesmo. Ele leu o mesmo trecho. Estava chegando a minha vez. Só não urinei nas calças porque me segurei ou talvez a urina tenha saído pelos meus poros, pois suava feito um lazarento.

O moleque da frente terminou a leitura e a professora falou qualquer coisa que não entendi e ordenou que eu iniciasse a leitura.

Peguei o livro, abri-o na página adequada com a ajuda do colega da frente e com muito custo me coloquei de pe. Só entendia das figuras isto porque não era cego, mas das letras... nada disto ainda tinha sido apresentado para mim.

O sufoco, a angustia acaba sempre criando em nós um dispositivo de defesa.

Com certeza toda aquela criançada estava passando pelo mesmo sufoco que eu e, no entanto estavam ali realizando as suas tarefas normalmente. Eram criativas e por que não eu. Investi-me de uma segurança inabalável, de uma fortaleza inacreditável e me coloquei a ler. Na realidade comecei a repetir com desenvoltura, teatralmente exatamente o que os outros dois tinham lido. Imitando os dois meus colegas fiz até as entonações de voz.

- É a próxima lição, interrompeu a professora.O colega da frente levantou-se, pegou o livro e disse para a

professora:- Ele está na próxima lição.

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Todos os olhares para mim. A professora chega-se e pergunta com ar de cretina:

- Você não sabe ler, guri?Ouvia falar tanto nos castigos da escola. Na tal régua na

cabeça, na palmatória, no ficar de joelho que quase desmaiei a frente daquela brutamonte.

- É a minha primeira vez, com voz sumida consegui segredar para a minha primeira e inesquecível professora.

- Você está na classe errada, moleque! Esta é a classe do segundo ano, falou asperamente aquela galinha pestilenta.

Só não apanhei dela porque o bedel me encaminhou para a sala dos analfabetos.

E em casa todos curiosos queriam saber como foi meu primeiro dia de aula e eu todo satisfeito disse que tinha lido para a sala a história de uma tal galinha pedrez. Minha mãe deu uma olhada disfarçada para o meu pai e deve ter pensado:

- Este menino vai longe, já no primeiro dia conseguindo ler!

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