comercio internacional e desenvolvimento

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  • A RELAO entre comrcio internacional edesenvolvimento sempre foi uma questo controversa,que coloca em choque vises e interesses divergentes.Este livro mostra como vm se desenvolvendo as relaescomerciais internacionais desde do final do sculo XIX,e como tm sido diferentes o discurso e as prticas dospases mais poderosos em relao ao livre-comrcio.O autor discute o que isto representa para pases emdesenvolvimento como o Brasil e para o movimentosocial. E, em particular, questiona o papel que aOrganizao Mundial do Comrcio (OMC) pretendedesempenhar no novo quadro internacional em quepredomina o neoliberalismo, e apresenta alternativasno sentido de tornar o comrcio e as relaesinternacionais mais justas.

    KJELD JAKOBSEN, ex-secretrio de RelaesInternacionais do municpio de So Paulo, presidente doInstituto de Desenvolvimento de Cooperao e RelaesInternacionais (Idecri) e do Instituto Observatrio Social.Foi secretrio de Relaes Internacionais da Central nicados Trabalhadores do Brasil de 1994 a 2003.

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    Jakobsen

    Comrcio

    internacional

    e desenvolvimentoDo Gatt OMC: discurso e prtica

    B R A S I L U R G E N T E

    Kjeld Jakobsen

  • A RELAO entre comrcio internacional edesenvolvimento sempre foi uma questo controversa,que coloca em choque vises e interesses divergentes.Este livro mostra como vm se desenvolvendo as relaescomerciais internacionais desde do final do sculo XIX,e como tm sido diferentes o discurso e as prticas dospases mais poderosos em relao ao livre-comrcio.O autor discute o que isto representa para pases emdesenvolvimento como o Brasil e para o movimentosocial. E, em particular, questiona o papel que aOrganizao Mundial do Comrcio (OMC) pretendedesempenhar no novo quadro internacional em quepredomina o neoliberalismo, e apresenta alternativasno sentido de tornar o comrcio e as relaesinternacionais mais justas.

    KJELD JAKOBSEN, ex-secretrio de RelaesInternacionais do municpio de So Paulo, presidente doInstituto de Desenvolvimento de Cooperao e RelaesInternacionais (Idecri) e do Instituto Observatrio Social.Foi secretrio de Relaes Internacionais da Central nicados Trabalhadores do Brasil de 1994 a 2003.

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    jeld

    Jakobsen

    Comrcio

    internacional

    e desenvolvimentoDo Gatt OMC: discurso e prtica

    B R A S I L U R G E N T E

    Kjeld Jakobsen

  • Comrcio internacional

    e desenvolvimentoDo GATT OMC discurso e prtica

    Kjeld Jakobsen

    EDITORA FUNDAO PERSEU ABRAMO

  • FUNDAO PERSEU ABRAMO

    Instituda pelo Diretrio Nacionaldo Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.

    DIRETORIAHamilton Pereira (presidente) Ricardo de Azevedo (vice-presidente)

    Selma Rocha (diretora) Flvio Jorge Rodrigues da Silva (diretor)

    EDITORA FUNDAO PERSEU ABRAMO

    COORDENAO EDITORIALFlamarion Maus

    EDITORA ASSISTENTECandice Quinelato Baptista

    ASSISTENTE EDITORIALViviane Akemi Uemura

    PREPARAOValter Pomar

    REVISOMarcos Marcionilo

    CAPA, ILUSTRAES E PROJETO GRFICOGilberto Maringoni

    EDITORAO ELETRNICA Augusto Gomes

    1a edio: janeiro de 2005

    Todos os direitos reservados

    Editora Fundao Perseu Abramo

    Rua Francisco Cruz, 224 CEP 04117-091 So Paulo SP Brasil

    Telefone: (11) 5571-4299 Fax: (11) 5571-0910

    Na Internet: http://www.fpabramo.org.br

    Correio eletrnico: [email protected]

    Copyright 2005 by Kjeld Jakobsen

    ISBN 85-7643-015-0

  • Introduo ................................................................................... 5

    1. Origem do livre-comrcio e do protecionismo .................... 12

    O liberalismo econmico e o comrcio ........................................... 13

    Liberalismo, mas no para todos .................................................... 17

    O nacionalismo econmico e a proteo indstria infante ......... 21

    A reao crise de 1929 e o comrcio no perodo entreguerras .... 26

    2. O GATT, de Genebra a Tquio ...............................................30

    A criao do GATT ............................................................................ 31

    A clusula da nao mais favorecida ...................................... 34

    Zonas de livre-comrcio ........................................................... 35

    O Comecon ................................................................................ 36

    A arbitragem das disputas comerciais .................................... 38

    As excees necessrias e a criao da UNCTAD ............................ 40

    A Unio Europia ..................................................................... 42

    O GATT e a crise dos anos 1970 ....................................................... 47

    3. A Rodada Uruguai do GATT .................................................. 50

    As principais decises da Rodada Uruguai .................................... 56

    O acordo sobre agricultura ............................................................. 58

    Avaliao do acordo ........................................................................ 62

    A clusula social ........................................................................ 64

    Acordos de livre-comrcio regionais e bilaterais ........................... 67

    Sumrio

  • 4. A Organizao Mundial do Comrcio (OMC) ....................... 70

    As Conferncias de Cingapura e Genebra ...................................... 73

    A Conferncia de Seattle ................................................................. 76

    A Conferncia de Doha ................................................................... 77

    A Conferncia de Cancn ............................................................... 82

    Resultado das negociaes na OMC ............................................... 86

    5. A participao da sociedade organizada .............................. 89

    Constitui-se a oposio aos acordos .............................................. 90

    A Batalha de Seattle ....................................................................... 98

    Uma crtica ao mtodo .................................................................. 101

    6. Comrcio internacional e desenvolvimento ..................... 105

    Bibliografia .............................................................................. 110

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 5

    Desde os tempos remotos relatados na passagem bblica em queCaim cedeu seu direito de primogenitura ao irmo Abel em trocade um prato de lentilhas at as compras que hoje fazemos pelainternet houve transformaes extraordinrias no contedo dosbens comerciveis e principalmente na forma de se comercializar,em particular entre um pas e outro. Embora desde o escambo1

    da Antiguidade at o comrcio eletrnico de hoje estejamos fa-lando da troca de um bem por outro e da troca de bens por paga-

    Introduo

    1. Escambo a troca de bens e servios sem o uso de dinheiro. oestgio mais primitivo nas relaes de troca, geralmente praticado emsociedades de economia natural ou comunidades pobres, que trocambens por outros bens, por exemplo: sacos de cereais por animais, ani-mais por outros animais, alimentos por alimentos etc.

  • Kjeld Jakobsen6

    mentos de qualquer natureza, o entendimento sobre a forma comoos pases deveriam proceder em relao ao comrcio alterou-semuito.

    O comrcio um aspecto importante das relaes internacio-nais. Muitas rotas de comrcio da Antiguidade ajudaram a definira geopoltica do mundo atual, bem como influenciaram a ascen-so e a queda de imprios. Muitos conflitos entre naes deram-se em funo de disputas comerciais. Mesmo hoje d-se mais a-teno aos aspectos comerciais das relaes internacionais do quepropriamente s relaes polticas entre os pases.

    Durante a histria contempornea houve abordagens muito di-ferentes sobre o comrcio internacional. A primeira foi o mercan-tilismo. Depois, com a produo de manufaturados em larga es-cala, desenvolveram-se o livre-comrcio e sua anttese, o pro-tecionismo. Surgem da duas vises sobre o vnculo entre comr-cio e desenvolvimento econmico: o liberalismo e o nacionalis-mo. Ao longo dos ltimos 60 anos, estas vises, em diferentes mo-mentos, se opem, e em outros, se complementam, durante astentativas de regulamentar e ao mesmo tempo liberalizar ao m-ximo o comrcio e os investimentos.

    H uma relao importante entre comrcio e desenvolvimento,uma vez que os pases vendem seus produtos para obter os recur-sos para comprar aquilo de que necessitam, inclusive para fomen-tar seu desenvolvimento, como mquinas, tecnologia etc. No en-tanto, particularmente a partir do final da dcada de 1970, a mdiae as instituies capitalistas em geral vm tratando a relao en-tre liberalizao do comrcio e desenvolvimento econmico comuma abordagem neoliberal e como a panacia para solucionar aqueda no crescimento mdio do PIB (Produto Interno Bruto) mun-dial. Esta uma questo controversa, por vrias razes que tenta-remos discutir ao longo deste livro, considerando os fatores quequalificam o comrcio externo, como a distribuio funcional daeconomia de um pas, o papel desempenhado pelo Estado, o valoragregado aos produtos exportados, o papel das empresas trans-nacionais no sistema de comrcio atual e, principalmente, a dife-rena entre o discurso e a prtica.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 7

    A percepo de muitos que acompanham a matria, bem comoa evoluo dos acordos de livre-comrcio negociados aps a Se-gunda Guerra Mundial, de que na prtica se repete, embora comroupagem moderna, o colonialismo do perodo de expanso co-mercial das grandes potncias nos sculos XVIII e XIX. As colniasdeixaram de existir como tais, mas a explorao dos pases inde-pendentes prossegue por meio de mecanismos mais sutis, e asnaes que anteriormente se beneficiavam, primordialmente In-glaterra, Frana e Alemanha, hoje seriam os membros da TradeEstados Unidos, Unio Europia e Japo.

    A inteno deste livro refrescar um pouco nossa memria his-trica como base para a discusso, recuperar fatos e, no caso daspolticas comerciais internacionais implementadas aps a Segun-da Guerra Mundial, tentar atribuir o devido peso a cada aspectodelas. Isto desde a fracassada tentativa de criar a OrganizaoInternacional de Comrcio (OIC), passando pelo Acordo Geral deComrcio e Tarifas (GATT) e outras iniciativas, at a constituioda atual Organizao Mundial do Comrcio (OMC) e discutir o queisso tudo representa, principalmente para pases em desenvolvi-mento como o Brasil.

    A inteno cumprir esse objetivo sem cansar o leitor demasia-damente com tecnicismos ou conceitos, mas sem deixar de ladoas informaes pertinentes e, tambm, jogar um pouco mais deluz sobre os principais aspectos do comrcio internacional, inclu-sive as prticas menos ticas. Para tanto, alm desta introduo,o livro est dividido em seis captulos.

    O primeiro captulo discute o conceito de livre-comrcio intro-duzido a partir do sculo XVIII, muito semelhante ao que vigoraagora sob o neoliberalismo, embora a definio sobre o que sovantagens comparativas e barreiras comerciais tenha se tornadomuito mais sofisticada na atualidade, como veremos adiante.

    Embora muitos governantes naquela poca se reivindicassem li-berais, adotavam prticas mercantilistas, protegendo os bens queainda no estavam em condies de competir com a importao deseus equivalentes. Como fazia, por exemplo, a Inglaterra, que j seapresentava como a potncia hegemnica no mundo. Desde o s-

  • Kjeld Jakobsen8

    culo XVI, ela j adotava medidas para desenvolver e proteger suaindstria de roupas de l. As medidas adotadas foram: elevao datarifa externa2 sobre a importao de produtos de l, importaode mo-de-obra qualificada para organizar a produo inglesa eproibio da exportao da produo local da l como matria-pri-ma ou roupas semi-acabadas. Esses mecanismos rapidamente que-braram os concorrentes dos Pases Baixos (CHANG, 2002).

    Perceberemos, ao longo da histria, que o livre-comrcio nuncafoi integralmente implementado, nem sequer pelos seus defenso-res. Mesmo a Inglaterra s liberalizou significativamente suas tari-fas externas na segunda metade do sculo XIX, quando sua econo-mia estava consolidada. Na verdade, o perodo de maior liberaliza-o do comrcio naquele sculo durou de 1860 a 1872 (BAIROCH,1993). Portanto, apenas 12 anos! Por sua vez, economistas liberaise influentes dos Estados Unidos e da Alemanha pregavam aberta-mente a necessidade da proteo indstria infante, at que estaestivesse slida e em condies para competir no mercado mundialcom seus equivalentes mais estruturados e competitivos.

    Freqentemente se apelava, tambm, para o protecionismocomo forma de lidar com as crises econmicas e a recesso, poisdiante da escassez de divisas e do aumento do desemprego esti-mulava-se a substituio de importaes e a produo domsticapor intermdio da elevao de tarifas externas. Desde sua inde-pendncia, os Estados Unidos aplicaram esse mecanismo diver-sas vezes, notadamente para enfrentar os efeitos da crise de 1929,a mais grave de todas e, na verdade, mais que uma recesso: umadepresso econmica.

    Apesar do discurso em defesa do livre-comrcio, que em teseharmonizaria o mercado mundial, pois todos competiriam den-tro das mesmas regras, as maiores potncias se sobressairiam apartir do comrcio dos bens que tinham maior capacidade paraproduzir e dos produtos nos quais detinham mais vantagens com-

    2. Tarifa externa um imposto cobrado nas fronteiras sobre produtosimportados. Seu percentual condiciona os preos com os quais os pro-dutos chegaro ao mercado consumidor e, conseqentemente, se ven-dero muito ou pouco.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 9

    parativas. Na prtica o que ocorreu at o incio do sculo XX foiuma disputa extremamente acirrada por conquista de mercados eaplicao de uma mescla de mercantilismo e nacionalismo eco-nmico com livre-comrcio e liberalismo. Nessa disputa valia tudo:medidas protecionistas, aes blicas, disputar colnias, ignorarpatentes, entre outras aes, at que a prpria disputa provocou aPrimeira Guerra Mundial.

    O perodo entreguerras foi consumido na recuperao dos pre-juzos causados pela Primeira Guerra Mundial e, em seguida, dosdanos provocados pela forte retrao do comrcio mundial de-corrente da crise de 1929. Quando a Segunda Guerra Mundial ter-minou, as potncias capitalistas vencedoras estavam convencidasde que seria necessrio estabelecer uma srie de instituies emnvel mundial para criar regras e monitor-las no que tangia aosistema monetrio, investimentos e comrcio mundial. Da nas-ceram as instituies de Bretton Woods3 e o GATT.

    O segundo captulo trata das rodadas de negociaes comer-ciais entre a fundao do GATT e a Rodada de Tquio4 e de comoos principais procedimentos foram se definindo, bem como des-taca o fato de que os pases do Terceiro Mundo no se sentiamdevidamente contemplados por essas negociaes e muitos delessequer estavam tecnicamente preparados para participar das ro-dadas. Esses pases conseguiram, por intermdio de presso pol-tica, constituir outros espaos de negociao junto Organizaodas Naes Unidas (ONU), assim como regras que levassem emconta seu estgio de desenvolvimento. o perodo de ouro do ca-pitalismo, mas tambm da ascenso das idias cepalinas5, dodesenvolvimentismo e do Movimento dos Pases No-Alinhados.

    3. As instituies de Bretton Woods so o Fundo Monetrio Internacio-nal (FMI) e o Banco Mundial (BIRD), que entraram em vigor em 1947 (verp. 31).4. Rodada o processo negociador no GATT, que pode demorar at algunsanos para ser concludo. As rodadas assumem o nome do local ondeocorreu a reunio inicial (ver p. 37).5. A Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) foicriada em 1948, como um organismo regional da ONU para desenvolver

  • Kjeld Jakobsen10

    O terceiro captulo relata a concluso dessa fase do comrciomundial, com a realizao da Rodada Uruguai do GATT, quecomplementa a Rodada Tquio em termos de reao ascensodo nacionalismo econmico dos anos 1970. J vivamos sob a gidedo neoliberalismo, e essa rodada foi a mais longa de todas, provo-cando novas redues tarifrias, limitando as excees previstasoriginalmente no GATT e definindo encaminhamentos para a ne-gociao de uma srie de novos temas considerados comerci-veis, como servios, investimentos e propriedade intelectual, almde aprovar a criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC).

    No entanto, a OMC s logrou realizar uma conferncia ministe-rial com algum nvel de deciso: a primeira, realizada em Cinga-pura em 1996, na qual se ampliou a agenda de novos temas. Parasurpresa de muitos, a Conferncia de Seattle, que pretendia ini-ciar as negociaes da Rodada do Milnio, terminou sem qual-quer resoluo, a no ser devolver ao diretor-geral da OMC a tare-fa de iniciar consultas para definir o procedimento adequado pararetomar as conversaes. Dois anos depois, a Conferncia de Dohaconseguiu salvar minimamente as aparncias, mas na confern-cia seguinte, em Cancn, houve novo impasse. A trajetria da OMC o tema do quarto captulo.

    O movimento social tem se apresentado ao debate sobre o co-mrcio mundial, principalmente a partir da Conferncia da OMCem Cingapura. Particularmente o movimento sindical tem sidomuito ativo, fazendo lobby a favor da vinculao entre comrcioe direitos trabalhistas, tentando utilizar o poder de sano daOMC contra os pases que violam sistematicamente os direitosbsicos dos trabalhadores, consagrados numa srie de conven-es da Organizao Internacional do Trabalho (OIT). A confe-rncia de Seattle tambm inaugurou a primeira grande manifes-tao popular contra a OMC e o livre-comrcio. disto que tratao quinto captulo.

    estudos em apoio ao desenvolvimento dos pases do continente. Suasede em Santiago do Chile. Muitos economistas brasileiros, como CelsoFurtado, Maria da Conceio Tavares, Jos Serra, entre outros, estive-ram ligados a ela.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 11

    O sexto captulo procura desenvolver algumas perspectivas paraos rumos do comrcio mundial, considerando as dificuldades emrelao ao fortalecimento dos acordos de livre-comrcio. Alm dosproblemas na OMC, poderamos mencionar tambm os impassesnas negociaes da Comunidade Econmica da sia e do Pacfico(APEC) e o novo formato da rea de Livre Comrcio das Amricas(ALCA), muito menos liberal em comparao com a pretenso ini-cial dos Estados Unidos. O reconhecido fracasso do Consenso deWashington6 em promover o desenvolvimento econmico, o ques-tionamento do pensamento nico e seus desdobramentos naspolticas das instituies como a OMC devem-se muito s novasposies dos pases mais pobres, s articulaes de grupos de pa-ses que estes vm promovendo e atuao do movimento social.

    Sem dvida, voltou a ser atual o tema do desenvolvimento dospases em estgio mais atrasado e daqueles que mais sofreramcom os ajustes estruturais. Constata-se que os pases que hoje soindustrializados tiveram a possibilidade de amadurecer seu de-senvolvimento econmico, por intermdio da interferncia doEstado e de medidas protecionistas, antes de liberalizar as suaseconomias. Portanto, justo indagar o que se pretende fazer comos pases que ainda hoje no alcanaram o mesmo patamar.

    O desafio formular propostas adequadas para o desenvolvi-mento dos que esto mais atrasados diante da conjuntura econ-mica atual e que, certamente, no so as mesmas que possibilita-ram a implementao do desenvolvimentismo7 de quase 50 anosatrs. Uma outra discusso, igualmente complexa, refere-se aopapel das empresas transnacionais e a regulamentao suprana-cional para limitar seu poder.

    6. O Consenso de Washington um conjunto de medidas econmicasneoliberais, como privatizaes, reformas fiscais e cambiais, reduotarifria etc., apoiadas pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Tesouro dosEstados Unidos e por governos latino-americanos, no incio da dcadade 1980, para reduzir os altos ndices de inflao da Amrica Latina.7. Desenvolvimentismo uma poltica econmica implementada peloEstado na tentativa de eliminar a dependncia do exterior, como, porexemplo, a poltica de substituio de importaes na Amrica Latina.

  • Kjeld Jakobsen12

    O professor sul-coreano Ha-Joon Chang, em seu excelente livroKicking Away the Ladder, publicado em 2002, analisa a estrat-gia de desenvolvimento dos pases industrializados a partir de umaperspectiva histrica e demonstra que eles adotaram uma sriede medidas para proteger suas economias, at que estas se conso-lidassem e estivessem aptas para enfrentar a concorrncia comoutros pases. No entanto, conclui que os mesmos pases que seindustrializaram dessa forma hoje impedem, unilateralmente oupor intermdio das instituies multilaterais, que os pases emer-gentes apliquem as mesmas medidas para tambm proteger suaseconomias at que elas estejam devidamente consolidadas e pre-paradas para a competio no comrcio internacional. Ou seja, aochegar ao topo, os pases desenvolvidos chutam a escada queusaram, impedindo aqueles que chegaram mais tarde de subir.

    1. Origem do livre-comrcio

    e do protecionismo

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 13

    De fato esse um grande embate nas negociaes e instituiesque se propem a definir as regras de liberalizao comercial atual:se os pases menos desenvolvidos podem beneficiar-se delas, poisnenhuma regra aprovada se os pases mais poderosos no esti-verem de acordo, o que implica afirmar que so eles, na verdade,que as definem. E as definem ou acatam em primeiro lugar deacordo com seus interesses. Por isso, assistimos ainda hoje a dis-cusses at contraditrias, em que a defesa da mxima liberaliza-o em reas como as tarifas industriais se mistura com posturasprotecionistas, por exemplo, quando se tenta eliminar tarifas esubsdios agricultura, praticados pela Unio Europia e pelosEstados Unidos, ou quando os pases desenvolvidos adotam me-didas protecionistas unilateralmente e em desacordo com os tra-tados internacionais.

    O liberalismo econmico e o comrcio

    O mercantilismo era a expresso do modelo de comrcio inter-nacional desenvolvido entre os sculos XVI e XVIII, quando dinheiroe terra eram considerados os fatores de produo. Embora nopossusse um marco terico mundial, era a poltica comercial ado-tada em moldes muito semelhantes pelas monarquias absolutis-tas da poca. Suas caractersticas principais eram a busca de ouro,prata e supervit comercial para acumular dinheiro.

    Aliado ao desenvolvimento de novos equipamentos e tcnicasde navegao, o mercantilismo foi um fator de importante est-mulo s grandes navegaes e descoberta de novas terras, poisbuscavam-se produtos que pudessem ser comprados a preos bai-xos e vendidos com muito lucro, como as especiarias do Oriente, eprocuravam-se tambm novas colnias, de preferncia ricas empedras e metais preciosos.

    O dinheiro acumulado podia ser aplicado a juros e tambm ser-via para os comerciantes pagarem impostos aos monarcas, paraproteger suas rotas comerciais, conquistar novas colnias paraexplorar e comprar direitos de monoplio comercial. Parte dessasreservas destinaram-se ao financiamento das primeiras indstrias

  • Kjeld Jakobsen14

    em certos pases mas, ironicamente, no em Portugal e na Espa-nha, que estavam entre os atores mais importantes das grandesnavegaes e do incio do mercantilismo.

    Para assegurar o supervit comercial, era necessrio implemen-tar uma srie de medidas de Estado como, por exemplo, o prote-cionismo alfandegrio, que restringia as importaes ao imporpesadas taxas alfandegrias sobre produtos estrangeiros ou sim-plesmente proibindo sua importao. Thomas Mun afirmava so-bre a poltica protecionista:

    Os impostos aduaneiros de exportao podem ser nocivos porque en-

    carecem as exportaes britnicas [...] Por outro lado, os impostos adua-

    neiros de importao devem ser suficientemente altos para desencora-

    jar o consumo de bens estrangeiros na Inglaterra.

    Mun foi um dos principais pensadores do mercantilismo inglse defendia o desenvolvimento da marinha inglesa para reduzir oscustos do comrcio internacional para a Inglaterra, a expansocolonial para ampliar os mercados e a concesso de privilgios emonoplios indstria e ao comrcio nacionais (DIAS, 2002).

    O liberalismo e o livre-comrcio, por sua vez, so as expresseseconmicas das Revolues Burguesas a partir dos sculos XVII esubstituem o mercantilismo ligado s polticas do Ancien Rgime.Sua teoria pregava que o fim dos entraves, como tarifas elevadas eportos fechados1, faria que o comrcio crescesse em todo o mun-do, beneficiando a economia de todos os pases que participas-sem. O benefcio traduzir-se-ia em crescimento econmico e bem-estar, que promoveriam a paz entre as naes. Veremos maisadiante que, apesar dessa contraposio terica ao mercantilis-mo, a maioria dos pases que abraaram o liberalismo mantive-ram as prticas protecionistas do modelo anterior, pelo menospor algum perodo, e na prtica no foi permitido a todos os pa-

    1. A poltica de portos fechados significava impedir a importao dosprodutos de determinados pases, principalmente inimigos ou concor-rentes, ao proibir o acesso de seus navios aos portos nacionais.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 15

    ses participarem livremente do comrcio mundial muito menosem condies iguais.

    O debate sobre o livre-comrcio comeou a ganhar corpo teri-co quando Adam Smith, o pai do liberalismo econmico, em suafamosa obra A riqueza das naes, de 1776, desenvolveu a tese davantagem absoluta ao defender que o crescimento econmico erauma funo da diviso internacional do trabalho, que por sua vezdependia da escala do mercado, interno e externo. Quanto maiora escala, maior seria a possibilidade do crescimento, que por suavez traria riqueza e poder para as naes que assim agissem. Aescala estava ligada produo dos bens em que cada pas tinhamaior especializao e, portanto, maior produtividade. SegundoAdam Smith, o livre-comrcio era fundamental para manter esseprincpio. Assim, os pases mercantilistas que levantassem bar-reiras contra o intercmbio de bens e a ampliao de mercadosestariam na verdade impedindo seu prprio crescimento econ-mico e agindo contra seus interesses.

    Vrios anos depois, um discpulo de Adam Smith, chamadoDavid Ricardo, aprofundou a reflexo sobre essa diviso interna-cional do trabalho, analisando a especializao defendida porSmith como vantagens comparativas nos termos de troca de umanao em relao outra. Textualmente:

    Sob um regime de comrcio perfeitamente livre, cada pas dedica na-

    turalmente seu capital e trabalho s atividades mais vantajosas para

    ambos. Essa busca da vantagem individual articula-se admiravelmen-

    te com o bem universal do conjunto. Ao estimular a indstria, recom-

    pensar o engenho e empregar de modo mais eficiente os poderes pecu-

    liares oferecidos pela natureza, ela distribui o trabalho de forma mais

    eficiente e mais econmica; ao mesmo tempo, ao aumentar a massa

    geral da produo, difunde os benefcios gerais e une, por um lao

    comum de interesse e intercmbio, a sociedade universal das naes

    em todo o mundo civilizado. esse o princpio que determina que a

    Frana e Portugal fabricaro vinho, que o milho ser cultivado na Am-

    rica e na Polnia, e que mquinas e outros produtos sero manufatura-

    dos na Inglaterra (RICARDO, 1817 apud GILPIN, 2002).

  • Kjeld Jakobsen16

    Para demonstrar esta tese, Ricardo utilizava o exemplo do vi-nho portugus trocado por tecidos ingleses. Portugal, na verdade,seria capaz tanto de produzir vinhos como tecidos. No entanto, aopossuir condies muito melhores para produzir vinhos bons ebaratos do que tecidos, seria mais vantajoso dedicar-se integral-mente produo e exportao de vinho e simplesmente impor-tar os tecidos da Inglaterra, onde eles eram produzidos a baixospreos e com alta qualidade. Desta forma ganharia mais.

    Podemos imaginar como seria o mundo atual se as idias deSmith e Ricardo tivessem prevalecido da forma apresentada?Algum consegue imaginar os Estados Unidos como um gran-de milharal? Ou a Frana como um grande vinhedo? Ricardo,na verdade, apresentava uma situao imaginria, de relaesbilaterais, sem considerar custos de transporte, mais-valia, de-senvolvimento tecnolgico, entre tantos outros elementos re-levantes para discutir a produo de bens e o comrcio inter-nacional.

    Posteriormente, economistas neoclssicos aprimorariam essasteses, considerando tambm os custos de transporte e vantagensde escala, entre outros. A teoria H-O2 do comrcio internacionalps-guerra argumenta que a vantagem comparativa dos pases determinada pela abundncia relativa e pela combinao maislucrativa dos seus fatores de produo, tais como recursos natu-rais, capacidade administrativa, tecnologia e, principalmente, ca-pital e trabalho (GILPIN, 2002). Ou seja, um pas ir exportar osprodutos que melhor combinarem seus fatores mais abundantese importar os demais.

    William Stolper e Paul Samuelson complementariam a teoriaH-O, ao acrescentar a avaliao dos efeitos dos preos das mer-cadorias sobre os valores dos fatores de produo. Outro econo-mista, James Meade, desenvolveria a idia de que os preos mun-diais so determinados pela demanda e oferta recprocas (GON-ALVES, BAUMANN, PRADO e CANUTO, 1998).

    2. A sigla advm dos sobrenomes dos autores da formulao: os econo-mistas suecos Hecksher e Ohlinn.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 17

    Na dcada de 1990, surgiram novas consideraes e estudos deeconomistas liberais, como Paul Krugman, que destacam o for-talecimento das grandes corporaes transnacionais e do comr-cio inter e intrafirmas, pois essas empresas, alm de reestrutura-rem seus mtodos de produo, tambm se reorganizaram geo-graficamente, influenciando sobremaneira os fluxos de comrciointernacionais.

    O progresso dos meios de transporte e comunicao iniciadoainda no sculo XIX com a inveno do telgrafo e dos trens e na-vios a vapor possibilitou uma integrao maior do mercadomundial, e este tornou-se ainda mais relevante no sculo seguin-te, com o desenvolvimento das telecomunicaes, da informticae do transporte areo. Atualmente, cerca de dois teros do comr-cio mundial realizado por empresas transnacionais, sendo me-tade entre elas mesmas e suas subsidirias e filiais.

    Apesar de liberal, Krugman at admite a interferncia do Es-tado no comrcio, desde que seja para promover setores estrat-gicos. Mas, independentemente das mudanas ou dos estudos maisrecentes, a tese da vantagem comparativa e da especializao nadiviso internacional do trabalho conformam at hoje a base prin-cipal da teoria do livre-comrcio.

    Liberalismo, mas no para todos

    As idias de abertura econmica e livre-comrcio foram bemaceitas pelos pases que desenvolveram seu parque industrial ebuscavam novos mercados a partir do sculo XIX. No entanto, emrelao a estes mercados, os pases exportadores aplicavam umliberalismo de via nica. As colnias e os pases asiticos e latino-americanos participavam da diviso internacional do trabalhoapenas como exportadores de produtos primrios minrios eprodutos agrcolas e como importadores de manufaturados. Porexemplo, a produo txtil de alta qualidade da ndia foi arrasadano incio de sua colonizao pelas exportaes de txteis ingleses,porque tinha base em produo familiar e no conseguiu concor-rer com a indstria britnica, que comprava o algodo a preos

  • Kjeld Jakobsen18

    muito baixos no Egito, processava-o em larga escala na Inglaterrapor meio de mquinas e vendia o produto final na ndia. Claroque ningum pensou em permitir que fbricas de txteis fossemabertas ali.

    Os pases industrializados tentavam de toda forma impedir ainstalao de indstrias nas colnias. Friederich List informava,em 1770, que William Pitt O Primeiro , ento conde deChatham e ex-ministro ingls, incomodado com as primeiras ten-tativas manufatureiras dos moradores da Nova Inglaterra, decla-rou que s colnias no deveria ser permitido fabricar sequer umcravo de ferradura (CHANG, 2002). A exportao de mquinaspara as colnias tambm era proibida, e os primeiros teares quechegaram Amrica do Norte foram contrabandeados. Lgico queum dos principais motivos que fomentou o crescimento do idealda independncia no continente americano foi a busca da liber-dade econmica, possvel apenas com liberdade poltica. OsEstados Unidos foram a primeira colnia do mundo a alcan-lae passaram por um desenvolvimento todo particular, at se tor-narem a potncia econmica e militar que so hoje.

    No caso dos pases da Amrica Latina, estes assumiram enor-mes emprstimos externos na primeira metade do sculo XIX parapagar a conta de suas guerras de independncia e dar incio ssuas novas vidas como naes livres. Os acordos bilaterais assina-dos, quase sempre com a Inglaterra, geralmente incluam clusu-las de reduo de tarifas externas para as manufaturas inglesascomo condio para a concesso de emprstimos. Com isso, o pascredor ganhava um mercado cativo e a produo local de manufa-turas no era estimulada. Assim, os recursos para pagar a dvidados pases latino-americanos ficavam dependentes de suas expor-taes de commodities, extremamente vulnerveis quantidadeque os pases centrais compravam e aos valores que estavam dis-postos a pagar. Quando havia retraes econmicas na Europanessa poca, o que levava seus pases a diminurem as importa-es, o efeito negativo era imediato na Amrica Latina e nas col-nias. Foi o que ocorreu durante a primeira metade do sculo XIX,que coincidiu com o perodo da independncia dos pases latino-

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 19

    americanos, introduzindo ainda maiores dificuldades para con-solid-la, embora na segunda metade do sculo houvesse umaimportante recuperao devido ampliao dos mercados dasgrandes potncias.

    Apesar da reduo tarifria concedida ao credor nesse esque-ma, ainda assim a garantia dada em troca dos emprstimos, at oincio do sculo XX, costumava ser a renda remanescente das al-fndegas, isto , a receita proveniente das tarifas externas cobra-das dos outros pases. Houve vrias situaes de inadimplnciade alguns pases latino-americanos e caribenhos em que as For-as Armadas dos pases credores intervieram, bloqueando seusprincipais portos e assumindo a administrao da alfndega localat que a dvida fosse quitada. Foi o que fizeram Alemanha e In-glaterra na Nicargua, em 1895, e posteriormente tentaram fazer,

    Argentina

    Bolvia

    Brasil

    Chile

    Colmbia

    Amrica Central

    PAS

    Couros, l e trigo

    Estanho

    Acar, borracha*, cacau e caf

    Cobre e salitre

    Caf e metais preciosos

    Anilina* e chicle*

    PRINCIPAIS PRODUTOS DE EXPORTAO

    Mxico

    Peru

    Venezuela

    Equador

    Caf, metais preciosos e pita (fibra)Acar, guano e salitre

    Caf

    Cacau e caf

    Quadro 1

    Principais commodities da Amrica Latinano sculo XIX

    Fonte: (BRUIT, 1982). Elaborao prpria.Observaes: (*) Estes produtos eram coletados in natura no sculo XIX e posteriormenteforam sintetizados.

  • Kjeld Jakobsen20

    junto com a Itlia, na Venezuela em 19023. Os Estados Unidosreproduziram essas medidas na Repblica Dominicana em 1904e 1916, na Nicargua em 1912, no Mxico em 1914 e no Haiti em1916.

    No final do sculo XIX e no incio do sculo XX iniciou-se tambma explorao de petrleo na Argentina, no Peru, no Mxico e naVenezuela. Particularmente para os dois ltimos, o petrleo tor-nou-se um elemento fundamental para atingir algum nvel poste-rior de desenvolvimento. No mesmo perodo foram introduzidastcnicas de congelamento de carne que possibilitariam Argenti-na e ao Uruguai se tornarem importantes pases exportadores desteproduto, tanto bovino como ovino. Somente Argentina, Brasil, Chi-le e Mxico desenvolveriam nveis mnimos de industrializaoantes da Primeira Guerra Mundial, voltados principalmente paraa produo de alimentos, materiais de construo e txteis (BRUIT,1982).

    Muitos crimes e barbaridades foram cometidos em nome daampliao do livre-comrcio. A legislao introduzida pela Chinaem 1839 para combater o consumo de pio foi tratada pela Ingla-terra como barreira ilegal ao comrcio internacional, no caso ocontrabando para a China do pio produzido na ndia, na poca aprincipal colnia inglesa. Duas guerras foram realizadas para obri-gar o governo chins a permitir sua comercializao regular. Aprimeira, de 1839 a 1842, forou a China a abrir vrios portos parao comrcio europeu e transformou Hong Kong numa possessoinglesa.

    O Japo tambm foi convencido a tiros de canho a abrir-se parao comrcio com os Estados Unidos, quando o comodoro MatthewPerry, frente de seus navios de guerra, ancorou na Baa de T-quio em 1853 e novamente no ano seguinte, at que fosse estabe-lecido um tratado diplomtico e comercial com os Estados Unidos,

    3. Esta foi a ltima tentativa de potncias europias de intervir militar-mente na Amrica Latina, pois os Estados Unidos invocaram os princ-pios da Doutrina Monroe para amea-las com guerra caso no retiras-sem a armada. O acordo feito implicou levar a discusso da dvidavenezuelana para a apreciao do Tribunal de Haia.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 21

    extremamente favorvel a este e que provocou a abertura japone-sa para o Ocidente e o fim do seu regime feudal pouco depois.

    E h muitas outras histrias...

    O nacionalismo econmico e a proteo indstria infante

    H muitos que afirmam que a tese de Ricardo foi um desserviopara a humanidade, pois colocou limites demasiadamente estrei-tos para a possibilidade do desenvolvimento de muitos pases aoignorar a possibilidade de o Estado fomentar polticas industriaisou criar vantagens comparativas em determinados momentos, porintermdio de subsdios ou outras medidas de proteo econo-mia. Da mesma forma, o Estado tambm poderia intervir emrelao oferta e procura, tentando regul-las. Temos, por exem-plo, o caso do primeiro governo de Getlio Vargas, que comprou eincinerou os excedentes da produo de caf do Brasil aps a cri-se de 1929, assegurando um preo mnimo aos produtores e con-tribuindo para aumentar o preo do caf no mercado internacio-nal ao diminuir a oferta do produto.

    Verificaremos que, ao longo da histria e at hoje, muitos pa-ses aplicaram na prtica uma combinao de liberalismo e na-cionalismo econmico. Se no fosse assim, muitos pases que hojeso desenvolvidos estariam condenados permanentemente a vi-verem da agricultura, do extrativismo e da minerao. Os EstadosUnidos representam o exemplo mais bem-sucedido e antigo. Odesenvolvimento do Japo, da Coria do Sul e de outros TigresAsiticos4 so tambm exemplos clssicos, e os casos mais re-centes referem-se aos ex-pobres da Europa, como Espanha, Por-tugal e Irlanda, que nas ltimas dcadas atingiram altos nveisde crescimento econmico graas s polticas comunitrias detransferncia de renda aos membros menos desenvolvidos daUnio Europia.

    4. Tigres Asiticos a forma como so chamados Coria do Sul, Cinga-pura, Malsia, Taiwan e Hong Kong, que aplicavam polticas industriaiscomo forte apoio estatal e anualmente apresentam altos ndices de cres-cimento econmico.

  • Kjeld Jakobsen22

    Muitos se perguntam por que o Brasil, aps sua independn-cia, no conseguiu atingir o mesmo desenvolvimento econmicodos Estados Unidos, j que, em 1822, tnhamos praticamente amesma populao deles quando se libertaram da Inglaterra e umadimenso geogrfica at maior. H seguramente vrios fatorespara isso, que, somados, oferecem uma explicao plausvel. Po-rm, sem dvida, o principal motivo foi a diferena de viso dosque planejaram a economia dos dois pases, no seu comeo devida independente. Tanto Alexander Hamilton, nos EstadosUnidos, quanto o visconde de Cairu, no Brasil, eram discpulosde Adam Smith, porm Hamilton defendia a ao estatal de ca-rter propositivo e medidas protecionistas, enquanto o viscondeera defensor do deixar fazer deixar passar deixar vender(FURTADO, 1959).

    O visconde de Cairu tornou-se um importante conselheiro dorei dom Joo VI e, quando a corte portuguesa se instalou no Brasilpara fugir da ocupao de Portugal pelas tropas napolenicas, ovisconde convenceu o rei a abrir os portos brasileiros s naesamigas. Ironicamente, os ingleses receberam essa iniciativa ab-solutamente liberal como uma afronta, pois eles haviam trans-portado e escoltado o rei at o Brasil em segurana e esperavamque este lhes concedesse acesso exclusivo ao mercado brasileiropor meio de tarifas especiais. Porm, somente dois anos depoisobtiveram esse privilgio nas relaes com o Brasil, ao receberemuma tarifa de 15% sobre seus produtos, ante 24% aplicados aosdemais pases.

    Apesar de sua origem liberal, Hamilton era um terico que pro-vinha da primeira colnia a se rebelar contra o imperialismo eu-ropeu e desenvolveu uma tese influenciada pelo mercantilismo,porm j situada na nova realidade tecnolgica. Ele reconhecia asuperioridade da indstria sobre a agricultura e props uma es-tratgia de desenvolvimento que hoje tranqilamente chamara-mos de substituio de importaes:

    No s a riqueza, mas a independncia e a segurana de um pas pare-

    cem estar associadas materialmente com a prosperidade das manufa-

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 23

    turas. Tendo em vista esses grandes objetivos, toda nao deve esfor-

    ar-se por possuir em si mesma todos os produtos essenciais. Estes

    abrangem os meios de subsistncia, de habitao, de vesturio e de

    defesa (HAMILTON, 1791 apud GILPIN, 2002).

    Se Adam Smith o pai do liberalismo econmico, AlexanderHamilton o pai do nacionalismo econmico. Vrios economis-tas que se tornaram at mais conhecidos que ele, como o alemoFriedrich List, inspiraram-se no seu pensamento para rechaar atese de Ricardo sobre as vantagens comparativas. De acordo comList, estas no eram nada mais que a promoo dos interessesingleses no comrcio mundial, uma vez que eles haviam usado oEstado para proteger sua indstria nascente e, quando j possuama supremacia na produo industrial, queriam fortalecer o livre-comrcio! (LIST, 1841 apud GILPIN, 2002).

    Realmente, a Inglaterra, a partir do sculo XVIII, havia se torna-do a potncia econmica hegemnica por ter adotado uma sriede medidas nos campos econmico, poltico e militar. Entre estaspodemos citar a fixao do valor da libra e a criao do Banco daInglaterra e da Bolsa de Londres, que deram segurana ao siste-ma e comearam a atrair capitais, inclusive internacionais, quegeraram excedentes que, por sua vez, financiaram a revoluo in-dustrial. As medidas tomadas para proteger e desenvolver sua in-dstria, bem como a obrigatoriedade de os produtos ingleses se-rem transportados em navios ingleses, contriburam ainda maispara que a Inglaterra mantivesse o status quo por quase dois s-culos. Por fim, a deciso de anexar colnias e constituir a maiorarmada do mundo, aps terem destrudo a holandesa, acabaramse transformando em fatores vitais.

    Se a Inglaterra, uma vez preparada para tal, decidiu seguir adoutrina de Smith e Ricardo, a adoo das vises de Hamilton eList foi fundamental para o desenvolvimento de potncias in-dustriais como Estados Unidos, Alemanha e outros pases me-nos expressivos.

    Poderamos, ento, imaginar que os Estados Unidos tivessemadotado tarifas externas extremamente elevadas desde que de-

  • Kjeld Jakobsen24

    clararam sua independncia em 1776 (reconhecida pela Ingla-terra em 1783). No entanto, seu desenvolvimento em fins do s-culo XVIII e na primeira metade do sculo XIX foi, em menor grau,resultado de medidas protecionistas. Isso verificvel pela in-dstria de tecidos de algodo que, em 1789, tinha uma tarifa ex-terna mdia de 5%, ante uma tarifa externa nacional mdia de8,5%. Somente em 1808 a tarifa externa subiu para 17,5% (FUR-TADO, 1959).

    Esse intervalo de quase 20 anos deveu-se ao fato de os estadosagrcolas do sul dos Estados Unidos praticamente viverem da ex-portao de commodities como o algodo e o tabaco e pressiona-rem o governo para que no aumentasse a tarifa externa, pois te-miam que isto provocasse medidas de retaliao da parte dos pa-ses que compravam seus produtos. Os distrbios causados pelasguerras napolenicas, o bloqueio continental promovido pela In-glaterra contra a Frana, a guerra com a Inglaterra entre 1812 e1815 e sua tentativa de se tornar um fornecedor alternativo paraos pases europeus alteraram a poltica comercial norte-america-na. Esta passou a ser ainda mais agressiva na tentativa de expor-tar e protecionista em relao s importaes. Por mais de umsculo, entre 1808 e 1933, a tarifa externa norte-americana prati-camente s subiu.

    conveniente lembrar que o papel da tarifa externa no era so-mente tornar os produtos importados mais caros que os nacio-nais e assim estimular a produo local, mas era tambm a nicareceita relevante para financiar os Estados nacionais. Por exem-plo, at quase o final do sculo XIX, 90% da receita do governo dosEstados Unidos provinham da cobrana de tarifas externas e foisomente em 1913 que criaram o imposto de renda. Atualmente,so apenas os pases mais pobres que tm a tarifa externa comoseu tributo governamental mais importante.

    A tarifa externa era e ainda um instrumento de poltica ma-croeconmica muito importante. Vejamos, no quadro 2, como di-ferentes pases desenvolvidos a aplicavam:

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 25

    Ou seja, no incio do sculo XIX, todos se protegiam de uma ma-neira ou de outra. J no final do sculo houve significativas redu-es tarifrias, principalmente na Inglaterra, uma vez que a in-dstria j estava consolidada e vendendo muito bem. A exceono ltimo quarto de sculo cabe aos Estados Unidos, que enfren-taram a recesso de 1870 por intermdio de novas elevaes nassuas tarifas externas. H poucas alteraes nas tarifas de 1913 a1925, porm todos registram tarifas externas bem mais elevadas

    PAS/ANO

    Alemanha

    Dinamarca

    Espanha

    Estados Unidos

    Frana

    Holanda

    Inglaterra

    Itlia

    Japo

    Rssia

    Sucia

    Sua

    Quadro 2

    Tarifas mdias sobre produtos manufaturados de pasesselecionados e no incio do seu desenvolvimento

    (mdia ponderada em % do valor)

    1820

    8 12

    25 35

    R

    35 45

    R

    6 8

    45 55

    n.d.

    R

    R

    R

    8 12

    1875

    4 6

    15 - 20

    15 20

    40 50

    12 15

    3 5

    0

    8 10

    5

    15 20

    3 5

    4 6

    1913

    13

    14

    41

    44

    20

    4

    0

    18

    30

    84

    20

    9

    1925

    20

    10

    41

    37

    21

    6

    5

    22

    n.d.

    R

    16

    14

    1931

    21

    n.d.

    63

    48

    30

    n.d.

    n.d.

    46

    n.d.

    R

    21

    19

    1950

    26

    3

    n.d.

    14

    18

    11

    23

    25

    n.d.

    R

    9

    n.d.

    Fonte: BAIROCH, 1993. Elaborao prpria.

    Observaes: Os valores das duas primeiras colunas so valores mdios e no extremos.No caso da Alemanha de 1820, utilizaram-se dados referentes Prssia. O R queaparece em alguns quadros significa que a restrio tarifria era insignificante diante deoutras medidas restritivas j aplicadas s importaes, como a imposio de cotas ou aproibio pura e simples da importao de determinados produtos.

  • Kjeld Jakobsen26

    em 1931, o que sem dvida foi parte de uma resposta unnime crise de 1929, a mais grave do sistema capitalista at ento.

    Apesar das idas e vindas, liberalizao das regras comerciais nosmomentos de crescimento econmico e protecionismo nos mo-mentos de retrao ou recesso, o comrcio se expandiu extraor-dinariamente a partir da segunda metade do sculo XIX e atingiuvalores, s vsperas da Primeira Guerra Mundial, que foram re-cuperados somente muito tempo depois. O economista PaulBairoch em seu estudo Globalization Myths and Reality: OneCentury of External Trade and Investments, de 1996, aponta queapenas na dcada de 1970 foi recuperada a mesma relao entreexportaes de mercadorias e PIB que havia entre 1912 e 1914.

    A reao crise de 1929 e o comrcio no perodo entreguerras

    A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918, com a rendioda Alemanha e de seus aliados, e os Estados Unidos comearam adespontar como a nova potncia econmica. No sofreram os efei-tos da guerra em seu territrio e entraram nela quase no final,mas sua participao foi decisiva para a vitria da Inglaterra e daFrana, alm de ter proporcionado um importante aquecimentode sua economia.

    O presidente norte-americano Woodrow Wilson esteve muitoativo nas negociaes de paz, apresentando e advogando seus fa-mosos 14 pontos, que incluam a promoo do livre-comrcio ea criao da Sociedade Democrtica das Naes. Embora esta fossecriada, assim como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT),os Estados Unidos no se tornaram membros da Sociedade De-mocrtica das Naes, pois a opinio pblica e o Congresso norte-americano achavam que os Estados Unidos no deveriam se en-volver com as confuses europias e que o presidente deveriacuidar mais da economia e dos problemas nacionais.

    Tampouco houve qualquer avano em direo liberalizaocomercial. Pelo contrrio, as tarifas ampliaram-se, comparadasao nvel em que estavam antes da guerra, e a Alemanha, derrota-da, perdeu territrios e colnias e arcou com a imposio de uma

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 27

    enorme indenizao de guerra, fatores que na prtica a excluramda participao no comrcio mundial na dcada de 1920.

    Um outro dado importante a considerar foi a Revoluo Russade 1917, que deu origem ao regime socialista da URSS (Unio dasRepblicas Socialistas Soviticas) e, conseqentemente, a um novoator de atuao direta no comrcio mundial, o Estado, porque atento quem comercializava na prtica eram empresas e pessoas,mesmo que apoiadas por polticas de Estado. Alm disso, a URSSiria estabelecer uma relao econmica totalmente diferente comas demais naes.

    O liberalismo no conseguiu promover o desenvolvimento eco-nmico harmnico e a paz que pregava. A disputa entre os gran-des imprios por mercados levara conflagrao da PrimeiraGuerra Mundial. O tratado de paz que imps condies extrema-mente severas Alemanha lanou as bases para o incio de umnovo conflito ainda pior, apenas duas dcadas depois. Neste meiotempo, a superproduo e a especulao ao sabor do mercado pro-vocaram a maior crise da histria do capitalismo, a de 1929.

    A economia mundial havia sofrido algumas recesses durante osculo XIX, mas nenhuma podia ser comparada Grande Depres-so de 1929. At hoje os pases respondem s crises estruturais comfechamento e proteo da economia, como ocorreu em 1929, tambmna crise norte-americana dos anos 1970 e mais recentemente duran-te a crise asitica de 1997. Neste ltimo caso, em plena dcadaneoliberal, constatou-se inclusive que, pela primeira vez em cincoanos, houve mais medidas governamentais na direo da proteodas economias nacionais que medidas liberalizantes. As medidasaplicadas foram as usuais, como elevao de tarifas, desvalorizaomonetria, interrupo nas negociaes de novos acordos comerciaise imposio de quarentenas nos investimentos em alguns pases.

    Para enfrentar a Grande Depresso dos anos 1930, uma dasprimeiras medidas adotadas pelos Estados Unidos foi abandonaro vnculo da sua moeda, o dlar, com o padro ouro5. Esta inicia-

    5. Padro ouro era o lastro que determinava o valor da moeda, a depen-der das reservas de ouro que cada pas possua. Este sistema foi aban-

  • Kjeld Jakobsen28

    tiva foi seguida por muitos outros pases, inclusive o Brasil. O ob-jetivo era desvalorizar a moeda para tornar as importaes maiscaras e as exportaes mais baratas.

    deste mesmo contexto a introduo de vrias medidas protecio-nistas, algumas que inclusive vigoram at hoje. Em 1933, os EstadosUnidos aprovaram a Tarifa Smooth-Hawley, que ampliou a tarifaexterna de mais de 20 mil produtos e elevou a tarifa mdia para53%, valor at ento nunca alcanado e que vigoraria at o incio daSegunda Guerra Mundial. Mas no ficaram somente nisso. O TariffAct de 1930 introduziu reformas na legislao comercial norte-ame-ricana, por intermdio de sobretaxas, cotas, proibio de importa-es etc., que deveriam ser aplicadas no caso de haver indcios douso de subsdios e dumping nos pases de origem dos produtos im-portados. Da mesma forma, a violao de patentes, marcas e direitosautorais ou ainda a falsificao de produtos norte-americanos pas-saram a ser consideradas ilegais e sujeitas a pesadas multas.

    Nesse mesmo ano, foi tambm aprovado o Buy American Act,que obrigava o governo dos Estados Unidos a priorizar a aquisi-o de produtos nacionais. No ano seguinte, j sob o governoRoosevelt, foi criada a lei agrcola norte-americana por meio doAgricultural Adjustment Act, que controlava a oferta dos produ-tos agrcolas mediante compensaes aos agricultores e que, paraassegurar o fornecimento nas quantidades necessrias popula-o, restringia a importao de produtos agrcolas e garantia pre-os mnimos aos produtores por meio de emprstimos subsidia-dos. Esta legislao basicamente a mesma que vigora atualmen-te e no protege somente os interesses da agricultura familiar nor-te-americana, mas tambm os do seu agrobusiness, tema que temsido muito debatido na OMC e em outros fruns.

    A crise foi prolongada. Particularmente Estados Unidos e Ca-nad sentiram seus efeitos quase at o final dos anos 1930. Mui-

    donado com a crise de 1929. Posteriormente, o FMI definiu a vinculaoda moeda norte-americana na base de US$ 35 por ona de ouro, e osdemais pases passaram a referenciar-se pelo dlar, pois os EstadosUnidos detinham cerca de 40% do estoque mundial de ouro monetizado.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 29

    tas empresas foram bancarrota e somente as mais fortes sobre-viveram. Tambm foram constitudos muitos cartis. A Socieda-de Democrtica das Naes avaliou que, em 1937, 42% do comr-cio mundial eram dominados por cartis. Na tentativa de estimu-lar a retomada do comrcio mundial, comearam a ser assinadosacordos bilaterais, sempre com a preocupao de assegurar equi-lbrio entre exportaes e importaes. O Brasil assinou cerca de26 desses acordos entre 1930 e 1934, que na prtica pouco acres-centaram economia. A nica relao comercial do Brasil queprogrediu entre 1936 e 1939 por conta desses acordos foi com aAlemanha nazista, que instituiu uma poltica de certa complemen-tao econmica. O Brasil exportava algodo e caf e importavaprodutos industriais, porm sempre em valores e quantidades taisque houvesse equilbrio na balana comercial entre os dois pa-ses. Entretanto, o resultado mundial para o comrcio foi umaretrao de 55% na dcada de 1930.

    Quando a crise comeou a ser superada, iniciou-se a SegundaGuerra Mundial, e o volume de bens comercializados internacio-nalmente novamente se reduziu devido ao risco do transporte ma-rtimo. A ironia que as conseqncias do liberalismo e do livre-comrcio do sculo XIX, como as duas guerras mundiais e a crisede 1929, na prtica restringiram o comrcio mundial por quase 40anos, pois ele somente comeou a reagir a partir da dcada de 1950.

    Quando a Segunda Guerra estava chegando ao final, era claropara muitos dirigentes polticos e personalidades influentes queseria necessrio criar organismos internacionais para regular aeconomia e promover a paz. Ao trmino da primeira guerra, jhavia sido criada a Organizao Internacional do Trabalho (OIT),para normatizar direitos dos trabalhadores e assim enfrentar aquesto social, uma vez que no se desejava a repetio da Revo-luo Russa de 1917 e nem de outras tentativas revolucionriasque ocorreram ao final da Primeira Guerra. A Sociedade Demo-crtica das Naes, tambm criada a partir do Tratado de Versa-lhes, no conseguira evitar a Segunda Guerra Mundial. Logo, pre-cisava ser substituda por outra coisa.

  • Kjeld Jakobsen30

    O debate que se travou sobre o carter das novas instituiesinternacionais aps a Segunda Guerra Mundial entre os trs prin-cipais aliados contra a Alemanha nazista Roosevelt pelos EstadosUnidos, Churchill pela Inglaterra e Stalin pela Unio Sovitica apontou para vrias iniciativas, entre elas a criao da Organiza-o das Naes Unidas (ONU), que assumiria a responsabilidadede manejar politicamente os conflitos potenciais do futuro.

    As duas potncias capitalistas, Estados Unidos e Inglaterra, jhaviam deliberado entre si que deveriam ser criadas instituiesinternacionais para regular a economia a partir de intervenesno sistema monetrio, no sistema de investimentos para a recons-truo no ps-guerra e no comrcio mundial. A primeira menoapareceu na Carta do Atlntico, em 1941, sobre os princpiosfundamentais que deveriam reger um mundo melhor, seguido

    2. O GATT, de Genebra a Tquio

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 31

    por um acordo de cooperao mtua em 1942 e pela negociaoda dvida de guerra da Inglaterra com os Estados Unidos em 1945,quando a Inglaterra desmantelou suas restries comerciais aosprodutos norte-americanos (CAMPOS e BIANCHINI, 1999).

    Em 1944, realizou-se a Conferncia de Bretton Woods, que criouo Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Internacionalde Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido comoBanco Mundial. Os grandes mentores destas instituies foramRobert Dexter White, que representava o governo dos EstadosUnidos e, principalmente, John Maynard Keynes, que coordena-va a delegao britnica.

    A criao do GATT

    Embora j houvesse estudos em andamento para regulamentaro comrcio mundial, este tema acabou sendo o mais difcil, poisingleses e norte-americanos no possuam sobre ele o mesmo con-senso que tinham sobre o FMI e o Banco Mundial. A Inglaterraapresentou uma proposta que defendia desde uma poltica de ple-no emprego como uma obrigao internacional, at a manuten-o do tratamento comercial preferencial para os pases daCommonwealth (Comunidade Britnica). J os Estados Unidospropuseram um sistema baseado em regras que reduzissem osobstculos ao comrcio mundial. Em 1943, uma comisso anglo-americana de alto nvel havia se reunido nos Estados Unidos eapresentou um documento chamado Propostas para a expansodo comrcio mundial e do emprego. Este texto serviu de basepara as reunies preparatrias da Conferncia das Naes Unidassobre o Comrcio e o Emprego de 1946, realizada em Havana, quepretendia criar a Organizao Internacional do Comrcio (OIC).

    Os Estados Unidos participaram ativamente das discusses pre-paratrias e da elaborao da Carta Internacional de Comrcio, aCarta de Havana, mas o presidente Truman, percebendo quehavia forte oposio no Senado proposta, no a encaminhou pararatificao. De fato, o Congresso norte-americano era majorita-riamente republicano, partido tradicionalmente contrrio ao li-

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    vre-comrcio e pouco interessado em ratificar as resolues daConferncia, particularmente a criao de uma instituio que de-terminaria regras para o comrcio mundial, inclusive dos EstadosUnidos, e ainda por cima as fiscalizaria!

    Tendo em vista que algo similar j havia ocorrido quando dacriao da Sociedade Democrtica das Naes em 1919, mesmocom o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, sendoum dos seus principais mentores, ningum se disps a levar a OICadiante sem a participao dos Estados Unidos. Assim como aausncia dos Estados Unidos, uma das principais potncias pol-ticas e militares da poca, havia contribudo para o fracasso daSociedade Democrtica das Naes, a falta de compromisso damaior potncia econmica do mundo com as regras do sistemainternacional de comrcio torn-las-iam totalmente incuas.

    A soluo encontrada foi aproveitar apenas alguns princpios,mecanismos e regras de regulamentao do comrcio mundialprevistos na Carta de Havana para elaborar um tratado interna-cional, sem criar uma estrutura fixa e permanente para coorde-nar as polticas de comrcio mundial at que a Carta viesse a serratificada, o que nunca ocorreu. Dessa forma, realizar-se-iam reu-nies peridicas dos aderentes ao tratado, para deliberar sobre asregras comerciais. Este tratado gerou, em 1947, o Acordo Geral deTarifas e Comrcio (General Agreement of Trade and Tariffs GATT), que entrou em vigor em maio de 1948. Em seu prembulo,propunha-se a promover um comrcio mais livre e mais justo,mediante reduo de tarifas, eliminao de barreiras no-tarifrias, abolio de prticas de concorrncia desleal, aplicaoe controle dos acordos comerciais e arbitragem dos contenciososcomerciais.

    Do ponto de vista poltico, a adoo somente do aspecto comer-cial da Carta de Havana significou a rejeio aos aspectos desen-volvimentistas do comrcio mundial, defendidos por Keynes evrios governos de pases em desenvolvimento, mencionados nosseus trs primeiros objetivos: promover o crescimento da rendareal e a demanda efetiva em escala mundial; promover o desen-volvimento econmico, particularmente dos pases no-industria-

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    lizados; e garantir acesso e igualdade de termos a produtos e mer-cados para todos os pases, levando-se em conta as necessidadesde promover o desenvolvimento econmico.

    Juridicamente, a nova frmula foi considerada to singela queno necessitaria de ratificao e os prprios pases aderentes aotratado foram considerados partes contratantes do GATT, em vezde membros. Para cumprir os objetivos traados, o tratado incluiutrs princpios:

    1) A no-discriminao, que se baseia em duas clusulas funda-mentais: a da nao mais favorecida (ver box, p. 34) e a clusulado tratamento nacional, que estabelece igualdade de tratamentoentre produtos nacionais e importados.2) A reduo geral e progressiva das tarifas. Esta deve ocorrer embases recprocas e pode ocorrer por intermdio de negociaesproduto a produto, reduo linear ou pela harmonizao dosdireitos aplicados nos diferentes pases. So os chamados direitosde aduana.3) Proibio de restries quantitativas (cotas1) s importaes,dumping2 e subsdios3 s exportaes.

    Foram previstas excees a cada um desses princpios do GATT,da seguinte forma:

    1) O Artigo 24 autoriza a criao de zonas de livre-comrcio ouunies aduaneiras, no interior das quais as partes contratantespodem reduzir suas tarifas ou conceder outros benefcios sem anecessidade de oferec-los tambm a outros pases.

    1. Cota uma quantidade limitada de produto importado com garantiade tarifa mais baixa.2. Dumping a venda de um produto por preo menor que o custo deproduo, para eliminar a concorrncia.3. Subsdio um valor que o Estado pode agregar a uma produopara torn-la mais barata e competitiva. Pode ser por intermdio deiseno de impostos, concesso de emprstimos com juros mais bai-xos que os de mercado ou outras concesses que permitam exportar apreos menores.

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    2) O Artigo 19 introduziu a chamada clusula de salvaguarda,que autoriza o estabelecimento de barreiras tarifrias para prote-ger setores produtivos nacionais que se encontrem ameaados.3) O Artigo 12 autoriza a aplicao de restries quantitativas simportaes quando a balana de pagamentos acusa um dficitelevado, desde que as restries ou cotas sejam suspensas quandoa situao se normalizar. Tambm so aceitas para limitar a im-portao de excedentes agrcolas ou quando pases em desenvol-vimento julgassem que poderiam favorecer a substituio de im-portaes em determinados setores.

    A clusula da nao mais favorecida

    Este princpio obriga um pas a conceder a todos os demais osmesmos benefcios que se dispuser a conceder a algum em parti-cular. Por exemplo, se hoje o Brasil decidisse eliminar sua tarifaexterna para a importao de produtos, digamos, da frica do Sul,seria obrigado a tambm eliminar as tarifas para os demais pasesque participam da OMC. No sistema multilateral, essa clusula valetambm para outros temas como investimentos, propriedade inte-lectual, regras de competitividade etc. uma das pedras angulares do liberalismo e do estabelecimentode regras comerciais supranacionais. Tem origem no liberalismoingls e j havia sido proposta anteriormente para regular o co-mrcio mundial quando os Estados Unidos tentaram inclu-la noTratado de Versalhes, como decorrncia dos 14 pontos propos-tos pelo presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson paraa reconstruo europia.Conceitualmente, um dos sustentculos do princpio da no-discriminao, que a princpio parece muito justo, pois trata todosos pases da mesma forma. O problema que estes no so iguais,principalmente em se tratando de comrcio. Como a clusula obri-ga a estender apenas o que oferecido e no o que pedido, ecomo os pases desenvolvidos s apresentam ofertas nos setoresem que esto aptos a competir, a clusula no d vantagens aospases em desenvolvimento. Estas vantagens referem-se aos pa-ses desenvolvidos, por possurem melhores fatores de produo,bem como mobilidade de capital e trabalho. Aos pases em desen-volvimento, quando muito, cabe o papel de carona.

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    O tratado que criou o GATT foi assinado por 23 pases que, napoca, eram responsveis por 80% do comrcio mundial, 11 dosquais pases em desenvolvimento. Os pases fundadores compu-seram um grupo consultivo para acompanhar desequilbrios e cri-ses e tm maior peso poltico nas decises sobre o ingresso ou node novos membros. Normalmente os novos membros tinham noGATT, e ainda tm, hoje no mbito da OMC, de passar por uma fasede adaptao s regras existentes e realidade tarifria determi-nada pelo Acordo Geral, antes de serem aceitos. Quando a OMCsubstituiu o GATT, em 1995, este tinha 117 pases membros.

    Zonas de livre-comrcio

    Um processo de integrao econmica entre naes possui v-rias fases, at atingir a integrao poltica, isto , o compartilha-mento das polticas de segurana e relaes exteriores. Porm, oprimeiro passo comea pelo estabelecimento de zonas de livre-comrcio, onde h livre-circulao de mercadorias devido elimi-nao das tarifas externas entre os pases participantes. O passoseguinte a unio aduaneira, quando esses mesmos pasesestabelecem uma tarifa externa comum em relao aos pasesque no fazem parte da zona de livre-comrcio, inclusive para evi-tar desvio de comrcio. (Quando o acordo para estabelecer a unioaduaneira admite excees para certos produtos, ela uma unioaduaneira incompleta.)Em alguns casos, o objetivo principal era constituir zonas de livre-comrcio sem outras pretenses, como o NAFTA (Acordo de Li-vre-Comrcio da Amrica do Norte), que envolve Mxico, Canade Estados Unidos, pois particularmente este ltimo no desejacompartilhar as decises sobre suas polticas nacionais com quemquer que seja. J em outros casos realizou-se uma integraomais ampla, como a Unio Europia, que atingiu a fase de unifica-o monetria, com a adoo de uma srie de premissas macro-econmicas comuns e a criao de uma moeda nica, o euro. OMercosul (Mercado Comum do Sul), por exemplo, ainda encontra-se na fase intermediria de unio aduaneira incompleta.Uma zona de livre-comrcio assume as mesmas obrigaes pre-vistas no GATT para qualquer outro pas, no que tange a acordoscomerciais com outros pases ou grupos de pases.

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    Em 1960, houve uma reforma na constituio do GATT e foi cria-do um Conselho de Representantes, coordenado por um diretor-geral e um secretariado para mediar e arbitrar as controvrsias. Asede deste Conselho passou a ser a cidade de Genebra, na Sua.Foi, no entanto, preservado o princpio original do Tratado, queestabeleceu que as rodadas de negociaes comerciais determi-

    O Comecon

    Lembremo-nos de que, quando foi criado o GATT, estvamos emplena Guerra Fria. A reao do bloco socialista foi formar o Conse-lho de Ajuda Econmica Mtua (Comecon), em 1949, com o obje-tivo de estabelecer um sistema de complementao entre as eco-nomias dos pases membros a partir da especialidade de cadaum. A sede do Comecon ficava em Moscou e foram membros fun-dadores URSS, Albnia, Tchecoslovquia, Hungria, Romnia ePolnia. A Repblica Democrtica Alem aderiu em 1950, aMonglia em 1962, Cuba em 1972 e o Vietn em 1978. A Albniaabandonou o bloco em 1961 e a Iugoslvia participava parcial-mente por intermdio de comisses. Havia ainda alguns pases,como Afeganisto, Angola, Etipia, Laos, Moambique e Repbli-ca Popular do Imen, que tinham status de observadores.Por um lado, o Comecon foi importante para alguns pases so-cialistas, principalmente os de economia mais frgil, como Cuba,por exemplo, que trocava acar por petrleo com a URSS a pre-os normalmente descolados das cotaes do mercado interna-cional. Com isto, adquiria insumo energtico suficiente para aten-der suas necessidades e vendia o excedente no mercado spotpara obter as divisas necessrias para pagar pelos produtos even-tualmente comprados de pases capitalistas. Tambm trocavaacar por armas e outros equipamentos da Tchecoslovquia, eassim por diante.Por outro lado, como o Comecon proporcionava um sistema detrocas de produtos a partir da especializao de cada membro,contribuiu para a manuteno de um sistema desigual de desen-volvimento e dependente do membro mais poderoso, a URSS, queassim detinha muita influncia sobre os rumos das economias dosdemais e, conseqentemente, do sistema socialista.O Comecon extinguiu-se em 1991, aps as transformaes polti-cas e econmicas dos pases do Leste europeu.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 37

    navam as regras. As deliberaes eram tomadas por maioria sim-ples dos pases membros, com base em um pas, um voto. Nocaso de decises sobre a admisso de novos membros, autoriza-o para a aplicao das excees e aprovao das zonas de livre-comrcio ou unies aduaneiras, eram necessrios dois teros dosvotos.

    Durante a existncia do GATT, foram realizadas oito rodadas denegociaes comerciais:

    ANO RODADA

    Fonte: OMC, 1999. Elaborao prpria.

    No. de pases

    1947 Negociaes de Genebra 23

    1949 Negociaes de Annecy 13

    1951 Negociaes de Torquay 38

    1956 Negociaes de Genebra 26

    1960 1961 Rodada Dillon 26

    1964 1967 Rodada Kennedy 62

    1973 1979 Rodada Tquio 102

    1986 1994 Rodada Uruguai 123

    Nas vrias rodadas de negociao, desde a primeira de Genebraque criou o GATT, foram sendo negociadas sucessivas redues tari-frias, basicamente de bens industriais. Nas negociaes que ocor-reram entre 1947 (Genebra) e 1951 (Torquay), elas foram reduzi-das, em mdia, 25%. Nesta Rodada, as 38 partes contratantes tro-caram cerca de 8.700 concesses tarifrias, que corresponderam aum comrcio no valor de US$ 10 bilhes. A modalidade de negocia-es que se utilizava nessa poca e que perdurou at a Rodada Dillon,quando mais 4.400 produtos foram negociados, era a da negocia-o bilateral, em que cada pas negociava primeiro com seu princi-pal fornecedor e depois aplicava o acordado a seus outros parceiroscomerciais por conta da clusula da nao mais favorecida.

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    Nas negociaes seguintes, o mtodo adotado foi o da reduolinear de tarifas, excluindo poucos produtos. Na Rodada Kennedy,a negociao envolveu cerca de 60 mil concesses tarifrias, sig-nificando uma reduo linear de 35%. O nmero de concessesampliou-se para 98 mil na Rodada Tquio, representando umanova reduo linear de aproximadamente 33% para os pasesindustrializados, com um potencial de comrcio no valor de apro-ximadamente US$ 155 bilhes. O resultado alcanado por seterodadas de negociaes, ao longo de 32 anos, foi reduzir a tarifamdia dos 40% existentes sobre produtos manufaturados pocade criao do GATT, para 4,7% em mdia em 1979 (CAMPOS eBIANCHINI, 1999).

    Os produtos agrcolas, quando muito, eram negociados marginal-mente e foram totalmente excludos do Acordo Geral em 1954 a pe-

    A arbitragem das disputas comerciais

    Tambm conhecido como mecanismo de soluo de controvr-sias. O GATT possua uma srie de comits permanentes como ode Normas Tcnicas, Prticas Antidumping, Subsdios e MedidasCompensatrias, entre outros, que alm de produzir estudos tc-nicos, podiam ser chamados a opinar sobre as queixas de des-cumprimento das regras da instituio de um membro contra ou-tro. Normalmente as queixas referiam-se a alguma suposta barrei-ra comercial ou prtica desleal de comrcio.Aps eventuais anlises de algum desses comits, a queixa erasubmetida apreciao dos pases membros, cujos ministros res-ponsveis reuniam-se uma vez ao ano e decidiam por consenso.No caso de o pas incriminado no respeitar as decises adotadas,o pas reclamante era autorizado a adotar medidas de retaliaocomercial contra ele. No entanto, qualquer membro do GATT, inclu-sive o pas demandado, podia solicitar suspenso da anlise daqueixa para vistas e discusses de alternativas, o que freqente-mente paralisava as anlises das disputas.Com o aumento do nmero de membros e com maior engajamen-to dos pases em desenvolvimento no comrcio mundial, aumen-tou tambm o nmero de queixas, justificando a instalao da es-trutura permanente para o GATT, que ocorreu em 1960.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 39

    dido dos Estados Unidos. Na Rodada Dillon, o maior opositor a quevoltassem mesa de negociaes foi a Comunidade Europia, que jestava implementando sua poltica agrcola comunitria (PAC).

    Algo semelhante ocorreu com os produtos txteis, que foramtratados de forma diferente dos demais bens industriais. Comouma parte importante de sua produo no dependia de tecnologiae sim de mo-de-obra intensiva, era um produto que favoreciaprincipalmente os pases em desenvolvimento com mo-de-obrabarata e que foi protegido nos pases desenvolvidos por meio decotas, principalmente. Os produtos txteis acabaram excludos doprocesso de liberalizao, por intermdio de sucessivos acordosentre 1961 e 1994, que restringiram o acesso aos mercados dospases desenvolvidos. Foram chamados de Acordos Multifibras,por envolver produtos feitos com diferentes fibras, desde o algo-do at as sintticas como o nylon, a lycra e outras.

    At a Rodada Dillon, os nicos temas em negociao na prticaeram a negociao da reduo de tarifas de bens industriais e apoltica comercial do GATT, que incluam regras antidumping emedidas compensatrias4, entre outras. As rodadas posteriorescomearam aos poucos a introduzir novos assuntos, at chegaraos atuais Temas de Cingapura (investimentos, polticas de con-corrncia, transparncia em matria de compras governamentaise facilitao de comrcio). O incio de novas rodadas dependia doacordo dos membros e, por vrias vezes, sua realizao atendeuapenas solicitao de algum membro mais importante. Foi as-sim com a Rodada Dillon solicitada pelos Estados Unidos, preo-cupados com a entrada em vigor do Tratado de Roma, que criouem 1958 a Comunidade Econmica Europia. Consideravam estainiciativa ameaadora ao seu comrcio e, por isso, insistiram emredues tarifrias adicionais.

    Os efeitos da liberalizao comercial fizeram-se sentir rapida-mente: entre 1953 e 1963, o comrcio mundial cresceu a uma

    4. Medidas compensatrias so aquelas adotadas por governos quandopercebem que h a utilizao injusta de subsdios ou a prtica de dumpingpor outros pases.

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    taxa de 6,1% a.a. que saltou para 8,9% a.a. entre 1963 e 1973,reduzindo-se posteriormente. No entanto, este efeito dizia res-peito basicamente aos pases industrializados, que em 1960 eramresponsveis por 71% das exportaes mundiais (BHAGWATI,1988).

    As excees necessrias e a criao da UNCTAD

    No h dvida de que a eliminao ou reduo de obstculos aocomrcio de bens, como tarifas externas, condicionamentos tc-nicos, entraves burocrticos, entre outros, contribuem para o cres-cimento do comrcio. O desafio sempre foi e continua sendo en-contrar mecanismos que produzam acordos justos, que respeitemas diferenas existentes entre os pases, possibilitando que estesdisponham de mecanismos macroeconmicos para definir rumosautnomos para suas economias, de modo que o comrcio real-mente contribua para o desenvolvimento de todos.

    Ao assegurar o princpio de um pas, um voto, o GATT, nemmesmo no seu perodo mais equilibrado e mesmo possuindo re-gras mais democrticas que o FMI e o Banco Mundial, conseguiuou quis resolver essa equao. Nem as excees previstas na suaconstituio eram suficientes, at porque dependiam da boa von-tade e da aprovao da maioria dos membros do GATT.

    Muitos pases encontravam-se em processo de descolonizaoao longo dos anos 1950 e ainda tinham os produtos primrios,agricultura e minerao, como sua principal fonte de divisas. Amaioria no possua estrutura tcnica para influenciar concreta-mente as decises a serem tomadas, e mesmo pases mais adian-tados, como o Brasil, ainda se encontravam na fase inicial da subs-tituio de importaes. No caso brasileiro, o peso da indstriana economia s veio a superar o da agricultura em meados da d-cada de 1950.

    Essa dependncia dos pases em desenvolvimento de seus pro-dutos primrios para a exportao, para gerar os recursos neces-srios para investir na sua industrializao, levou famosa crticada Cepal sobre a teoria das vantagens comparativas, pois o preo

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 41

    dos produtos primrios exportados, principalmente quando suaoferta crescia, deteriorava-se diante do preo dos produtos indus-triais a serem importados. Portanto, de pouco serviam a especia-lizao e a alta produtividade quando os produtos em questo eramcommodities. Esse fenmeno conhecido como a deterioraodos termos de troca. Por maior que fosse a especializao dospases em desenvolvimento na produo de commodities, esta nogarantia uma posio confortvel no comrcio mundial, e nemque estes pases pudessem acumular capitais suficientes para fi-nanciar a prpria industrializao.

    Nesse sentido, reivindicava-se a implementao de polticas fa-vorveis superao dessa brecha econmica crescente entre ospases industrializados e desenvolvidos e os pases produtores decommodities e subdesenvolvidos, com maior acesso dos produtosdos pases subdesenvolvidos aos mercados dos pases industriali-zados, incremento do fluxo de capitais e transferncia de tecnologiapara os pases do Terceiro Mundo. E, de modo geral, reivindica-va-se o apoio industrializao dos pases pobres, a partir da con-cepo de que esta seria a nica forma de promover um desenvol-vimento equilibrado e sustentvel num mundo em crescente in-terdependncia econmica (UNCTAD, 2004).

    Quando Keynes estava envolvido nos debates para estruturar onovo sistema econmico mundial, alm do FMI e do BancoMundial, criados em Bretton Woods, e da OIC, que no vingou daforma planejada, j vinha formulando a criao de uma institui-o que interferisse no comrcio de commodities, a partir da cria-o de um fundo para complementar a renda dos pases depen-dentes desses produtos de exportao sempre que os seus preoscassem abaixo de certos nveis. No entanto, faleceu antes de ter aoportunidade de levar a proposta adiante.

    J na quarta rodada de negociaes em Genebra, em 1956, sur-giram as primeiras reaes dos pases em desenvolvimento con-tra as barreiras tarifrias e no-tarifrias que dificultavam suasexportaes, tendo em vista que os pases importadores de commo-dities haviam adotado uma srie de medidas restritivas de ordemfitossanitria e contingentes diversas. Em maro de 1964, por ini-

  • Kjeld Jakobsen42

    A Unio Europia

    Uma das razes para constantes conflitos e guerras entre a Ale-manha e a Frana era a disputa por carvo e ao extrados nasregies de fronteira entre os dois pases. A primeira iniciativa degrande porte adotada, aps a Segunda Guerra Mundial, para ini-ciar a integrao europia, tomou isto em profunda considerao.Em 1948, havia entrado em vigor a unio aduaneira entre Blgica,Holanda e Luxemburgo, que conformaram a chamada Benelux.Dois anos depois, o primeiro-ministro da Frana, Robert Schuman,props um plano para colocar a produo de carvo e ao franco-alem sob uma autoridade comum, qual outros pases tambmpudessem aderir. Conformou-se ento, em 1951, o tratado quecriou a Comunidade Europia do Carvo e do Ao (CECA), quecontou com a adeso, alm de Alemanha e Frana, de Benelux eItlia.Posteriormente, realizaram-se negociaes entre os seis pasespara criar um mercado comum (MCE) e a Comisso Atmica Euro-pia (Euratom), dando base para a integrao econmica e umapoltica de segurana comum. Em 1958, entrou em vigor o Trata-do de Roma, que fundou a Comunidade Econmica Europia (CEE),que alguns anos depois recebeu a adeso de mais pases comoDinamarca, Reino Unido e Irlanda. Seus princpios norteadoresem direo integrao eram a livre circulao de mercadorias,capitais e servios, bem como a livre circulao de trabalhadorese o direito de se estabelecerem em qualquer pas membro da CEE.Tambm foram adotadas quatro polticas comuns, a saber, emrelao a agricultura, competitividade, transportes e comrcio.

    ciativa da ONU, realizou-se a Conferncia das Naes Unidas parao Comrcio e o Desenvolvimento (United Nations Conference forTrade and Development UNCTAD). O que era inicialmente paraser um momento de avaliao sobre os resultados do comrciomundial e discusso sobre eventuais ajustes acabou se transfor-mando numa estrutura permanente para auxiliar os pases emdesenvolvimento a participar em melhores condies das nego-ciaes comerciais internacionais, tanto bilateralmente comomultilateralmente, no mbito do GATT.

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 43

    O resultado comercial alcanado entre 1958 e 1987 foi a diminui-o das importaes de fora do bloco para os pases membros, de65% para 41%, devido complementao econmica que surgiuno interior da Comunidade, enquanto o comrcio intracomunidadealcanou 60% do total realizado pelos seus pases membros. Em1986, as exportaes da CEE representavam 25% das exporta-es mundiais, ante 14% e 18%, respectivamente, dos EstadosUnidos e Japo. Esses bons resultados foram alcanados graasa uma poltica de Keynes em casa e Smith no exterior. Recursosgovernamentais para financiar as polticas desejadas no falta-ram (SANTANIELLO, 1999). O temor da criao de uma FortalezaEuropa levou os Estados Unidos a pedirem a Rodada Dillon doGATT, para provocar uma reduo geral nas tarifas externas mun-diais, e foi tambm uma das razes para proporem o incio daRodada Uruguai, em 1986.Mesmo com a maioria dos pases europeus aderindo s polticasneoliberais, a integrao prosseguiu. Em 1984, o nome da Comu-nidade mudou para Unio Europia, e novos pases aderiram, to-talizando 15 at 2003. O Tratado de Maastricht, assinado em 1992,definiu as diretrizes para que a Unio Europia chegasse uniomonetria, ocorrida em 1999. Nesse meio-tempo, foi criada umasrie de instituies para dar suporte s polticas comunitrias,como o Parlamento Europeu, o Banco Central, o Conselho Eco-nmico e Social, entre vrias outras. O passo seguinte foi a entra-da de mais dez pases na Unio Europia, entre eles vrios ex-integrantes do bloco socialista do Leste europeu, em maio de 2004.Um novo grupo, composto por pases menos desenvolvidos docontinente, entre eles alguns balcnicos como Bulgria e Romnia,entrar em 2007.

    A conjuntura vigente, alm do processo de descolonizao, regis-trava tambm a ascenso do Movimento dos Pases No-Alinhados,que nasceu na Conferncia de Bandung, cidade da Indonsia, em1955, reunindo 29 pases recm-independentes da sia e da frica,bem como alguns de seus lderes mais conhecidos, como Nasser,Sukharno, Nehru, entre outros. (O Brasil participou da Confernciacomo observador.) Este quadro introduziu uma forte influncia donacionalismo econmico nas resolues da UNCTAD, conforme pode-mos perceber no pargrafo 5 de sua ata de fundao:

  • Kjeld Jakobsen44

    Os pases em desenvolvimento reconhecem que tm a responsabilida-

    de primria de elevar o padro de vida de seus povos, mas os esforos

    nacionais com esta finalidade sero enormemente prejudicados se no

    forem suplementados e reforados por uma ao internacional emba-

    sada no respeito soberania nacional. Um elemento essencial de tal

    ao ser a adoo de polticas internacionais no campo do comrcio e

    do desenvolvimento que resultem numa diviso internacional do

    trabalho modificada, mais racional e equilibrada e acompanhada pelos

    ajustes necessrios na produo e no comrcio mundial. O incremento

    resultante em produtividade e poder de compra dos pases em desen-

    volvimento contribuir para o crescimento econmico dos pases indus-

    trializados tambm e assim tornar-se- um meio para a prosperidade

    mundial (ONU, 1964).

    Embora todos os pases membros da ONU sejam membros daUNCTAD, at a Rodada Uruguai do GATT foi o Grupo dos 77 (G-77)que conseguiu transform-la num frum de articulao e nego-ciao das propostas dos pases em desenvolvimento. Este grupo,hoje composto por 132 pases pobres e em desenvolvimento, umaarticulao que surgiu para atuar inicialmente na UNCTAD, masque tambm opera no interior de outras instncias multilaterais.Ao longo das seis primeiras conferncias, conseguiu aprovar umasrie de propostas.

    Entre as principais decises aprovadas na UNCTAD e posterior-mente adotadas pelo GATT podemos mencionar, em primeiro lu-gar, o princpio da no-reciprocidade agregado ao captulo IV doAcordo Geral, permitindo que os pases em desenvolvimento, apartir desse momento, no fossem obrigados a seguir a clusulada nao mais favorecida em relao aos pases industrializados epudessem conceder vantagens tarifrias a outros pases em de-senvolvimento, sem a obrigao de criar zonas de livre-comrcioou unies aduaneiras. Este procedimento foi regulamentado nasRodadas Kennedy e Tquio.

    Na segunda conferncia da UNCTAD, em 1968, aprovou-se oindicativo de um sistema geral de preferncias (SGP) como for-ma de os pases em desenvolvimento acederem ao mercado dos

  • Comrcio internacional e desenvolvimento 45

    pases industrializados. Este sistema foi adotado na Rodada T-quio do GATT como um tratamento diferenciado e mais favor-vel permanente a esses pases, embora j estivesse em vigor naComunidade Europia e no Japo desde 1971 e nos Estados Unidosdesde 1976. No entanto, o SGP foi adotado com base setorial, isto, os produtos em que os pases em desenvolvimento eram consi-derados competitivos no entrariam no SGP. Alm disto, a con-cesso e o cancelamento do SGP so unilaterais e algumas vezesaplicadas a partir de critrios polticos. Com isto, alguns pasesampliaram sua dependncia da exportao de commodities(BIANCHINI e CAMPOS, 1999). A criao de um sistema de prefe-rncias comerciais (SGPC), isto , um sistema de preferncias en-tre os pases em desenvolvimento, foi proposta na IV Confernciada UNCTAD em 1976, mas ele s entrou em vigor em 1989.

    A adoo de regras antitrustes para enfrentar as prticas co-merciais restritivas das corporaes transnacionais j havia sidodiscutida na Conferncia de Havana e depois foi negociada naUNCTAD durante 12 anos (1968 a 1980), quando entrou em vigor.Somente este fato demonstra a influncia dessas empresas na de-finio das regras internacionais de comrcio, ao conseguiremprotelar uma deciso dessa magnitude por 12 anos e ainda assimassegurar que a resoluo aprovada contivesse excees.

    Embora freqentemente os pases industrializados simples-mente no respeitassem as regras acordadas ou ento, quandomuito, as adotassem de acordo com sua prpria interpretao, oreconhecimento da necessidade de conceder tratamento diferen-ciado para os pases em desenvolvimento era um fato poltico damaior importncia. Tanto que, quando o neoliberalismo tornou-se a poltica governamental hegemnica no mundo ao final dadcada de 1980, o papel da UNCTAD foi limitado. De todo modo, obalano positivo. Alm dos j mencionados, foram tambm apro-vados acordos referentes a navegao e commodities, entre ou-tros. Houve, ainda, negociaes sobre um tratado para a transfe-rncia de tecnologia, que nunca chegou a ser aprovado.

    A partir da Rodada Uruguai do GATT e da criao da OMC, ospases desenvolvidos no permitiram mais a interferncia da

  • Kjeld Jakobsen46

    UNCTAD nas resolues adotadas nesse mbito, e o seu papel re-duziu-se a realizar estudos e elaborar propostas de como integraros pases em desenvolvimento no comrcio mundial em confor-midade com as regras existentes do sistema multilateral, comosuperar o problema da dvida externa etc. Os estudos que a UNCTADproduz anualmente sobre fluxos de comrcio e investimentos sode excelente qualidade e o papel que ela desempenha hoje estligado situao geral em que se encontram as instituies multi-laterais, em que o FMI, o Banco Mundial e a OMC exercem um pa-pel predominante em detrimento das demais, inclusive da pr-pria ONU. , portanto, uma questo eminentemente poltica quepossivelmente poder ser superada diante das dificuldades que aprpria OMC vem enfrentando para dar prosseguimento a seu pa-pel de promover o comrcio mundial.

    Atualmente a UNCTAD tem 192 pases membros e seu oramentogira em torno de US$ 75 milhes. Possui um Secretariado Per-manente com quatro divises: Globalizao e Estratgias de De-senvolvimento; Investimento, Tecnologia e DesenvolvimentoEmpresarial; Comrcio Internacional de Bens, Servios eCommodities e Infra-estrutura de Servios para Desenvolvimen-to e Eficincia Comercial. Alm destes, h ainda o Programa Es-pecial para os Pases de Menor Desenvolvimento Relativo, Pa-ses sem Litoral e Pequenas Ilhas e, finalmente, a Diviso de Ad-ministrao.