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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS VALDECIR DE LIMA SANTOS COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? SALVADOR 2014

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Page 1: COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM … · A todos os Professores que passaram pela minha vida, especialmente aos que compuseram a minha infância, me ensinando as letras

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

VALDECIR DE LIMA SANTOS

COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM

QUADRINHOS?

SALVADOR

2014

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VALDECIR DE LIMA SANTOS

COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM

QUADRINHOS?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Estudo de Linguagens, no âmbito da Linha de Pesquisa I -

Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de Ciências

Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como

requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo

de Linguagens.

Orientador: Professor Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira

SALVADOR

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Santos, Valdecir de Lima

Com que cor se pinta o negro nas Histórias em Quadrinhos? / Valdecir de Lima Santos. -

Salvador, 2013.

123f.

Orientador: Sílvio Roberto dos Santos Oliveira

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013.

Contém referências.

1. Negros na literatura - Brasil. 2. Histórias em Quadrinhos. 3. Negros - Brasil -

Identidade étnica. 4. Negros - Brasil - Identidade racial. I. Oliveira, Silvio Roberto dos

Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 809.896

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VALDECIR DE LIMA SANTOS

COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM

QUADRINHOS?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, no

âmbito da Linha de Pesquisa I - Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de

Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito

parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens.

Banca Examinadora

_____________________________________________________

Prof° Dr° Sílvio Roberto dos Santos Oliveira

Universidade do Estado da Bahia

Orientador

_____________________________________________________

Profª Drª Sayonara Amaral de Oliveira

Universidade do Estado da Bahia

_____________________________________________________

Profº Dr° Edson Dias Ferreira

Universidade Estadual de Feira de Santana

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Dedico este trabalho a minha avó Biziu e a minha mãe Valdete

(in memoriam), primeiro referencial de prática de alteridade em

minha vida. Com elas, aprendi e apreendi o valor da partilha,

do respeito aos “mais velhos” ao solicitar suas bênçãos, a

conviver entre as folhas e a ressignificar as religiões,

principalmente a de matriz africana. Cresci cercada de

narrativas, que não eram as do “boi da cara preta”, mas as de

um “boi multicor”, que almejava intercambiar experiências,

quando elas me recontavam as histórias do nosso povo, vindas

do além mar.

E aos estudantes, que tive o prazer e tenho de trocar

experiências, heróis e heroínas negros que, todas as noites, com

seus superpoderes (suas resistências ou motivações adquiridas

ao longo de suas labutas cotidianas) tem a coragem de sair das

suas residências, enfrentando mocinhos e vilões ao longo do

caminho, para ocupar o espaço a eles e elas devido, e tantas

vezes negado, na sala de Educação de Jovens e Adultos.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é reconhecer, que o sabor da conquista vem emanado com a

colaboração de forças visíveis e invisíveis. Por isso, elenco aqui os meus sinceros

agradecimentos a todos, desde as forças cósmicas, às forças oriundas das diferentes

pessoas que me circunscrevem, que se mobilizaram positivamente para que esta vitória

se concretizasse em minha vida.

A Deus, meu supremo criador, que durante esta jornada me fez ver que a vida

se renova a cada instante, e que é sempre tempo de celebrá-la. Eis-me aqui Senhor.

Minha reverência e respeito às religiões de matriz africana que tem preservado nossas

raízes trazidas de África.

Ao meu “painho” Benedito, meu dengo, meu xodó. Companheiro

maravilhoso, que sempre embarcou nos meus sonhos, mesmo sem saber direito aonde

eles iriam me levar, apostando que certamente seriam a lugares possíveis cujos

caminhos seriam os mais frutíferos. Obrigada! Sua presença em minha vida faz meu

coração transbordar de amor.

A meu irmão Luis, meus sobrinhos, afilhados e meus familiares, que sempre

me encorajaram a seguir em frente, e que expressaram a todo instante que a minha

presença nos longos e maravilhosos almoços de domingo estava sendo aguardada.

Quero dizer que estou voltando para partilharmos destes e de tantos outros momentos

maravilhosos.

À Luiza (prima) e Dinalva (tia), minhas parceiras nesta jornada,

incansavelmente me ofereciam seus colos para o meu restabelecimento quando sinais de

cansaço ou desânimo despontavam em mim ao longo desta jornada. Obrigada pelo

apoio que segue pelas vias do fraterno ao materno.

Aos meus amigos, irmãos em Cristo, que os livros me tiraram a ausência

física, mais que sempre se mantiveram presentes em meu coração. E as minhas amigas,

Juçara, Adriana e Jamile, que felizmente não tiveram a paciência dos demais amigos, e

sempre furaram as barreiras impostas pela dissertação. Arbitrariamente elas ligavam,

apareciam, me tiravam de casa. E ai de mim se não fossem tão persistentes, com seus

valiosos conselhos e motivações a me transmitir. Obrigada pela partilha dos risos e do

choro.

Além deste trio, quero lembrar da minha amiga Anália, parceira de uma

longa jornada no processo de construção desta dissertação. Esteve comigo lá onde tudo

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começou, nos lugares primeiros onde este sonho de ser mestra foi semeado.

Incentivadora acadêmica, sempre crente nas minhas potencialidades. Sem você este

percurso não teria sido feito com tantas flores e espiritualidade pungente.

À Eliana, querida amiga, pelas conversas, partilhas, chamadas à razão, com

quem tenho agora o prazer de dividir a dor e a delicia de ser PPGEL.

À direção, ao coordenador, aos professores e funcionários da Escola

Municipal Marechal Rondon, que torceram e colaboraram efetivamente para que a

minha pesquisa tivesse êxito.

A todos os Professores que passaram pela minha vida, especialmente aos que

compuseram a minha infância, me ensinando as letras primeiras: Valdete (minha mãe,

in memoriam), Yolanda, Darcy, Eva, Elisabete, Isabel, Vilma, Clarizio. Com suas

formas ímpares de ensinar, cada um ao seu modo, contribuíram para que nascesse em

mim o desejo de também ser educadora.

A Alan Nunes, que fez reacender em mim a crença de que todos os dias sou

agraciada pelas mãos de Deus ao me presentear com anjos humanos das mais diversas

etnias para me iluminar, a seu exemplo. Obrigada pelas conversas, pelo apoio, este

convívio teve grandes repercussões teóricas na minha vida e consequentemente na

escrita da minha dissertação. Com você tudo fez uma grande diferença.

A Josenildo, pelo carinho, solicitude, paciência, deslocando-se comigo ou

para mim aos lugares mais inusitados que esta pesquisa me conduzia.

Ao meu orientador Professor Doutor Sílvio Roberto dos Santos Oliveira por

ter me aceitado e acreditado no potencial da minha pesquisa.

À Professora Doutora Sayonara Amaral de Oliveira e ao Professor Doutor

Edson Dias Ferreira, membros da banca examinadora, obrigada pela delicadeza de ter

aceitado participar deste processo, me apontando sugestões enriquecedoras à pesquisa.

Agradeço também a todos do Programa, professores e funcionários, Camila,

Geisa, e especialmente a Danilo, pela disponibilidade e seriedade com que desenvolvem

os seus respectivos cargos.

Aos meus colegas da turma, especialmente a uma flor linda do sertão

chamada Rosilda, pessoa singular, muito te agradeço pelo incentivo, pelo carinho, pelas

conversas intermináveis. Você, Eliseu e Reinaldo, deram a minha travessia no PPGEL a

leveza necessária para que esta se tornasse mais fluida.

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RESUMO

O presente trabalho de investigação – intitulado Com que cor se pinta o negro nas

Histórias em Quadrinhos – tem como objeto de estudo a representação social do negro

nas Histórias em Quadrinhos e como objetivo explorar conteúdos relacionados às lutas

políticas e sociais do povo negro, buscando contribuir para que ideologias arraigadas no

seio da sociedade sejam repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Para

tanto, procurou-se analisar os conteúdos de sete narrativas quadrinizadas, tendo como

referencial teórico-metodológico, para melhor compreensão do objeto aqui esposado, os

estudos propostos por Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior (2004), Hall (2011),

Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006), Silva (2004, 2001, 2011) e

Souza (2005). Incide na hipótese de que as Histórias em Quadrinhos com heróis e

heroínas negras podem constituir-se em elemento político-pedagógico de resistência e

de libertação e que tais narrativas, ao proporem um discurso estético-ideológico pautado

na história e cultura, influenciam na construção de uma identidade positiva do povo

negro, elevando sua autoafirmação identitária. Foram trazidos para o cerne da reflexão

os quadrinhos como elemento histórico, político e cultural, cuja rede de produção e

divulgação contribui para a aquisição de novos e complexos conhecimentos, os quais

permitem apreender o real e intervir diretamente sobre ele. Por meio da pesquisa, foi

possível detectar que o espaço quadrinizado ainda é um território demarcado

ideologicamente para o imaginário branco e suas representações sociais. E, embora essa

realidade venha sofrendo profundas modificações – em decorrência das frentes de lutas

implementadas pelos Movimentos Sociais Negros –, em termos quantitativos ela ainda é

muito baixa. O estudo pretendeu revelar também, por meio da análise dos dados, que

essas narrativas, por incorporarem nas suas páginas elementos da história e da cultura

do negro brasileiro, cuja matriz é de origem africana, são eficazes no combate à

discriminação, ao preconceito e à prática do racismo, sendo igualmente significantes

para a construção da identidade étnico-racial da comunidade negra, no que diz respeito à

sua autoaceitação e à elevação da sua autoestima.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Etnia negra; Movimento Negro; Afirmação

identitária.

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ABSTRACT

This research work – entitled Which color is painted black on the Comics – has as its

object of study the social representation of black in Comics and aimed to explore

content related to political and social struggles of black people, in order to contribute so

entrenched ideologies in society are reconsidered and (un) built as from new eyes.

Therefore, we attempted to analyze the contents seven narratives in comics, with

theoretical and methodological framework for better understanding of the object

exposed here, the proposed studies by Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior

(2004), Hall (2011), Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006) and

Silva (2004, 2001, 2011), Souza (2005). The choice of this theme focuses on

investigative hypothesis that the Comics with black heroes and heroines may form

themselves into a political-pedagogical element of struggle, resistance and

emancipation, and that such narratives by proposing an esthetic-ideological discourse

grounded in their own history and culture, influence the construction of a positive

identity of black people, raising their self-affirmation of identity. Were brought to the

center of the reflection, the comics as historical, political and cultural element, whose

network of production and distribution contributes to the acquisition of new and

complex knowledge which allows to grasp the real and intervene directly on it. Through

research, it was possible to detect that the space of comics is still an ideologically

demarcated for white people and their social representations. And while this reality

come undergone profound changes – due to the fronts of struggle implemented by Black

Social Movements – in quantitative terms it is still very low. The study also revealed

through the analysis of the data, these narratives, in their pages by incorporating

elements of the history and culture of black Brazilian, whose mother is of African

origin, are effective in combating discrimination, prejudice and practice of racism, and

is also significant for the construction of ethnic and racial identity of the black

community, with regard to their self-acceptance and self-esteem elevation.

Keywords: Comics; Black Ethnicity; Black Movement; Identity affirmation.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - À procura dos negros nos quadrinhos ...................................................... 24

FIGURA 2 - Doze direções em que os quadrinhos podem crescer ............................... 26

FIGURA 3 – As doze direções ...................................................................................... 26

FIGURA 4 - O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República ...................... 45

FIGURA 5 - Abdias do Nascimento ............................................................................. 58

FIGURA 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias ......................... 61

FIGURA 7- Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade .. 61

FIGURA 8- Jeremias em campanha presidencial .......................................................... 62

FIGURA 9 - Pererê ........................................................................................................ 63

FIGURA 10 – Cabôco Mamadô .................................................................................... 69

FIGURA 11 - O Bode Orelana e a Ave Graúna ............................................................ 70

FIGURA 12 - Rango e sua turma .................................................................................. 71

FIGURA 13 - Jejum em uma pelada de futebol ............................................................ 71

FIGURA 14 - Feijão ...................................................................................................... 72

FIGURA 15 - Ykenga .................................................................................................... 73

FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão .................................................................................. 74

FIGURA 17 - Do navio negreiro ao camburão ............................................................. 75

FIGURA 18 - Roberto, sem máscaras nem disfarces .................................................... 76

FIGURA 19 - Suriá, a garota do circo ........................................................................... 86

FIGURA 20 - Suriá em: fadas, princesas e rainhas ....................................................... 86

FIGURA 21 - Luana em: causos da vovó Josefa ........................................................... 87

FIGURA 22 - Luana ...................................................................................................... 88

FIGURA 23 - Aú, o Capoeirista .................................................................................... 91

FIGURA 24 - Tio Alípio e Kauê ................................................................................... 93

FIGURA 25 - Revista Minas de Quilombos ................................................................ 94

FIGURA 26- Revista Afro HQ ...................................................................................... 94

FIGURA 27- Revista Orixás: do orum ao ayê............................................................... 95

FIGURA 28 - Suriá: o vidro em torno de cada um........................................................ 99

FIGURA 29- Luana a favor da natureza e contra a poluição.......................................100

FIGURA 30 - Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade........................103

FIGURA 31 - Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê..............................................105

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FIGURA 32 - Em quadrinhos: a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente

de Baixo.........................................................................................................................107

FIGURA 33 - O orum e o ayê sem fronteiras...............................................................111

FIGURA 34 - A separação do céu e da terra................................................................111

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13

1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E

REPRESENTAÇÕES.......... ........................................................................................ 21

1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA. .............................................................. 22

1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM

CONCEITO.....................................................................................................................32

2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS

QUADRINHOS ............................................................................................................. 40

2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL... .................... 42

2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS ....................................... 56

2.3 NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES.................................................65

3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS DE

CIRCULAÇÃO... .......................................................................................................... 78

3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS ..................................... 80

3.2 HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA

NEGRO-BRASILEIRA... .............................................................................................. 97

CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO..................................................................113

REFERÊNCIAS...........................................................................................................116

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa investigativa buscou identificar as transformações sociais na

representação das personagens negras nas Histórias em Quadrinhos, ocorridas a partir

da segunda metade do século XIX até o ano de 2012, assim como evidenciar, através de

um recorte temporal historiográfico-cultural, os elementos que oportunizaram tais

mudanças. Para tanto, foram levantados dados empíricos e imagéticos, bem como os

oriundos de fontes bibliográficas, necessários a essa compreensão.

O interesse por essa temática de investigação começou a ser fomentado no

ano de 2000, quando ingressei, como docente, na rede Municipal de Ensino do

Município de Salvador, na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na condição

de mulher, negra, moradora da periferia, constatei que, ao lado dos problemas de

aprendizagem relacionados à educação formal, como a aquisição da escrita e da leitura,

um número significativo de alunos, embora negros, não se autoidentificavam como tal e

que as suas identidades e autoestima encontravam-se bastante abaladas.

Ao longo dos anos, desde então, passei a buscar estratégias educacionais, tão

necessárias ao fazer pedagógico, que contribuíssem para que esse cenário sofresse

modificações. Encaminhei a práxis para o viés educacional pautado na respeito às

diferenças, aos diferentes e à diversidade. Entre os caminhos trilhados, um aporte

metodológico recorrente durante as aulas era o uso de Histórias em Quadrinhos, com

personagens negros no papel de heróis e heroínas. Estava ciente de que as Histórias em

Quadrinhos, ou HQs, ocupam um espaço privilegiado na arte de comunicar, sobretudo

por agregar na sua composição a linguagem sob duas perspectivas: a verbal e a não-

verbal e, assim, contribuiriam para problematizar a realidade e fazer ecoar a matriz

africana que possuímos e que possuía a maioria dos alunos da EJA.

A cada narrativa desenvolvida em aula era possível observar que estas

coadjuvavam para difundir concepções, que ajudavam os educandos a se descobrir, se

expressar e a desenvolver as suas habilidades, inclusive críticas sobre si e sobre o

mundo. Dois aspectos restritivos, entretanto, foram constatados: o número de

publicações muito limitado e o fato de que, normalmente, as personagens negras

representadas nas páginas das Histórias em Quadrinhos estavam grafadas de forma

estereotipadas, caricaturais e estigmatizadas. A comunidade negra aparecia sempre nas

narrativas como personagens secundárias e desumanizadas.

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Isso acontecia em função do modelo sociorracial que circulou e circula no

País, historicamente estruturado sobre as bases do poder e da dominação total, em que o

grupo dominante mantém o monopólio dos recursos econômicos e o grupo em situação

de subalternidade, o povo negro e outros povos não-brancos, embora sua base

sustentadora conserve-se em situação de desprestígio. A utilização dessa dinâmica

propiciou a construção de estruturas intelectuais normativas ideológicas destinadas a

manter sentimentos de inferioridade no grupo subalterno e produzir uma impenetrável

imagem de superioridade do setor dominante (MOORE, 2012).

De forma insistente, continuei a garimpar, buscando publicações que nos

contassem outras histórias sobre a comunidade negra, mais proativas e propositivas, que

elevassem a autoestima e construção do autoconhecimento e da identidade negra dos

educandos. Nesse sentido, valeu a pena, sim, continuar a pensar o quadrinho dentro

dessa esfera de arte/política, problematizando-o. Porque, assim, jovens e adultos

puderam assimilar essas histórias, com base na leitura de imagens e do diálogo, e

gradativamente se apropriar da aquisição da leitura e da escrita formal, visto que as

narrativas apresentadas possuíam textos com funcionalidade social, o que resultou em

processos significativos de letramento.

Por intermédio do trabalho desenvolvido em sala de aula senti a necessidade

de um maior aprofundamento teórico sobre a temática aqui enfocada. Afinal,

inquietava-me o fato de que o povo negro brasileiro, que sempre se manteve em luta

pela afirmação da sua identidade, pela valorização da sua formação étnica e cultural,

considerando a possibilidade de coexistência e convivência entre tantos outros atores

sociais, repudiando sempre todas as formas de intolerância, desrespeito e desigualdade

que recaíam sobre si, se mantivesse, mesmo assim, ocupando um espaço de pouca ou

nenhuma relevância no cenário quadrinístico, embora as HQs sejam uma arte muito

propagada e popular de representação social.

Dessa forma, por força das inquietações acima aludidas, busquei compreender

acerca de quais caminhos estão sendo percorridos para que se construam espaços de

representação voltados de fato para as “novas” exigências − tão antigas − do povo

negro, pois, embora maioria no País, encontra-se ainda em número minoritário na

política, nos esportes, na mídia e, especificamente, nas HQs. Igualmente procurei

compreender as mudanças que se operacionalizaram, durante o período supracitado, na

representação dos negros nos quadrinhos, levando em consideração cada um dos

elementos que incidiram diretamente para a ocorrência desse fenômeno social, vez que,

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durante muito tempo, a arte quadrinista excluiu ou minimizou os direitos de

participação social desses grupos.

E foi com tal propósito que este trabalho de pesquisa se constituiu, elegendo

como objeto de estudo a representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos,

que objetiva explorar os conteúdos relacionados às lutas políticas e sociais do povo

negro, contribuindo para que ideologias arraigadas no seio da sociedade sejam

repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Olhares que lhe possibilitem a

falar sobre si, sobre suas raízes africanas, sua cultura, seus valores, religiosidade, enfim

sobre o mundo, tornando-se uma alternativa viável para legitimar vozes negras até então

“não autorizadas” (DALCASTAGNÈ, 2012).

Para tanto, foram levantadas algumas questões- problemas as quais nortearam

a presente investigação, a saber:

- Até que ponto as Histórias em Quadrinhos com personagens negras no papel

de protagonistas da narrativa podem se constituir elemento político-pedagógico de

resistência e de libertação para a comunidade negra brasileira?

- Quais aspectos podem ser apontados como influenciadores nas

transformações que ocorreram quanto à representação do negro nas Histórias em

Quadrinhos?

- Até que ponto essas novas representações podem contribuir para a

construção de uma autoestima e de uma identidade negras?

Na tentativa de responder a esses questionamentos e proporcionar uma

reflexão sócio-histórica que possibilitasse uma análise crítica acerca do objeto de estudo

aqui esposado, recorri a uma literatura especializada sobre quadrinhos com personagens

negros. As primeiras buscas aconteceram no cyber espaço, no qual existe um número

considerável de sites de Histórias em Quadrinhos, tais como: UniversoHQ (2011),

ImpulsoHQ (2011), Blog dos Quadrinhos (2011), Omelete (2011), entretanto continham

pouco material envolvendo a temática. Destes, apenas o HQmaniacs (2011) havia

publicado um ensaio, “O negro nas Histórias em Quadrinhos”(2005), de Cláudio

Roberto Basílio, dividido em cinco partes, sendo a última delas voltada para os

personagens nacionais.

Entre os livros, constatei no de Moacy Cirne (1982), Uma introdução política

aos quadrinhos, a presença de um único capítulo “O negro nas histórias em

quadrinhos”, abordando essa temática. E, na produção de Gonçalo Junior (2004), A

Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos

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quadrinhos, 1933-64, que traça a trajetória dos quadrinhos durante o período destacado

no título, deparei-me com informações produtivas para a compreensão da invisibilidade

dos personagens negros durante esta incursão.

Das teses de doutoramento destaquei a intitulada Angelo Agostini ou

impressões de uma viagem da corte à capital federal (1864 - 1910), de Gilberto

Marigoni de Oliveira (2006), que analisa a obra de Angelo Agostini, precursor das

Histórias em Quadrinhos no Brasil, e a forma como este representava a comunidade

negra nas narrativas quadrinizadas durante o regime escravocrata. Também encontrei a

pesquisa O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos

afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros, de Nobuyoshi Chinen (2013), que faz um

levantamento histórico desses personagens, tanto em termos quantitativos quanto

qualitativamente, do século XIX ao XXI, para verificar o quanto existe de preconceito

ou de estereótipo em tais representações.

Além desses trabalhos, foi imprescindível o estabelecimento de um diálogo

com outras áreas de estudo, através das seguintes obras: A Representação Social da

Psicanálise (1978) e Representações sociais: investigações em psicologia social (2012),

de Serge Moscovici (1978); A discriminação do negro no livro didático (2004),

Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático (2001), A representação

social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou? (2011), de Ana Célia

da Silva; Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, de Florentina da

Silva Souza (2005); Da Diáspora: identidades e mediações culturais de Stuart Hall

(2009); Negritude: usos e sentidos (1988), de Kanbelege Munanga.

Os dados levantados por meio dos estudos teóricos indicam que, durante os

dois primeiros séculos no Brasil, as personagens negras representadas nas páginas das

Histórias em Quadrinhos eram grafadas de forma estereotipada, caricatural e

estigmatizada. A comunidade negra aparecia sempre nas narrativas como personagens

secundárias, desumanizadas e ocupando posições de subalternidade, em decorrência da

lógica escravista que regeu o país durante longo tempo e que, de forma eficaz, foi se

disseminando e alimentando o imaginário nacional.

No entanto, por força da emergência de novos contextos histórico-sociais, a

comunidade negra foi propondo a construção de novos paradigmas de mudanças

representacionais, na esperança de instaurá-los nos vários segmentos sociais.

Isso foi um desafio, pois os efeitos das desigualdades étnico-raciais,

projetados pela ideologia do racismo, dificultaram a construção de posicionamentos

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mais democráticos, fechando os caminhos para a promoção da igualdade e a

possibilidade de se falar sobre as diferenças nas várias instâncias.

Assim, a partir da década de 1970, pressionados pelas mudanças do contexto

social e também sensíveis às mazelas vivenciadas pelo povo negro, alguns artistas

passaram a ilustrar as personagens negras sob novas perspectivas. Inicialmente, essas

icnografias apresentaram-se impregnadas de marcas históricas e culturais negativas

sobre o corpo negro e delas não conseguiam desvencilhar-se. Mas, paulatinamente, essa

realidade foi se transformando e os quadrinhos passaram a assumir uma linha de

produção contestatória, tornando-se de trincheira, propensos a denunciar a condição

subumana na qual se encontrava grande parte da sociedade brasileira, em função das

disparidades socioeconômicas e étnico-raciais vigentes.

No entanto, apesar dessas novas condições de produção, as falas e

representações expostas nas suas páginas, ao lado da crítica e do humor, da autodefesa e

da análise da sociedade, evocavam sentimentos de compaixão e tristeza, pois as

personagens eram grafadas na condição de miserabilidade – pobres, nordestinos,

famintos, moradores da caatinga ou dos lixões, crianças de rua. No decorrer dessa

trajetória, outras narrativas começaram a reverberar, com suas vozes discordantes, tendo

os Movimentos Sociais Negros, uma presença imprescindível à promoção de novas

possibilidades. Leis e projetos de políticas afirmativas foram criados, dentre os quais

podemos citar a Lei 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, a Lei 12.288/2010, do

Estatuto de Igualdade Racial, e a Lei 11.634/2007, que trata do Dia Nacional de

Combate à Intolerância Religiosa, cujo aparato busca corrigir e/ou amenizar essas

disparidades, incidindo também nas páginas dos quadrinhos.

Evidenciados esses dispositivos legais, a partir da década de 1990 e da

entrada no novo milênio, as personagens negras deixaram de ser representadas apenas

como figuras que reafirmavam sua situação de marginalizados, passando a compor as

narrativas como heróis e heroínas, assumindo, assim, a centralidade do discurso como

sujeitos das histórias. Heróis e heroínas comuns, anônimos do cotidiano, que vêm de

muito longe, do murmúrio de outras sociedades, para progredir. Combatentes, tenazes,

resistentes, que vêm desembaraçando-se de uma rede de forças e de representações pré-

estabelecidas, para se inserirem em narrativas que enfocam o social, o político, o étnico-

racial (CERTEAU, 1998).

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Todavia, essas produções ainda são segregadas e controladas pela indústria

cultural – desde os editores, revendedores e distribuidores , que quantificam, classificam

e hierarquizam essas obras em relação a outras cujas personagens principais são

brancos. O que faz com que as publicações com personagens negros continuem a ser

publicadas em número muito escasso por não fazerem parte da lógica da produtividade

e dos modelos tidos como lucrativos. Afinal,

[...] o propósito de um Brasil exclusivamente branco continua sobrepujando

as mentes que comandam a nação nas diversas instâncias do poder. Os

maiores problemas que o país enfrenta hoje foram plantados ontem e seus

cultivadores deixaram uma legião de descendentes e seguidores (CUTI, 2010,

p. 12).

Diante do exposto, e ciente de que as Histórias em Quadrinhos se constituem

um espaço por excelência de representação social (MOSCOVICI, 1987), desde os

cenários, os enredos, e estes se entrecruzando com as personagens e com a sociedade,

procuro centrar nessa arte o objeto do nosso estudo.

A escolha dessas narrativas quadrinizadas procedeu-se por amostragem não

probabilística. Na observância de algumas dessas publicações no espaço onde leciono,

divulgadas através da mídia ou presentes no material teórico-metodológico utilizado, as

selecionei-as por considerá-las excelentes fontes de informação, para representarem o

“bom julgamento” da população/universo (KAUARK, F.; MANHÃES, F.;

MEDEIROS, C. H. 2010. p. 61). Tal amostragem se insere no campo da pesquisa

qualitativa, a qual “[...] considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o

sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do

sujeito que não pode ser traduzido em números” ((KAUARK, F.; MANHÃES, F.;

MEDEIROS, C. H. 2010. p. 26).

Do ponto de vista dos procedimentos técnicos (GIL, 2007), trata-se de uma

pesquisa qualitativa, não somente porque analisa qualitativamente o conteúdo de

material produzido, mas também porque se utiliza de pesquisa bibliográfica, tendo

como base um acervo relevante de obras publicadas, que auxiliaram na melhor

compreensão crítica acerca do objeto de estudo. Nessa perspectiva, a utilização do

material bibliográfico enseja a exploração mais densa dos conteúdos relacionados às

lutas políticas e sociais do povo negro, o que poderia contribuir para que ideologias

arraigadas no seio da sociedade fossem repensadas e (des)construídas a partir de novos

olhares.

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Na esteira dessas delimitações e discussões optei pela seleção de apenas sete

publicações para serem analisadas. Isso em função de essas HQs - as representadas a

partir da década de 1990 - apresentarem histórias que desconstroem os ditos de

inferioridade sobre a comunidade negra, assumindo no seu discurso uma posição de

enfrentamento da realidade; também por agregarem-se a outras lógicas que furam as

resistências e nutrem uma memória afetiva (CUTI, 2010) de referência positiva sobre a

comunidade negra, propiciando a valorização da sua história e, consequentemente, da

sua cultura.

Sabe-se que essa narrativa icnográfica, pela relação que guarda com os fatos

do cotidiano social, constitui um espaço fértil para a crítica, instrumento que pode

romper barreiras e promover mudanças no contexto social, haja vista que a maioria

dessas narrativas encontra-se ligada aos interesses dos grupos que detêm o poder

político, social e econômico do País, e que por isso mesmo excluem ou minimizam os

direitos de participação social dos grupos minoritários. Essa realidade precisa ser

transformada, pois há espaços para todos serem retratados como sujeitos de direito

nessas composições, inclusive para a comunidade negra, que vem lutando para

assegurar seu lugar de cidadania no universo dos quadrinhos, tendo em vista difundir

sua cultura, sua história, seus saberes e alcançar novos patamares nas suas condições de

vida social.

A estrutura da pesquisa compõe-se de introdução, três seções e da conclusão.

Na primeira seção, OS DITOS E OS INTERDITOS: SOBRE

QUADRINHOS E REPRESENTAÇÕES, apresento o conceito de Histórias em

Quadrinhos, seus precursores em contexto nacional e internacional e suas dificuldades

quanto à produção e divulgação. Abordo, principalmente, as formas diferenciadas como

a comunidade negra vem sendo representada nesse contexto e a sua busca por equidade

de direitos.

Na segunda seção, AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO

DO NEGRO NOS QUADRINHOS, procuro evidenciar como, gradativamente, as

representações da comunidade negra nas HQs foram se modificando. De desumanizadas

a humanizadas, de estereotipadas e caricaturais a positivas, de invisibilizadas a

visibilizadas, constituindo-se mais uma forma de resistência contra o racismo, a

discriminação e o preconceito.

Quanto à terceira seção, NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS

HETEROGÊNEOS DE CIRCULAÇÃO, com as personagens negras já

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corporificando, representacionalmente, traços gráficos, próprios da comunidade negra a

que pertencem, analisamos como essas produções podem se constituir em pontes na

construção da identidade e autoestima desse grupo étnico-racial, assim como em

instrumento e/ou mecanismo de seu empoderamento, por distinguir o potencial

comunicativo presente em cada uma dessas narrativas.

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1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E

REPRESENTAÇÕES

A Verdade e a Mentira num conto iorubá

Lembro aqui uma lenda africana sobre a criação do mundo. Diz assim: Olofi,

o Senhor que tudo criou – o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro,

o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo - criou também a

Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela,

luminosa, e fez a mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela

uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentiu inveja da

Verdade e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a

Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um

golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começou a procurá-la

tateando por volta. Apalpa um crânio que supõe ser seu. Com esforço agarra-

o e o arrancando da onde estava, coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era

a cabeça da Mentira. Desde então, a Verdade anda por aí enganando toda

gente (cf. CRITELLI, 1984).

A mobilização em torno de se contar novas e outras histórias sobre a

comunidade negra, vem, a cada dia, ganhando maiores espaços. Conforme narra a lenda

africana sobre a criação do mundo, muitas foram as histórias contadas; algumas

ganharam caráter cientifico, outras foram introjetadas no imaginário popular e, mesmo

não sendo verdadeiras, ganharam esse status com base nos confrontos relacionais

estabelecidos. E, assim, o povo negro-africano e seus descendentes sofreram e vêm

sofrendo as conseqüências dessas construções discursivas, desde que a “Mentira”

degolou a “Verdade” e apropriou-se do seu corpo, para sair por ai difundindo suas

ideologias.

Foram longos os anos de enganos e desenganos, liderados pelos grupos

hegemônicos, que criaram e implementaram complexas teias sociais, econômicas e

políticas; nocivas não só à comunidade negra, mas à sociedade de um modo geral. Isso

porque vivemos em rede, e toda e qualquer ação social reverbera em toda a comunidade

global.

No limiar desses processos, os modos de resistência implementados foram os

mais diversos, fazendo-nos inferir, por saber-se que a cabeça da Verdade é a parte mais

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significativa do corpo humano, que esta não se conectou ao corpo da Mentira, e seguiu

privilegiando caminhos mais lógicos, que buscassem reordenar as relações

segregacionistas e totalitárias, nas quais sujeitos fossem tratados como tal, e não como

objetos ou mercadorias. Pois é na cabeça, segundo a cultura iorubá, que coexistem

[...] o cérebro – a morada da sabedoria e da razão; os olhos – a luz que

ilumina os passos dos homens pelos labirintos da vida; o nariz – que serve

como uma espécie de ventilação para a alma; os ouvidos – com os quais o

homem escuta e reage aos sons, e a boca – com a qual ele come e mantém o

corpo e alma juntos (LAWAL, 1983, p. 46).

Dissociar-se a cabeça do seu corpo e agregar-se a um corpo que não preserva

os cuidados necessários à preservação da vida só ocasionaria maiores desequilíbrios de

ordem ambiental, filosófica, religiosa e societária. Nesse sentido, ancorados na cabeça

da Verdade, e em todo o conto, que possibilita-nos relativizar às verdades absolutas, é

que este capítulo ganha corpo. Não contando novas e outras histórias acerca do povo

negro no universo imagético das HQs, mas reconhecendo que é preciso continuar

buscando os fios da vida que tecem essas narrativas, para que seja possível alterar as

compreensões em torno do mundo e dos diferentes sujeitos que o compõem.

1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA

As Histórias em Quadrinhos podem ser definidas como narrativas sequenciais

que se articulam entre a linguagem verbal e a imagética. São consideradas um locus

contextual favorável para comunicar ideias; isso porque, através das HQs, dialogam

aspectos históricos, sociais, étnicos, culturais, econômicos e políticos, sendo essas

relações responsáveis por possibilitar que essas narrativas, devido à sua grande

potencialidade, tornem-se uma arte capaz de expressar conceitos diversos, numa

verdadeira tempestade de ideias, ou brainstorming1 ,ampliando os seus caminhos, sua

produção, sua divulgação e seu consumo.

1

Em 1953, o norte-americano, Alex Faickney Osborn, criou um conjunto de técnicas com vistas a

desenvolver a criatividade. Como empresário e publicitário, observava que as campanhas de propaganda

da sua empresa necessitavam revestir-se de formas mais criativas que dialogassem diretamente com o

consumidor. Assim, em 1939, ele passou a desenvolver procedimentos que potencializassem o

desenvolvimento criativo dos seus funcionários, a fim de atender a demanda. Nas reuniões todos os

participantes eram livres para expressar suas idéias, e estas não deveriam passar por julgamento de valor,

mas sim serem reorganizadas e combinadas a outras ideias, resultando em criações criativas e inovadoras.

A esse jogo de ideias, ele deu o nome de brainstorming; no entanto, essa técnica só veio a ser publicada

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Revisitando obras, autores, pesquisadores e espaços de significação sobre

Quadrinhos, confrontamo-nos com diversas percepções em torno da origem dessa arte.

Alguns estudiosos creditam a essas narrativas um sentido evolutivo, estabelecendo,

como fonte primeira, os registros encontrados nas cavernas do paleolítico, através das

pinturas rupestres, e toda forma de comunicação sequencial que, ao longo da história da

humanidade, objetivou transmitir suas ideias através de imagens, até ancorar-se nas

páginas digitais na atualidade.

Outros especialistas da área apontam para as primeiras publicações gráfico-

narrativas, que surgiram no cenário mundial no final do XVIII e inicio do século XIX,

com os artistas Wilhelm Busch (1885), na Alemanha; Angelo Agostini (1869), no

Brasil; Christophe (1889), na França; James Swinnerton (1892); R. F. Outcault (1896) e

Rudolph Dirks (1897) nos Estados Unidos (CIRNE, 1982). Estes, cada um em seu

contexto cultural e cronológico, de acordo, portanto, com as suas especificidades;

viveram os primeiros dilemas que envolveram e envolvem, ainda hoje, esta produção

icnográfica e verbal.

Dilemas próprios de uma linguagem carregada de bens simbólicos e/ou de

elementos gráficos, que por seu turno, já nasceram em função da indústria cultural, pois,

diferentemente do cinema, que assumiu para si um veículo próprio para divulgar-se, o

quadrinho necessitou vincular-se ao jornal, para difundir o seu discurso artístico

(CIRNE, 1982, p. 19). Pois que a proliferação desta arte encontra-se intimamente

relacionada aos processos socioculturais hegemônicos que atravessaram a história da

humanidade, tanto na sua base individual, quanto na sua coletividade.

Podemos dizer que esses quadrinistas, citados anteriormente, (CIRNE, 1982),

marcados pelos encantos e desencantos característicos desse percurso de afirmação,

balizaram o mundo das narrativas sequenciais ao produzirem uma arte com um caráter

diferenciado dos, até então, propostos, apresentando-nos o universo imagético das

Histórias em Quadrinhos. Produções estas que podem “[...] ser curtidas apenas ao nível

do prazer estético, pura e simples orgia formal diante de sensações gráficas, pictóricas,

sonoras, narrativas” (CIRNE, 1982, p. 23), mas que podem de igual modo, ser a

resultante de uma arte instigadora, que possibilite aos diferentes nichos sociais

rearticularem suas formas representacionais no espaço quadrinístico.

no ano de 1953, no livro de sua autoria, intitulado Applied Imagination: Principles and Procedures of

Creative Thinking, encontrado no Brasil sob o título O poder criador da mente.

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Nesse contexto de revisão crítica sobre a gênese das HQs podemos notar a

criatividade que marcou o estabelecimento dessa arte ao agregar a si, a icnografia e a

escrita pelas vias mais diversas. Contudo, alertamos para uma questão: a invisibilidade,

ou mesmo a ausência dos povos de etnia negra nos seus requadrados2 (fig. 1).

Figura 1 – À procura dos negros nos quadrinhos

Fonte: MOREIRA, Roberto. Tem alguém mentindo no PT. Disponível em:

<http://blogs.diariodonordeste.com.br/robertomoreira/tem-alguem-mentindo-no-pt/interrogacao-5/>.

Acesso em 21 abr. 2013.

Nota-se, no âmbito de produção das HQs, que poucas, ou, às vezes, nenhuma

personagem negra circulava neste espaço de construção de saberes e produção de

discursos, baseada em uma memória marcada pelo estabelecimento de um estereótipo.

Mesmo com as mudanças ao longo do tempo, através das quais a razão e a igualdade

entre os povos são conclamadas, a maioria das personagens continuaram e continuam a

ser de etnia branca, desenhadas e divulgadas por e para este universo, guardando, nas

suas entrelinhas, as forças regulamentadoras das estruturas de poder simbólico que as

constituem.

Essas dinâmicas relacionais, como sistemas simbólicos, organizaram-se

assumindo uma prática de poder estruturante, dimensionada em torno de interesses

particulares. Cotidianamente, construíram uma cultura e a nomearam universal, mas, na

prática, as bases que a solidificam utilizaram apenas, para sua composição, uma

percepção de mundo eurocêntrica, excluindo negros e outros grupos étnicos da sua

representação.

2 Diagramação também conhecida como quadro, cercadura, vinheta, utilizada na arte sequencial, para

dispor os elementos gráficos da narrativa quadrinizada. “[...] Um elemento visual que também pode

revestir-se de uma significação, exercendo uma função metalinguística” (SANTOS, 2002, p. 23). O

traçado reto reflete ações no presente, enquanto o contorno sinuoso ou ondulado, representam o passado.

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A cultura ocidental que estiliza um modelo sócio-político, econômico e

cultural, acaba por segregar o outro, tido como diferente, postulando-lhe rótulos de

ilegitimidade e inferioridade, assumindo, a partir daí, um duplo discurso: do grupo

majoritário sobre o grupo majoritário e deste sobre os grupos minoritários. Nesse

sentido, essa invisibilidade dos negros nos quadrinhos realiza a sua funcionalidade

política, social e econômica de imposição e de legitimação da dominação através da

prática do poder simbólico, o que se constitui, por conseguinte, também, uma violência

simbólica (BOURDIER, 2001).

Essas violências operam através das formas desiguais com que negros e

brancos são tratados nos quadrinhos. Não existe um interesse mercadológico da

indústria cultural em torno da criação, difusão e divulgação de histórias em quadrinhos

com personagens negros no papel de herói e heroínas. Embora, conforme salienta Scott

McCloud (2006), haja espaço suficiente nos requadrados, além de haver uma grande

necessidade fora deles, para que se faça uma revolução quadrinística.

Para uma melhor compreensão do acima destacado, McCloud propõe nos

seus estudos teóricos, expressos através de narrativas quadrinizadas, “[...] doze rotas

para escapar à apatia, à inércia e ao status quo” 3, pelas quais as HQs vêm passando,

com o objetivo de assegurar o crescimento dessa arte em diversas direções, conforme as

figuras 2 e 3. Embora essas rotas se encontrem interligadas, nos apropriaremos com

maior profundidade da que trata da representação das minorias, grupo no qual a

comunidade étnica negra e seus descendentes, encontram-se inseridos, visto que, ainda

de acordo com as ideias do autor, “[...] os quadrinhos podem ser consumidos e

produzidos não somente por indivíduos brancos, masculinos, heterossexuais e de

classe média” 4.

3MCCLOUD, 2006, p. 23, grifo do autor.

4MIbidem, p.11, grifo do autor.

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Figura 2 – Doze direções em que os quadrinhos podem crescer

Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda,

2006, p.23.

Figura 3 – As doze direções

Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda,

2006, p.22.

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Nesse sentido, vale destacar que, como bem sabemos, “há silêncios que são

revelações” (BASTIDE, 1973, p.115); isso porque se constituem eficazes em não

divulgar, promover e difundir conhecimentos contraproducentes às suas ideias e a aos

seus discursos. O que nos leva a aferir que os espaços lacunares, pelos quais os negros

transitam nas Histórias em Quadrinhos, se configuram como uma possibilidade de se

negar a sua existência e assim, também, ocultar a sua presença (SILVA, 2004). Tornam-

se, assim, os quadrinhos um instrumento de dominação e um espaço desfavorável à

comunicabilidade, o que, em grande medida, acaba por gerar uma bipolarização

representacional dos grupos – brancos e não-brancos.

A mídia jornalística exerceu um papel preponderante neste contexto; afinal,

seus instrumentos foram os grandes difusores dessa arte literária, contribuindo,

decisivamente, para veicular uma estética branca aos requadrados, conforme nos alerta

Souza:

É a autoridade da estética branca quem define o belo e sua contraparte, o feio,

nesta nossa sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de

decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: “o

negro é o outro belo”. É esta mesma autoridade quem conquista, de negros e

brancos, o consenso legitimados dos padrões ideológicos que discriminam

uns em detrimento de outros (SOUZA, N., 1983, p.29).

Afinal, as histórias em quadrinhos funcionavam de acordo com a cultura de

cada época, com os modismos, as experiências de vida dos sujeitos que as produziam;

em consonância com as dos sujeitos que as consumiam, viabilizando a lógica simbólica

de dominação que estabelece as normas, os valores, as regras, os habitus.

Ao produzir um modelo que dialoga com o seu público-leitor, as HQs para

além do entretenimento, tornaram-se um bem de consumo cuja finalidade atrelava-se à

produção em grande escala das narrativas e sua divulgação gerava, consequentemente,

um aumento nas vendas e nos lucros. Dentro dessa lógica simbólica, universalizaram-se

através de uma hierarquia que assegura a representação do grupo majoritário, mantendo

os demais grupos, minoritários, à margem da sua produção.

Nos requadrados, os procedimentos de exclusão tornam-se visíveis e, em

consonância a estes, os mecanismos coercitivos de desejo e de poder estabelecem-se,

rapidamente, nas linhas discursivas. Fixa-se o que pode ser dito ou o que pode ser

publicado; como pode ser dito ou como pode ser publicado e em quais circunstâncias,

evidenciando o princípio da interdição ou da palavra proibida (FOUCAULT, 2011).

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Dessa forma, ao se moldarem as HQs ao princípio da interdição ou da palavra proibida,

a sociedade de consumo nos aponta uma direção: o silenciamento, através do

apagamento da comunidade negra das Histórias em Quadrinhos.

Teoricamente, no campo jurídico, essa realidade é negada, pois foram criadas

leis que reafirmam as condições de igualdade entre os povos, entre a comunidade negra

e a comunidade branca. No entanto, na prática, esses discursos se distanciam, pois as

realidades são, cada vez mais, excludentes e desiguais, evidenciando a existência do

racismo, do preconceito e da discriminação, que possuem raízes históricas. Os

problemas que temos hoje, especificamente no Brasil, representam o agravamento das

dificuldades resultantes das relações de força e dominação, estabelecidas pelos povos

brancos europeus sobre os povos negros africanos, anteriormente ao processo de

colonização pelo qual passou o continente americano.

As ações de dominação se constituíram em graves violações aos direitos

humanos. O controle político-econômico exercido pelas classes dominantes não levava

em consideração o outro nem a biodiversidade encontrada. “Incomodados” (MOORE,

2008, grifo nosso) em África, os povos negros passaram a “incomodar” lutando pela sua

independência territorial e pela liberdade emocional e psicológica em relação ao que

havia sido imposto. Estabeleceram-se, por parte dos povos negros em relação às ações

implementadas pelos povos brancos, desfavoráveis à sua existência, movimentos de

resistência. Estes atravessaram o Atlântico e ocuparam a América.

No Brasil, os caminhos trilhados se encontram em conformidade com essas

lutas, pois, desde o período colonial, passando pelo abolicionismo e Independência

Nacional, até adentrar a República, o povo negro e seus descendentes almejaram o

estabelecimento de políticas públicas afirmativas, posto que, nos diferentes contextos,

suas oportunidades sociais mantiveram-se em situação de inferioridade. A incorporação

histórica, revelada na forma de se gerir o país, encontra-se carregada de um

anacronismo que se evidencia na improbabilidade de tornar possível “a solidariedade

genuína” (BAUMAN, 2001, p. 202). O que acontece é “[...] uma tentativa desesperada

de separar “nós” e “eles”; então os traços cuidadosamente espiados “neles” são tomados

como prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação.” (BAUMAN, 2001,

p. 203).

Assim, conforme Levi-Strauss (1955), os povos de etnia branca organizaram-

se através da imposição sobre o outro, aqui, especificamente sobre a comunidade negra,

através de uma lógica de dominação, disseminando sua ideologia, para fins de que o

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outro construísse uma imagem assemelhando-se à sua; o que faria deles negros de “alma

branca”. Nessa dinâmica, o poder “encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos,

vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida

quotidiana” (FOUCAULT, 1979, p. 131). E o outro, o diferente, com sua visão de

mundo pautado nas forças cosmogônicas, foi deixado à margem e expulso das redes de

poder, através da imposição da etnia branca, pelo uso de estratégias discursivas

(FOUCAULT, 1979, p. 131) eficazes em promover sujeição à sua cultura,

enclausuramentos em guetos e a invisibilidade do povo negro.

Esses pressupostos hierárquicos inferiorizantes em torno das minorias

culturais, raciais e religiosas, serviram para estigmatizar as relações sociais e

desencadear toda forma de intolerância e desrespeito ao povo negro, imputando-lhe “um

sistema de dominação de classes de etnocontroles excludentes” (CUNHA JUNIOR,

1998).

Como resultado, podemos observar a legitimação negativa da comunidade

negra, através da sujeição cultural, subalternidade pelo silenciamento, negação de

direitos e de uma impossibilidade de autovalorização, haja vista que tais movimentos

imputam ao povo de etnia negra uma baixa autoestima. Face ao exposto, nota-se que,

progressivamente, os núcleos cêntricos estigmatizaram, rejeitaram e colocaram esse

grupo étnico-racial sob suspeita (SILVA, 2004).

Vitimizados, esses sujeitos acabam por internalizar tais ações a que foram

submetidos e iniciam, desde a mais tenra infância, um processo de autorrejeição,

desprezando, consequentemente, tudo em torno de si, desde os seus fenótipos até a

tradição cultural que os caracteriza, fragmentando, assim, os seus sentimentos de

pertencimento e de ancestralidade, encontrados em África e tão necessários à sua

etnogênese.

Com essa perspectiva, podemos perceber que, no contexto emergente, e

também durante um longo período, a comunidade negra apareceu representada

societariamente e em locus, na arte sequencial, dentro de um continnum conceitual

estruturado dentro de uma lógica de dominação narcísica, grafado com base no reflexo

de um espelho imaginário branco, ou seja, caricaturado ou marcado pela presença de

estereótipos inferiorizantes. Estereótipos, aqui compreendidos, segundo Roger Bastide

(1973) como uma ação que envolve um julgamento de valor que bipolariza o negro em

bom ou ruim, em feio ou belo, submisso ou insurgente. E assim,

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[...] o povo negro só aparecia nas histórias como coadjuvantes temporários

nas aventuras dos heróis brancos, ou caricaturados, mantendo o estereótipo

de que o negro é inferior, feio, mal, primitivo, menos inteligente, falante de

uma língua não culta. [...] É fácil identificar o racismo nos comics ou nas

bandes dessinées, sobretudo pela lacuna (CIRNE, 1982, p. 54).

Nessas vias, em trânsito, a comunidade negra sempre explicitou sua posição

contrária em partilhar desses discursos. E as relações entre negros e brancos sempre

coexistiram de forma tensionada neste universo fronteiriço, sociocultural, refletindo-se

nas páginas das HQs através de uma visibilidade estereotipada ou de uma invisibilidade,

ocasionando choques de temporalidades. Pois, sob o “manto” da subordinação, ao se

verem retratados de forma inferiorizante, na historiografia nacional e nas Histórias em

Quadrinhos ou ao não se verem representados, esses sujeitos adquiriram e constituíram

mecanismos de resistência, adaptando-se ao meio, por vezes se fundindo e se recriando,

em consonância com a cultura dominante, a fim de resgatar e preservar suas memórias e

tradições (SILVA, 2004). Esses imbricamentos foram imprescindíveis para que as

possibilidades de compreensão acerca dessa problemática ganhassem forma e

estabelecessem uma tomada de consciência acerca dos papéis que os diferentes sujeitos

vêm exercendo nas diferentes esferas sociais, dimensionando o ser negro e o tornar-se

negro.

Mas, como se aprende a ser negro? Como se aprende a tornar-se negro?

Vanda Machado (2010, p.9), de maneira transgressora, nos diz que só se

aprende sendo e tornando-se. E para tanto sugere a descristalização “[...] do modelo

cultural instituído, fechado no assujeitamento de pensamentos lineares”5. Isso requer um

processo de aprendizagem que “[...] inclui atos celebrativos que estimulam e agregam

tudo que dá vida à vida comunitária [...]”6 , possibilitando “[...] compreender o mundo

como algo que se move dentro e fora de nós mesmos [...]”7

, possível de ser

transformado, desde que seja assegurada, na pulsão das culturas e, consequentemente,

na formação do indivíduo, uma posição contrária às ações anticivilizatórias instauradas

e que, hierarquicamente, discriminam continentes, etnias, pessoas e religiões.

E segue a autora a dizer que, entre tantos caminhos, o mais humano para que

essas aprendizagens se deem, está na superação das intolerâncias e afastamentos, na

abertura a descobertas espirituais e filosóficas milenares dentre as tantas epifanias de

5 MACHADO, 2010, p.9. 6 Ibidem, p.9. 7 Ibidem, p.9.

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Deus no meio de homens e mulheres em todos os tempos. Então, conhecer, promover,

agir, são possibilidades “[...] da cura do mal da nossa própria ignorância [...]”

(MACHADO, 2010, p.9).

Assim, transversalmente, o povo negro, nesse processo de ser e tornar-se

negro, passou, cada vez com maior vigor reivindicatório, a buscar uma condição de

igualdade perante a sociedade. Para tanto, estabeleceu novas lógicas, em detrimento das

impostas, sendo estas pautadas na sua historicidade, na sua ancestralidade e nos seus

registros memorialísticos. Como afirma Cunha Junior:

A marca africana é indiscutível na cultura brasileira. Mas estes povos

africanos e afro-descendentes, nas suas epopéias de busca de liberdade e de

igualdade social, realizaram eixos marcantes da história social do povo

brasileiro. Empreenderam milhares de quilombos, de rebeliões, de

instituições no combate ao escravismo criminoso. Tiveram intensa

participação em todos os movimentos da história nacional. No pós-abolição,

a história de africanos e afro-descendentes se transcreve na organização de

novos movimentos sociais, religiosos e culturais, entre os quais se destaca um

atuante Movimento Negro (CUNHA JUNIOR, 2005, p. 251).

Essas rearticulações, dentro do sistema conjuntural, para fins de reelaboração

dessas realidades, em torno da comunidade negra, tornam possível afirmar que a

incorporação de personagens de etnia negra no papel de heróis e heroínas no espaço

quadrinizado ocorreu anteriormente às suas primeiras manifestações gráficas,

transpostas para as folhas de papel. Elas ecoaram a partir deste sentimento de

pertencimento e deslocamento, constituído nos encontros e nos desencontros: encontros

entre povos diferentes, com culturas próprias e falares diverso; desencontros, por

estarem forçosamente atuando em espaços territoriais, nos quais lhes eram negadas

condições mínimas de existência e sobrevivência.

Neste processo interacional, tornou-se imprescindível a construção de uma

comunidade cultural, no período colonial, pós-colonial, republicano e na

contemporaneidade, que primasse pela manutenção dos seus costumes, das suas

tradições, da sua memória e da sua identidade étnico-racial. Algo que só pode ser

pensado a partir do estabelecimento de uma rede de solidariedade e alteridade,

construída entre os diferentes sujeitos e necessária para a manutenção dos processos de

lutas e resistências. A diferença legitimou, de forma positiva, a reconstrução desta

autoidentidade negra e, conforme Zygmunt Bauman (2001, p. 202), esta semelhança foi

decididamente mais significativa que os traços que indicavam uma separação;

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“significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar

posição”.

E é esta posição histórica que nos impele a transferir aos quadrinhos um

potencial de expansão dos objetivos almejados pelas lutas e resistências do povo negro.

Acreditamos ser este um espaço possível para uma pauta discursiva de temáticas que

coloquem o povo negro no mesmo plano de valorização estético-moral afetiva dos

povos brancos (MOORE, 2012).

No entanto, é necessário que o compromisso com a democracia e a

democratização dos saberes se concretize e que os postulados e ideários de dominação

sejam identificados, apresentados, examinados e erradicados, dando espaço para a

construção de novas lógicas sociais, em detrimento das historicamente impostas.

1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM

CONCEITO

O conceito de representação social, cunhado pelo estudioso romeno,

naturalizado francês, Serge Moscovici, foi apresentado à sociedade através da obra A

representação social da psicanálise, no ano de 1961. O objetivo do pesquisador era

redefinir as estruturas que alicerçavam os saberes da Psicologia Social, através do

fenômeno das representações sociais, ressaltando sua função simbólica e seu poder de

construção do real (MOSCOVICI, 1978), pois a forma como esta se encontrava

organizada não privilegiava, nos seus embasamentos teóricos, discussões que

abarcassem as contradições sociais.

Moscovici acreditava que a Psicologia social deveria buscar contribuições em

grandes pensadores, como Marx, Freud, Piaget e Durkheim para desenvolver-se. Nestes,

entre outros, seria possível estudar os indivíduos e seus grupos, com base numa

abordagem epistemológica mais do movimento, da mudança, situando-os no mundo, do

que da ordem social, das reações e dos ambientes fixos. Dessa forma, a compreensão de

questões relacionadas às desigualdades étnico-raciais, aos “[...] fenômenos da

linguagem, à força das ideias na construção da sociedade, a realidade social”

(GUARESHI, 2007, p. 26) tornar-se-iam possíveis de ser compreendidas através da

necessidade de se estabelecerem aproximações e distanciamentos dos objetos.

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Neste contexto, para ir além e assegurar os procedimentos de renovação a

uma ciência que, aos seus olhos, necessitava de uma grande revisão crítica, o

pesquisador debruçou-se sobre o conceito de representação coletiva, desenvolvido por

Émile Durkheim (2007)8. Neste, compreendeu “[...] que a vida social é a condição de

todo pensamento organizado – e, de preferência, que a recíproca também é verdadeira

[...]” (MOSCOVICI, 1978, p. 42). Entretanto, para que essa compreensão se

concretizasse, seria necessário o estabelecimento de uma abordagem explanatória que

desse conta da pluralidade desses modos de organização, pois Durkheim apresentava de

forma muito genérica este locus contextual que é a sociedade.

As ideias daquele autor, embora inovadoras para a época em que foram

debatidas, abarcavam uma cadeia de formas intelectuais - ideologia, mito, opinião,

atitudes, imagens, modalidades de tempo, espaço, ciência, entre outros - muito ampla,

necessitando passar por uma profunda análise na sua estrutura e/ou na sua dinâmica

interna. Mas, como isso não ocorria, acresciam-se os problemas em torno da sua análise,

porque, quanto mais se incluíam essas formas intelectuais, esses conhecimentos e

crenças reguladoras das sociedades, mais lacunares tornavam-se os mecanismos para

que se estabelecessem a sua compreensão (MOSCOVICI, 2012).

Durkheim não levava em consideração que toda representação - no campo da

ciência, da técnica, da filosofia, das artes – foi constituída sob forte influência dos

referenciais conceituais internos e externos; que cada sujeito traz consigo em interação

com o grupo a que pertence; tampouco que cada uma dessas representações foi definida

de forma muito específica por esses mesmos sujeitos e grupos que a compuseram

(MOSCOVICI, 1978).

Procurando afastar-se das concepções de sentido estático inadequados aos

processos psicossociais, que estabeleciam divisões do tipo indivíduo/subjetivo/objetivo,

o Moscovici (1978) permitiu-se diferenciar representação social de modalidades

conceituais, como os mitos, a ciência, a ideologia etc, embora ciente de que cada uma

8Segundo o sociólogo Émile Durkheim (2007) as representações coletivas nascem das interações sociais,

fruto das crenças e sentimentos de cada indivíduo, que, agregados, lhe dão vida própria. Sem essas

crenças e sentimentos a sociedade não existiria. No seu processo de difusão, essas representações acabam

por sobrepujar a esfera individual, formando propriedade e condições de existência próprios, que, devido

a sua força, se estabelecem, se solidificam e jamais passam, diferentemente dos indivíduos, embora

tenham se originado deles. E, assim, o social, em função do seu poder coercitivo, impõe-se através das

regras e normas, cabendo ao indivíduo viver de acordo com cada uma dessas, ou seja, agir em

determinação, não em função de um sistema de pensamento individual e particular, mas em função de um

sistema maior que é a consciência ou a representação coletiva.

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destas encontrava-se mediada por representações cognitivas e sociais. E assim as

sistematizou:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam,

cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto,

um encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais

estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações

trocadas, delas estão impregnados. Sabemos que as representações

correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e,

por outro, à prática que produz a dita substância, tal como a ciência, ou os

mitos correspondem a uma prática científica e mítica (MOSCOVICI, 1978, p.

41).”

Nessa encruzilhada “mista”, marcada por uma série de conceitos sociológicos

e de uma série de conceitos psicológicos, Moscovici (1978) segue afirmando que a

representação social se constitui através de um conjunto de proposições, reações e

avaliações, estruturando-se de modos diversificados entre as classes sociais, entre as

diferentes culturas e os grupos, normalmente em acordo aos coros coletivos de opinião

pública que os compõem. E, nessa composição, esses universos representacionais

acabam por englobar três dimensões de natureza social: a informação, o campo de

representação e a atitude.

A informação refere-se aos níveis diferenciados de conhecimento que um

sujeito ou grupo possui acerca de um determinado saber ou objeto social. Tais

conhecimentos são elaborados por meio das estruturas intelectuais de cada sujeito - seus

sentidos, suas percepções, seu raciocínio, sua linguagem etc. – e por meio das relações

de interação que ele estabelece com outros sujeitos sociais. De maneira geral, podemos

dizer que, nessas trocas, novas e diferentes, visões do mundo despontam, algumas numa

dimensão mais elaborada e outras menos, de acordo com o número de informação que o

sujeito possui sobre o assunto em questão.

O campo de representação compreende a ideia de imagem, de modelo social,

englobando também o conteúdo concreto e limitado das proposições que se referem a

um aspecto preciso do objeto representado. Esta dimensão pressupõe que existe uma

unidade hierarquizada de elementos dentro da sociedade, uma imagem representada em

uma tela seletiva, que varia e abrange juízos formulados e afirmações sobre uma dada

realidade.

A atitude, por sua vez, remete-nos à avaliação. Há uma tendência incomum

nos diferentes sujeitos, voltada para os objetos, para as pessoas ou para as atividades, de

impor escalas valorativas, classificatórias e somativas para determinar o grau de

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importância de um problema. Tal feito, em contexto social, tende a apresentar sobre o

objeto representado uma orientação global, que pode ser positiva ou negativa, favorável

ou desfavorável, resultante da maneira como uma dada informação chegou e foi

apreendida e incorporada às práticas de vida do sujeito.

A atitude gravita sobre pontos de vista muito específicos, tendendo a ser

instável, com uma propensão à formação de estereótipos. Normalmente, quando assume

essa forma, a dimensão da atitude tende a olhar o objeto investigado sempre de fora,

sem levar em consideração seus atores sociais, suas intenções e propensões, ou seja,

sem levar em consideração o ser humano com seus questionamentos e busca por

respostas. (MOSCOVICI, 1978).

Observando as três dimensões acima aludidas, concluímos que o sujeito só

representa e informa alguma coisa à medida que se posiciona, assumindo uma atitude

acerca de e em função do objeto, embora nem sempre essas localizações se estruturem

de forma coerente (MOSCOVICI, 1978).

De certo, os contextos histórico, político e social permitem que o sujeito, em

sua atividade representativa, articule-se com o objeto concreto, não de forma passiva,

mas ativa, no imbricamento entre o universo social e material, tornando visíveis as

relações entre o universo simbólico e a realidade social. Nesse sentido, a representação

social torna-se

[...] uma “preparação para a ação”, ela não o é somente na medida em que

guia o comportamento, mas, sobretudo, na medida em que remodela e

reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter

lugar (MOSCOVICI, 1978, p. 49).

Assim, o fenômeno da representação social constitui formas de

conhecimentos concretos que se realizam em si mesmas, dentro de um contexto

dinâmico, ativo, em que o indivíduo e grupo, devido ao seu poder criador, os

reelaboram através de atividades representativas combinatórias. Ao mesmo tempo em

que seguem em direção a si mesmos, seguem em direção aos diferentes outros, o que

torna possível definir as relações estabelecidas, que podem ser ou não socialmente

valorizadas e representadas através das ausências ou das presenças.

Na sua prática, na sua diversidade de conteúdos e na sua estruturação, a

representação social sempre leva em consideração os conhecimentos populares, a

cultura, os valores e as crenças, esse senso comum que circula na nossa sociedade.

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Nesse sentido, a vida cotidiana e a ciência servem de ancoragem para que os modos de

compreensão sobre o mundo se concretizem, visto que são indissociáveis. Esses

permitem que as representações sejam agarradas ao vivo, compreendendo como elas são

geradas, comunicadas e colocadas em ação no dia a dia.

Na perspectiva acima, “[...] os conceitos ganham cor ou se concretizam (ou,

como é costume dizer, objetivam-se), enriquecendo a tessitura do que é, para cada um

de nós, a realidade” (MOSCOVICI, 1978, p. 51). Toda esta estrutura torna-se possível,

porque as representações sociais são ao mesmo tempo teorias, ciências coletivas,

designando a compreensão e elaboração do real. Numa perspectiva dialógica, a

representação social torna o que não é familiar em algo familiar. O não familiar, nesse

processo psicossocial, acaba por encarregar-se de compor o universo familiar.

Sob tal prisma, a teoria da representação social tornou-se fundamental para o

desenvolvimento desta temática de investigação, por permitir que fossem visualizados,

por meio dos processos simbólicos formulados em seu entorno, os fios que lhe tecem e

lhe servem de sustentação. Através da manipulação do simbólico, poderemos observar

as mudanças e permanências que se operacionalizaram na representação social do negro

nas Histórias em Quadrinhos.

Nas palavras de Sá e Arruda (2000, p.16), a pesquisa poderá escapar da

rigidez proposta por outras teorias e absorver a diversidade de fenômenos que

contribuam para explicar os problemas na tentativa de resolvê-los, vez que o campo das

representações sociais é um espaço de indagações, reflexões, embates, de produção

científica, de encontros, trocas e solidariedade. Assim, a cada elaboração e reelaboração

das produções quadrinistas, poderemos constatar que somos, a todo instante,

interpelados por palavras, imagens e ideias, que nos penetram através dos nossos olhos,

nossos ouvidos e nossa mente, sem que, muitas vezes, nos apercebamos, e acabam por

orientar as nossas condutas.

Neste sentido, é oportuno poder integrar as HQs a esse quadro do real,

imbuindo-lhe a tarefa de compreender as construções e reconstruções das ideias que a

permeiam. Assim, será possível “preencher lacunas, suprir a distância entre o que se

sabe, por um lado, e o que se observa, por outro, completar as „divisórias vazias‟ de um

saber pelas „divisórias cheias‟ de um outro saber [...]” (MOSCOVICI, 1978, p.5), uma

vez que se busca superar um invisível, que nos fora transposto através de canais de

comunicação considerados legitimados, como a educação, os meios de comunicação e

as instituições.

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Durante esse processo de interlocução, cada um desses fenômenos,

difundidos em ambientes naturais e/ou sociais, assume, na sua composição, a função de

convencionalizar e prescrever o mundo (MOSCOVICI, 2011). Tudo isso, com uma

certa dose de autonomia e de condicionamento, que pode ou não interferir nas

atividades cognitivas de cada indivíduo.

As representações convencionalizam os objetos, as pessoas ou os

acontecimentos, na medida em que estabelecem modelos para serem compartilhados

entre os grupos. Ao mesmo tempo, tornam-se prescritivas, porque conseguem se impor

a cada um desses sujeitos de forma e com uma força considerada irresistível.

No processo de condicionamento, as representações buscam reconhecer os

objetos, as direções que estes assumiram, o rumo que tomaram ou se mudaram. Ajudam

a identificar as mensagens significativas daquelas não significativas, que interligam as

partes de um todo, colocando cada sujeito em uma categoria distinta. Ninguém se

encontra imune aos condicionamentos, visto que estes são determinados e se

configuram através da linguagem e da cultura. Isso não implica dizer que não podemos

escapar deles, principalmente daqueles forjados por determinados grupos hegemônicos,

que veem no outro uma não familiaridade porque dele diferem. Esse não tornar o outro

familiar, porque seus traços físicos, suas tradições e experiências são diferentes, pode

ocasionar medos, incertezas, incongruências.

Quanto às representações prescritivas, estas nos são transmitidas ao longo do

tempo, sendo a resultante de sucessivas elaborações e transformações que aconteceram

em diferentes gerações. Através da tradição, nos ditam o que deve ser pensado, e esses

pensamentos são compartilhados por cada indivíduo, por cada grupo, numa relação

interpessoal, não como construções novas do pensamento, mas como construções re-

pensadas, re-citadas e re-presentadas. E assim, “essas criaturas do pensamento” que

são as representações sociais, as ideias, acabam por se constituir em um ambiente real,

concreto, nos confrontando a todo instante (MOSCOVICI, 2011).

Portanto, é necessário que a nossa percepção não se encontre obscurecida,

para que percebamos os mecanismos de controle sociopolíticos existentes, que, com

suas lógicas, limitam e alienam as relações sociais. Compreendendo-as, por mais

intricadas que elas estejam, será possível extrapolar muros e construir uma nova

realidade material com modelos sociais mais participativos, criativos e solidários,

quebrando as amarras das informações presentes.

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Em relação à representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos, no

papel de herói e heroína, podemos, de acordo com a investigação que realizamos,

observar a presença do convencionalismo e da prescrição nas suas construções

imagéticas. As narrativas quadrinizadas, embora tenham sofrido transformações, ao

longo da sua trajetória, na sua consistência e estabilidade, resultando em novas formas

de representação, mais elaboradas em acordo aos avanços tecnológicos e sociais, ainda

experimentam as influências comunicativas impostas em decorrência dos sistemas de

investigações evidenciados através da ausência do negro nas narrativas ou de uma

presença cuja centralidade discursiva abordava conteúdos que envolviam recalques,

situação de violência, conflitos políticos, doença, fome, miséria. Poucas são as revistas

que representam a comunidade negra a partir de uma correlação positiva.

Como a comunidade brasileira é “[...] muito sensível às aparências [...]”

(D‟ADESKY, 2009 p. 88), essa proliferação de ideias dicotomizadas em relação ao

negro nas publicações, por sua carga persuasiva em acordo a sua linguagem, pode

contribuir para a manutenção desses pensamentos e crenças. Isso não implica dizer que

essas representações constituam um componente determinante e próprio desse grupo

étnico, mas necessitam ser analisadas como produto mercantilizado, que, ao ser

vendido, apresenta componentes que rotulam o outro por meio de uma forte carga de

inferiorização.

Nesse processo dialético, o construído acaba por assumir um significado

maior na situação, em particular, negativa, motivada por um discurso que vem sendo

difundido, sem que seja colocado na centralidade de fala o sujeito que o ocupa. Assim

sendo, nesse mundo de representações, o que a sociedade necessita é de informações, de

palavras, de comunicação e de noções para entender o outro e, assim, revelar o que fora

encoberto, escondido. Nas palavras de Moscovici, tornar o estranho familiar,

transformando o mundo sem deixar que ele seja o mundo de e para todos (1978).

No entanto, no mundo em construção, seja por medo ou por acomodação,

sempre o que prepondera é a busca por segurança; o novo causa-nos um efeito de

estranhamento, por isso o indivíduo tende a excluir o que lhe é desconhecido. Sobre isso

observam os autores a seguir:

Procuramos sempre nos unir a algo com que nos identificamos, a algo que

seja familiar para nós, mas quando não há essa identificação na relação entre

“iguais”, ou seja, quando o “outro” não é uma cópia de mim, quando ele não

se encaixa nos meus padrões, quando ele foge das minhas convicções, então

há uma redução do outro ao mesmo, constituindo-se em práticas de exclusão

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e supressão de toda forma de diferença/alteridade e, ao mesmo tempo,

assemelhando-se às estratégias políticas nacionalistas, xenófobas,

chauvinistas e racistas (ABRAMOWICZ, OLIVEIRA, 2006, p. 58).

“[...] O racismo é o caso extremo em que cada pessoa é julgada, percebida,

vivida, como representante de uma sequencia de outras pessoas ou de uma coletividade”

(MOSCOVICI, p. 1978, p. 64). Sendo assim, é imprescindível que, sobre essas práticas

de inferiorização, estereótipos, estigmas e exclusão, novos discursos sejam incorporados

quanto à representação dos negros na HQs. É necessário que a comunidade negra

mantenha-se em constante processo de inscrição nos espaços públicos, reclamando

igualdade de direitos e de razão, afirmando sua identidade negra de forma positiva e um

tratamento legislativo e judiciário regulamentados.

Uma das estratégias de enfrentamento que pode ser assumida pela

comunidade negra é manter em pauta, discursiva e reflexiva, essas “invisibilidades”. No

caso específico da temática em estudo, é imprescindível saber: Quem produziu essas

HQs? Em quais condições? Por quê? Compreendendo também: O que mudou? O que

não mudou? Por que mudou? E porque não mudou?

Assim, poderemos nos interpelar a todo instante, sobre como esse passado foi

construído, como ele se reflete sobre o presente, almejando avanços quanto ao futuro.

Através do ato de representar, poderemos trazer para a realidade os fatos conhecidos

e/ou desconhecidos, para analisarmos como estes últimos, no imaginário dos diferentes

sujeitos, é enunciado. Nessa busca, o que parecia tão ausente, distante, pensado como

inatingível, tão não familiar, tornar-se-á mais tangível, mais familiar, nesta relação eu-

outro-sociedade, ou diríamos, quadrinho e sociedade.

Vale ressaltar, que é transitando neste mapa das relações e dos interesses

sociais através da imagem, da informação e da linguagem que objetivaremos este

estudo. Entre avanços e recuos, tentaremos compreender como a comunidade negra

vem, gradativamente, influenciando e mudando sua forma de ser representada nas

Histórias em Quadrinhos.

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2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO

NOS QUADRINHOS

“No meio do caminho tinha uma pedra”,

mas a ousada esperança

de quem marcha cordilheiras

triturando todas as pedras

da primeira à derradeira

de quem banha a vida toda

no unguento da coragem

e da luta cotidiana

faz do sumo beberragem

topa a pedra-pesadelo

é ali que faz parada

para o salto e não o recuo

não estanca os seus sonhos

lá no fundo da memória,

pedra, pau, espinho e grade

são da vida um desafio

e se cai, nunca se perdem

os seus sonhos esparramados

adubam a vida, multiplicam

são motivos de viagem (EVARISTO, 1992, p. 21).

Conceição Evaristo, ou Maria da Conceição Evaristo Brito, autora dos versos

da epígrafe que abre este capítulo, nasceu na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1946.

Conforme nos relata em seu blogspot “Nossa escrevivência”, a sua vida, desde a mais

tenra infância, foi marcada por palavras, pela presença da oralidade, da prosa e da

poesia. Ao crescer, ela apropriou-se dessas suas vivencias, religou-as a outras e

adentrou o universo literário brasileiro para fins de subverter os conceitos criados acerca

do povo negro. Assim, através da sua produção literária se dizia mulher-negra,

produtora de uma literatura-negra, que almejava alcançar um número elevado de leitores

negros para reafirmar que o lugar do negro na sociedade são todos os lugares e estes só

precisam ser assegurados. O poema “Pedra, pau, espinho e grade” inspirado no verso

“no meio do caminho tinha uma pedra”, de Carlos Drummond de Andrade, amplia e

difere os obstáculos ao longo do caminho, nos oferecendo um estilo e uma estética

poética de possibilidades de superação.

O sentido de negação e repúdio aos conceitos discriminatórios contra a raça

negra e a conclamação à adoção de novos valores de respeito aos direitos desse povo

contido na poesia de Evaristo espelha o momento de intensificação dos sentidos

discursivos criados em torno das diferenças e desigualdades que vem marcando as

últimas décadas. No contexto interno da sociedade global, os diversos atores sociais,

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através de movimentos protagonizados por negros e também por não-negros, vêm

promovendo ações de reapropriação dos recursos materiais e simbólicos, através do

estabelecimento de relações de poder entre si. Tais relações comunicam, informando

sobre novas e complexas possibilidades, de “utopias de globalização” (SCHWAREZ,

1998, p. 67), da construção de uma sociedade que se beneficia com a convivência entre

os diferentes.

No bojo dessas transformações, podemos afirmar que passamos a assistir e

também a participar, de um novo panorama social, composto por diversos “mundos”,

mobilizados, por sua vez, dentro de um só mundo, que, marcados pela sua

subjetividade, anseiam por rasurar as fronteiras e reafirmar os sentimentos de pertença,

resultantes de uma autoidentificação fixada por meio da integração com os grupos

sociais constituintes. Esse caráter aglutinador, a serviço da diversidade, evidencia um

conjunto de possibilidades e modalidades promotoras da igualdade. No entanto, em

sentido inverso, ainda nos deparamos com pedras, paus, espinhos e grades, ao longo do

caminho (EVARISTO, 2008), nos apontando outras realidades, nas quais se pode notar

a manutenção de forças centrífugas, violando o que fora legalmente conquistado, num

processo contínuo de rejeição das diferenças.

O modo como podemos averiguar essas resultantes é através das demandas

existentes. De maneira geral, podemos afirmar que os povos de etnia negra continuam a

ser os menos escolarizados; os que menos ocupam cargos políticos considerados de

prestígio; os que recebem os mais baixos salários e não habitam as áreas tidas como

nobres da cidade. No entanto, os esforços para a inserção da população negra brasileira

nesses espaços mantêm-se articulados, embora instáveis, pois são muitas as pedras-

pesadelos encontradas nas suas labutas diárias (EVARISTO, 2008).

As lutas da comunidade negra para transpor essas pedras, que se chamam

racismo, discriminação e preconceito, são muitas. Por melhores condições de vida os

negros seguem em luta, tentando triturá-las, construindo, divulgando e reivindicando

ações antirracistas e antidiscriminatórias, tais como a produção de Histórias em

Quadrinhos, com personagens negros, no papel de heróis e heroínas, em suas narrativas.

Acreditamos que criações como essas possam contribuir, junto a tantas outras,

a exemplo do cinema, da literatura, da televisão, que também são canais poderosos de

comunicação, para transformar ideias em dispositivos estruturais de formação e

informação, e, para tanto, há que se considerar a tríade que as compõe: história,

sociedade e quadrinho. É neste sentido que nos lançamos a salto (EVARISTO, 2008)

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com o propósito de revelar e discutir essa presença do negro nos quadrinhos no Brasil,

desde as suas produções iniciais, com Angelo Agostini, à atualidade.

Através de caminhos teóricos, considerados coerentes e produtivos, nos

estruturamos elencando alguns períodos históricos, em que podemos perceber,

gradativamente, que, de vítima do racismo, do preconceito, da discriminação e da

situação de escravizadas, mero coadjuvante social, a comunidade negra passou, no

espaço quadrinizado, a uma posição contestatória e de reivindicação da correção desses

valores e premissas. Uma longa caminhada, principalmente se considerarmos que, nos

requadrados, essa mudança começou na segunda metade do século XIX e seguiu

banhando a vida no unguento da coragem (EVARISTO, 2008), incentivada por uma

irrevogável necessidade de se desconstruírem as complexas organizações sociais, que

promoveram, ao longo do tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração

do outro e no seu apagamento.

Embora o Brasil, junto a outros países, possa ser considerado um país de

vanguarda na publicação de Histórias em Quadrinhos, essa produção permanece sendo

pouco divulgada entre as classes populares, principalmente quando se trata de ilustrar a

realidade, o lugar e a vida do negro. Tendo isso em vista e cientes do quanto o “[...]

discurso canônico „naturaliza‟ os desenhos dos afro-brasileiros e reforça as imagens que

os descrevem como seres passivos, submissos, incapazes de atuar fora do estereotípico”

(SOUZA, 2005, p. 120), buscaremos discutir caminhos alternativos, que apostam na

possibilidade de resistir e superar estas barreiras, transformando-as “[...] em estímulo

para o enfrentamento vitorioso dos desafios e dificuldades (SOUZA, 2005, p. 120).

2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL

Na segunda metade do século XVIII, o Brasil passava por um processo de

reordenação social. A estrutura organizativa colonial entrava pari passu em declínio

pressionada pelas mobilizações político-econômicas externas e internas, que almejavam

incorporar ao país um novo regime, o republicano. Esse processo de transitoriedade

continha em si suas contradições, motivada por ideais e anseios peculiares a cada grupo

social, que se dividia, por um lado, entre as camadas da população em situação de

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marginalização social e, por outro, entre a elite responsável por gerir

administrativamente o país.

A sociedade em vigor era díspar, não reconhecendo como cidadãos de iguais

direitos uma parte de seus membros. Interessa-nos aqui, especificamente, abordar os

negros-africanos e seus descendentes, que, tampouco, garantiam seu espaço de

contribuição nos processos de mudanças instaurados, validados como relevantes, por

não serem considerados parte integrante do meio nem responsáveis diretos pela

dinâmica econômica instaurada no país, assim como pelo seu desenvolvimento ao longo

dos séculos.

Assim, as medidas aplicadas pelo governo convergiam para as elites

dominantes as riquezas materiais, excluindo a comunidade negra dos seus benefícios.

No entanto, ainda que tais riquezas tenham sido aí concentradas, através dos jogos de

poder, estes foram ineficazes na debilitação das riquezas imateriais do povo negro. Pois,

mesmos submetidos a rígido controle, este manteve vivos seus saberes e conhecimentos.

É durante esse pêndulo estrutural e ideológico que, em 1859, chegou ao

Brasil o imigrante italiano Angelo Agostini, que vivera muito pouco em seu país de

origem, e que muito jovem fora morar em Paris, onde permaneceu cerca de 10 anos

alicerçando as bases para sua formação artística. Jornalista, intelectual, político e

precursor das Histórias em Quadrinhos no Brasil, consagrou a sua vida à carreira de

caricaturista. O viés político, crítico, satírico é marca circundante nas suas obras,

certamente florescido em consequência dos múltiplos contatos culturais vividos pelo

artista nos seus processos de deslocamento. Tendo esse autor produzido significativas

ilustrações contrárias às práticas escravistas, seus trabalhos assumiam um caráter de

crítica político-social, contrária às crenças e valores monárquicos, almejando colocar o

país em um plano de horizontalidade junto às nações europeias, consideradas

civilizadas.

No entanto, conforme nos aponta Gilberto Marigoni Oliveira (2006a), na sua

tese intitulada Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da corte à capital federal

(1864 - 1910), e em entrevista ao Blog dos Quadrinhos, o artista, durante sua carreira,

manifestou ideias paradoxais. No período da monarquia, seus discursos, de cunho

pedagógico e civilizacional, eram proferidos defendendo o fim da escravidão. No

entanto, após a instauração da República, mudou radicalmente de posição, sucumbindo

às complexas teias sociais, políticas e econômicas da época. Seus trabalhos passaram a

assumir o discurso elitista de inconformismo com as consequências que essas mudanças

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ocasionaram à sociedade, tais como: aumento da violência, acumulo de lixo nas ruas da

cidade, número excessivo de vendedores ambulantes (negros libertos), formação do

movimento jacobino, e, principalmente, a falta de cultura do povo, entre outros

aspectos. E assim, Agostini,

[...] embora seja um dos mais destacados ativistas pelo abolicionismo,

acompanhou o projeto que a minoria branca - na feliz expressão cunhada pelo

governador Cláudio Lembo - tinha para o país: uma sociedade baseada no

liberalismo, no trabalho assalariado, que relegou os negros à própria sorte

(OLIVEIRA, 2006b).

Havia uma confluência de pensamento da sociedade da época monárquica no

sentido de dar aos negros a condição de libertos; mas garantir-lhes, por outro lado,

situações de igualdade fragmentaria o poder simbólico das superestruturas, risco que os

governantes e a elite não gostariam de correr. As concepções em torno da liberdade

sempre se constituíram em ações perigosas; assim, deram-lhes a liberdade, mas novas

práticas de controle foram sendo delineadas. Livres, sim, mas permanentemente

vigiados, punidos e ocupando cargos que dialogassem com a sua situação de ex-

escravizados, ou de descendentes destes, e cujas vidas atestavam ausência de melhorias

nas condições materiais de sobrevivência.

Do escravismo às sociedades de classes, a mentalidade do povo branco

refletia-se no cenário urbano instaurado: os negros continuavam a compor o quadro de

empregados domésticos, viviam do comércio informal, na clandestinidade, nas fábricas

exerciam somente trabalhos braçais e, normalmente, quando se encontravam em algum

ponto fixo comercial, este pertencia a um individuo de etnia branca. Esse cenário levou

o povo negro a manter-se em situação de marginalização.

Embora fosse produtivo preconizar uma fala em torno de mudanças,

denunciando os sofrimentos do povo negro, havia um distanciamento social entre o

discurso e colocar-se inteiramente a dispor dessa causa, como podemos observar na

figura 4, que embora seja uma tira produzida no ano de 2012, sobre a República, ilustra

que, apesar de assegurada a liberdade na forma da lei, caracterizada pelo fim da

escravidão, em 1888, e pela Proclamação da República, em 1889, aos negros não lhes

foram, de fato, assegurados seus direitos.

E assim, em mão única e numa mesma direção, assumindo um tom

paternalista, os discursos da comunidade branca eram difundidos. Como um pai

centralizador, tendo uma visão monolítica sobre o outro, essa comunidade impunha suas

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leis, suas ideias e seus preceitos. Esperava, por outro lado, da comunidade negra uma

posição de tutelada, de filho obediente e complacente, submisso e respeitoso, sem poder

opinar quanto às decisões políticas e sociais que afetavam diretamente sua vida.

Figura 4 – O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República

Fonte: TIBÚRCIO. Meu monarca favorito. Disponível em:

<http://meumonarcafavorito.blogspot.com.br/search?updated-min=2010-01-

01T00:00:00-02:00&updated-max=2011-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50>. Acesso

em 10 jan. 2012.

Há que se considerar que Agostini tem um papel relevante “[...] na implantação

de uma imprensa ilustrada e de agitação em nosso país. Além disso, seus painéis sobre a

escravidão são o melhor retrato visual da barbárie social dos anos 1880 [...]”

(OLIVEIRA, 2006b). Assim, vale a pena destacar que suas primeiras ilustrações nos

chegam através dos cartuns, publicados nas páginas do periódico Diabo Coxo, em 1864,

em São Paulo, onde desenvolveu sua arte ao lado de Luis Gonzaga Pinto da Gama9.

Comungando, ideologicamente, dos mesmos ideais, mesmo em face do que já fora

explanado, artista e poeta difundiam, através da imprensa, manifestações estratégicas de

9Luis Gonzaga Pinto da Gama, conhecido comumente como Luis Gama, foi uma figura de grande

representatividade para a comunidade negra durante naquele período. Era mestiço, filho de Luísa Mahin,

ativista negra sempre envolvida nos movimentos de insurreições e suscetível a sua prática, e pai branco,

logo, biologicamente e / ou etnicamente pertencente a dois grupos sociais. Após a última fuga da sua mãe

fora vendido por seu pai como escravo. A condição de escravizado lhe retirou, nos planos social, político

e ideológico, a ambivalência do ser ou não ser negro. Diante desta realidade decidiu assumir um

posicionamento de conflito, adotando para si uma identidade negra (MUNANGA, 2002 apud REIS, 2002,

p. 19) Assim, tornou-se negro, ex-escravo, poeta, abolicionista, jornalista, advogado e responsável pela

redação da revista.

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luta política, visando a consolidar os processos de respeito e tolerância para com os

diferentes outros (negros e índios). Dessa forma, através do teor das ilustrações e dos

textos, aventurava-se em criticar os costumes do segundo império e deixar entrever a

instauração e a efetividade de um regime contrário aos posicionamentos intramuros

estabelecidos pela existência evolucionista etnocêntrica.

As publicações eram irregulares e logo no ano subsequente extinguiram-se. O

caminho alternativo encontrado por Agostini para a manutenção dos seus ideais, mesmo

enfrentando as disposições hierárquicas vigentes, foi criar um novo periódico. Assim,

em 1866, com Américo de Campos e Antônio Manuel Reis, lançam O Cabrião, porém a

revista vivencia os mesmos problemas da supracitada, tendo uma curta trajetória. Parece

seguro dizermos que a extinção dessas publicações foi basilar para o seu não-

silenciamento, dando-lhe impulso de continuidade em defesa da dissolução da

escravidão. Além do que, ele almejava manter-se ligado à imprensa ilustrativa.

Em busca de espaço na imprensa, Agostini mudou-se para o Rio de Janeiro em

1867, onde passou a integrar o quadro de O Arlequim, periódico que encontrou como

estratégia de sobrevivência tornar-se o próprio produto de venda. Nas crises financeiras

a revista era vendida e o novo proprietário injetava capital de giro necessário à sua

manutenção, trocando-lhe o nome e relançando-a. Ao longo do tempo, várias foram as

nomenclaturas adotadas, até que, em 30 de janeiro de 1868, sob o nome de Vida

Fluminense, a revista apresentou à sociedade brasileira a primeira História em

Quadrinhos nacional, intitulada “Nhô-Quim” ou “Impressões de uma Viagem à Corte”,

produzida pelo artista com o mesmo rigor artístico/político, crítico/reflexivo adotado em

suas reportagens e nos seus cartuns, agregando à imagem e à palavra escrita. Assim,

[...] no âmbito do enquadramento, os fatores semânticos articulam-se numa

série de relações entre palavra e imagem: tem-se, assim, o nível minimal e

uma complementaridade por deficiência (a palavra exprime uma atitude que

o desenho é inábil para representar em todas as suas implicações) (ECO,

2011, p.146).

Nessa fusão icônica/verbal, suas narrativas foram desenrolando- se sob forte

influência folhetinesca10

. As histórias eram apresentadas aos leitores com planos de

continuidade e anticlímax; havia sempre uma expectativa em torno do que seria

apresentado no dia seguinte, o que assegurava, consequentemente, o aumento nas

vendas e a divulgação do produto. Quanto ao conteúdo, embora as histórias tivessem o

10

Gênero literário em ascensão na época, apresentado ao público em capítulos.

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mesmo objetivo, de estabelecer uma relação de comunicabilidade com o leitor, a

linguagem quadrinística, mesmo no seus momentos de gestação, possuía suas próprias

especificidades - falas mais curtas, mais próximas da linguagem coloquial.

Umberto Eco (2011) faz-nos refletir acerca da efetividade em torno desse tipo

de criação sequencial: será que as Histórias em Quadrinhos organizadas nesse formato,

tiras diárias ou em páginas semanais, não determinariam, profundamente, a estrutura do

enredo? Desenvolver histórias nesse formato não comprometeria a validade, a

maturidade estética e ideológica da obra? Apenas o uso das tiras não seria mais eficaz

ao comunicar ideias na sua completude?

Pensando os quadrinhos com base nos estudos desenvolvidos pelo quadrinista

Scoot McCloud (2006), que se considera um “lealista dos quadrinhos”, encontramos

respostas a esses questionamentos, ao aferirmos que não existe um único caminho de

leitura e de representação nos quadrinhos, porque estes se abrem a universos múltiplos.

Imagens e letras se fundem, se amalgamam, produzem experiências e narram as

relações sociais, posicionando-se como espaço privilegiado e articulador das narrativas.

Parecem, pois, nesse sentido, possíveis e válidos os encaminhamentos dados à narrativa

gráfica no formato empreendido pelo quadrinista ítalo-brasileiro. Ler quadrinhos na

condição de folhetim não retira deste a maturidade estética, ideológica; e delimitar,

qualificar ou quantificar este formato, ou aquele, como melhor ou menor, significaria

um campo perigoso e escorregadio de enclausuramento da obra e da liberdade de

expressão do artista.

No ano de 1876, Ângelo Agostini funda a Revista Ilustrada, mas somente em

1883 cria “As aventuras de Zé Caipora”, título que passa a fazer parte da referida

publicação, seguindo a mesma estilística da revista anterior, Vida Fluminense, até o ano

de 1906. Dessa forma, o autor vai desenvolvendo a sua obra, colaborando ativamente

com a revista O Malho (1904) e participando do processo de fundação e

desenvolvimento da revista O Tico-Tico (1905), produção direcionada ao público

infantil.

No ano de 1910, Angelo Agostini veio a falecer. Conseguira ver a escravidão

ser abolida e a república, instaurada. Bem sabia, também, que os caminhos das letras,

das ilustrações e dos quadrinhos possuíam o potencial de, se não de transformar o meio,

dispor de elementos, que ao menos poderiam abalar as suas estruturas, de modo a fazer

seus indivíduos refletirem acerca das suas ações. E assim o fez, embora lhe faltasse uma

consciência prática, um discurso identitário biossocial (CUTI, 2010), a exemplo de Luis

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Gama pois, nas suas narrativas quadrinizadas, a comunidade negra aparecia sempre

através da percepção de um outro que a olhava, mais não a enxergava.

Agostini era esse outro, um sujeito étnico branco, que quadrinizava “[...]

sobre o „preto‟, para um outro branco, formando com este último um nós branco”

(CUTI, 2010, p. 20). Tornava, assim, o negro objeto de autocrítica, porque é a respeito

dele que se escrevia. No entanto, não é “[...] o negro que dirige a palavra nem é a ele

que a palavra é dirigida” (CUTI, 2010, p. 20). E, assim, suas ilustrações criaram uma

desidentidade, transformando o negro em um objeto representacional distante, abstrato,

impossível de ser representado nas suas particularidades. Isso apesar de que Agostini se

reconhecia republicano, contrário as práticas escravistas. Porém identificar o problema,

e não apontar e intervir no processo de mudanças, torna-o apenas um ente

fantasmagórico de difícil resolução, já que abstrato.

As tiras de sua autoria não contemplam as marcas dos lugares de fala da

comunidade negra, em que o biológico e o social realizam-se de forma indissociável e,

dessa forma, não podemos ver transpostas para suas páginas representacionalmente

“[...] a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se

operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os

sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios

que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim, é um sem limite de

possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas (GOELLNER,

2007, p. 29).

Afinal, uma História em Quadrinhos (utilizando-me de recursos

quadrinísticos mais contemporâneos) não são apenas seus planos – a forma como as

personagens encontram-se representadas no espaço; seus formatos – as linhas

demarcatórias que configuram o enquadramento no papel; seus ângulos de visão dos

planos – ângulo do qual é observada a ação; tampouco apenas os balões – lugares de

fala; legendas, letreiros e sons; ou discursos de um outro que fala por nós. Pode ser um

espaço onde sejam construídos o discurso do “nós”, atravessados pelos critérios de um

autorreconhecimento que desemboca na formação de um sujeito que também é ethos, e

cuja organização social respeita o diverso e à natureza, numa visão sagrada de mundo

que se recria e se reforça através dos vínculos e alianças comunitárias. Afinal, todas as

coisas na visão da cosmogonia africana se regem mutuamente (LUZ, 2002), e isso não

se encontra expresso nos quadrinhos de Agostini.

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É preciso sublinhar que, quando alguém escreve , não escreve apenas para si

mesmo; o leitor ideal vai ganhando forma na mente do escritor. Nesse sentido, como

neste período de colonialismo e pós-colonialismo o país não dispunha de um número

significativo de sujeitos negros letrados, com acesso aos textos e suas ilustrações,

inferimos que essa aquisição de saber e poder era voltada aos povos de etnia branca.

Mas, mesmo em face dessas circunstâncias históricas, que abrigavam concepções

profundamente distorcidas, Agostini deixa-nos um testemunho material desse período,

através da sua arte, ao evidenciar as mazelas infligidas ao povo negro e a necessidade

irrevogável do estabelecimento de igualdade social.

Após Agostini, a partir do século XX, as Histórias em Quadrinhos passaram

por um processo estanque na sua produção e divulgação. A imprensa tornou-se,

“gradativamente um empreendimento capitalista e de massas” (OLIVEIRA, 2006a, p.

317), mas não houve uma organização empresarial que pudesse manter tal arte

quadrinística dentro de uma linha de produtividade em destaque. Nesse momento inicial

de gestação do novo regime, as preocupações que vigoravam encontravam-se ancoradas

nas novas divisões do trabalho e na implantação de um mercado expansionista

internacional, que propiciasse um crescimento econômico, tecnológico e urbano

industrial ao país. Só em 1930, agora sob o olhar atento e inovador do jornalista Adolfo

Aizen, judeu que ingressou no Brasil em 1910, é que essa arte volta a fervilhar em solo

nacional, mas com características similares e diferentes das até então propostas.

Com Agostini, o negro aparecia, nos enquadramentos, representados dentro

do imaginário escravista, como personagem vítima da violência, atrelados às relações de

subordinação e dominação impostas; o que reafirmava sua condição de inferioridade.

Agora, a partir das primeiras décadas do século XX, mesmo a realidade sendo outra, a

situação dos quadrinhos se torna cada vez mais complexa, pois, ao invés de avançarmos

nas reflexões em torno daquela problemática, ao menos nas narrativas quadrinizadas,

passamos por um processo de retrocesso, ao “americanizarmos” nossas HQs, mantendo

o negro fora dos requadrados.

Adolfo Aizen sempre possuiu uma veia empreendedora. Assim, em 1931,

criou a Adersen Editoras, em parceria com Oliveira Hersen. Esse era um

empreendimento pequeno, e a ideia surgiu com base em cartas enviadas pelos leitores

de O Malho, solicitando informações práticas sobre como eles poderiam comprar livros.

Pensando ser um negócio rentável, decidiram investir: os leitores comprariam seus

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livros através do reembolso postal e eles seriam responsáveis pelo seu envio através do

correio (GONÇALO JUNIOR, 2004)11

. A editora durou até 1932.

Em 1933, Aizen começou a trabalhar como repórter colaborador no jornal O

Globo, pertencente a Roberto Marinho, mas seus anseios continuavam mais vívidos do

que nunca. Ele almejava uma ascensão jornalística e empresarial, queria fundar uma

revista de grandes proporções, o que, até 14 de julho de 1934, tornou-se impossível,

pois, de acordo com decreto de nº 24.776, implementado pelo governo Vargas, ficara

estabelecido que estrangeiros não poderiam ser proprietários, diretores e acionistas de

empresas jornalísticas. Assim, diferentemente de Agostini, que conseguira naturalizar-

se brasileiro, Aizen teve que forjar para si uma identidade nacional e, dessa forma, pôde

desfrutar os benefícios daí decorrentes.

Agregado a esse desejo de crescimento e impulsionado pelo imaginário

representacional que estava sendo propagado em torno dos Estados Unidos12

, Aizen

decidiu descobrir, para si e para o Brasil, esse “novo mundo”, sem, no entanto, abordar

as contradições nele existentes, principalmente as relacionadas aos problemas vividos

pelos grupos de etnia negra.

Ao tomar conhecimento de que uma comitiva estava sendo organizada pelo

Touring Club 13

para ir aos Estados Unidos, com todos os custos pagos, decidiu entrar

em ação. Assim, contatou um dos membros do grupo responsável pelo evento, Berilo

Neves, e conseguiu inserir-se na viagem. Em 17 de agosto de 1933, Aizen embarcou

para os Estados Unidos, dividindo-se entre assistente do grupo participante durante o

voo e assessor de imprensa. Os diferentes eventos que cobriu eram reportados ao Brasil.

Quando o período acabou, o jornalista encontrava-se tão fascinado por esse “novo

mundo” que, enquanto os demais retornavam após as seis semanas asseguradas, ele

decidiu ficar mais cinco meses, só voltando ao Brasil em janeiro de 1934.

Essa viagem foi imprescindível para o encaminhamento dado às Histórias em

Quadrinhos no Brasil, pois foi em solo norte-americano que Adolfo Aizen conheceu o

mercado editorial estadunidense, com inovadoras tecnologias de impressão, contando

com suplementos variados contos policiais, esporte, histórias em quadrinhos.

11

A maior parte das informações fornecidas a partir deste parágrafo envolvendo Adolfo Aizen foram

retiradas da obra de Gonçalo Junior ( 2004).. 12

Imaginário representado, por exemplo, nesta citação: “[...] a terra da liberdade e do pensamento, das

grandes oportunidades individuais e do desenvolvimento econômico, do progresso tecnológico que nem a

recessão conseguiria abalar” (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 21). 13

O Touring Club era um grupo nacional de promoção do turismo, que, junto ao governo Roosevelt,

promovia políticas expansionistas de cunho comercial às nações vizinhas para que estas estabelecessem

negócios com as empresas norte-americanas e permanecessem vinculadas a longo prazo.

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De posse desses novos conhecimentos e das HQs de aventura, Aizen retornou

ao Brasil. As inovações tecnológicas trazidas dos Estados Unidos permitiram aumentar

o número de vendas dos seus jornais e revistas, além de sua editora contar, para sua

manutenção, com injeção de dinheiro por parte dos anunciantes. Aizen conseguiu, além

disso, delinear o espaço das HQs de aventura para os quadrinhos no Brasil utilizando as

páginas do suplemento, pertencente a um diário partidário da poderosa lógica estadista

instituída pelo governo e administrado por João Alberto, chamado A Nação (1934).

Durante cinco dias da semana, as narrativas eram publicadas com temas diversificados.

O diário comprava textos e desenhos americanos das “[...] agências conhecidas nos

Estados Unidos, como syndicates, distribuidoras de features (ilustrações, artigos e

reportagens)”. Personagens como Buck Rogers, Agente Secreto X-9, Flash Gordon, Jim

das Selvas chegavam às mãos dos leitores, além de algumas narrativas quadrinizadas

criadas por artistas brasileiros, mas que não tinham a mesma expressividade em vendas

das importadas. Após cinco meses de intensa publicação, o jornal passou a receber

críticas severas quanto aos suplementos, pois, acreditava-se que um jornal “sério” não

deveria enveredar-se pelo universo infantil, dissociando-se do seu cunho político, ainda

que não publicasse fatos relacionados aos desmandos do governo, ao movimento negro,

às greves e às lutas dos operários por melhores condições de vida. Assim, o jornal

decidiu deixar de publicar os suplementos.

Nos Estados Unidos essas publicações funcionavam “[...] como ponta-de-

lança ideológica contra o nazismo” (PATATI; BRAGA, 2006, p. 19), e aqui, embora

Vargas fosse simpatizante do regime fascista e do regime nazista, elas não constituíam

um problema, pois a Imprensa que a divulgava optara por não problematizar e/ou

discutir questões que fossem de encontro ao regime. Assim, embora durante o Estado

Novo toda e qualquer produção, das mais variadas ordens, sofresse um rigoroso

controle e não pudesse expressar livremente os pensamentos do autor, sem antes passar

pelo crivo da censura14

, quando associadas ao governo circulavam sem muitos entraves.

Apesar de as HQs nesse período encontrarem-se totalmente

descompromissadas com a representação dos negros, havia uma Imprensa Negra nos

dois países, com pautas reivindicatórias de acordo com as suas demandas políticas e

econômicas, propagando a necessidade de emancipação do povo negro. No Brasil,

14

Inicialmente foi criado o Departamento Oficial de Publicidade (DOP- 1931), que, posteriormente,

tornara-se Departamento Nacional de Propaganda e Difusão cultural (DNPD) e, finalmente, o

Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP - 1939).

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especificamente, já circulava, desde 1833, o jornal O Homem de Côr, fundado pelo

jornalista e tipógrafo negro Francisco de Paula Brito (1809 – 1861). Desse período até a

década de 1930, muitos outros foram sendo constituídos.

Os discursos proferidos pela Imprensa Negra, que almejavam mais que

liberdade, igualdade de direitos e práticas antirracistas, possibilitaram a formação de

movimentos negros organizados, a exemplo da Frente Negra Brasileira, fundada em

1931. O objetivo do movimento era superar e desmistificar valores organizacionais até

então impostos, o que, algumas vezes, lhes renderam o rótulo de “afrocêntricos”, ou

seja, estarem desenvolvendo em seu interior uma formação que levasse a uma prática

avessa ao racismo instituído pelos brancos aos negros. Quando o negro se colocava na

posição de agente reflexivo, logo era questionado quanto à sua legitimidade. Mas, na

maioria das vezes, o movimento era visto com muita credibilidade, devido à sua

organização social. Mediante esse fato, de movimento passaram a ser partido político

em 1936. Infelizmente, no ano seguinte, 1937, o movimento e o partido, assim como

tantos outros no país, foram extintos ao irromper o golpe do Estado Novo através de

Getúlio Vargas.

A postura reacionária dos dirigentes infligiu ao país uma situação drástica: os

excluídos mantiveram-se assim aos lhes serem imposta uma política de base repressiva

e punitiva, utilizando-se dos mecanismos de censura, que, em nenhuma instância,

poderia ser violada.

Quanto às escolhas de Aizen, podemos aferir que os seus encaminhamentos

conectam-se aos da maioria do mass media, ou seja, favoráveis ao governo. Se,

anteriormente a essas crises, o jornalista nunca se envolvera em manifestações

contrárias ao governo, não seria após a implementação do novo governo que mudaria a

sua postura. Dessa forma, Aizen manteve-se articulado aos interesses de uma sociedade

branca, sem voltar seus interesses nem o seu olhar aos homens negros e as mulheres

negras. Nesse entorno, as Histórias em Quadrinhos disseminadas assumiam uma cor e

uma tessitura de uma cultura dita homogênea, que não leva em consideração as

especificidades dos diferentes grupos étnicos que a compõem (ECO, 2011), como se

fosse possível separar as discussões de ordem cultural das de ordem relacionadas ao

poder.

Essa prática cultural propiciava a manutenção das desigualdades sociais,

porque não se preocupava com as particularidades vigentes na sociedade,

principalmente no que diz respeito à situação do negro. O mundo em que Aizen

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transitava era branco e para brancos, logo, as narrativas quadrinizadas não denotavam a

existência de outros mundos. O mais preocupante era que esse modelo escolhido e

construído veiculava as crenças, os símbolos, os interesses e as necessidades de quem

estava no poder, assegurando a funcionalidade da sociedade instituída (SOUZA, 2005,

p. 38).

Por causa desse hiato, entre sonhos e utopias, advieram pensamentos

reflexivos de como teriam sido configurados os quadrinhos, caso fossem produzidos por

“homens de cor” e nos chegado por essas mesmas mãos, por essa Imprensa Negra.

Quais seriam as suas narrativas? Seus personagens? Seu público-leitor?

Com o fim das publicações das Histórias em Quadrinhos no diário A Nação,

Aizen assumiu para si a responsabilidade de gerir essas HQs e criou, em 27 de junho de

1934, o Grande Consórcio de Suplemento Nacionais. Durante três anos, o

empreendimento desenvolveu-se em larga escala. De Suplemento Infantil tornou-se

Suplemento Juvenil, dialogando não só com o público infantil, mas com o jovem. Ele

montou a Livraria Juvenil, o Clube Juvenilista e a oficina gráfica foi inovada. Seu

sucesso fora estrondoso e despertara nos concorrentes o desejo de alcançá-lo ou

suplantá-lo. Os êxitos alcançados fizeram com que Roberto Marinho buscasse

experienciar o mesmo boom, visto que ele tinha todas as ferramentas necessárias para

entrar nessa linha de produção, e assim o fez ao publicar o suplemento O Globo Juvenil,

em 13 de junho de 1937, com Histórias em Quadrinhos de Ferdinando, Brucutu, Zé

Malumbo, Robin Hood, Az Smith, Dick Dare, Marquês de Tereré, As aventuras de

Patsy, O rei da sorte e O Capitão e os meninos. Em 1938, outro suplemento, A

Gazetinha, também entrou no negócio, publicando histórias do Fantasma, todas em

formato de tabloides.

Nesse ínterim, Aizen publicou, em 1938, um jornal que não contém narrativas

icnográficas, intitulado Folha do Brasil. No mesmo ano viajou para os Estados Unidos e

tomou conhecimento de que os tabloides foram dobrados ao meio e tornaram-se Comics

Books, cujas histórias continham narrativas completas – inicio, meio e fim.

Definitivamente, Aizen era um homem de vanguarda, pois, ao voltar para o Brasil, ele

não só inovou o maquinário que adquiriu na viagem para a produção das histórias, como

também nos apresentou a esse novo formato, deixando para trás o formato antigo dos

tabloides. Assim, em 16 de maio de 1939, lançou o primeiro Comics Book brasileiro,

buscando suplantar a concorrência; uma revista mais compacta e de dimensão menor

que as divulgadas até então, que foi intitulada Mirim. O êxito alcançado o fez lançar,

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54

posteriormente, O Lobinho, em formato utilizado pelos jornais diários, o standard,

criando pela primeira vez no país um jornal em quadrinhos, e o primeiro livro da série

de quadrinhos Grandes Figuras do Brasil, que teria o seu segundo volume lançado no

ano subsequente.

Mas, publicar no Brasil, desde os seus períodos mais tenros, se constitui um

problema, em virtude do alto custo gráfico, da falta de investimento, aliados a um

sistema de transporte frágil, condições vivenciadas por Aizen, além da inexistência de

um contrato legal entre ele e os representantes que lhe subsidiavam as histórias

americanas, deixando-os abertos às leis da oferta e da procura de outros produtores. Isso

ocasionou-lhe não só a queda de O Lobinho, em 1940, como também poder

experienciar momentos de crise dentro do Consórcio. Além disso, nesse contexto, a

Segunda Guerra Mundial, que já despontara, vinha afetando economicamente o país, e,

consequentemente, as HQs.

A sociedade vivenciava as tensões e os desequilíbrios financeiros visíveis no

aumento do custo de vida, refletidos em todos os setores. Mesmo que Aizen estivesse

mantendo a sua produção quadrinística, esta não poderia desenvolver-se em maior

escala em função de

[...] um possível racionamento do papel pelo governo, uma vez que toda a

imprensa era abastecida com papel importado e havia o risco de ocorrerem

ataques nazistas aos navios que traziam o produto do Canadá (GONÇALO

JUNIOR, 2004, p. 95).

Além desses problemas, a década de 1940 foi marcada por uma acirrada

campanha católica contrária à produção quadrinística. Difundia-se, através do Papa Pio

XII, que as narrativas possuíam um discurso subliminar de apologia ao comunismo,

contrário aos bons e velhos costumes cristãos.

Imerso nessa realidade, descapitalizado financeiramente e incapacitado de

resistir às demandas do mercado, no ano de 1942, Aizen decidiu vender o Grande

Consórcio ao governo, utilizando, como intermediário nas negociações, o seu sócio e

amigo, o coronel João Alberto. Essa foi a jogada de mestre de Adolfo Aizen, pois, além

de ter todas as suas dividas quitadas e seus funcionários com os empregos mantidos, foi

convidado a participar da direção, assumindo a coordenação das revistas em quadrinhos

do jornal A Noite, com uma excelente renumeração. Com o dinheiro dos cofres públicos

ele rearticulou-se e, em 1944, para comemorar os dez anos de lançamento do

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Suplemento Juvenil produziu um álbum que contava, em quadrinhos, a história da

fundação do tablóide. Em 1945 decidiu deixar o emprego e fundar uma nova empresa,

a Ebal – Editora Brasil-América que passa a publicar quadrinhos e passatempos Disney,

entre outras publicações. Em 1947, a Ebal produzia a sua primeira revista em

quadrinhos.

Em meio a essa trajetória, os heróis negros continuavam não-representados

nas páginas das Historias em Quadrinhos importadas por Adolfo Aizen, ou nas

produzidas por ele no Brasil. Seu silêncio em relação ao povo negro foi eficaz em vetar

qualquer movimento de integração destes às páginas dos quadrinhos, além de alicerçar

nossa relação de dependência dos Estados Unidos, no que tange a essa arte. Além do

que não existiam revistas internacionais com tal temática para ser importada, e o único

étnico negro produzido no mercado, a revista All Negro Comics, em 1947, pelo

jornalista Orrin Cromwell Evans, membro negro da Associação Nacional pelo

Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), entre outros cartunistas, circulou uma única

vez.

Em lugar de atuar como um espaço representativo para todos, a produção dos

quadrinhos no Brasil, funcionou como mais uma forma de colonização, pois o que

realmente importava era introduzir as HQs como um bem de consumo, que ostentasse

força e poder e vantagem financeira. Assim, alguns empresários nacionais tornaram-se

cosmopolitas, desnacionalizaram-se15

– e saíram em defesa do expansionismo

capitalista.

Embora existam estudiosos que apontam a necessidade de se levar em

consideração a formação ideológica-material do período, tentando justificar os fatos,

isso não apaga as escolhas “inapropriadas” ou “insuficientes” de cada um em relação

aos demais. Nos quadrinhos poder-se-ia ter criado caminhos alternativos, tácitos, cuja

representação também agregasse personagens de etnia negra, mas optou-se por seguir

um modelo capitalista, estereotipado, preconceituoso e racista. Essas apropriações de

fórmulas prontas para o sucesso têm se mostrado calamitosas para os que se encontram

nas áreas periféricas: alcança-se a industrialização, no caso da imprensa e da produção

de quadrinhos, mas se continua a reforçar as desigualdades sociais mantendo perenes as

relações etno-excludentes.

15

Conforme Cuti (2010), os estrangeiros imigrantes que aqui chegaram mantiveram uma forte ligação

com suas origens étnicas. Podemos ver esses traços identitários na comunidade negra, mas tal identidade,

no caso dos brancos, “[...] exerce sua força contrária à identificação com os segmentos de povos que eles

consideram inferiores” (CUTI, 2010, p. 23).

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2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS

Em constante processo de transitoriedade e atreladas a um mercado que crescia

de forma significativa, as HQs pari passu inovaram-se. Com uma elasticidade plástica

tão singular e ao mesmo tempo tão dialógica, novos traços gráficos, formas e conteúdos

foram sendo adicionados e reorganizados nos requadrados, estabelecendo uma relação

simbiótica entre imagem e texto.

Neste entrelaçamento verbal e icônico, os quadrinistas não pararam de jogar.

Jogaram com seus heróis, códigos e leitores (QUELLA-GUYOT, 1990). Montaram,

desmontaram, combinaram e numa transgressão jubilatória construíram narrativas

genuinamente nacionais, através de quadrinistas fantásticos, como Jayme Cortez,

Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya, entre outros.

Com histórias incríveis estes quadrinistas revelavam e transmitiam o clima da

época - anos 50, que não era dos mais favoráveis a produção de quadrinhos nacionais

devido ao esquema instituído para a distribuição de HQs internacionais.

Economicamente, era mais rentável investir em produções internacionais, pois estas

chegavam ao país a baixos custos, cabendo às editoras a responsabilidade apenas de

traduzi-las, reproduzi-las e distribuí-las. Curiosamente, as revistas ou os suplementos

que divulgavam essas histórias eram quem primeiro ficava famosa no Brasil e não as

personagens (BIBE-LUYTEN, 1985).

Como exemplo, podemos citar a revista Gibi, editada pela Editora Globo, sob

a administração de Roberto Marinho, no ano de 1939. Essa revista ficou tão popular

entre os seus leitores, entabulando uma identidade visual tão significativa - desde a

capa, ao seu interior, apresentando atrativos, como passatempos, anedotas e Histórias

em Quadrinhos, estimulando o imaginário daqueles -, que o seu nome e logomarca

tornaram-se a forma como as HQs passaram a ser conhecidas durante muito tempo no

país. A palavra Gibi, que significa moleque, menino negro, e que possuía um sentido

pejorativo ancorada no conceito de inferiorização, construído em torno da comunidade

negra, passou a intitular revista de HQs (BIBE-LUYTEN, 1985).

Apesar de a experiência ter sido bem sucedida, pela força do uso da imagem e

da palavra, tanto na sua produção quanto no consumo, em contexto prático, para os

quadrinistas nacionais, assim como para a comunidade negra, não foram

disponibilizados espaços nas suas páginas. A revista manteve-se publicando Histórias

em Quadrinhos com personagens estrangeiros e jamais personificou o seu mascote - a

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personagem negra que dava nome a revista e aparecia na capa-, dando-lhe o papel de

personagem em uma das suas narrativas ( BASÍLIO, 2005).

Isto se deu porque as sociedades, de um modo geral, são autoritárias. E

embora busquem ser libertárias estão presas aos seus paradigmas, e não conseguem

reconhecer-se na condição do outro, o sujeito ali explicito. Baseando-se na ignorância

que é o colonialismo, vê o outro como objeto. É muito complexo desconstruir os

princípios de ordem estabelecidos sobre as coisas e sobre os outros, fundados em bases

individualistas e centralizadoras, o que nos dificulta implementar formas de

conhecimento que funcionem dentro do principio da solidariedade. Essas disparidades

inquietavam a comunidade negra e os quadrinistas da época, que, na contramão do

processo, buscavam elaborar práticas exitosas que rompessem com os paradigmas pré-

estabelecidos pelo grupo hegemônico.

Na busca por esse objetivo nas páginas dos quadrinhos, Jayme Cortez, Miguel

Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya organizaram a Primeira

Exposição Didática Internacional de História em Quadrinhos, em São Paulo, em 1951,

com o propósito de dar visibilidade às narrativas, ao mesmo tempo em que propunham

essa arte. Não uma arte pensada na esfera da autenticidade, na qual se valoram tradição,

originalidade e testemunho histórico, todos dentro de um complexo sistema hierárquico

de valores. Essa nouvelle art, o quadrinho, expresso em seus próprios moldes, imagem e

texto, seria uma forma de profanar o sagrado e destruir as auréolas construídas em torno

deste conceito. Em nenhuma instância destituindo o valor das artes primeiras, mas

fragmentando a autoridade e o peso tradicional das coisas, modernizando-as16

(BENJAMIN, 1985).

Um evento de tamanha magnitude acabou por despertar o interesse da

imprensa e dos críticos pelas HQs e estimulou os quadrinistas a criarem a Associação de

Desenhistas de São Paulo – ADESP (CAGNIN, 1975; GONÇALO JUNIOR, 2004). Na

associação, temas como baixos salários, ausência de vinculo trabalhista,

profissionalização da categoria e supremacia dos quadrinhos internacionais norte-

americanos sobre os nacionais encontravam-se sempre em pauta. Realidade que já

16

Segundo Benjamin, a aura “[...] é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a

aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de

verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa

respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais

específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente

ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ‟ficarem mais

próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter

único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.” (BENJAMIN, 1985, p. 170).

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ocorria no Rio de Janeiro desde 1949, através da Associação Brasileira do Desenho -

ABD. Juntas, ADESP e ABD interligaram-se para solicitar do Presidente da República

em vigor, Getúlio Vargas, a criação de uma lei que nacionalizasse as HQs e que

obrigasse as editoras a disponibilizar um espaço para a produção dos quadrinistas

nacionais. Os proprietários das editoras contestaram, afirmando que o preço cobrado

pelos profissionais não era condizente com o que poderiam pagar. Porém, antes que as

negociações se concretizassem no ano de 1954, Vargas cometeu suicídio (GONÇALO

JUNIOR, 2004, p. 176). E como alguns paradigmas fortes tendem a permanecer muito

tempo, essas discussões e contestações chegaram ao século XXI.

Enquanto os quadrinistas seguem na direção acima destacada, a comunidade

negra se manteve envolta na busca de equidade de direitos socioeconômicos, políticos e

étnicos. Embora estivesse à margem desse processo político ligado à produção de HQs,

suas lutas e as de tantos outros brasileiros, cada vez mais evidenciadas, começaram a se

refletir nos requadrados, através dos novos discursos adotados pelos quadrinistas, que as

HQs passam a assumir.

De um lado quadrinhos libertários, do outro, quadrinhos “enlatados” com

editoras que almejavam manter seus formatos, porque estes lhes propiciavam excelentes

margens de lucros. Em resumo, enquanto as HQs travavam a “guerra dos gibis”

(GONÇALO JUNIOR, 2004, grifos nossos), a comunidade negra travava outras

guerras, buscando desenvolver ações que contribuíssem para a afirmação da sua

cidadania. Como, por exemplo, a realização do I Congresso do Negro Brasileiro, que

ocorreu em 1950, ano anterior ao da exposição, sob a responsabilidade do Teatro

Experimental do Negro, liderado pelo ativista negro Abdias do Nascimento (foto na fig.

5) entre outros.

Figura 5 – Abdias do Nascimento

Fonte: INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS – INESC. Disponível em:

<http://www.inesc.org.br/notícias-gerais/2011/m1io/morre-abdias-do-nascimento-militante-do-

movimento-negro/image>. Acesso em 10 jan. 2013.

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O Congresso teve como objetivo pensar estratégias de intervenção que

melhorassem a situação do povo negro brasileiro elevando sua qualidade de vida, seu

nível educacional, sua posição social e seus salários. Essas conquistas, na medida em

que fossem se estabelecendo, ocasionariam, gradativamente, a inserção da comunidade

negra em outros contextos sociais, inferindo-se também que poderiam ser aplicadas

também às HQs. Era o pensamento que vigorava entre sonhos e utopias na década de

1950.

Alguns anos depois, mais especificamente na década de 1980, Abdias do

Nascimento, lançou-se a fazer uma análise acerca dessa década e do evento em questão.

Este, afirmou que nesse período a comunidade negra encontrava-se motivada por uma

consciência política crescente, mas, por outro lado, guardava dentro de si um espírito

apaziguador. Isso levou-os a esquecer que, durante todo e qualquer processo de

negociação e de reconhecimento, fazem-se necessários o estabelecimento de limites e a

previsão de normas de contenção, quando ocorram situações que as excedam. Assim,

o Congresso fora aberto para pesquisadores brancos “[...] que se autointitulavam

„homens da ciência‟[...]” (NASCIMENTO, 1982, p. 59), sem que fossem pensadas as

consequências de tal ação. Na verdade, acreditava-se que essa abertura incentivaria o

estabelecimento de novas redes de comunicação e modificaria as fronteiras do saber e

do poder, redefinindo as formas de funcionamento na organização social.

No entanto, nada disso, naquele dado momento, aconteceu, pois foi cometido

o equivoco de se homenagear, um cientista - Nina Rodrigues -, que “[...] considerava o

negro como fator de inferioridade do povo brasileiro [...]” (NASCIMENTO, 1982, p.

10), além de se ter dado tamanho poder aos pesquisadores, que estes, ao final do evento,

tomaram para si a responsabilidade de redigir e assinar o documento final do evento,

representando o povo negro. Felizmente, a assembleia, por saber-se apta a se autodirigir

e contrária ao paternalismo oferecido, rejeitou a ideia (NASCIMENTO, 1982).

Os pesquisadores haviam participado do Congresso atrelados às concepções

colonialistas e não conseguiram reconhecer no outro o sujeito ali explicito. Mas, ao

lado desse binômio saber e poder, oscilava o binômio acomodação e resistência, e o

povo negro continuou a resistir.

Na década subsequente, um novo modelo de grilhão instaurado na sociedade

brasileira, a ditadura militar, no ano de 1964. E, assim, povo e quadrinho - aqueles que

assumiam um contradiscurso -, que já vinham sofrendo as resistências e as dificuldades

de sua inserção social, passam a sofrer todo o tipo de repressão: fechamento de

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organizações políticas, do Congresso Nacional, de instituições voltadas para a educação

popular, delimitando-se o que poderia ser estudado nas escolas e nas universidades;

censura, discriminação, preconceito; militantes da esquerda presos, torturados, exilados

e mortos. Nessa perspectiva, falar de questões étnico-raciais tornou-se tabu.

No entanto, parte da sociedade mantinha ativos movimentos de resistência ao

militarismo, seja por meio das narrativas quadrinizadas ou da imprensa alternativa,

seja através dos bons frutos dado pelo Cinema Novo, com Glauber Rocha, que

propunha uma estética da fome. Além disso, através da poesia concreta; da formação

dos grupos da esquerda; das organizações políticas ou dos protestos públicos que foram

às ruas, solicitando a instauração de um sistema de governo democrático no país

(CIRNE, 1983). Todos os participantes desses movimentos desejavam libertar-se do

regime, que obstruía ou os impedia de movimentar-se, para poderem sentir-se livres.

Convém ressaltar, em meio a todo esse complexo processo social, dois

quadrinistas: Maurício de Sousa e Ziraldo. O primeiro ingressou no universo

quadrinístico no ano de 1959, com a personagem Bidu, um cachorro que pertencia ao

personagem Franjinha, porém sua grande notoriedade aconteceu a partir da década de

1960. Nessa revista, além de Franjinha, havia outras personagens - meninos, todos sem

identidade, inclusive um de etnia negra que, supostamente, afirma-se ser o Jeremias, o

mesmo que, na atualidade, participa das narrativas quadrinizadas que consagrou o

universo da Turma da Mônica (CHINEN, 2013).

Nesse período Jeremias “[...] era representado basicamente como uma elipse

com duas bolas brancas menores servindo de olhos” (CHINEN, 2013, p. 148) (fig. 6).

Ao longo dos anos ele foi gradativamente se tornando marrom, e mantendo nas

narrativas o seu posicionamento de personagem coadjuvante (fig. 7). Convém lembrar

que Mauricio de Sousa sempre construiu personagens planos, com temas universais,

sem qualquer posicionamento político. As revistas mantêm “[...] uma neutralidade

política com exceção de uma ou outra crítica [...]” (CHINEN, 2013, p. 149). Segundo

Ana Célia da Silva (2001), construções de narrativas e de personagens como esses, em

posição de subordinação, contribuem para a fragmentação da identidade e autoestima do

povo negro.

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Figura 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias

Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu. São Paulo: Editora Continental, 1960. (capa).

Figura 7 - Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade

Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu 50 anos. São Paulo: Panini, 2009 (capa).

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Uma das raras exceções cometidas por Maurício de Souza ocorreu muitos

anos depois, em 2009, na revista Cebolinha, edição de número 30, quando ele deu uma

voz de identidade negra ao personagem Jeremias (fig. 8). Maurício de Souza, a partir

dos pronunciamentos do atual presidente da República Barack Obama, que sempre

citava o líder negro Martin Luther King durante sua campanha presidencial, se

apropriou desta temática para criar uma narrativa icnográfica. E assim, os Estados

Unidos da América tornou-se a Vila do Limoeiro, onde funcionava o clube dos

meninos, que, no momento atual, encontrava-se sem presidente. As personagens

Cebolinha e Jeremias, tomando conhecimento da necessidade de preenchimento dessa

vaga, decidem candidatar-se à presidência do clube. Durante os discursos em defesa do

cargo, Jeremias cita o discurso de Luther King “eu tenho um sonho!” e vence a eleição.

Figura 8 – Jeremias em campanha presidencial

Fonte: SOUSA, Mauricio de. Cebolinha. São Paulo: Panini, nº30, jun 2009, p. 59.

Quanto a Ziraldo, mesmo imerso entre as tensões sociais e a repressão,

produzia um quadrinho adverso à ditadura militar. Sua personagem Pererê (fig. 9),

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lançada na revista do mesmo nome, pela Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A. em 1960,

obteve grande sucesso.

Figura 9 – Pererê

Fonte: ZIRALDO. Pererê. São Paulo: Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A., 1960 (Capa).

As histórias fizeram realmente tanto sucesso, que, na edição de dois anos, o

artista decidiu apresentar ao público-leitor o mito originário da personagem, totalmente

configurado nos moldes das ideias nacionalistas difundidas. Ziraldo (1962, p. 34)

afirmava que, entre as suas narrativas com seus respectivos personagens que

circulavam, Pererê era muito diferente; primeiro porque havia nascido anteriormente ao

seu projeto gráfico e segundo porque nele víamos, em termos nacionais, a representação

da história do Brasil. surge

O Saci Pererê17

foi criado pelo imaginário popular, marcado pelos três povos

que aqui circularam: negros, índios e brancos. No principio, ele era um índio de uma

17

A figura do Saci Pererê, antes de configurar as páginas das Histórias em Quadrinhos, assumindo uma

representatividade nacional, através de Ziraldo, se fez presente no livro de escritor brasileiro Monteiro

Lobato, O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, publicado em 1918, onde o autor afirma que a criação

desta figura folclórica é a resultante bem sucedida da união entre os três grupos étnicos raciais que

compunha o país: índios, negros e brancos. Essa produção nasce em oposição ao europeísmo vigente em

solo nacional, objetivando resgatar o imaginário popular. No entanto, esta tentativa de resgate da-se de

maneira contundente, pois o Saci que circula possui características negativas. Dois anos posteriores,

1920, o autor, lança a obra O Saci. Nesta obra o Saci já aparece como uma figura ambígua, que diverte-se

exercendo atos infratores, que vão de encontro às regras e às normas. Aclamado por um lado, contestado

em outros, o Saci Pererê ganhou grande repercussão nacional ao fazer parte das narrativas da obra O Sítio

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perna só, com cabelos da cor do fogo e chamava-se Yaci Yatererê (ZIRALDO, 1962).

Quando os negros chegaram do continente africano, escravizados, esse cuidador das

florestas foi enegrecendo na medida em que homens e mulheres negros se apropriavam

do mito indígena, dando-lhes novos significados (ZIRALDO, 1962).

Segundo Vieira (2009), o Saci Pererê refugiava-se nas florestas, nos

quilombos para protegê-los. E seus poderes, que eram muitos, possibilitavam-lhe fugir

das armadilhas criadas para o seu aprisionamento. Assim, ele nunca foi capturado e

levado a cativeiro. Ao povo branco, retomando a narrativa de Ziraldo, coube colocar-

lhe o gorro vermelho, ou barrete vermelho. E assim, o Yaci Yatererê tornou-se o Saci

Pererê e passou a habitar as nossas terras. “O saci é alegre, ágil, inteligente, sonhador, e

sagaz, matreiro, simpático, corajoso, sabe dar sempre um jeito para tudo. É o Brasil. O

saci está em cada um de nós, da favela aos cafezais [...]” (ZIRALDO, 1962, p. 34).

Ziraldo apropriou-se de um mito folclórico brasileiro para criar o Saci Pererê, uma

entidade mágica, lendária, despossuída de humanidade. Sendo assim,

[...] o mais bem sucedido personagem negro das Histórias em Quadrinhos,

não é um ser humano ou animal, mas uma entidade mitológica, pertencente

ao folclore brasileiro. Ou seja, o negro mais famoso dos quadrinhos

brasileiros é alguém que não existe, que não serve de modelo ou ideal ao

leitor negro. (CHINEN, 2013, p. 104).

Observamos em Maurício de Souza e Ziraldo que a assimilação e a

reprodução do imaginário brasileiro sintonizam-se ainda com o projeto colonial, mesmo

quando estes reatualizam suas obras. Decerto isso se dá porque, neste período, pensar

quadrinhos no contexto das relações étnico-raciais era algo muito difuso. Sabia-se que a

população negra não era inferior a outros grupos sociais, mas não se sabia ainda como

mediar tal conhecimento, principalmente porque as visões societais eram

homogeneizadas na tentativa de simular uma igualdade inexistente entre os cidadãos

que compunham a sociedade. Assim, essas representações acabaram por materializar o

discurso hegemônico, mesmo que sem uma intencionalidade, embora Moacy Cirne

(1983) conteste essa ideia ao afirmar que não existem quadrinhos inocentes, posto que

todos são políticos.

do Pica-Pau-Amarelo de autoria de Lobato, lançado em 1920, cuja função ao lado do entretenimento,

agregou elementos responsáveis em criar uma identidade nacional da qual bebeu Ziraldo fortalecendo a

tradição.

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Diante do exposto, mais uma vez, as análises de Abdias do Nascimento nos

incitam a

[...] virar esse conhecimento eurocentrista de cabeça para baixo, sacudí-lo até

remover o lixo e construir no vazio uma nova epistemologia. Incorporar-lhe a

experiência e o saber dos povos afro-descendentes em suas várias dimensões,

vistos da sua ótica e expressos na sua própria voz, possibilitando a

reconstrução da civilização e da soberania dos nossos antepassados no

Continente e o redimensionamento das culturas e histórias de luta forjadas

por nós, seus descendentes, na diáspora. [...] Para isso, não adianta fingir

„esquecer‟ o legado racista ou fazer de conta que ele perdeu sua influência. É

preciso examiná-lo, identificá-lo nas suas novas sutilezas, e sobretudo

desvelá-lo no silêncio que reforça a exclusão discriminatória.

(NASCIMENTO, 2000, p.1).

Entender esse processo difuso é crucial para a implementação de uma prática

quadrinística voltada para o desenvolvimento pessoal, social, com preocupações

formativas, além de informativas e econômicas. A década de 1960, mesmo

apresentando essas problemáticas, destacou-se das demais porque nela vimos uma

fagulha de esperança de ruptura dos conteúdos ideológicos presentes nas narrativas

quadrinizadas, resultante das pressões que foram articuladas em torno das

reivindicações propostas pela comunidade negra.

Havia um mundo cheio de possibilidades impondo seus desafios, e, para

superá-los, mais e mais indivíduos precisavam aderir à causa, contrapondo-se às

concepções e aos discursos oficiais. É isso que o momento pedia: ação, transformação,

comprometimento com as mudanças.

2. 3. NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES

No decorrer das décadas de 1970 e 1980 o Movimento Social Negro se

intensificou através de ações políticas, culturais, literárias, artísticas, entre outras. Esses

movimentos promoveram frentes de luta, tentando modificar o quadro de injustiças e

desigualdades impostas à comunidade negra brasileira. Entre as estratégias, adotaram

um discurso estético-étnico de afirmação e valoração positiva dos fenótipos negros, na

tentativa de desbancar a ideologia do branqueamento, que, de forma eficaz, vinha

alienando os processos identitários negros.

Assim, sob forte influência dos movimentos civis que vinham acontecendo

nos países que apresentavam uma multiplicidade de povos descendentes de uma África

negra, a comunidade negra brasileira começou a delinear novos rumos para si, bem

como a pensar em suas condições de existência, com vistas a conquistar a sua

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emancipação. Para tanto foi imprescindível o estabelecimento de uma rede de

cooperação entre a sociedade civil africana e as comunidades diaspóricas em luta por

justiça social.

Todos esses espaços em movimentos de insurgência reavivaram, no Brasil,

não só as lutas sociais da classe operária, que, articulada politicamente, lutava contra a

ditadura e a exploração da força do trabalho, através de constantes greves nas áreas

industriais, como também contribuíram para o avanço na luta contra o racismo. Fatos

como esses, somados a tantos outros, com seus desdobramentos, provocaram uma

revisão crítica acerca do papel da comunidade negra na sociedade brasileira,

desencadeando a criação do Movimento Negro Unificado – MNU, em 07 de junho de

1978.

Esse movimento acreditava ser possível desestabilizar a ideologia do

branqueamento, que fora incutida de forma eficaz na comunidade negra através da

alienação dos seus processos identitários. Alienação instaurada por meio do discurso

Estatal, que preconizava ser o país um espaço de igualdade para todos, onde inexistiam

a prática do racismo e da discriminação racial. A comunidade negra, ao ver-se inserida

nesse contexto dito de oportunidades igualitárias, sem, no entanto, conseguir ascender

socialmente, internalizava que ela própria era responsável pelos fracassos que

vivenciava. A construção dessas representações aumentava seu sentimento de

inferioridade e diminuía o seu poder argumentativo contestatório. De forma perversa ia

associando pertencimento étnico-racial a êxitos financeiros satisfatórios e inferindo que,

para ascender socialmente, era necessário assumir para si as normas e padrões

comportamentais da cultura branca.

No entender de Munanga (2008) esses princípios norteadores, não

democráticos, erigidos pelo grupo hegemônico, através de coerções políticas e

psicológicas, possuem um cunho assimilacionista. Sendo necessário um contíguo

esforço de luta e rejeição assim como intermitentes mobilizações em diferentes setores,

para desestabilizá-los; em especial nos setores de base popular, que precisam ser

convencidos, através da ação, reflexão, sedução e paixão, acerca da importância da sua

efetiva participação política para que essas mudanças se concretizem. Uma proposta de

difícil execução, pois, como bem sabemos, não existem respostas prontas para a

resolução de tantos problemas, tampouco fórmulas mágicas que venham a satisfazer

essas inquietações/reflexões.

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As inferências básicas decorrentes dessa realidade é que o processo fora

deflagrado e necessitava contar com a solidariedade e o apoio de todos os segmentos de

comunicação e formação: televisão, cinema, teatro, imprensa, educação etc.

Há múltiplos espaços que nos ensinam e/ou contribuem para o

reconhecimento da identidade étnico-racial, e as HQs alternativas entram nesse

empreendimento através da sua arte gráfica discordante, ao propor, mesmo que em

número bastante reduzido de publicações, a engrenagem de uma sociedade em reais

condições de democracia, verdadeiramente plurirracial e pluriétnica (MUNANGA,

2008).

No entanto, mesmo esses quadrinistas que almejam fazer emergir um

discurso não subalterno, segundo Chinen (2013), adotavam o uso de traços

desproporcionais e caricaturização ao representar o negro no papel, a exemplo de

Henfil, fazendo-nos pensar sobre a legitimidade dessas obras: nelas há ou não há a

presença do preconceito, do racismo e da discriminação? Necessita-se de uma

estilização, que sugira inferioridade, sob a justificativa de tornar o entendimento mais

imediato ao leitor? O autor afirma, ainda, que não há uma intencionalidade, por parte

dessas obras, de manutenção desses velhos paradigmas e que, ao longo do processo

histórico, esses pensamentos foram desconstruídos, através do conteúdo e narrativas

propostas. Para Chinen, não existe uma intencionalidade de ofender os negros, mas sim

de denunciar as mazelas e as situações de miserabilidade em que vivem e de condenar

essas práticas (CHINEN, 2013).

No entanto, os traços nos incitam outras ideias. Em Henfil ainda podemos

ver espelhadas as representações sociais das relações étnico-raciais no país, ainda que

não fossem pretendidas pelo autor. Tais imagens, neste período e na atualidade, têm

sido contestadas em favor de uma representação positiva, na qual a comunidade negra

possa se ver e se reconhecer.

Com Henfil, Edgar Vasques, Arnaldo Angeli Filho, Luscar, Edmar Viana,

entre outros quadrinistas, em meio às dificuldades e à repressão, ascende um discurso

dos excluídos. Nas suas tiras, passado e presentes históricos escamoteados pelo mundo

branco, são denunciados. Esses autores, mesmo não sendo negros, assumem o discurso

do ser cidadão18

.

18

Vale a pena reforçar, consoante Bauman (2001, p.45), que o cidadão “é uma pessoa que tende a buscar

seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade”; é aquele que pensa em coletividade, com um

nítido objetivo, que é a promoção da igualdade.

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Para além dos essencialismos, esses quadrinistas apoiaram, concreta ou

graficamente, a comunidade negra, ao disporem seus traços diferenciais e sua

irreverência a favor da construção de um futuro mais solidário e justo, abordando um

tema considerado tabu pelos censores, como condição imposta pela ditadura, e

financeiramente desinteressante para o mercado.

Nessa sociedade de desigualdades e imposições, surge Henfil, com seus dois

Fradins (Frades), o Baixinho e Cumprido, denunciando a hipocrisia e o falso moralismo

nacional, este de forma mais comedida, aquele de forma mais revolucionária, utópica e

anárquica. Inicialmente, essas personagens foram publicadas na revista Alterosa, em

1964, posteriormente, pelo Pasquim, até que, em 1971, apareceram numa revista própria

chamada Fradim.

Nessa publicação havia personagens negros memoráveis e polêmicos, como o

Preto que Ri, que possuía todos os traços de Baixim, com exceção da sua cor. Ele ria

sem controle diante das situações adversas que enfrentava, destoando das normas

comportamentais consideradas politicamente corretas, ocasionando situações inusitadas

e conflituosas (CHINEM, 2013, p. 159).

Mesmo tendo revista própria, Henfil não deixou de publicar no Pasquim, e,

em 1972, lançou as tiras do Cabôco Mamadô (fig.10), que era proprietário do Cemitério

dos mortos-vivos, local onde enterrava pessoas que, de forma direta ou indireta,

contribuíam para alicerçar o regime ditatorial ou se omitiam politicamente dos

problemas que assolavam o país (CHINEM, 2005, p.159).

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Figura 10 – Cabôco Mamadô

Fonte: HENFIL. Cabôco Mamadô. O Pasquim. Rio de Janeiro, n. 147, p. 7, 25 mar. 1972.

Essa publicação ocasionou inúmeros protestos contra os sepultamentos

simbólicos, pois eram considerados, por alguns, como extremamente radicais, do que

Henfil discordava, visto que seu alvo eram as atitudes, não as pessoas. Sendo assim,

seguia afirmando que cobrava das pessoas apenas atitudes coerentes em favor de uma

coletividade, não de uma individualidade. Cantores, como Elis Regina, Roberto Carlos,

além do jogador Pelé, fizeram parte desse fúnebre-humorístico-crítico sepultamento.

Portanto, era através de personagens como esse e de outros não-negros que o artista

dava voz aos problemas sociais que atravessavam o país (MORAES, 1996).

Ainda nas controversas tiras de Henfil, podemos ver, através da ave Graúna

(fig. 11), “mediante simbolismo de fuga” (MUNANGA, 2008, p. 113), esta zona

flutuante na qual se encontra um número significativo de sujeitos negros em busca de

ascensão social, seja através do ingresso na universidade, seja de mudança financeira ou

do estilo de vida. Dessa forma, o artista denunciava os discursos racistas velados

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propagados, como, por exemplo, de que os negros só poderiam ser bem sucedidos

financeiramente se praticassem algumas mobilidades esportivas ou artísticas.

Figura 11 – O Bode Orelana e a Ave Graúna

Fonte:HENFIL. O Bode Orelana e a Ave Graúna. Arte, HQ, Interdisciplinaridade. Disponível em: <

http://arte-hq-interdisciplinar.blogspot.com.br>. Acesso em: 04 jan. 2012.

Essa mesma direção, com um quadrinho de crítica social, segue o artista

Edgar Vasques, produzindo a série Rango (fig.12), publicada, inicialmente, na revista

Grillus, em 1970, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul. A partir de 1973, a personagem passa a ser publicada no

jornal Folha da Manhã. As narrativas quadrinizadas tinham como pano de fundo a

situação de miséria em que vivia uma parcela da sociedade brasileira. Parafraseando

Glauber Rocha19

, as imagens traçadas pelo artista assumem uma estética da fome, mas,

19

“A “Estética da fome” é uma das mais conhecidas referências quando se discute o Cinema Novo

brasileiro, bem como o seu autor, Glauber Rocha, que pode ser visto como representante-símbolo desse

movimento cinematográfico, que consolida o cinema nacional como manifestação artística nos anos 1960.

Trata-se de um manifesto para justificar política e esteticamente os primeiros filmes cinemanovistas,

dirigidos originalmente a uma plateia de críticos e cineastas reunidos na Europa para debater o cinema

latino-americano” (CARVALHO, 2012, p. 902). É na fome do povo brasileiro em situação de

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em linhas diferenciais, utilizam a linguagem do humor. As personagens Rango, seu

filho e um idoso, ambos sem nomes na narrativa, Jejum (fig.13) e Prévio; os dois

últimos, uma criança e um adulto negros, entre outros, são magras, sujas, esfomeadas e

suas ações giram em torno de um único objetivo, comer.

Figura 12– Rango e sua turma

Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. In CHINEN, Nobuyoshi. O papel do negro e o negro no papel:

representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros. São Paulo.

Doutorado (Tese). Escola de Comunicação da USP, 2013, p. 161.

Seus nomes aludiam a uma condição humana que a população brasileira

relutava em aceitar como verdadeira ou real. Essas personagens, ainda hoje, fazem

sentido, pois encontram eco em nossa sociedade, caracterizando uma das faces sociais e

econômicas do país.

Figura 13 – Jejum em uma pelada de futebol

Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. Disponível em:

<http://3.bp.blogspot.com/_SjBUFj3jDSY/RvkqWyUorPI/AAAAAAAABow/tkEjeHoOgmM/s400/rango

_jejum.jpg>. Acesso em: 12 mar. 2013.

miserabilidade que o cineasta ancora o seu trabalho. Essa fome quer ser escamoteada pelos governantes,

mas, pela impossibilidade de escondê-la, torna-se mola propulsora para o processo de descolonização

cultural e cinematográfica.

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Foi também na década de 1970 que outro quadrinista, Arnaldo Angeli Filho,

lançou-se no mercado como colaborador do jornal Folha de São. Paulo. Seu primeiro

trabalho nesse jornal, lançado em 1974, no suplemento infantil Folhinha, sob o formato

de painéis de página inteira, intitulava-se Feijão (fig. 14), um menino negro que não

falava, mas que circulava sozinho pelas ruas da cidade. Os três painéis de páginas

inteiras, produzidos pelo artista, só circularam três vezes durante o ano em questão,

levando-nos a supor que tal ocorrência deveu-se ao espaço reservado de forma severa,

restrita e excludente a temas sobre a comunidade negra.

As três narrativas dos painéis deixam transparecer que a personagem possuía

um espírito solidário, reflexivo, questionador e revolucionário. A escolha pelo painel de

número dois (fig. 14) deu-se em conformidade com a temática em discussão, pois,

através dos quadros, a personagem levou-nos a refletir sobre as estratégias contra-

hegemônicas que vinham sendo adotadas pela comunidade negra em solo nacional e que

podiam contribuir para que o negro se colocasse em outros lugares. No primeiro quadro,

a personagem encontra-se olhando fixamente para o busto de um homem de fenótipos

brancos. A personagem olha, reflete, mas não consegue estabelecer uma relação

identitária com a imagem. No segundo quadro ela decide sair de cena. Ao retornar, no

terceiro e último quadro, traz consigo as ferramentas necessárias para pintar a estátua na

cor preta, e o faz sorrindo, construindo, assim, seu processo de identificação.

(CHINEM, 2005, p.159).

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Figura 14 – Feijão

Fonte: ANGELI FILHO, Arnaldo. Feijão. Folha de S. Paulo. Caderno Folhinha. São Paulo, 14 de abril

de 1974.

Nesse painel, Angeli trata de um tema controverso, a ausência de panteões de

heróis negros nacionais homenageados, seja nas Histórias em Quadrinhos ou em outros

contextos. Corpos negros perceptíveis nas malhas sociais, que necessitavam ser

frequentemente citados, ilustrados, para que, constantemente relidos, pudessem ser

transformados em um espaço de significações que permitissem ao povo negro inspirar-

se em um outro, também negro, dando-lhes as condições necessárias para a construção

de uma identidade baseada na igualdade e no reconhecimento positivo.

Na década de 1980, surgiram outras histórias em quadrinhos, ainda usando

como tema de fundo a situação dos menos favorecidos. Dentre elas, podemos citar:

Pivete, de Edmar Viana, em 1980, no jornal Tribuna do Norte; Dr. Baixada, de Luscar,

em 1982, publicado no Jornal do Brasil; El Negro, de Lor, em 1988, no jornal Estado

de S. Paulo; Zé da Prancha, de Marigonni, em 1988, também no jornal Estado de S.

Paulo.

Durante esse período, destacamos dois outros trabalhos: o primeiro é Casa

Grande sem sala (fig. 16), publicada em 1981, no O Pasquim, criação de Bonifácio

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Rodrigues de Mattos, também conhecido como Ykenga (fig. 15). Um aspecto inédito,

utilizando-nos das palavras de Jaguar, ditas no jornal O Pasquim há trinta e dois anos, é

que Ykenga é o primeiro quadrinista e cartunista negro a produzir narrativas

icnográficas para e em defesa dos negros.

Figura 15 - Ykenga

Fonte: YKENGA. Blog do Ykenga. Disponível em:

<http://blogdoykenga.blogspot.com.br/2011/12/o-primeiro-cartum-ninguem-esquece.html>. Acesso em:

12 mar. 2012.

A narrativa se passa em uma favela carioca, e entre as personagens principais

encontram-se Joãozinho Tresitão (fig. 16), uma criança, e o Vovô Oba, ambos negros.

Joãozinho, na centralidade da história, contracena com Maria Zinha; os dois são

crianças em situação de abandono, convivendo em um ambiente muito próximo à

marginalidade. Realidade que fere os princípios propostos na Declaração dos Direitos

das Crianças, instituída em 20 de novembro de 1959, durante uma Assembléia Geral

nos Estados Unidos, que afirma ter, toda criança, direito a proteção, cidadania, saúde,

educação e a viver em um ambiente seguro, longe do preconceito

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FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão

Fonte: YKENGA. Joãozinho Tresitão. O Pasquim. In: FUNARTE. Portifólio. Rio de Janeiro: Agência

Funarte, s/d.

E o segundo trabalho é o de Laerte, outro quadrinista, que lançou, em 1988,

na revista Geraldão, em apenas uma edição, a história Ilha Grande & Senzala. Como

Ykenga, Laerte satirizava a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933). Na

narrativa, o quadrinista abordou a trajetória percorrida pelo povo negro escravizado,

desde as condições sub-humanas vivenciadas nos porões dos navios negreiros às vividas

nos camburões (fig. 17). Na ação da policia, observamos a prática do preconceito

contra o negro, que era sempre visto como um suspeito em potencial. O que nos

remete, no contexto atual, à necessidade de implantação de projetos de conscientização

da juventude negra, e a sociedade na sua totalidade sobre a iminência do combate ao

racismo institucional. Em São Paulo, e em outras partes do país, tem se desenvolvido

campanhas neste sentido, entre as quais “Eu pareço suspeito?”, com o objetivo de

desconstruir o estereotipo, frente às forças policiais, de que equacionam a etnia negra, e

sua situação econômica de pobreza, a marginalização e a criminalidade.

A música, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, composta por

Marcelo Yuka, cantada pelo grupo O Rappa, traduz isso muito bem, como podemos

observar no fragmento a seguir:

É mole de ver

Que em qualquer dura

O tempo passa mais lento pro negão

Quem segurava com força a chibata

Agora usa farda

Engatilha a macaca

Escolhe sempre o primeiro

Negro pra passar na revista

Todo camburão tem um pouco

de navio negreiro[...] (YUKA, Marcelo. In: RAPPA, 1994).

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Figura 17– Do navio negreiro ao camburão

Fonte: LAERTE. Ilha Grande & Senzala. GERALDÃO. São Paulo: Circo, n/ 7, jun. 1988, pp. 27 - 28.

Em 1987, Laerte mais uma vez surpreendeu o público, lançando na revista

Circo a história A insustentável leveza do ser. O artista adotou em suas tiras uma

estética cross-dressing20

. A narrativa abordava a história de uma família constituída fora

dos moldes que se convencionou chamar de “tradicional”, para dar sustentabilidade à

formação e criação do seu filho, a personagem Renato (fig.18).

Considerando que a personagem já adentrara uma fase considerada pela

família de maturidade, o pai decidiu revelar-lhe a “verdade”. Toda a família nunca havia

sido o que deixava transparecer: o pai sempre fora a Tia Zuzú, sua mãe todo o tempo era

o leiteiro, e sua irmã Andréia, uma atriz que recebia um cachê para interpretar o papel

de sua irmã. Por fim, Renato descobriu-se outro. A família, ao longo dos seus 17 anos, o

revestiu com uma “pele” branca; quando retirou-lhe a “pele”, ele soube que era negro.

20

Cross-dressing é uma expressão utilizada para designar pessoas que agregam ao seu universo,

masculino ou feminino, elementos do universo oposto. O artista das tiras, além de produzir narrativas que

enfocam essa realidade, considera-se um cross-dressing e afirma sentir grande prazer em adotar essa

prática, que “[...] se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade

imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o

Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um

homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres”. Entrevista à

revista Bravo. Disponível http://bravonline.abril.com.br/materia/tenho-vergonha-quase-tudo-desenhei-

laerte. Acesso em: 12 mar. 2013.

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Segundo Chinen (2013), Laerte montou um jogo de aparências em que nada ou

ninguém era o que parecia ser. Nem mesmo o mundo.

Figura 18 – Roberto, sem máscaras nem disfarces

Fonte: LAERTE. Piratas do Tietê e outras barbaridades. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 104.

Renato, assim como a comunidade negra, foi convidado a enfrentar a vida, a

realidade da época, pois os tempos de fantasias haviam ficado para trás. O momento era

de mudanças, fosse com a Abertura Política, em prol das “Diretas Já”, com a

instauração de um regime político democrático, ou através do estabelecimento da Lei

Caó, de número 7.716/1989, que regulamentava o racismo como um crime inafiançável,

punível com prisão de até cinco anos e multa. Renato, como a comunidade negra, sabia

das suas potencialidades e que a sua cor não o definia, nem ordenava ou sentenciava a

sua capacidade. Ela constituía apenas a sua diferença. Diferença que o possibilitaria,

assim como à comunidade negra, questionar a realidade e problematizá-la, com a

intenção de eliminar quaisquer formas de discriminação e segregação.

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3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS

DE CIRCULAÇÃO

Aqui estou, Zumbi; aqui vim Zumbi, para me desculpar, para te dizer:

Chegamos tarde, mas chegamos. Demoramos muito a vir resgatar o chão da

nossa história, recuperar o chão da nossa existência livre. Perdão, rei Zumbi,

por termos demorado tanto!

[...]Viemos tarde, Zumbi, mas viemos definitivamente. Para marchar sempre

para frente, levando o teu facho de luta, sonhando o teu sonho de liberdade.

Até que esta raça grandiosa, este povo belo, o mais belo do mundo, o meu

povo, o povo negro, resgate este país que ele construiu, o chão de Palmares,

encharcado pelo teu suor, pelo sangue teu e dos nossos ancestrais. Chão

sacralizado pelo sacrifício, pelo holocausto de toda uma raça.

Nós aqui estamos Zumbi, para jurar o nosso compromisso de restaurar a tua

pátria, retomar o chão da liberdade que tu plantaste nesta terra que é nossa.

Este chão não será mais daqueles latifundiários que te apunhalaram pelas

costas e pelo peito, aqueles latifundiários que te roubaram a vida a ti e a teu

povo; que ainda estão roubando o suor do teu povo, calejado nos porões

infames desta civilização industrial e capitalista. Este suor e este sangue –

patrimônio africano que tu plantaste, nós os recolhemos, Zumbi. Estamos

aqui, de joelhos, unidos de braços erguidos e punhos cerrados para

dizer não à opressão. Dizer não ao racismo. Não à discriminação e à

exploração (NASCIMENTO, 1984) 21

.

Luiza Mahin, Francisca Cidade, Luis Gama, Carolina de Jesus, Mestre Bimba,

Leila Gonzaléz, Abdias do Nascimento, Mestre Didi, Mãe Stella, Ana Célia da Silva,

Cuti, Conceição Evaristo. Homens negros e mulheres negras, remanescentes de Zumbi

dos Palmares, que junto a tantos outros, cada um a seu tempo e a seu modo, com suas

vozes enraizadas na luta a favor do povo negro, contribuíram para fixar, transmitir e

preservar as memórias da tradição deste grupo étnico racial.

Esses heróis negros e heroínas negras, anônimos do cotidiano, com seus

saberes, reagiram, contestaram e contrapuseram a opressão existente na sociedade

brasileira que sobrepunha e ainda hoje sobrepõe-se ao exercício da cidadania plena do

povo negro em solo nacional.

Eles sabiam, utilizando-me das palavras do poeta Kibuko (1990, p. 71) que não

mais poderiam manter-se vestidos em fantasias, a cultuar super-heróis - barman, capitão

américa e superman -, com seu superpoderes, para solucionar as mazelas infligidas ao

21

“Trecho do improviso do discurso proferido por Abdias do Nascimento por ocasião das solenidades

cívico-religiosas na Serra da Barriga, inaugurando um marco de tributo a Zumbi dos Palmares,

comemorativo do dia 20 de novembro – aniversário da sua morte – Dia Nacional da Consciência Negra,

programada pelo Memorial Zumbi, em 1983, em União dos Palmares Alagoas, Brasil” (NASCIMENTO,

1984, [informação verbal]). Disponível em: <http://correionago.ning.com/profiles/blogs/morre-abdias-do-

nascimento>. Acesso em: 15 mar. 2012

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povo negro. E como herdeiros da resistência e da insubmissão do herói negro do século

XVII, assumiram a incumbência de dar continuidade aos objetivos do ancestral famoso

a que se refere Nascimento na epigrafe acima.

Nestes processos de combate emancipatórios, muitas dessas lutas foram vistas

pela sociedade civil e os poderes públicos como batalhas perdidas, ou inconciliáveis,

mas a tônica da soma de tantas lutas tornou-as possíveis. Isto em função do povo negro

está sempre a mostrar a sua sabedoria, nos processos de reconstrução e retomada dos

seus espaços. Sabedoria aqui definida

“[...] como trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à

acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar do trampolim, e como

trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos

dos contratos sociais (CERTEAU, 1998, 79).

Necessárias, neste processo intermitente em que a comunidade negra vive, a

jogar e a desfazer-se dos jogos dos outros, desembaraçando-se constantemente das redes

de forças e das representações pré-estabelecidas.

Neste contexto, às vezes pairam incógnitas: onde este povo negro, “o povo

mais lindo do mundo” (NASCIMENTO, 1984) encontrou as forças necessárias para

tornar tangível e inteligível as reivindicações e aspirações que o anima, quando imerso

nesta política semântica neocolonialista implementada? Como conseguiram alinhar as

artes de fazer as artes de viver? E como estas adentraram a tantos espaços, a exemplo do

universo quadrinístico?

Partindo da afirmativa de Certeau (1998, p. 35), essas reapropriações dos

espaços, pelo povo negro, se deram em decorrência das suas táticas de resistências, que,

em uso, foram modificando os objetos e os códigos ao seu modo próprio e as suas

necessidades. Assim, gradativamente, a comunidade negra foi inscrevendo “[...] seus

passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito tempo”

(CERTEAU, 1998, p. 35), e conseguiram em meio à convivência problemática com a

cultura dominante traçar novos horizontes emancipatórios.

Estes percursos empreendidos foram marcados por “[...] incríveis labirintos de

sentimentos inconfessos de repulsa automática contra o segmento de origem africana e

de insensibilidade para com seus interesses e anseios” (MOORE, 2012, p. 233). O que

talvez possa ser considerado, entre ouros fatores, uma das razões que impossibilitaram o

exercício da democracia, constituindo-se em entraves para que se desse o resgate do

chão da nossa história e a recuperação do chão da nossa existência livre, conforme

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Nascimento (1984). Mas o povo negro manteve-se em marcha, com seus medos,

inseguranças e utopias a postos. E de forma definitiva chegaram até aqui, contrariando

as lógicas instituídas.

Neste sentido, embriagando-nos das palavras e feitos de tantos negros e negras

que fizeram e fazem a história, apresentamos esta última seção da dissertação, na qual

poderemos ver, vivas e atuantes, novas formas representacionais das personagens

negros, cujas marcas identitárias ganharam um novo sentido. De certo, as composições

destas narrativas sofreram as influências destes homens negros e dessas mulheres

negras, e isto pode ser evidenciado na maneira honrosa como a memória histórica do

povo negro brasileiro vem sendo grafada nas páginas dos quadrinhos, revivendo os

fatos, os heróis e as histórias de luta e de liberdade deste povo.

Não existem garantias quanto à pertinência dessas narrativas no

estabelecimento de um novo discurso identitário, mas elas são válidas, pois forjam “[...]

qualidades e virtudes das quais, o povo, o grupo, ou a nação possam se orgulhar”

(SOUZA, 2005, p. 205). Principalmente, porque assumem em sua composição um

posicionamento de oposição às formas alienadas como a comunidade negra vinha sendo

representada nas suas páginas. O que nos faz pensar que elas estão aí, no espaço

quadrinizado, parafraseando Muniz Sodré (2008, p. 14), a “[...] celebrar a radicalidade

do éthos [...], dizendo-nos que o povo negro encontra-se representados no seu lugar

próprio”.

3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS

No Brasil, a produção de quadrinhos sempre esteve desvinculada das temáticas

relativas às questões étnico-raciais. No entanto, a partir de 1990, esse quadro começou a

ganhar novos contornos. Tais transformações não aconteceram por acaso, tampouco por

benignidade, mas foram incentivadas por uma irrevogável necessidade da comunidade

negra de desconstruir as complexas organizações sociais que promoveram, ao longo do

tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração do outro e no seu

apagamento.

Essas mudanças nesses modos de representação, mais verossímeis à

comunidade negra, só se tornaram possíveis porque o Movimento Negro passou a

adotar, cada vez com mais vigor, projetos antirracistas propositivos. A arena política se

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configurou como espaço de ação imprescindível para que essas lutas fossem travadas.

Para tanto, foi necessário o alinhamento deste segmento a outros setores sociais para

que pudesse influenciar positivamente nessas mudanças (DOMINGUES, 2007).

O Movimento Negro Unificado, junto a outros movimentos que despontaram

nessa época - tais como os Agentes de Pastoral Negros - APNs, a União de Negros pela

Liberdade - Unegro, o Centro de Estudos de relações de trabalho e desigualdade –

CEERT, a Casa do artista Plástico afro-brasileiro - CAPA, o Congresso Nacional Afro-

Brasileiro - CNAB, o Fórum Nacional de Mulheres Negras, a Coordenação Nacional

dos Estudantes Negros Universitários- CECUN, a Coordenação Nacional dos

Remanescentes de Quilombos; a Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN

e o Movimento Nacional pelas Reparações, entre outros- organizaram-se com a

responsabilidade de pensar concretamente em estratégias que modificassem as leis

voltadas para esse grupo. Sistematizando, podemos dizer que o movimento negro, entre

outros aspectos,

articulou os conceitos de raça e classe, identificando a raça como

determinante da classe social no Brasil. [...] Demonstrou, em grande parte, o

mito da democracia racial brasileira e a ideologia do branqueamento. [...]

Ressignificou o conceito biológico de raça para um conceito social de

afirmação política. [...] Desenvolveu uma ação educativa junto a escolas e

universidades, com uma pedagogia paralela à oficial, repondo os conteúdos

históricos/culturais do povo negro, invisibilizados ou minimizados nos

currículos (SILVA, 2011, p. 132 ).

Esses procedimentos delinearam um verdadeiro corte epistemológico

favorecendo, de forma indiscutível, as ações executadas (D‟ADESKY, 2009), dentre as

quais destacamos a que ocorreu em 20 de novembro de 1995, em comemoração ao

tricentenário do líder negro Zumbi dos Palmares, considerado ícone de resistência e luta

contra todas as formas de opressão e exclusão vividas pela comunidade negra.

Irmanadas, as entidades organizaram a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo,

pela Cidadania e a Vida, em que cerca de 20 mil pessoas participaram da manifestação

em Brasília. A finalidade da marcha foi pressionar o governo a assumir uma posição de

intervenção real, mais profunda e, a longo prazo, em face dos problemas enfrentados

pela comunidade negra.

A marcha, em consonância com todas as outras ações que aconteceram com o

mesmo objetivo, obteve um saldo positivo porque conseguiu fazer com que o estado

brasileiro reconhecesse que o racismo era uma realidade no país e que necessitava ser

combatido. Diante de tal reconhecimento, o governo federal organizou grupos de

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trabalhos interministeriais para formular propostas que respondessem às demandas

apresentadas.

O movimento contou com o apoio de alguns parlamentares nos poderes

legislativo e executivo, entre os quais podemos destacar: o senador Abdias do

Nascimento (1997); o deputado federal Paulo Paim, durante três mandatos consecutivos

(1990, 1994, 1998); deputado federal, estadual e senador Luis Alberto (1990, 1994,

1998) e a deputada federal por dois mandatos e depois senadora Benedita da Silva

(1986, 1990, 1994). Esses parlamentares propiciaram um alargamento considerável nas

discussões relacionadas às questões étnico-raciais no parlamento e, por conseguinte, na

agenda política brasileira, criando as bases necessárias para se pensarem novas leis que

viriam a ganhar corpo no século posterior (BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS, S.,

2011).

Tais políticos, no que diz respeito às relações raciais, mobilizaram o Brasil.

Entre os anos de 1995 a 1998, vinte e cinco projetos de lei contra o racismo circularam,

entre a Câmara dos Deputados e o Senado, alguns foram aprovados, outros ficaram em

processo de tramitação (CARDOSO, 1998 apud BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS,

S., 2011, p.11).

Ainda que os resultados, em termos qualitativos e quantitativos, não suprissem

as necessidades dessa mobilização, precisamos reconhecer que esses políticos, em

paralelo a outros militantes, acenderam pequenas chamas de esperança. As medidas,

naquele dado momento, necessitavam ser mais universais e especificas,

combinadamente, a fim de que outras pontes fossem estabelecidas entre as fissuras

constituídas (DOMINGUES, 2007).

O que se pode observar, portanto, nesse processo, é que as políticas de ação

afirmativa ampliaram-se em outras direções, assegurando a participação do negro em

vários setores. Em alguns deles, para que se fizessem valer, foi necessário que se

implementasse a Lei das Cotas de nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Ato que

contribuiu para que as elites ultraconservadoras perdessem, gradativamente, o seu “[...]

papel de referência moral e cultural que tinham ostentado até então para fazer valer a

sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade” (MOORE, 2005, p. 316).

Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas constituíram “[...] uma barreira

eficaz à progressão do racismo e das desigualdades sociais nele alicerçadas” (MOORE,

2005. p. 316). Mesmo que minoritariamente, podemos ver em maior número do que

nas décadas anteriores, os negros representados na televisão, no cinema, na propaganda,

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nos cargos políticos ou nas revistas de grande circulação. Esses números ainda estão

distantes do considerado adequado ou esperado, principalmente quando se leva em

conta o fato de a raça negra constituir a metade da população brasileira, segundo o

IBGE (2013), somando-se pretos e pardos.

Se os índices do Censo, nas últimas pesquisas, apontaram para essa realidade,

urge derrubar os projetos conservadores “[...] de sustentação de um status quo sócio-

racial, baseado na dominação hegemônica de uma raça sobre outra, e da supremacia

social de uma classe sobre todas as outras” (MOORE, 2005. p. 318). Ao analisarmos

esses dados, podemos inferir que as Histórias em Quadrinhos com personagens negros

no papel de herói e heroína, nesta linha de contradiscurso, constituíram-se, e

constituem-se em mais um elemento que fortalece as lutas por equidade da comunidade

negra, na medida em que suas páginas deixaram de publicar narrativas nas quais os

negros ocupavam lugar de inferioridade.

Mediante essas considerações, apresentaremos algumas dessas personagens

que dialogaram (e dialogam) com a luta contra a discriminação racial e o preconceito.

Cada uma ao seu modo, a partir da década de 1997 até 2012, buscaram rasurar as

fronteiras do racismo, do preconceito e da discriminação, desvinculando-se de

construções estereotipadas e caricaturais – ao menos no que diz respeito a sua

representação.

Essas personagens, com suas novas formas representacionais, reivindicavam

um lugar e um testemunho diferenciados para a comunidade negra, que extrapolassem

“[...] os limites de „correção‟ do sistema representacional, pois as suas pretensões são

mais amplas que a invenção/produção de contra-imagens” (SOUZA, 2005, p. 254). Seus

anseios transitavam na produção de uma arte, cujo discurso assumia um viés político,

que almejava agregar para si sempre novos adeptos.

No entanto, o contexto de produção de narrativas quadrinizadas apresenta um

dilema que pode constituir um obstáculo: o número de artistas negro-brasileiros nessa

área é muito pequeno. E os que se lançam na produção de narrativas quadrinizadas com

personagens negros no papel de herói e heroína é muito menor.

Sobre essa situação Scott McCloud (2006) afirma que é mais vantajoso para

um grupo que ele mesmo assuma a responsabilidade sociopolítica de se retratar no

espaço quadrinizado, pois saberá falar com maior propriedade sobre os seus ideais, sua

condição social ou física, a realidade que experimenta. Caso isso não ocorra, corre-se o

perigo de uma produção gráfica extremamente homogênea, em que os seus artistas

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pertencem a um outro grupo étnico-social e, por isso, assumem vozes mais parecidas

entre si. Não que, com isso, um determinado grupo não possa falar sobre outro, até

porque “[...] a ficção exige positivamente que nos aventuremos além do mundo de

nossas experiências” (MCCLOUD, 2006, p. 106).

No entanto, tais ponderações nos fazem conscientes de que necessitamos

aumentar o número de “retratos” de quadrinistas negros nas orelhas das produções

icnográficas, para que estas deixem de ser “retratos dos outros”. Esse aumento fará com

que as narrativas quadrinizadas sejam contempladas com as marcas de subjetividade dos

seus autores, assim como também servirá para expressar o lugar sócio-ideológico que as

sustenta (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 9).

São esses procedimentos legítimos que nos remetem ao campo da Literatura

Negra Brasileira, que é uma literatura que agrega no seu discurso literário um eu-

enunciador que se assume como negro. O que implica dizer que os seus escritos não se

caracterizam apenas pela cor da pele do escritor ou apenas porque este fez uso de uma

temática negra para desenvolver suas histórias. De fato, essa literatura encontra-se

associada à

[...] existência, no Brasil, de uma articulação entre textos dada por um modo

negro de ver e de sentir o mundo, transmitido por um discurso caracterizado,

seja no nível da escolha lexical, seja no nível dos símbolos utilizados, pelo

desejo de resgatar uma memória negra esquecida. (BERND, 1988, p. 13)

A literatura negra brasileira é negra porque, com sua presença, tensiona o fazer

literário na sociedade brasileira. É negra porque quer seus escritores como protagonistas

do discurso e protagonistas no discurso, produzindo-o com base nos seus lugares de

direito. É negra porque libertadora, capaz de ocasionar envolvimento e beleza, por seu

caráter político, crítico e legitimador, nas suas incontáveis tentativas de estabelecimento

dos diferentes diálogos. (DALCASTAGNÈ, 2012).

Nesse processo, podemos ver o entrelaçamento entre o escritor e a matéria-

prima humana de que se serve; presente e permanente nos textos, nos contos, na poesia,

nas crônicas, nos romances, a afirmar: aqui, onde se abriga uma pluralidade de

existências, é o meu lugar (DALCASTAGNÈ, 2012). Tais escrituras foram nascidas da

tradição oral, do fato de que o povo africano, quando aqui chegou, foi obrigado a

desfazer-se da sua identidade original, relacionando-a com uma outra, que se formou

fora da África, nascida da sua própria experiência no Brasil, originando, assim, uma

Literatura Negra Brasileira (CUTI, 2010).

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Uma literatura construída pelo lado de dentro, com marcas indeléveis do

escritor, que é negro, cuja intenção é dar maior visibilidade às questões que afligem a

comunidade negra brasileira. Por isso, sua voz literária, assume um tom de provocação,

de conscientização e de denúncia, muito próximo do papel que o espaço quadrinístico

quer assumir ao representar a comunidade negra nas suas páginas como protagonistas

das histórias. Ambos, Literatura e Quadrinho, assumem através dos seus ditos, uma

função social que quer dizer-nos, de forma criativa, que necessitamos integrar-nos às

frentes de luta e resistir sempre.

Assim, tiras como a de Joel Madrugada & Nega Maluca, de autoria de Newton

Foot, lançada em 1995, na qual a personagem feminina é negra, aparece com seus lábios

e olhos com proporções exageradas, tornaram-se escassas. E as que passaram a vigorar

foram produções nas quais os papeis e as funções do negro estão cada vez mais

diversificados, assumindo a centralidade do discurso. E são dessas publicações que nos

poremos a falar.

A primeira publicação que destacamos, mais uma vez, é a do artista Laerte, que

foi lançada em 1997, no suplemento infantil do jornal Folha de S. Paulo, a Folhinha,

intitulada Suriá, a menina do circo (fig. 19). Suriá é uma menina negra de oito anos,

que atua, na narrativa quadrinizada, como protagonista da história. Trapezista, mora

com seu pai, que é negro, sua mãe, que é branca, e seus amigos no circo. Sua relação

social com o grupo em que vive é de igualdade, e, como toda criança, tem os seus

momentos de traquinices e indagações.

Seus traços fisionômicos não possuem características próprias do grupo étnico-

racial negro assumido pelo autor para a personagem. Esses se assemelham aos das

personagens da narrativa como um todo. Por outro lado, essa pode ser a forma particular

que Laerte encontrou para articular e demarcar para si criações tão próprias, que falam

dele mesmo, ao mesmo tempo em que sugerem uma equalização e/ ou assimilação da

representação social dos negros nesses espaços (SILVA, 2011).

Nessas narrativas, Suriá, conforme figura 20, tem o direito de ser rainha,

princesa, como seus ancestrais africanos o foram. Nos requadrados não existe uma linha

limítrofe, demarcando, como na maioria das histórias, de que a função subalterna, ou

má, tenha que ser necessariamente de alguém de etnia negra.

As histórias de Suriá também foram publicadas em formato de livros pela

editora Devir/Jacaranda. A primeira, Suriá, a menina do circo (2003) e a segunda,

Suriá, contra o dono do circo (2003).

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Figura 19 – Suriá, a garota do circo

FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000.

Figura 20 – Suriá em: fadas, princesas e rainhas

FONTE: LAERTE. Suriá. In: Folha de São Paulo. 19 jul.2003. Folhinha, p. F8.

Outra publicação que teve grande repercussão nacional, no ano de 2000, foi a

revista Luana e sua turma (fig.21-22), de autoria de Aroldo Macedo. A ideia de publicar

uma revista cuja protagonista era uma criança negra surgiu quando o autor conheceu

uma menina que, sob forte influência do arquétipo eurocêntrico, disseminado através

dos programas televisivos infantis, cujas apresentadoras eram brancas e louras, queria

para si o modelo ideológico de prestígio difundido (fig.21).

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Figura 21 – Luana em: causos da vovó Josefa

FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 28.

Em face desta realidade, o autor resolveu produzir um quadrinho que

privilegiasse a história e a cultura negra-brasileira, na tentativa de desconstruir as

representações sociais cristalizadas pela mídia televisiva nacional. E, assim, nasceu

Luana e sua turma, buscando dar um sentido diferente às coisas e às palavras fixando

novos elementos a esse universo simbólico tão perverso. Aos oito anos, a personagem

aparece nas narrativas ao lado da sua mãe, Dona Nena; seu pai, Calça Larga; seu irmão,

Luisinho; sua avó, Josefa; seus amigos, Zeca, Pipoquinha, Rebeca, Sato, Amanda; seu

cachorro, Sultão; os terríveis vilões Fumaça Mortal, Magrelo, Pescoço, Bigode e Oscar

Abina, além de outras personagens. Luana vive as aventuras cotidianas de uma heroína-

criança em Cafindé, comunidade quilombola remanescente onde vive.

Com sua roupa branca da capoeira, que a transporta a outros tempos e lugares,

e com seus cabelos trançados e enfeitados com miçangas e contas coloridas , que se

agitam ao som dos atabaques e do seu berimbau mágico, Luana deixa-nos transparecer

as “[...] marcas externas de preservação de seus vínculos identitários e das afiliações

míticas [...]”( SOUZA, 2005, p. 169) com o povo africano. A roupa branca remete-nos a

Oxalá e Yemanjá, as contas vermelhas levam-nos a Xangó, as amarelas, a Oxum, as

verdes, a Ossain, “[...] fragmentos da religião dos Orixás, trazida juntamente com os

africanos e recriada no Brasil [...]” (SOUZA, 2005, p. 169).

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Figura 22 – Luana

MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000, Vol. 2 (capa).

Em Luana, podemos ver sonhos e esperanças semeadas, devido à

requalificação do negro. No entanto, há alguns elementos, neste trabalho de Macedo,

que necessitariam de revisão/aprofundamento. Contudo, interessa-nos, neste momento,

observar os avanços em relação às produções anteriores e suas possíveis repercussões na

comunidade negra. Essa revista circulou no ano de 2000, com seis edições, do número 1

ao 6, em 2005, do número 7 ao 12 e em 2008, do número 13 ao 18, última jornada da

personagem nas páginas das Histórias em Quadrinhos. O autor, ao lado de Oswaldo

Faustino, escreveu três livros com a personagem; são eles: Luana, a menina que viu o

Brasil neném, 2000; Luana e as sementes de Zumbi, 2007 e Luana, capoeira e

liberdade, 2007.

Essa personagem surgiu em um momento de grande efervescência no país, no

qual se discutia incisivamente a implementação de dois grandes marcos legislativos, a

inclusão e obrigatoriedade, no currículo oficial da rede de ensino, da disciplina História

e Cultura Africana e Afro-Brasileira, legitimada em 20 de dezembro de 2000, através da

Lei 10.639; e o Estatuto da Igualdade Racial. Este entrou em vigor na data de 20 de

julho de 2010, através da Lei de número 12.288, que garantiu à comunidade negra

brasileira “[...] a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos

individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de

intolerância étnica” (BRASIL, 2010).

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Contudo, toda e qualquer lei é um campo movediço, pela existência lacunar

entre a práxis e a teoria. Daí a necessidade da criação da Secretaria Especial de Políticas

de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, que começou a executar suas atividades a

partir de 21 de março de 2003, na forma da Lei nº 10.678, visando dar condições de

aplicabilidade às leis anteriores em vigor.

Outros trabalhos seguindo essa mesma linha de amparo à lei e contrários aos

discursos estereotipados continuaram sendo publicados. Os autores dessas obras

recorreram “[...] à memória histórica para fixar os elementos que, no passado,

constituíram a vida grupal [...]” (SOUZA, 2005, p. 61) e as utilizaram para compor suas

narrativas quadrinizadas, Luana e sua turma (2000), O Beabá do Berimbau: histórias

de tio Alípio e Kauê, lançado em 2009, de autoria de Márcio Folha, que contou com o

apoio do Programa VAI, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo; e Aú, o

Capoeirista, de Flávio Luiz (2008), acrescem essa lista. Nessas obras,

[...] existe, por parte dos autores, uma forte consciência de missão a cumprir

– um desejo “pedagógico” de contribuir para que outros afro-brasileiros

despertem a atenção para a necessidade de lutar contra o racismo e a

discriminação e de para a necessidade reverter os mecanismos étnico-

segregadores utilizados pela sociedade brasileira nas suas práticas e

discursos. Essa espécie de “missão” justifica-se pela urgência de desconstruir

as imagens seculares, negativas e inferiorizantes dispostas pelos sistemas de

representação e que são assimiladas e introjetadas por “brancos” e “negros”.

(SOUZA, 2005, p. 64).

A realidade de tal “missão” vale não somente para as obras quadrinísticas, mas

também para o âmbito da Literatura Negra Brasileira, a exemplo dos Cadernos Negros.

Estes documentam os modos pelos quais escritores negros brasileiros organizaram-se

para produzir e difundir um discurso identitário negro, que busca intervir nos alicerces e

no exercício do poder político-cultural dominante. Um projeto que começou a ganhar

forma ao final da década de 1970, objetivando tornar audíveis as vozes críticas e de

protestos dos escritores negros, contrários aos modelos de representação e organização

das relações raciais no país (SOUZA, 2005).

Conforme salienta Florentina da Silva Souza (2005), em seus estudos, esse

periódico é indispensável para que entendamos o quadro político brasileiro das três

últimas décadas do século XX. E, por que não dizê-lo, do século que o precede; afinal a

publicação reverberou em diferentes espaços, de forma direta e/ou indireta, inclusive no

quadrinístico, favorecendo e fortalecendo o seu processo de compreensão de abertura de

espaços para a representação do negro.

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No entanto, não podemos esquecer que tanto as obras quadrinísticas quanto as

literárias se mantêm sob forte influência do mercado e dele não podem escapar, pois

encontram-se envoltas nas relações de consumo. O grande perigo é a possibilidade de se

tornarem apenas mais um elemento da indústria do entretenimento, ou apenas

[...] produtos da indústria folclórica de exóticos, aparentemente fomentadores

de princípios para emancipações materiais, culturais e existenciais, mas na

realidade, sem máscaras, significam a continuidade de uma crônica situação

de alienação integral do ser negro (CONCEIÇÃO, 2009, p.51).

Mesmo com os objetivos emancipatórios que as publicações passaram a ter, é

importante ressaltar que a indústria e o comércio do exótico autorizam essas

publicações, dão-lhe o selo de “bom para consumo” e estas tornam-se um negócio

rentável. Assim, a indústria e o comércio do exótico, podem fazer com que as

publicações se constituam, dessa forma, de acordo com Stuart Hall( 2011, p. 320), em

trabalhos que falam da diferença, mas que não fazem diferença .

Em nenhuma instância essas questões querem dizer que nunca são possíveis

modificações e que o sistema, com seus mecanismos de dominação, sempre vença. No

entanto, como essas possibilidades são iminentes, há sempre que se considerá-las, para

que novas xenofobias não adentrem o espaço quadrinizado e o subjuguem.

Principalmente porque, se observarmos o quantitativo desse espaço, vemos que ele é

limitado e disperso e que a sua visibilidade é segregada, por ser cuidadosamente

policiada e regulada e por existir nesses processos de ocupação/negociação sempre um

“valor” a ser negociado, que normalmente beneficia os grupos majoritários (HALL,

2011).

Nesse sentido, as HQs necessitam ser desenvolvidas distanciando-se desse

exotismo, assumindo um discurso politicamente justo e libertador. Afinal, se a

comunidade negra chegou ao espaço político de representação quadrinístico, isso

aconteceu em decorrência das lutas políticas culturais estabelecidas em torno da

diferença, e, para tanto, foi necessário que ela utilizasse o próprio corpo para textualizar

a sua história e a sua memória. Como enfatizou Stuart Hall (2011, p. 324), a

comunidade negra “[...] tem usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o

único capital cultural [...] que possuíam. Trabalhando em si “[...] mesmos como em

telas de representação”( HALL, 2011, p. 324).

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Enfatizou, dessa forma, aquela comunidade aspectos relacionados à sua

pertença cultural étnica-racial, linguística, religiosa, local e nacional, o que se percebe

na forma como de estilização do seu corpo, na sua maneira de ocupar os diferentes

espaços sociais, em como estilizou os cabelos, na sua postura, gingado, no seu modo de

falar e conduzir as suas vivências.

Essas representações e símbolos são performáticos e servem de referência para

que a comunidade negra expresse a sua história, seus signos, símbolos e mitos, neste

contexto irreversível de dispersão diaspórica, tornando-se, assim, modelo positivo a ser

posto nas páginas dos quadrinhos.

Essas probabilísticas se colocam ao lado de políticas de inclusão, que visam

preservar e difundir a história e a cultura negras. Afinal, neste mundo globalizado,

mediado pelas novas tecnologias, nas quais as velhas identidades encontram-se em

colapso, sendo inovadas a todo instante, não há como parar os fluxos culturais,

tampouco as informações (HALL, 2002). Embora possamos pensá-los nas suas

condições materiais e imateriais, dando-lhes um caráter menos superficial e uma marca

identitária negra, necessários à sua preservação. Quanto maior for número de projetos

desenvolvidos com esta funcionalidade, mais nos aproximaremos das metas desejadas.

Imersa neste processo encontra-se a narrativa quadrinizada Aú, o Capoeirista

(fig.23), lançado em 2008, sob a autoria de Flávio Luiz, membro fundador do Grupo de

Risco, composto por artistas que se reúnem para criar cartuns e HQ‟s.

FIGURA 23 – Aú, o Capoeirista

Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008 (capa).

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Embora tenha sido lançado em formato de álbum, apenas em 2008, a

personagem nasceu no ano de 1992, quando o artista, em conjunto com o grupo do qual

participava e em parceria com a Aliança Francesa, decidiu fazer na cidade de Salvador

uma exposição de Bandes Dessinée franco-belgas. Para compor a exposição, o artista

criou Aú, um menino negro de oito anos, praticante de Capoeira, inspirado nas crianças

que vivem nas ruas de um bairro histórico da cidade de Salvador, chamado Pelourinho.

No ano de 2004, o autor decidiu reinvestir na personagem, produzindo-a como um

adolescente de 14 anos, mas o projeto não obteve a notoriedade desejada e acabou não

sendo publicado. Só em 2008, com o projeto reformulado e Aú já em com 16 anos, a

ideia ganhou forma ao ser aprovada pela Lei Federal Rouanet, de incentivo à cultura,

contando também com o apoio de alguns patrocinadores.

Exímio jogador de capoeira, ao lado de Licuri, seu mico de estimação, da sua

namorada, Bezinha, e de outras personagens, Aú rearticula os ingredientes da cultura

negra brasileira, tão presentes na cultura baiana, ao transitar pelas ruas do Pelourinho,

jogando capoeira, salvando turista estrangeiro, namorando ou em conversas com seu

Nagô, que representa a tradição e a sabedoria. Seu próprio nome é movimento, melodia,

elasticidade e gingado um dos movimentos da capoeira, expressa na capa do álbum (fig.

23).

Segundo Chinen (2013), o padrão adotado por essa linha de produção editorial,

assemelha-se aos editados na França e na Bélgica, lembrando os traços de alguns

desenhistas franceses, assim como remete ao personagem Tintin, criado pelo quadrinista

francês Hergé.

Em 2009 surgiu mais uma produção no mercado O Beabá do Berimbau:

histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), do artista-educador Mario Folha.

O artista referenda-se em uma temática pouco explorada pela mídia escrita e

televisiva, a Capoeira. Através de Tio Alípio, um idoso de 80 anos que se insere nesse

contexto como um contador de histórias, a exemplo dos griots africanos, assumindo o

papel de arquivo vivo e guardião da memória (SOUZA, 2005), o autor narra e canta as

histórias/canções do povo negro, seja em África ou no Brasil, tendo como fiel

interlocutor seu sobrinho Kauê. Este é um garoto de 12 anos, apaixonado por Capoeira,

que mal pode esperar para possuir seu próprio berimbau, instrumento que o fascina e

que figura na narrativa como mediador dos seus diálogos com o tio.

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Figura 24 - Tio Alípio e Kauê

Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo.

Ciclo Contínuo, 2009 (capa).

Márcio Folha resgata a trajetória do negro no Brasil, homenageando os grandes

Mestres da Capoeira e também fomenta noções de solidariedade étnica, ao designar,

assim como em Luana e em Aú, o respeito às lembranças, saberes e longevidade dos

mais velhos, tão presentes na cultura africana. O autor também apresenta no seu blog,

que recebe o mesmo título do livro, outras histórias quadrinizadas de sua autoria, a

exemplo de Quilombo de Ivaporunduva, na qual duas crianças negras, Nina e Kaíque,

narram o cotidiano de uma comunidade quilombola.

Outros materiais foram publicados; alguns adotaram o formato de cartilhas

quadrinizadas, a exemplo da Minas de Quilombos (fig.25), criada em 2008 pela Rede de

Desenvolvimento Humano – REDEH, em parceria com o Ministério de Educação e

Cultura – MEC e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE.

Conforme palavras do grupo idealizador do projeto, este “[...] pretende se somar às

iniciativas de recontar a trajetória dos quilombos, recuperando uma importante parte da

história do Brasil escrita pelos/as nativos/as da África e seus descendentes

brasileiros/as” (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, p. 4). Anterior a esta publicação,

lançaram em 2005, Quilombos, espaço de resistência de crianças, jovens, mulheres e

homens.

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Figura 25 – Revista Minas de Quilombos

Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de Cultura-

MEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008 (capa).

Em uma linha cuja abordagem foca temas religiosos, surgem os álbuns: AfroHQ:

história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de

Amaro Braga e arte de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, em 2010, e o álbum Orixás, do

Orum ao Ayê, , produzido por Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole em 2011(fig. 27).

Figura 26 – Revista Afro HQ

Fonte: BRAGA, Amaro; JAIMES, Danielle; CIRNE, Roberta. AfroHQ: história e cultura

afro-brasileira e africana em quadrinhos. Recife: N/A, 2010 (capa).

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Os autores do álbum AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em

quadrinhos (fig. 26), utilizam os orixás para narrar a história da presença africana no

Brasil, assumindo, nesse sentido, um redimensionamento dos critérios que, até então,

negaram à comunidade negra seus direitos plenos e totais, de acordo com a sua

herança, impedindo-a do exercício da sua cidadania cultural e, consequentemente,

negando-lhe, em funções das distorções de conhecimento, de ter/ser pleno. Assumindo,

nessa perspectiva, a regulamentação da Lei 10.639, o autor busca reconhecer, garantir e

proteger direitos da comunidade negra, corrigindo alguma dessas distorções e

fortalecendo seus valores, ao propor uma narrativa que garante e assegura a ampliação

do conhecimento, assim como, ao adotar costumes, ideias e práticas cotidianas,

possibilita ao outro ver-se incluído no processo em construção. Além desse trabalho, o

roteirista, com as ilustradoras e estudantes da Universidade Federal de Alagoas,

Mariana Petróvana e Janaína Araújo, já havia ganhado dois prêmios em concursos que

abordavam a temática afro-brasileira envolvendo aspectos relacionados à discriminação

racial praticada no Brasil contra os negros. O primeiro, no Concurso Alagoas de

Quadrinhos, promovido pela Imprensa Oficial do Estado de Alagoas com a história

Preto que nem carvão em 2011, e, em 2013, no Concurso Nacional de Histórias em

Quadrinhos Ireno José Guimarães, com a história Bonita, como eu!

No álbum Orixás, do Orum ao Ayê (fig. 27), os autores recontam como esse

poder central chamado Olodum Maré personificou o axé, que é a força vital em forma

de orixá.

Figura 27 – Revista Orixás: do Orum ao Ayê

Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,

2011 (capa).

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Nesses álbuns, as religiões de matriz africana são retratadas de forma positiva,

deixando explícito que a tradição ocidental, com seus pressupostos judaico-cristãos e

uma convivência imposta, não conseguiram apagar a interação ontológica que nela se

configura, ao entrelaçar, de forma indissociável, o orum, que representa o mundo

espiritual, interior, ao ayê, que representa o mundo físico (SOUZA, 2005, p. 63). De

certo, essas representações retratam um grau de politização e mobilização dos povos de

santo por uma visão de mundo inclusivo, no qual não se preconize a intolerância

religiosa, mas sim o respeito ao direito de todos os cultos no Brasil.

Essas publicações alternativas não foram as únicas que circularam no país

buscando representar o negro sob um novo prisma. Existiram outras. No entanto, as

tiragens dessas publicações foram mínimas, limitadas, inclusive sua periodicidade deu-

se de forma muito instável (D‟ADESKY, 2009). Muitas delas não são mais produzidas,

embora devessem continuar, principalmente pela atuação política que exercem, ao

assumir nos seus inscritos, um posicionamento crítico de reconhecimento da cultura e

da história do povo negro brasileiro como um dos pilares em que se assenta a formação

desta nação.

As narrativas foram construídas num momento e espaço políticos de perspectivas

transformacionais; assim, em nenhuma instância, pretendeu-se derrubar as esferas do

poder, tampouco impor uma verdade única. Diferentemente disso, assumiu-se uma linha

de ação necessária à difusão dos saberes que foram adaptados e rearticulados pela

comunidade negra em sua defesa. Não se trata aqui, apenas, de se fazer com que uma

ideia circule, mas que esta seja percebida nas suas particularidades, de acordo com a

herança cultural dessa comunidade, para que possam ser discutidas.

Um outro aspecto é que esses quadrinhos foram produzidos em resposta aos

questionamentos que a comunidade negra sempre se fez na sua busca por

reconhecimento, logo, constituindo-se em ações afirmativas, ou pela sua carga

persuasiva, ou por deslocar da margem para o centro uma discussão de suma

importância, qual seja, a produção de quadrinhos com personagens negras, usando um

viés de referência positiva para a população negra brasileira. Preenchem, dessa forma,

um espaço lacunar sobre a exclusão, vigente na sociedade brasileira - que é racista e

preconceituosa –, a qual perdurava e se manifestava há séculos, também, nas histórias

em quadrinhos. Essa ação, mesmo com suas falhas, representou e representa um salto

qualitativo para a comunidade negra brasileira.

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Nessa perspectiva, transformar a representação do negro nas Histórias em

Quadrinhos é mais uma forma de dinamizar os espaços de poder. Imagens positivas

podem favorecer na criação de novas ideias e afetar as estruturas sociais impostas,

abrindo espaço para a prática da igualdade em todas as instâncias. Porém, tais medidas,

necessitam estar em consonância com melhorias do ensino e redistribuição de renda,

pois somente ações conjuntas propiciarão o enfrentamento e a superação das

desigualdades vivenciadas por aquela comunidade.

3.2. HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA

NEGRO-BRASILEIRA

Quando as diversas vozes africanas chegaram, forçosamente, ao Brasil,

encontraram na voz do colonizador, expressas através do seu legado cultural, formas

perversas de tentativa de apagamento do seu arché, do seu ethos. Não foi fácil para os

povos africanos, oriundos de diferentes localidades daquele continente, com suas

respectivas línguas, verem seus destinos sobredeterminados por princípios tão

divergentes dos seus e, a partir desse instante, terem que começar a compor para si um

novo repertório. Mas, (re)unidos conseguiram, entre as rotas fragmentadas, estabelecer

estratégias de enfrentamento contrárias ao monopólio da fala instituído pelos povos

brancos.

Crentes no poder da palavra, pois esta desloca-nos através do tempo e do

espaço, os povos africanos e seus descendentes entrelaçaram o passado ao presente e

passaram a falar e a agir contra o sistema imposto. Seus substratos culturais foram

imprescindíveis para que conseguissem suportar todo o peso de uma nova civilização

(FANON, 2008).

Para tanto, a comunidade negra foi obrigada, para mudar o percurso histórico

que se abatia sobre si, a assumir e administrar traços da cultura dominante - língua,

escrita, leis, e uma aparente sujeição à sua religiosidade. Tais apropriações, mesmo

divergentes, possibilitaram, em inter-relação com a daquela comunidade, a construção

de uma cultura e de uma identidade negra no país singular, pois quanto mais a

comunidade negra vivia sob o estigma da repressão, que a oprimia e a acossava, mas

resistia e assumia o enraizamento do seu legado cultural, expresso através do seu corpo,

da sua fala, dos seus gestos e da sua forma de conceber o mundo.

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E assim, de sobredeterminados, os negros passaram a sobredeterminar as

relações sociais, econômicas, políticas e étnico-raciais no país. Com sua dança, música,

literatura, religião, filosofia, ética, entre outros aspectos, abriram fendas no sistema

imposto, imputando dúvidas e abalando as certezas até então cristalizadas, o que os levou a

alçar vários espaços.

Os percursos foram íngremes, e tanto tempo depois, hoje em pleno século XXI, a

comunidade negra, apesar dos avanços, continua enfrentando problemas cujas raízes

encontram-se na sua vinda forçosa ao Brasil. Ainda não aprendemos a lidar, tampouco a

aceitar ontologicamente, “a diferença e a relação com o Outro dissimilar. Aquele Outro

que, no imaginário social, representa a soma total de todas as diferenças (MOORE, 2012, p.

267, grifo do autor)”, o que se constitui um perigo, porque ao invés de avançarmos nesses

processos de negociação e aceitação do outro, podemos recuar, estagnar e nos negar a essas

mudanças.

Em face desses supostos é que a comunidade negra mantém-se em luta, buscando

não cair nas armadilhas retórico-discursivas da “democracia racial”, pois estaria a

retroceder no processo de enfrentamento dos desafios, principalmente, pelas tentativas de

implementação de programas e ações transformadores de abrangência e alcance alargados,

que a colocam no centro das relações de aceitação, tolerância e respeito, seja consigo

mesma e com os diferentes outros.

Assim, esse grupo étnico-racial segue criando espaços discursivos capazes de

externar as suas diferenças, que são singulares e originais, e adentram o universo

quadrinístico, de forma lúdica, encantada, sagrada, para assumir representacionalmente uma

concepção negro-brasileira de ser. Não nos moldes um dia decantados pelo poeta maior da

negritude Aimée Césaire, que acreditava que a palavra teria o poder de mudar o mundo,

removendo o preconceito, o racismo e a discriminação e resgatando a identidade e o

orgulho de ser negro. Pensamento expresso no seu poema intitulado Les armes

miraculeses22, inscrito na década de 1930. Mas, nos moldes da chamada pós-modernidade,

que preceitua que as palavras podem muito pouco em termos de desconstruções dessas

hegemonias, porém compreende que é no uso da palavra, que tem um poder polissêmico,

que poderemos, de se não mudar o mundo, mas semear pequenas sementes de dúvidas, de

alteridade, na consciência dos homens, para que estes se mantenham firmes nas suas

tentativas de transpor as fronteiras instauradas ( BERND, 2006).

Por considerar, entre tantas rotas disseminadas pela comunidade negra, as obras

apresentadas na subseção anterior deste capítulo vias alternativas que podem contribuir para

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As armas miraculosas

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que tal comunidade seja vista dentro da sociedade brasileira sob prismas mais éticos,

políticos e humanos (BERND, 2006), capazes, de se não transformar as estruturas,

desestabilizá-las, ao apresentar-nos uma concepção de mundo gestada sob a ótica da

comunicabilidade do povo negro, é que iremos, neste momento, instalar, de forma breve,

um diálogo com essas obras para fins de analise. Nelas, encontram-se priorizados

aspectos conceituais e práticos da tradição negro-brasileira, postos em discussão com

tiras presentes nas narrativas, que evidenciam a posição de favorabilidade dessas

histórias em relação à afirmação identitária da comunidade negra.

Na obra Suriá, a garota do circo (fig. 19), de autoria de Laerte, nossas

reflexões se instauram a partir da capa da narrativa. Nela a protagonista aparece

segurando um cartaz informativo contendo sua própria imagem, a nos dizer que um

novo espetáculo erigido por ela está para começar: o da narrativa quadrinizada através

do mundo circense.

De forma singular e diferenciada, Suriá nos leva pelos caminhos labirínticos do

imaginário, seja através do seu traje de malabarista, seja do seu pedalar o seu

monociclo, ou a jogar bolas com as mãos, traduzindo-se tudo isso em movimento,

alegria, fantasia e equilíbrio.

A presença dos jogos com a bola na capa remete-nos, de acordo com o

pesquisador Marco Aurélio Luz (2002) ao lúdico e ao sagrado. O lúdico, porque as

brincadeiras de Suriá nos dizem o quanto ela é uma personagem-criança feliz,

consciente da suas potencialidades e “[...] cheia de idéias trepidantes” (LAERTE, 2000,

p. 3), com uma euforia de viver que equilibra e ameniza a angústia existencial que cada

indivíduo traz consigo.

Quanto ao sagrado, este se revela, quando passamos a pensar que essa forma-

ovular, ventral, presente nas bolas, enfatiza representações deslocadas da maternidade,

que aludem à gestação e envolvem o mistério da gênese, promovendo reflexões sobre a

nossa origem e o nosso devir, o que aqui neste contexto nos reporta à personagem:

Quem é Suriá, esta heroína negra, menina-mulher das histórias em Quadrinhos? Por que

é importante a sua representação? Aonde poderá ajudar a comunidade negra a ir, ao

deslocar-se no tempo e no espaço, buscando satisfazer o desejo de estar-junto, na

origem da vida societária?

Suriá é essa personagem que se encontra nesta narrativa a nos “dar bola”. Ela

poderá ajudar a comunidade negra justamente assumindo esta expressão, “dar bola”,

que no Brasil quer dizer, estar disponível para o outro, dar presença e reconhecimento

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(LUZ, 2002). Um gesto que se ousa cometer em nome de um desejo social de ver o

negro representado graficamente nesse espaço, sem os estigmas até então propostos,

validados entre o lúdico e o sagrado, para que outros fins sejam alcançados, a título da

afirmação e construção identitária da comunidade negra.

A tira a seguir (fig. 28) explicita bem essa proposta, visto que se encontra numa

“[...] relação de arte/política em toda a sua extensão” (CIRNE, 1982, p. 57).

Figura 28 – Suriá: o vidro em torno de cada um

FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000, p. 13.

Na narrativa, Suriá e sua família estão visitando um aquário. A protagonista e

o filhote-peixe expressam para suas respectivas mães a mesma preocupação: a

necessidade de uma vivência para além dos vidros.

Podemos identificar nesse questionamento uma preocupação política latente

e que podemos transferir para a situação da sociedade brasileira. As personagens

enfatizam, com suas respectivas falas, que a sociedade se encontra presa a suas amarras

e que, muitas vezes, não se dá conta dessa realidade, sendo necessário o estilhaçamento

dos vidros do “aquário”, que a enclausuram, que obstacularizam suas ações e seus

esforços, em prol da construção de um mundo melhor. Só rompendo essas amarras que

se instauram no mundo, poderá assumir-se como testemunha da sua história e

conscientizar-se de que tem uma missão a cumprir.

Assim, a narrativa Suriá, a garota do circo (fig. 28), não só nessa tira como

nas demais, ressalta os significativos esforços que historicamente vêm sendo envidados

para se representar o negro de forma não alienada, debatendo-se contra as amarras do

autoritarismo, ao nos apresentar histórias que nos fazem pensar sobre outra lógica de

redesenho quanto ao futuro da etnia negra.

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Essa mesma lógica também nos chega através da obra Luana e sua turma

(fig. 22), de autoria de autoria de Aroldo Macedo, que assume nas suas tiras

componentes culturais tão próprios da vida do povo negro, a exemplo dos seus modos

de perceber, compreender e interpretar o mundo em suas particularidades e

semelhanças.

A narrativa Luana e sua turma (fig. 21 - 22) encontra-se impregnada “[...], no

sentido da linha do tempo (passado, presente e futuro) [...]”e “[...] no interior do espaço

(o sentido do próximo e do distante, do grande e do pequeno, do visível e do invisível)

[..]” (CHAUÍ, 2008, p. 57), dos valores e saberes da cultura africana; desde a forma

como a personagem se apresenta – traços fenótipos- ao local onde ela habita - uma

comunidade quilombola- até sua relação de respeito e escuta para com os mais velhos,

especialmente a sua avó, que com seus Causos da vovó Josefa (fig. 21) salienta que na

África há muitas Áfricas e nelas reside a tradição africana.

E é assim, atrelados ao seu passado histórico-social, mas sem se opor às

novas demandas transformacionais tecnológicas e informativas, que os discursos

transitam nessa narrativa. Dentre eles, deter-nos-emos no discurso latente que Luana

estabelece com a Natureza. O discurso do saber cuidar e preservar, que dá à narrativa

um sentido agregador de luta e resistência. Afinal, a essência humana reside justamente

no cuidado, conforme Boff:

O cuidado é na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da

inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental humano. Quer

dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que

fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir (BOFF, 1999, p. 1).

E dessa relação “cuidadosa” com a natureza advêm, simultaneamente, valores

de respeito a si mesmo e ao outro, estabelecidos com base numa relação de

reciprocidade, acarretando, assim, equilíbrios entre: homem-homem, homem-natureza e

homem-cosmos. A desintegração desses elos é o obstáculo para o desenvolvimento

integral do indivíduo.

Na narrativa intitulada Luana.com, edição de número 2, ano 2000 (fig. 29),

podemos observar esse chamado ao cuidado. A comunidade quilombola Cafindé, onde a

maioria das histórias circula, é invadida por um vírus, que contamina as crianças que

acessam o site criado por Luana para semear propostas de preservação e conservação do

meio ambiente, com o objetivo de levá-las a assumir uma atitude contrária à proposta.

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Assim, as crianças passam a poluir o meio ambiente – poluição sonora, pichações, maus

tratos aos animais, lixos no meio das ruas. Ao descobrir o que estava acontecendo,

Luana lança-se na resolução do problema, desmascarando os verdadeiros culpados.

Figura 29 – Luana, a favor da natureza e contra a poluição

FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 15

Para restaurar o equilíbrio, Luana contou com a solidariedade dos seus

familiares, amigos e da comunidade. Solidariedade pautada na reciprocidade, na

responsabilidade social; pois, para as sociedades africanas, viver isoladamente constitui-

se uma forma de antevir para si a morte. E, assim, Luana mantém-se conectada ao

Sagrado, mantendo afetos e cuidados.

É esse o jeito dela de ser descendente de Zumbi: ativa, capaz de atravessar e

ultrapassar os momentos e as situações mais adversas. Tais feitos exercidos por uma

protagonista negra poderão possibilitar, conforme Nilma Lino Gomes (2003, p.79), “[...]

a construção de um „nós‟, de uma história e de uma identidade” positiva negra.

Afinal, quem nunca desejou, através do seu imaginário, ser um herói ou

uma heroína? Entrar na vida de uma personagem e ser a própria personagem? Ligar-se

ao personagem através desse poder imaginativo e lúdico e deflagrar, através do processo

de reelaboração, uma dimensão transformadora das suas vivências cotidianas,

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ressignificando o real? E aí está Luana a deflagrar, mesmo que ingenuamente, um

despertar crítico identitário para que o negro assuma a sua identidade negra.

Nesse jogo de interações, chega-nos a obra Aú, o capoeirista (fig. 23), de

autoria de Flávio Luiz, como portadora de uma cultura que irrompe do chão, através da

capoeira, cujo movimento é ação, pensamento, um convite a ver o mundo às avessas,

conforme ele se encontra na capa da narrativa, ou seja, de ponta- cabeça.

Em Aú, reverbera um som, um chamado, uma voz, que remete a comunidade

negra à concretude das suas experiências de mundo. De um lado, ajudando, com seu

grupo de amigos, a personagem Dona do Carmo, moradora e proprietária de um dos

casarões históricos, que vem sendo assediada pelo personagem Amâncio para colocar à

venda o seu imóvel (fig. 30). Também, desmantelando o sequestro da personagem

francesa Nathalie Le Coq, que se insere nessa problemática por tornar-se uma

testemunha ocular da tentativa de desapropriação e reapropriação ilícita do sobrado.

Figura 30- Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade

Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008, p.6.

Nesse jogo de solidariedade, imagens e palavras se fazem ação para reforçar a

viabilidade da narrativa. E a história passa a expressar no contexto, “[...] toda uma

trama de interação emocional [...] que envolve significados mais profundos e trata das

complexidades da experiência humana” (EISNER, 1989, p 16) nesta imbricada relação

de poder.

É nesse cenário, onde Aú sabe-se capaz, apto a agir e transformar o meio em

que se encontra inserido, que as diferenças são assinaladas e os saberes, valores, hábitos

e crenças compartilhados. Todos necessários à construção gradativa da sua identidade

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negra, ideal que aqui reiteramos, pela sua centralidade na formação e desenvolvimento

do povo negro.

Tal identidade negra aqui compreendida, de acordo com Nilma Lino Gomes

(2002),

[...] como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de

conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo

étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial,

sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando

confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro

interpela a nossa própria identidade (GOMES, 2002, p.39).

Nessa perspectiva, em solo quadrinizado, pensar em identidade pressupõe

pensar em articulações entre o individual e o social, entre as singularidades e as não

singularidades, entre interesses comuns e interesses diferenciados. Sabemos que, nesse

processo em fluxo, a identidade necessita ser reconhecida, seja de forma autônoma,

pelos outros, em decurso das suas ações, ou por sua existência em si mesma. E as

páginas dos Quadrinhos podem ser, entre tantas janelas, uma fenda de luz que ajudará a

constituir “[...]o individuo livre, consciente de sua individualidade, de sua liberdade, de

sua história e, por último, de sua historicidade” (D‟ADESKY, 2009, p. 75). Mas, para

tanto, é necessário entrar na roda da vida.

E a narrativa que também entrou na roda, a tentativas de equalizações, para

favorecer o reconhecimento e admitir a existência de uma identidade negra foi O Beabá

do Berimbau: histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), de autoria de Mario Folha. Estas

“[...] traçam uma artimanha iniciativa, sinalizada pelo próprio nome apresentado: O

Beabá” (VALE, 2009, apud FOLHA, 2009, p. 123), como a nos dizer que nas páginas

dos quadrinhos que seguem, adentraremos o mundo mágico da capoeira através dos

acordes sonoros do berimbau.

Os caminhos da iniciação serão construídos por tio Alípio pacientemente de

boca a ouvido, de mestre a discípulo através dos tempos, pois embora esta seja uma

narrativa gráfico-visual, a palavra-mundo, criadora de cultura (FREIRE, 2014),

encontra-se no cerne do processo: o mestre conta o que ouviu e o discípulo, tornado

mestre, reelabora e reconta essas histórias (fig. 31).

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Figura 31: Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê

Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo.

Ciclo Contínuo, 2009, p.55.

Tio Alípio apreendeu todo esse conhecimento posicionando-se individual e

coletivamente nas rodas de capoeira, conhecimento que se estende à roda “maior”, que é

a vida. Pois a capoeira é infinita, e quando os diferentes atores sociais encontram-se na

roda com o berimbau a tocar, acabam prendendo e apreendendo coisas novas e

começam a ver-se sempre um passo à sua frente. E é nesse contexto, entre as rodas e em

interação com o outro, que se aprende a ser sujeito histórico-social, cônscio de que seu

discurso e sua prática possuem fins políticos e que todo seu conhecimento necessita ser

multiplicado.

Assim foi com tio Alípio, e este está ensinando os saberes apreendidos a Kauê.

O objetivo é que esses conhecimentos sejam disseminados, cheguem a outros

indivíduos, pois temáticas como essas, que deixam entrever, através das personagens

negras, a importância dos atores sociais desenvolverem sua autonomia nas dimensões

social, política, afetiva, econômica e étnico-racial, são eficazes tentativas de afirmação

positiva da comunidade negra.

Para tanto, se faz necessário que essas produções circulem entre escolas,

bibliotecas, salas de leitura, bancas, meios digitais com a devida valorização e

respeitabilidade, para que sejam aceitas e exerçam processos de reflexão, ação e

transformação. Pois, bem o sabemos, que imagens e discursos positivos incidem na

elevação da autoestima, e se constituem eficazes no combate aos conceitos que

incapacitam e inferiorizam a comunidade negra.

Trilhando o mesmo caminho, adentramos a narrativa Minas de Quilombos (fig.

25). O primeiro aspecto que nos chamou a atenção diz respeito à cor da pele das

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personagens. Estas, diferentes das demais narrativas, aparecem coloridas na cor preto.

As demais, apresentadas anteriormente, apareceram coloridas na cor marrom.

A presença dessas colorações leva-nos a questionar acerca das implicações que

podem preponderar: estariam os autores das obras, inconscientemente ou

conscientemente, tentando escamotear o grupo étnico das personagens?

Definir quem é o negro no Brasil é uma tarefa deveras complexa, e em obras

quadrinizadas a escolha dessas cores, a fim de representar as personagens, também se

revela problemática. Isso em decorrência do ideal do branqueamento, conceito que fora

introjetado nas pessoas negras e que faz com que estas acabem por não se considerar

dessa cor (ou etnia), numa dolorosa rejeição do seu fenótipo. Esse ideal do

branqueamento é o que estaria incidindo sobre a escolha da cor marrom para colorir a

pele das personagens?

Por outro lado, bem sabemos, que “os conceitos de negro e de branco têm um

fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico”

(MUNANGA, 2004, p. 52). Assim, politicamente, podemos considerar negro todas as

pessoas que têm uma aparência fenotípica desse grupo étnico. Logo, pardos, mulatos ou

mestiços ou qualquer descendente de negro pode classificar-se como negro. Decerto,

pensando no critério cor da pele como qualificação política, as personagens

apresentadas anteriormente são negras, embora nesse processo de construção de

ferramentas para reafirmação dessa identidade negra, o uso de cor preta, quanto à

escolha da cor da pele, na narrativa Minas de Quilombos é uma escolha estética

positiva, pois faz-nos refletir sobre as manobras sociais em torno do efeito

branqueamento entre nós e de suas condicionantes.

A narrativa Minas de Quilombos,

apresenta a realidade de meninas e meninos, jovens e homens e mulheres

quilombolas que, espalhados/as pelo país, lutam pela construção da

cidadania, preservação de sua cultura e suas terras e, principalmente, pelo

direito de contar sua história. (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, In Minas de

Quilombos, p. 4).

A ação se passa no Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo,

localizado no estado de Minas Gerais. Na escola, os alunos tomam conhecimento da

existência de uma narrativa quadrinizada, que conta a história de quilombos localizados

no Rio de Janeiro. Daí surge a ideia da construção dessa narrativa. Para tanto, eles vão

contar com o apoio da professora para ser elo com outras fontes vivas informacionais e

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também para a organização dos processos de deslocamento. O “gibi” será composto de

informações sobre a comunidade, que os alunos trazem consigo, juntamente com essas

informações coletadas em campo durante a pesquisa. E, assim, a história ganhou corpo,

tornando-se esta HQs, em análise (fig. 32).

FIGURA 32: Em quadrinhos a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo

Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de Cultura-

MEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008, p. 38.

A estratégia adotada pela equipe de produção desta narrativa foi bastante

criativa, uma vez que reforça a ideia da capacidade iminente que a comunidade negra

possui para ser sua própria porta-voz. Esse tipo de produção facilita em muito a

veiculação das informações, a apropriação deste material, numa relação assimétrica com

as falas das personagens, e propicia convencimento recorrente, pois a postura das

personagens nos diz que elas sabem, com propriedade, o que falar.

Com base nesses pontos, chegamos à narrativa AfroHQ: história e cultura

afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de Amaro Braga e arte

de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, que apresenta uma capa bastante emblemática,

ilustrada por diferentes orixás, dispostos circularmente. Essa imagem também compõe

o interior da narrativa (pp. 12 – 13), sendo que nelas os orixás encontram-se

identificados por seus respectivos nomes. Com trajes nas cores e indumentárias, que os

definem em suas simbologias, eles são respectivamente posicionados em sentido

horário:

a) Exu, que na língua yorubá significa esfera, é a gênese, a força vital do

processo da criação; é movimento; orixá responsável em estabelecer os canais de

comunicação entre o orum e ayê, por isso é sempre a primeira divindade a ser invocada

durante os cultos religiosos; suas cores são o vermelho, uma cor quente, ligada ao

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sangue, que gera energia, força, poder, e o preto, que é uma cor que se origina da fusão

das outras cores; é o oculto, o indecifrável, o secreto, tão próprios de Exu (SANTOS,

1996);

b) Em trajes na cor azul, que simboliza a força do fogo, tão necessária à criação

das suas ferramentas, encontra-se Ogum, que é o senhor dos metais;

c) Oxossi, com sua cor verde, representa as matas;

d) Ossaim, que também veste verde, assume a responsabilidade pelos segredos

contidos em cada uma das folhas presentes na natureza;

e) Omulu, que é o orixá que representa a morte, não vem representado com

uma cor, mas apenas com o seu modo de vestir, coberto de palhas, o que nas palavras de

implica dizer que ele cobre-se da cabeça aos pés para que não seja desvendado o

mistério da morte.

f) Oxumaré, que se apresenta com todas as cores do arco-íris, representando os

ciclos intermitentes que se dão entre o céu e a terra.

g) No processo, os Ibeji, orixás duplos, ou gêmeos, protetores das crianças,

utilizam roupas nas cores verde, amarelo e vermelho;

h) Logun-Edé é filho de Oxum e de Oxossi e suas vestes apresentam-se nas

cores amarelo-ouro e azul-turquesa, simbolizando a riqueza, a fartura, o controle sobre

os navegantes;

i) Yansã é a senhora dos ventos e das tempestades, sua cor denota as

tonalidades que despontam no entardecer;

j) Obá é a orixá das guerreiras, ligada às estrelas e às águas;

k) Eujá é senhora da fertilidade, da sensibilidade, das artes, da poesia,

apresenta-se em seu traje rosa;

l) Oxum apresenta-se de amarelo, representando o ouro, as águas dos rios, a

intuição;

m) Yemanjá, de azul, representa as águas;

n) Nanã, de anil, representa a terra, a água e o barro, elementos oferecidos por

ela a Ossaim para a criação do homem;

o) Xangõ apresenta-se de branco, representando a justiça.

Juntos, os orixás formam “[...] a roda da vida. A roda da natureza. A roda dos

acontecimentos que envolvem o próprio homem: a roda do destino” a nos dizer: “sejam

todos bem-vindos ao terreiro!” (BRAGA; CIRNE; JAIMES, 2010, pp. 12 e 13).

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A capa da narrativa capta o que está, substancialmente, por trás da imagem: a

necessidade de que sejam assumidas, no Brasil, posições críticas, políticas e culturais,

comprometidas em falar desse forte elemento cultural da comunidade negra, que é a sua

religião. Assim, os orixás nos são apresentados de forma icônica, de maneira que se

assemelhem ao seu referente representacional, projetando-nos uma presença que diz da

ligação da comunidade negra com o sagrado; embora, por encontrarem-se na esfera das

artes, não possam ser caracterizados como místicos, nem sacralizados.

Outro aspecto da capa diz respeito à forma como os orixás encontram-se

dispostos, em círculo, o que traz à tona dois elementos constitutivos da cosmovisão

africana: o princípio da integração e o princípio da circularidade.

O princípio da integração funda-se no dogma de que todos os sujeitos,

independentemente de cor, raça, etnia, com suas singularidades, fazem parte do cosmo e

por isso estão intimamente relacionados. O princípio da circularidade evidencia que os

diferentes sujeitos, mesmo ocupando posições e funções diferenciadas dentro desse

cosmo, são chamados a viver em harmonia, numa relação de horizontalidade, em que se

privilegie o bem-estar de todos. A roda, o círculo, a circularidade, como imagens

representacionais do cosmo, são fundamentos, estando permanentemente em fluxo.

E, assim, essa ilustração nos diz que essas narrativas serão cheias de ação, de

saberes que irão circular no grupo, de boca em boca, de mãos em mãos, de corpo a

corpo, pautadas num processo dinâmico de interação, narrando “[...] os principais fatos

que envolvem a história da presença africana no Brasil e suas contribuições para a nossa

formação”. (BRAGA, 2010, p. 7)

Através dos fios que tecem essas reflexões, chegamos, nesta pesquisa, à última

narrativa para análise: Orixás: do orum ao ayê (fig. 27), produzido por Alex Mir, Caio

Majado e Omar Viñole. Essa HQs traz no seu interior a presença de histórias que

abarcam a enigmática interação deste mundo com o além. Ademais, nos incita a pensar

sobre as simbólicas criações de Olorum - Deus-Negro, do povo negro africano e dos

seus descendentes, que sabiamente criou os orixás, a mãe-terra e o homem.

E é com estes elementos - Olorum, os orixás, a mãe-terra, e o homem-, que

emergem do precioso repertório das culturas e tradições africanas, que os artistas dessa

obra a compuseram. Agregando o estético às forças cósmicas que regem o universo,

essa narrativa foi dando sentido ao ato criador de Olorum, que “[...] diferenciou a idéia

de caos da idéia de existir” (LUZ, 2002, p.74). Afinal, “[...] o existir se caracteriza pela

diferença entre forças em constante movimento formando um ciclo vital,” (LUZ, 2002,

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p. 74) onde todos e tudo, imagens, símbolos e mitos, se relacionam de forma

interdependente.

Nesse sentido, podemos pensar que essa narrativa mística, com todo o seu

simbolismo, nos chega como mapas para nos ajudar a ultrapassar os obstáculos político-

ideológicos instaurados na sociedade. Sem determinar normas, nem regras, essa obra,

que fala do imperceptível de forma perceptível, aponta-nos novas possibilidades de

convivência, através das palavras-imagens que nos oferece. Representa os orixás sem os

estigmas, tampouco associados ao mito de demonização, contrapondo-se, assim, aos

padrões religiosos ocidentais cultivados pelas religiões cristãs, que associavam essas

divindades a práticas veiculadas ao mal, acabando por atuar como mais uma fonte de “

[...] afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleos de resistência às variadas

formas de aspirações neocolonialistas” (LUZ, 2011, p.68).

Um desses núcleos de resistência encontra-se presente no capítulo 5 (pp. 57-

65): A separação do céu e da terra. Podemos ver nessa narrativa as marcas da presença

africana aqui recriadas, revelando a interlocução existente entre o mundo espiritual,

invisível (orum) e a vida cotidiana, ou seja, ao mundo visível (ayê).

Essa história especificamente nos conta que houve um tempo em que não

existia separação, nem fronteiras entre o céu (orum) e a terra (ayê) (fig. 33). Os homens

podiam transitar livremente entre esses dois mundos, desde que as regras e normas

estabelecidas por Olorum, o deus supremo, fossem devidamente cumpridas, conforme

explicitadas por Oxalá na narrativa. Não tanto por desobediência, diríamos, mas por

curiosidade ou necessidade, o acordado fora descumprido e, desde então, o homem só

pode voltar ao orum após a sua morte (fig. 34). No entanto, por generosidade, Olorum

permitiu que o homem utilize-se de cultos e oferendas para manter-se religado ao orum,

e assim tem sido até os dias atuais.

Observando essa narrativa, podemos ver transitando as marcas africanas nas

reminiscências do povo negro brasileiro. Esta comporta vivos conhecimentos, princípios

e valores humanitários que favorecem a convivência e consubstanciam a forma

organizacional da comunidade, dando-lhe um sentido prático.

Neste sentido, é imprescindível que histórias como essa sejam narradas, pois

é olhando e reverenciando o seu passado, que a comunidade negra reafirma os seus

valores de convivência, que só podem ser preservados e reinventados quando colocados

em comum-união.

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FIGURA 33: O orum e o ayê sem fronteiras

Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,

2011, p. 57.

FIGURA 34: A separação do céu e da terra

Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,

2011, p. 64.

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Desse modo, essa obra, assim como as demais supracitadas, ao assumir nas

suas páginas uma representação discursiva que recria a realidade do povo negro

brasileiro, abordando temáticas que não são muito recorrentes e elegendo como

protagonistas dessas narrativas heróis e heroínas negros, deve ser percebida como mais

um elemento agregador de luta frente às desigualdades enfrentadas.

Nesta nossa análise, conforme salientamos anteriormente, sob nenhuma

hipótese sugerimos que essas narrativas tenham o poder de transformar as estruturas

sociais do país, mas sabemos que elas podem nortear discussões que explicitam quem é

o povo negro brasileiro, sinalizando todo o aporte de conhecimentos que ele traz

consigo, todos indispensáveis à construção e consolidação deste país. Tampouco,

queremos manter a ideia de que elas sejam entrecortadas apenas por elementos gráficos

visuais que incorporam a estética negra; muito pelo contrário, elas são a resultante

dessas várias associações, e por vezes, a exemplo da última, “[...] a anatomia

anabolizada dos heróis aproxima-os mais das formas dos super-heróis americanos do

que do biótipo mais esguio dos africanos” (CHINEN, 2013, p. 254), porém, esta

realidade não descaracteriza a obra nem invalida o seu caráter.

Assim sendo, essas narrativas constituem-se referências de ação porque

rompem com os modelos de narrativas pautados apenas na cultura dos povos brancos.

E, nesse processo de interlocução, podem contribuir para que seja mantido vivo todo um

repertório cultural de base africana, evidenciado representacionalmente nas formas

como as personagens e as narrativas foram compostas, tão próprias de um jeito de ser,

pertencer e de participar da cultura negra brasileira. E, quem sabe, apresentando-se de

forma persistente, essas produções possam tornar-se também tradição dentro do

universo quadrinístico e dentro da sociedade brasileira, face às mobilizações que são

desenvolvidas pelo povo negro em busca de equidade de direitos e oportunidades. Até

lá, entretanto, há muito que se lutar e re-existir.

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CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO

De acordo com os dados apresentados e analisados nesta pesquisa, foi

possível inferir que a história do negro ainda é marcada pela segregação, exclusão,

sofrimento, por conta do desrespeito aos seus direitos e tradições. Entretanto, foi

igualmente perceptível que, a partir de 1930, houve muitos avanços advindos das suas

conquistas, nos diferentes âmbitos, em função das lutas do povo negro contra a opressão

dos grupos dominantes. Tais mudanças, algumas décadas posteriores, se instalaram,

inclusive, nos conteúdos das Histórias em Quadrinhos, que, até mais da metade do

século XX, ainda continuavam a representar esse grupo étnico-racial com imagens que

denotavam alienação, submissão, inferioridade. Na década de 1960, já se faziam

presentes personagens negros em papeis centrais, manifestando críticas à sociedade.

Vale ressaltar que, desde o final do século XX, essas publicações cresceram

significativamente e, conforme os resultados das narrativas analisadas nos sugeriram,

em suas páginas vêm expressos seus ideais de liberdade e seus anseios de autoafirmação

identitária.

No entanto, o nosso olhar sobre o outro continua a ser estabelecido com base

em pares binários de oposição: bom ou ruim, branco ou preto, grande ou pequeno, feio

ou bonito, alto ou baixo, resistência ou cooptação, autêntico ou inautêntico, oposição ou

homogeneização (HALL, 2011). E, assim, nos posicionamos optando por um único

lado, uma única vertente, um único caminho, como se na vida prática essas relações

estáveis e estáticas fossem possíveis e não transpassadas pelos aspectos políticos,

históricos, sociais, econômicos e étnico-raciais e afetivos.

Os diferentes sujeitos, com suas posturas autocratas, acabam “esquecendo”

que existem posições dentro da sociedade a serem conquistadas, respeitadas e aceitas,

em um verdadeiro exercício de alteridade e que, por trás de cada experiência humana

advêm outras que tornam possível imaginar e representar outras realidades.

Contradizer esse desafio seria mais uma forma de reafirmar que, no Brasil,

não existe preconceito, racismo e discriminação. Principalmente quando os vemos de

forma tão explícita no baixo quantitativo de publicações quadrinísticas, em que as

personagens negras exercem o papel de heróis e heroínas nas produções. Os espaços

das escrituras, da mídia, da televisão, do cinema, da política, das Histórias em

Quadrinhos ainda se constituem excludentes. Recorrendo às palavras de Walter

Benjamin (1985), o que esses espaços, de fato, necessitam é perpassar um processo de

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dessacralização. Ou seja, necessitam da “[...] presença do outro [...]”, da “[...] exigência

da democratização do fazer literário” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 195), o que aqui

transpomos à democratização do fazer quadrinístico, que envolve também a

participação oficial do Estado.

Essa foi uma das faces encontradas nesse estudo, mas existem outras que

merecem ser assinaladas e que concorrem positivamente para as mudanças que

ocorreram na representação social do negro nas páginas das Histórias em Quadrinhos.

Em primeira instância reforçamos que a participação dos Movimentos

Sociais Negros na reescrita dessa história foi imprescindível, pois as frentes de luta

organizadas pela comunidade negra, paulatinamente, se não foram conseguindo, na sua

totalidade, desconstruir os discursos de subalternidade e inferioridade implementados ao

longo do tempo, ao menos os abalaram, reposicionando, legalmente, o lugar de

ocupação do povo negro brasileiro, como sujeitos ativos que são, na sociedade

brasileira. O que tornou possível fazer emergir novas formas de pensar e produzir

conhecimento, agora fincadas na história e cultura negro-brasileira.

Em segunda instância, face a essa nova realidade conjuntural, as Histórias

em Quadrinhos passaram a assumir uma abordagem visual que captura os detalhes e a

sutileza da comunidade negra. E as personagens passaram a ser representadas de forma

humanizada, em relação intergrupal de igualdade e em pleno exercício da sua cidadania.

O que extrapola os lugares até então destinados aos personagens negros nessas

narrativas.

Esse tipo de abordagem modelada na valorização do povo negro brasileiro,

garante a manutenção de um ritmo e vitalidade, postulados com base em condições

histórico-culturais concretas, o que pode ajudar as pessoas a aproximarem-se de si

mesmas, da sua identidade negra e do outro. E, assim, essa ressonância emocional, de

acordo com a verossimilhança com as personagens negras, poderá instigar laços de

solidariedade, sentidos de existência e pertença. Parece-nos óbvio, por outro lado, que o

mercado editorial necessita ser fomentado e as produções incentivadas, pois existe, sim,

um público consumidor para essa arte, basta que ela circule.

Diante do exposto e em conformidade com as revistas analisadas, reitera-se

que a inserção da comunidade negra nas páginas das HQ representa uma condição

possível de desenvolvimento de gosto pela sua beleza, sua cor, sua história, sua cultura,

seu legado de matriz africana. E outros grupos étnicos/raciais poderão também

começar a prática de desenvolver olhares de fora, mas sem estigmas inferiorizantes,

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reconhecendo que podemos todos viver, sim, as diferenças, sem necessitarmos

estabelecer processos hierarquizantes (SILVA, 2011).

Em síntese, consideramos que produções que representam nas suas capas e no

seu interior essas transformações, com personagens cuja trajetórias de vida denotam

sucesso, que vivem em contato com o sagrado, que expressam suas manifestações

culturais, como a capoeira, entre outros, são essenciais para divulgar, reconhecer e

valorizar os processos históricos, sociais e étnico-raciais da comunidade negra assim

como colaboram na construção de uma autoimagem e de uma autoestima positiva do

povo negro, ao romper com a ideologia do branqueamento, que, com seus hiatos,

manteve, por um longo período, um discurso avesso a essa nova realidade de avanços

que vem se configurando.

Dessa forma, podemos inferir que, por meio das narrativas quadrinizadas com

personagens negras na posição central, ativa, antes que de subalternidade ou alienação,

como antes eram apresentadas, é possível discutir a realidade, (des)organizar as

convivências ditas como fixas e imutáveis e expressar diversos modos de encarar a

vida. Levantando as contradições sociais e emocionais que constituem o entorno das

HQs, poderemos criar possibilidades de apreender o real e torná-lo mais fluído.

Mas, para tanto, será também preciso que a sociedade rompa com os

discursos antidiálogicos implementados e que um maior número de ações políticas seja

levado a efeito no país. Nessa perspectiva, entre sonhos e utopias, contribuímos com as

reflexões deste trabalho, que de nenhum modo, podem ser consideradas como fixas ou

finalizadas, mas em processo de aprofundamento, pois bem sabemos que o segredo de

qualquer ação, em oposição ao silêncio da omissão, é ser inclusive respaldada em dados

(principalmente científicos) que podem interferir para desestabilizar as contexturas tidas

como sólidas.

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