com o filmar o inimigo? · 2015. 4. 10. · amiga de uma jovem militante da fn, marie-hélène. e...

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COM O FILMAR O INIMIGO? Dez anos depois, eles mudaram; é preciso continuar a filmá-los...1 Final de 1995, dois anos antes era publicado “Mon ennemi préféré?” na revista Images Documentaires? Esse inimigo é a Frente Nacional (FN),3 seus dirigentes, seus quadros, seus militantes. Eu os havia filmado pela primeira vez nove anos antes, em Tous pourun !, sobre as eleições presidenciais de 1988, disputadas por Mitterrand e Chirac. E meu gosto pelas batalhas políticas em jogo aberto me levou, com Michel Samson4 e Anne Baudry, a filmar em Paris ou Marselha, alguns outros representantes em ação da FN. Hoje, esse partido cresceu por toda parte e eu continuo me fazendo as mesmas obstinadas e, talvez, vãs perguntas: é preciso, para combatê-la, filmar a FN? Como? A que preço, sob que riscos? As perguntas são as mesmas. Mas não completamente. Muitas coisas mudaram na Europa e na França nesses dez anos, mas, para mim, o que mudou foi principalmente o lugar da FN na vida política francesa. “Banalização”, dizem. Ocupação progressiva do país, eu diria. Não apenas das mentes, mas do espaço e do tempo, da geografia e da história, das instituições e das empresas, da linguagem e das lógicas.5 Tudo se passa como se a FN infundisse cada vez menos medo. E como se esse medo fizesse cada vez menos mal. “Foi só um susto”, é o que se diz h criança ferida para consolá-la. Incluo-me entre aqueles aos quais faz cada vez mais mal esse medo que se familiariza, se insinua, st* alinha r vagarosamente ganha o interior dos corpos

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Page 1: COM O FILMAR O INIMIGO? · 2015. 4. 10. · amiga de uma jovem militante da FN, Marie-Hélène. E nos fala dela. Esse encontro, parece-me, ganha sentido no momento em que Le Pen acaba

COMO FILMAR O INIMIGO?

Dez anos depois, eles mudaram; é preciso continuar a filmá-los...1

Final de 1995, dois anos an tes era p u blicad o “Mon en nem i préféré?” na revista Images Documentaires? Esse inimigo é a Frente N acional (FN ),3 seu s d irigentes, seu s qu ad ros, seu s militantes. Eu os havia film ad o p ela p rim eira vez n ove anos an tes, em Tous pourun!, sobre as eleições p resid enciais d e 1988, d ispu tad as p or Mitterrand e Chirac. E m eu gosto p elas batalhas p olíticas em jogo aberto m e levou , com Michel Sam son4 e Anne Bau d ry, a filmar em Paris ou Marselha, alguns ou tros rep resen tan tes em ação da FN. H oje, esse partido cresceu p or tod a parte e eu con tinu o me fazend o as m esm as obstinad as e, talvez, vãs pergu ntas: é p reciso, para com batê-la, film ar a FN? Como? A qu e p reço, sob qu e riscos? As perguntas são as m esm as. Mas não com p letam ente. Muitas coisas m ud aram na Eu rop a e na França nesses d ez anos, mas, para mim, o qu e m ud ou foi p rincip alm en te o lugar da FN na vida política francesa. “Ban alização”, d izem. Ocu p ação p rogressiva do país, eu diria. Não ap enas das m entes, mas d o esp aço e d o tem p o, da geografia e da história, das institu ições e das em p resas, da lingu agem e das lógicas.5 Tu d o se passa com o se a FN in fu nd isse cad a vez m enos m ed o. E com o se esse m ed o fizesse cad a vez m enos mal. “Foi só u m su sto”, é o qu e se diz h criança ferida para consolá-la. Inclu o-m e en tre aqu eles aos quais faz cada vez mais mal esse m ed o qu e se familiariza, se insinua, st* alinha r vagarosam ente ganha o in terior d os corp os

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e das alm as. Pen so em Leonard o Sciascia, p en so em Dashiell Ham mett, qu and o sin to - em Orange, em Tou lon , em Marignane, em Vitrolles - o m ed o d e ganhar su rd am ente as con sciên cias e gu iar secretam ente as cond u tas, op erand o sem estard alhaço, sem d ebate, p elo terrorismo cotid iano das p ressões, d elações, am eaças, in tim id ações, d ifam ações, injú rias íntim as, ataqu es ad hominem, calúnias, ru m ores.. .6 Pequ enas ignom ín ias organizad as e aceitas. Exten u ação da d im ensão p olítica p or d esp rezo m anifesto. O hom em red uzid o ao in teresse mais estreito. A d elação estim ulada. A su bm issão alard ead a com o m od elo.

Se existe (eu acred ito n isso) um u so p olítico d o cinem a e, esp ecialm en te, d o cinem a d ocu m entário, se é verd ad e (eu acre­dito n isso) qu e com o cinem a, arte d o corp o, d o gru p o e d o m ovim ento, torna-se finalm ente p ossível tratar a cen a p olítica segu nd o u m a estética realista, trazend o-a d e volta da esfera d o esp etácu lo para a terra d os hom ens, com o as op ções d e escritu ra n ão d iriam algo sobre a atual conjuntu ra? E o d ispositivo fílm ico, n ão daria con ta d o sen tid o qu e essa cen a p olítica rem aterializad a e reencarnad a ganha ou volta a encontrar? “Filmar p oliticam ente” (o slogan não é recen te) já seria valer-se d o cinem a para com ­p reen d er o m om en to p olítico em qu e algu ém filma.

MARIE-HÉLÈNE E BÉNÉDICTE

Em 1988, p ortan to, Tons pour unfJ Esse film e sobre os m ilitantes d o RPR e d o PS8 - os ú n icos em cam p anha, naqu ela ocasião, p or seu cand id ato à p resid ên cia - encon tra aqu eles qu e eu n ão tinha p revisto filmar, os m ilitantes da FN. N ossa heroína RPR, Bén éd icte, resp onsável p ela seção d e Bois-Colom bes, é am iga d e u m a jovem m ilitante da FN, Marie-H élène. E nos fala d ela. Esse en con tro, p arece-m e, ganha sen tid o no m om en to em qu e Le Pen acaba d e obter a m aior votação na França (15%) e qu and o eu ou ço falar - já - d os d esertores d o RPR. Film am os n o jard im d o Lu xem bu rgo um d iálogo en tre as du as m oças qu e com entam , rindo, os m éritos resp ectivos d e seus ch efes querid os, Le Pen e Chirac (qu al é o mais “d u ro”?). Brincad eiras em torno do extrem ism o qu e film ei, não sem p ensar nas heroínas de Rohm cr, com o um p asseio fora d o tem po. <) qu e se iralava de inscrever

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era da ord em d a d escoberta, para n ão d izer da surpresa. Com o uma m oça d os d ias de h oje p od eria ser partidária d e Le Pen? Ru estava estu p efato, e esp erava en tend er isso m elhor film and o-a. Eu dizia a mim m esm o, aind a d igo, qu e film ar é p ercorrer um tem p o de exp eriên cia em qu e a relação d o su jeito com seu corp< > e sua palavra se d esd obra e, ao m esm o tem p o, se in tensifiea. Uma d inâm ica d e en carn ação dos m otivos d o p en sam en to se torna p ossível, recon hecível. Se o Ou tro se encarna, para mim, isto acon tece, an tes d e tu d o, n os film es. Acrescentar, film and o-o, corp o - gesto, palavra, m ovim ento, sinu osid ad e - à id eologia d o ou tro é, ev id en tem en te, rep resen tar essa id eologia com mais força, ou seja, talvez p rovocar uma reação mais viva no esp ectad or, d ar-lhe mais m aterial a ap reend er e mais d esejo d e com bater. Portanto, a cu riosid ad e se sobrep oria à repu lsa. No en tanto, film and o à noite uma equ ip e da FN (eles pregavam cartazes para a festa de Joan a d ’Arc, qu e Jean -Marie Le Pen já havia incorp orad o e . - p ela p rimeira vez, ach o - antecip ava em uma sem ana, para n ão p or acaso coincid ir com o Prim eiro de Maio dos trabalhad ores), cham ou -m e a atenção algo qu e mostrava o avesso da sed u ção d esp reocu p ad a d e Marie-H élène. Um cios p regad ores de cartazes da FN, velho m ilitante, sem qu alqu er m otivo ap aren te além d o fato d e estar send o film ado, entoava um refrão sobre os negros cond u zid os a golp es de cassetete paca as colôn ias. No m esm o instante, firm em ente, o ch efe da equipe* ord enava-lhe silêncio. Aqu i não, você não, agora não! Expressar- rep rim ir, escon d er-exib ir , a cen a cin em atográfica indu zía e registrava a d em onstração em atos d esse m ovim ento pend u lar qu e caracteriza, ach o eu , a am bígua relação da FN com a “mídia" (“os p an fletários”), am ad a e, ao m esm o tem p o, vaiad a em seu s meetings. De um lad o, a obsessão d e se fazer notar e porta n(< > de se mostrar, d e se ap resen tar com o d iferente d e tod os os ou tros, a parte, ú nico, in tacto, até o excesso e o insu portável, e, de outro, aqu ela obsessão d e d enu nciar a consecu tiva exibição, pela mídia, d essa d iferença, d essa estranheza, com o uma injustiça e uma censu ra. Esse d u p lo m ovim ento, ao m esm o tem p o d en egação e d eslocam ento, qu e significa se p osicionar com o vítima de Iodas as agressões, no lugar de Iodas as vítimas (vítima, por exem p lo, do anti-sem itism o no lugar dos ju d eu s...),0 é inexoravelm ente registrad o c o m o í i i m t í ç »i u verd ad eiram en te ein em atograíica,

Camila Matos
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fixação sincrônica dos voláteis acting out qu e d esm ascaram a violência escond id a d os sentim entos reais. Estamos d entro de uma lógica de d esvend am ento em ocional. Agente d e con hecim en to, o cinem a p od e ap enas rom p er as d efesas d o in im igo, sem ir até a exp osição d e suas forças ou fraqu ezas, d esm ontar suas engrenagens, fazer ap arecerem suas con trad ições. Filmar para m elhor con h ecer, mas não ainda filmar para m elhor com bater.

“NÃO ME TOQUE!"

Qu atro anos m ais tard e, 1992, 1993, são esses m esm os acting qu e, mais uma vez, p od em os filmar em La Campagne de Provence e em Marseille en mars. Na esqu ina d e uma rua de Marselha, a rua H enri-Barbu sse, sim bolicam en te rebatizad a (já) “rua Charles- Martel”, um grupo d e m ulheres militantes da FN, d iante da câmera, xinga uma m u lher qu e não é vista, m as qu e se d efend e fora d e cam p o (o cameraman, Jean -Lou is Porte, colocou -se ao lad o d essa m u lher invisível - e é com o se nós estivéssem os em seu lugar). “Volte para o seu p aís!”, gritam para ela bem na cara (a da câm era, p ortan to). O país é a Argélia, qu e n ão é mais “fran cesa”, com p reen d e-se, m as qu em é a m u lher qu e está send o insultada? Ela som os nós, nós estam os em seu lugar. O d ispositivo fílm ico (essa m u lher agred id a jam ais será vista) d esvend a tod a a raiva d aqu elas qu e gritam, ao m esm o tem p o, contra a estrangeira e contra a câm era. Violência não apenas exibid a com o projetad a em nós, esp ectad ores. Aqui, a mise-en-scène com and a o sentid o. Os corp os film ad os sabem qu e são film ad os e se exp õem com ód io ao d ispositivo qu e os afirma - d esvelam ento - tais com o são.10

Gard an n e. Le Pen p ercorre a p assos largos o m ercad o, sorrindo, am ável com seus admiradores. Perto d ele, um segurança qu e, para p rotegê-lo, esbarra nele. Le Pen sobressalta-se, um ricto d e violência invad e seu rosto. “Eu d isse a você para não en costar em mim! Eu n ão gosto qu e en costem em mim d esse jeito!” Film ad os, esse gesto e essas palavras fóbicos abrem -se su bitam ente para a outra cen a qu e am eaça, atrás d os sorrisos e da bond ad e. N eles, in screve-se algo da relação entre a idéia política e o corp o p olítico, relação qu e somente* o cinem a p od e revelar e d esd obrar. À partir d o m om ento em qu e se encarna e

nu

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se rep resen ta, um p od er se torna sua p róp ria caricatu ra. Nem é p reciso forçar o traço, ele se força p or si p róp rio. A som bra se d esloca ao m esm o tem p o qu e a lu z.11 É o qu e eu sem p re p en sei sobre o p od er filmado. Uma luva p elo avesso. Pod em os ver as costu ras, a carcaça. Acon tece qu e a FN não está (aind a não, e não em tod os os lu gares) n o p od er: é seu p otencial crescim en to (resistível ascensão?) qu e d everia ser film ado h oje com o a carcaça de n ossa socied ad e.

SER E NÃO SER, TER SIDO E NÃO TER SIDO

Posto qu e d esenrola uma fita de tem p o m aqu ín ico sincrôn ica com o tem p o vivido d o su jeito film ad o, o cinem a p od e registrar a p assagem d e um estad o d e en u n ciação a ou tro, a rup tura de u m a cond u ta, o p on to de d esequ ilíbrio d e um corp o em torno d e uma d enegação. Mas com o, film and o-o, d esmontar, p or exem p lo, o rébu s qu e d osa com p recisão m ean d ros e d eslizam en tos sign ifican tes e faz com qu e Le Pen p asse, no m esm o d iscu rso, da Aids ao sind icalism o d ocen te, e da ped ofilia à Liga d os Direitos do H om em ?12

Há um a su tileza p erversa d o fascism o à francesa, qu e tem a ver com o fato d e qu e ele constan tem en te n ega a si m esm o (Wieviorka diz “nacional-p op u lism o”) 13. Essa d en egação bloqu eia a in tervenção cinem atográfica, assim com o paralisa a lu ta política, muito im potente contra um inimigo qu e se esqu iva em sua própria exibição. Com o rep resentar, com efeito, o m ecan ism o tortu oso qu e faz com qu e a d enú ncia das ignom ínias habitu ais da FN, até m esm o d os seu s crim es - sem p re negad os, p ortan to, ao m esm o tem p o qu e realizad os seja transform ad a em argu m ento d e sed u ção sup lementar? Acho qu e só m esm o Lubitsch, o Lu bitsch de Ser ou não ser; claro, p od eria d esm ontar uma engrenagem d esse tip o — qu e acaba p or tend er ao nonsense. Lem brem o-nos, por exem p lo, das d eclarações qu e se segu iram ao assassinato d c Ibrahim Ali em Marselha, em fevereiro d e 1995. Acusada, a FN com eça p or negar o ato, mas uma n egação qu e fu nciona com o uma afirm ação cod ificad a (foi a vítima qu e atacou os seus assassinos). À publicidade dada à acu sação se acrescenta, portanto,

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aqu ela d ad a à sua rejeição. Du p lo ben efício. Tod o ato efetu ad o e negad o exibe-se, assim , duas vezes. Confissão cod ificad a e con tra-con fissão tonitru ante, A p alavra “n egacion ism o” já foi cu nhad a p or ou tras razões, m as observo qu e ela rem ete ao m esm o sistem a de d en egação. Revirar os enu nciad os, ap agar os vestíg ios, virtu alizar a m em ória. Dian te d isso, p ara n ão ren u n ciar ao com bate, seria p reciso m an ter a id éia d e u m a resistência in trínseca (on tológica) d o cinem a à p rogressão atual d os revisionism os. Ao m esm o tem p o qu e a d uplicidad e, o cinem a fabrica o vestígio qu e registra essa d up licid ad e. Contra as míd ias d e m assa qu e fazem circu lar u m p rincíp io d e reversibilid ad e geral e substitu em nossas dúvidas p or uma dúvida objetiva e generalizad a, um equ ívoco institu ído, favorecend o, na verd ad e, tod as as revisões, o cinem a se obstina em registrar o qu e ele p rod u z e p rovoca. O vestígio cinem atográfico, tem p o e d u ração em sincronia com a ação filmada, m antém aqu ilo qu e se ap aga e, a d esp eito da am bigü id ad e essen cial de tod o jogo de im agens, n ão pára d e inscrever e reinscrever a cad a p rojeção o real d os corp os film ados. Esse vestígio se op õe ao circu ito da in form ação- m ercad oria, em qu e tod a coisa rep resentad a tend e a m ud ar de sinal, verd ad eiro e falso, real e virtual, p resen te e possível. Essa crep itação d os sinais nas p rod u ções m id iáticas zom ba do cinem a com o herd eiro da cen a real da antiga rep resen tação, aqu ela qu e fabrica um terceiro en tre o ou tro e mim, aqu ela qu e m ed e o p eso d os corp os e pisa nos esp inhos d o real. Glorificação d o corp o filmado, fetich ização d o vestígio, religião da inscrição verd ad eira, sim, visto qu e o cinem a - corp o, vestígio, in scrição - se op õe às roteirizações e m od elizações em vigor, d esd e qu e se m antenha no p on to d e rup tura das linguagens.

MÉGRET EM LUZ VERDE

Em 1992, os corp os a serem film ad os eram os d os cand id atos da FN às eleições regionais de Provence-Alp es-Côte d ’Azur, Le Pen e Mégret. É a outra verten te da in scrição verd ad eira, o qu e se registra não é mais a fratura da cena, mas sua coerên cia.

O corp o do inim igo no d ocu m entário não e transferido para um ou tro corp o, aqu ele de um ator; cie esta la “de verd ad e",

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“em carn e e o sso”, p resen ça real d ian te da câm era, am eaça ou arm ad ilha, mas, ao m esm o tem p o, p ed aço de hu m anid ad e bem hu m anam ente viva, até naqu ilo qu e ela teria d e od ioso ou d etestável. Esse corp o n ão am ad o é a p rova d e verd ad e d o d ocu m entário, qu e n ão sabe, não d eve e n em p od e d ele se livrar. Mesm o qu e o in im igo seja exatam ente o qu e é, as con versações estão em cu rso, há p actos em vista, é p reciso com ele se en tend er e estabelecer uma relação com o com qu alqu er ou tra p essoa film ad a, am iga ou neu tra. Com o cond u zir essa relação? Aí está o qu e incita o cineasta e m old a o film e.14 Os riscos são, evid entem ente, m enos de hostilidad e (a filmagem cessaria) do qu e d e con ivên cia ou com p lacência. Estamos bem longe da ficção, na qual eu escolh o os atores e o corp o, na qu al o d inheiro in terfere, na qual sei qu e o artista é m antid o p or contrato. No d ocu mentário, a p essoa film ad a p od e, a cad a m om en to, p ôr fim ao filme. As n egociações com o in im igo qu e se encarna a si m esm o e com o ator qu e en carn a o in im igo não são, en tão, da m esm a ord em . E o d esejo n ão é o m esm o. Eu p osso d esejar o corp o d e um ator e p ed ir-lhe qu e não d eseje o corp o d o seu p ersonagem . Le Pen n ão é Welles in terp retand o Macbeth , nem Charles Laughton em Tempestade sobre Washington. Diante d o h om em p olítico, n ão p osso d issociar o corp o film ad o da id éia ou d o p od er qu e ele en carna. Eu rejeito aqu ilo qu e m e repu lsa, mas d evo atar e não romper. Dep en d ên cia d o d ocu m entarista - mas ao m esm o tem p o p otência d a relação, mais m atricial d o qu e na ficção. Não se filma sem amor, sem d esejo, sem inconscien te, sem corp o; mas tam bém não se filma sem con sciência, sem moral, sem cálcu lo, sem gostos e d esgostos. Qu estão d e corp o. Foi, an tes d e tu d o, a partir da reticência d e Michel Sam son, a partir d e sua recu sa de qu alqu er p roxim id ad e com os corp os hostis, qu e se elaborou uma mise- en-scène para filmar a FN em La Campagne de Provence. Michel Sam son, qu e traz a cham a e a cinza d essa con fron tação, não é um “ator”, ele é o m eu alter ego, cú m p lice p olítico e, ao m esm o tem p o, cinem atográfico. Seu corp o in terp osto nos rep resen ta e nos exp õe, a am bos, d iante d o inimigo. Ora, am igos ou inimigos, os p ersonagens d e um filme com p artilham a cen a e m esm o o qu ad ro (os com bales, os d u elos). Aqu ilo qu e eu ch am o d e uma ’‘com unid ad e cinemat< >gr;íttea” os reúne. É o qu e eu d izia em 1995 (perm itam me citar este p rimeiro: “Filmar o in im igo”):

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D e u m lad o, m eu inim igo e eu , ou seja, “d ois”. De ou tro lad o, p arad oxo, esse “d ois”, um a vez film ado, é su p lem entad o p or um terceiro, qu e é a relação filmad a entre “u m ” e “u m ”. A partir d o instante em qu e são film ados ju ntos, a d istância qu e sep ara o am igo d o in im igo é pu ra ficção, p rojeção, e não mais inscrição. E essa d istância se reduz tam bém para mim, esp ectad or, p ois é, en tão, d o m eu olhar qu e eles se ap roxim am . Com o escap ar d essa inclinação fatal d o cinem a qu e im p õe - obsessão baziniana15 - qu e filmar ju n tos os ad versários seja, conseqü en tem en te, ap roxim á-los um d o ou tro (e am bos d e mim)?

Qu and o nos p rop u sem os a fazer La Campagne de Provence,16 havíam os acabad o d e fazer Marseille de père en fils (1989), em qu e tínham os film ad o, mas não m ontad o, d iversas cen as com os m ilitantes e qu ad ros da FN. Aqu ela exp eriência nos havia ch o ­cad o. Aqu elas p essoas eram agressivas, delirantes. Não gostavam qu e as film ássem os, e nós não gostávam os d e filmá-las. Três anos d ep ois, não tínham os mais escolha: era p reciso filmá-los, Le Pen e Mégret, sobretu d o p orqu e eles haviam tom ad o de assalto a Provence, atacand o em n osso terreno, em resum o. Ora, eles haviam m ud ad o. As câm eras (e não ap enas a n ossa) estavam no encon tro. Sem p re od iad as, sem p re insu ltadas, mas p rontam ente con vocad as na hora certa. Mal-estar. Não qu eríam os estabelecer um a relação d e fam iliarid ad e com a FN, com o havíam os feito em Marseille de père enfils com os filhotes socialistas d e Defferre, ou m esm o com Jean -Clau d e Gau d in (longas entrevistas “analí­ticas”). Conseqü ência: para evitar tratar “à p arte” a FN e cair na arm adilha da exceção (ver an teriorm ente), d ecid im os ad otar o m esm o princíp io, o da d istância atenta, já qu e tod os os partidos estavam com p etind o. Para a palavra p ú blica (a p olítica), cinem a­tografia p ú blica. Objetiva ú nica (e m éd ia: 20 mm em betacam ), circu nstâncias p ú blicas, “nenhu m a entrevista singu lar qu e não se fizesse no m eio de tod os, à m aneira d os apartes no teatro”. Form alizar a relação, sistem atizá-la. Qu e ela seja legível com o tal, qu e a in form ação política d o esp ectad or seja tam bém sobre a form a da relação.

Ta n t a s b o a s in t e n çõ e s a ca b a r a m s e n d o m u ito p esa d a s p u ra n ós. À m ed id a q u e a s s e m a n a s se p a s sa v a m , <ju e u p la n o d e ba t a lh a d a l'N se r ev elav a e se e xe cu t a v a m a h 1« H lem en le , -sen liam o n u s

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p rovocad os a fazer, cinem atograficam en te, fren te àqu ela ofen ­siva organizad a. As p erform an ces d e Mégret, p or exem p lo, nos incitavam a transp or n osso d isp ositivo d e d istância igualitária. E estávam os ten tad os, sem rom p er o d isp ositivo, a m od ificá-lo. Mesm o qu e fosse só para n ão p arecer, a n ossos p róp rios olhos, qu e éram os cú m p lices d aqu ilo qu e film ávam os. Os meetings, p or exem p lo, em qu e se p roferiam m onstru osid ad es. Então, nos p arecia, u m a certa v iolência d os enqu ad ram entos pod ia dar conta da v iolên cia das palavras.

Era o qu e eu escrevia em 1995. Mas eu p od eria ter d ito tam bém : uma estranheza das lu zes - verd es - para au reolar certos delírios. Aqu elas ten tações d e intervir, ap esar da regra qu e nos havíam os determ inad o, tornavam -se irresistíveis na m ontagem , com a ironia irritante da m ú sica de Louis Sclavis. Passagem de uma lógica a ou tra, salto das trilhas labirín ticas d o cinem a para os cam inhos balizad os da p rop agand a.

Isso era, sem dúvida, nos m ostrarm os ao m esm o tem p o militantes e ingênu os. H oje, três anos d ep ois e algu ns p on tos p ercen tu ais a m ais d e ad esão p op u lar à FN, esse tip o d e m aneirism o, qu e d u p lica a d istância qu e havíam os estabelecid o com aqu eles qu e filmávamos, p arece-m e u m esforço qu ase qu e d esesp erad o. Longe d em ais/p erto dem ais: velha qu estão da mise-en-scène. Brincad eira d e gangorra, jogo d o “p erd e qu em gan h a’?

Esta a pergu nta qu e eu fazia: com o incitar o esp ectad or em d i­reção a um sentim ento d e horror e d e revolta lógica d iante das m onstru osid ad es cotid ianas da FN, sem fazê-lo d eleitar-se nem com o horror, n em com sua d enú ncia espetacu lar?

A QUESTÃO DAS ALIANÇAS

Em m aio d e 1997, eleições legislativas, film am os La question cies alliances. Mais uma vez, Marselha.17 Se essa qu estão se tornou p reocu p an te, foi para a d ireita p arlam entar, RPR e UDF. É sobro cia qu e se exerce a p ressão d a extrem a-d ireita. Há as p osições do p rincíp io e as realid ad es d o cam p o eleitoral. O qu e qu er qu e possa p ensar na esfera privada, a d ireita governava d eclarand o sua hostilid ad e publica a FN, qu e, por sua vez, a com batia cm nom e d os “valores" qu e a d iiciia leria lra ítlo .1M Mas, liojc, uma

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Camila Matos
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parte d essa d ireita - p olíticos, quad ros, militantes: tantas p essoas, qu eiram os ou n ão, da elite p olítica fran cesa - fala abertam ente em fazer alianças mais ou m enos “circu nscritas” com a FN. Bru no Mégret,19 qu e n ós film am os, esp era qu e as alianças cond u zam a cu rto p razo à “d ecom p osição” d essa m esm a d ireita qu e diz d esejá-las, para ch egar à recom p osição de uma “d ireita n acion al” em torno da FN e sob seu con trole. Tal m e p arece ser o risco p olítico para os p róxim os tem p os: qu e uma d ireita esfacelad a, atabalhoad a, venha abrir a porta e en tregar o p od er à FN; qu e n o âm ago d e n ossas fam osas elites, insu ltad as p elas lad ainhas d a FN, algu m a fração m asoqu ista ad ote a política d o qu an to p ior m elhor.

A qu estão das alianças (qu al amigo? qu al inimigo?) é uma qu estão d iretam ente política, qu e vai além dos tem as id eológicos, afetivos, m orais (Cari Schm itt). Cada uma das cin co m aiores form ações p olíticas da França p od e se ver na situação d e p recisar se aliar a u m p rim eiro in im igo (p or mais d etestável e d etestad o qu e seja) para com bater um segu nd o in im igo consid erad o m ais am eaçad or. A esqu erd a com a direita contra a extrem a-d ireita. A d ireita com a extrem a-d ireita contra a esqu erd a. Não se trata m ais ap enas d e ap rovar ou con d enar “as id éias” d e Le Pen, m as d e p erd er ou ganhar um escru tínio, sobreviver ou d esap arecer com ou ap esar d os votos qu e se ganharão d os cand id atos da FN. Portanto, na d ireita encontram -se os partid ários - e os adversários- d e um acord o “realista” qu e cond uziria, localm en te d e in ício, d ep ois nacionalm ente, a uma d ivisão d os p od eres en tre os d ois partid os de d ireita (RPR e UDF) e a FN. E já vem os as m anobras d e sed u ção, isolam ento ou coop tação d e uns p elos ou tros nas cid ad es de Tou lon , Vitrolles, Marignane.20

Isso qu er d izer qu e o partispris d o cineasta - filmar a FN, não importa o qu anto lhe custe, para com batê-la conhecend o-a m elhor- se vê confrontad o com outra lógica, política, a qual p ressu poria o in teresse de uma aliança com aqu eles m esm os atores qu e se d eve com bater, o “d iabo” d e ontem se m etam orfoseand o d iante de n ossos olhos em p otência p olítica d igna d este nom e. In sen si­velm ente, vem os, verem os cad a vez mais, a repulsa se transformar em vaga atração fatalista. “Dep ois d e t u d o , e “por qu e não?”. F. isto qu e seria importante1 mostrar h o je , qu<* a FN e s l ã tom and o o

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p od er p oliticam ente, com u m a mistura de terror e sed u ção qu e fisga os seu s inimigos. Não se trata m ais d e “d escobrir” ou de “ex­p lorar7’ cinem atograficam ente as terras qu e continu am tão p ou co con hecid as da Frente Popu lar, seu s ad ep tos, u sos e costu m es. Acreditamos, juntam ente com Michel Samson e com Anne Baudry, qu e a u rgência era d escrever e mostrar, fazer ouvir, o qu e fazia, o qu e d izia a FN, em prim eiro lugar, p orqu e a tarefa fu nd am ental d o cinem a está ligada ao d esejo de con h ecer e d e com p reend er, trabalho elem en tar de form ação d o cid ad ão, tarefa qu e a míd ia, aliás, cu m p re tão p recariam ente (.La Campagne de Provence é, sem dúvida, o ú n ico registro film ad o das cinqü en ta “m ed id as” da FN anu nciad as p or M égret...). Não estam os mais n aqu ele p on to. Será qu e passam os d aqu ele p on to sem volta em qu e nem a mais assu stad ora d escrição é su ficien te para nos infund ir medo? A FN tornou -se a tal p on to atraente para suas p róp rias vítimas? Com qu e en can tos ela p od e sed u zir esses hom ens p olíticos de d ireita qu e aind a se d izem rep u blicanos e qu e ela acabará p or destruir? H oje, a qu estão é p olítica. É p ossível acred itar na FN qu and o ela se p roclam a “con tra” os partid os políticos, ternam ente cham ad os d e “ban d o dos qu atro”? Qu eiram os ou não, a FN é um partid o p olítico, qu e governa p oliticam en te tais cid ad es, qu e d isp õe d e u m p rogram a, d e qu ad ros, d e estru tu ras p olíticas, qu e tem am bições políticas. Mascarad o sob u m a retórica antipartido, ele nad a é além d e um partid o, qu e é p reciso d esm ascarar com o tal, para com batê-lo p oliticam ente.

Para o cineasta, “p oliticam en te” qu er d izer p u blicam en te, abertam ente, exp licitam ente. Film ar abertam ente as p essoas da FN - com o se filmam os ou tros h om en s p olíticos, nem mais e nem m enos. Tornad o p eça da engrenagem das alianças p ú blicas, o in im igo muda de lugar: trata-se de film ar essa m u d ança para con tinu ar a com batê-lo. Do p on to de vista da m ais rad ical das nâo-alianças, filmar a am eaça d a aliança. Em abril de 1992, em Martigues, film ávam os Bru no Mégret, qu e sorria ao constatar o qu anto a FN já havia “consegu id o a vitória id eológica”, d ifund indo sua pauta, suas palavras de ord em, suas idéias n o d iscu rso p ú blico das outras form ações políticas, esqu erd a inclusive, para conclu ir qu e “a vitória id eológica sempre* p reced e a vitória p olítica”. Em maio de 1907, em Vilrolles, chegou o m om ento d e Mégret tentar alcançar essa vi(oria p olítica .'1 I\ nos nao o film am os cia mesma

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m aneira d e cin co anos atrás. Não tínham os mais necessid ad e das lu zes verd es e das m ú sicas estrid entes. Derrota da p ropagand a, tanto m elhor!

Descrever para d enu nciar não é mais su ficiente. Forçar o traço para denunciar, tam bém não. Denu nciar para preservar nossa boa con sciên cia e nos colocarm os ao lad o d os bons? Denu nciar n ão é m ais su ficien te. Falem os d e lu ta. Luta p olítica, isto é, corp o-a- corp o cinem atográfico - exp or, exp licar, colocar as palavras e os corp os em p ersp ectiva, e não mais chap ad os. Film ar com p rofu n ­d id ad e (d e cam p o, de cen a). Cam p o e fora-d e~cam p o. Visível e invisível. Em relevo, colocar em relevo. Film ar a transform ação política da FN, isto é, trabalhar p acien tem en te a m assa política d o m om ento, ou seja, dar corp o e p resença ao in im igo para qu e ele ap areça em sua p otência, tal com o ele se ap resen ta hoje na cen a p olítica - u m a am eaça a ser levad a a sério. Aqui, o horror n ão é caricatu ral. Ele está n o p en sam en to lóg ico, na racion alização, n o cálcu lo, na n egociação. O horror está na con cretização da mais m ed itad a aliança.

Debilm ente ainda, o d iscu rso p ú blico ou sa articular o qu e interd itava a si m esm o alguns m eses antes. O am bien te é de ap roxim ação, d e sorrisos, d e sorrisos p erigosos. A morte rond a, sorrid ente, afável, ela já p ou sou sua m ão sobre esse om bro, ela p od e voltar. Com ela, voltam os fantasm as d o p assad o, fascism o, gau llism o. Essas som bras passam n o m eio de corp os qu e são cad a vez mais reais, cad a vez mais esp essos. Pois agora isso se reencarna. As idéias d o in im igo ganham em corp oreid ad e. É isso qu e dói.

Camila Matos
Camila Matos