colÓquio globalizaÇÃo, pobreza e migraÇÕes · perdidos no tempo, estas gentes vêm bater às...

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GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E MIGRAÇÕES COLÓQUIO ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA FACULDADE DE ECONOMIA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 9 DE MARÇO 2007 LAND AREA MAP www.worldmapper.org PORTUGAL PORTUGAL GDP WEALTH MAP ( www.worldmapper.org 2002) CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA

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GLOBALIZAÇÃO,POBREZA EMIGRAÇÕES

COLÓQUIO

ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA

FACULDADE DE ECONOMIA UNIVERSIDADE DE COIMBRA9 DE MARÇO 2007

LAND AREA MAPwww.worldmapper.org

PORTUGAL

PORTUGALGDP WEALTH MAP (www.worldmapper.org

2002)

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOSNA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA

ABERTURA INTERVENÇÕES DE: PRESIDENTE DO CONSELHO CIENTÍFICO DA

FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

E DIOGO FREITAS DO AMARAL

FILME ÁFRICA EM PEDAÇOS: A TRAGÉDIA DOS GRANDES LAGOS,

DE JIHAN EL TAHRI E PETER CHAPPELL

DEBATE COM A PARTICIPAÇÃO DE: DIOGO FREITAS DO AMARAL,

MARIA IOANNIS BAGANHA, GEORGES COURADE, JOSÉ LEITÃO,

MANUEL MEDINA ORTEGA E LAHCEN OULHAJ

COLÓQUIO GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E MIGRAÇÕES

MARIA IOANNIS BAGANHA (FEUC): GLOBALIZAÇÃO E DINÂMICAS MIGRATÓRIAS EM PORTUGAL

GEORGES COURADE (SORBONNE): LE MALENTENDU POSTCOLONIAL EURAFRICAIN AUTOUR

DES MIGRATIONS DES SUBSAHARIENS

JOSÉ LEITÃO (ALTO-COMISSÁRIO PARA A IMIGRAÇÃO E MINORIAS ÉTNICAS DE 1996 A 2002;

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA): A IMIGRAÇÃO E O FUTURO DAS RELAÇÕES ENTRE A UNIÃO

EUROPEIA E A ÁFRICA

MANUEL MEDINA ORTEGA (UNIVERSIDADE DE LAGUNA, CANÁRIAS): A EUROPA FACE AOS

NOSSOS FLUXOS MIGRATÓRIOS

LAHCEN OULHAJ (UNIVERSIDADE DE RABAT): GLOBALIZAÇÃO, MIGRAÇÕES E POBREZA,

UM PONTO DE VISTA MARROQUINO

MODERADORES: JOSÉ MANUEL PUREZA (FEUC) E ANTÓNIO GAMA (FLUC)

ENCERRAMENTO INTERVENÇÃO DE: PRESIDENTE DO CONSELHO DIRECTIVO

DA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS

NA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA

ABERTURA INTERVENÇÕES DE: PRESIDENTE DO CONSELHO CIENTÍFICO DA

FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

E DIOGO FREITAS DO AMARAL

FILME ÁFRICA EM PEDAÇOS: A TRAGÉDIA DOS GRANDES LAGOS,

DE JIHAN EL TAHRI E PETER CHAPPELL

DEBATE COM A PARTICIPAÇÃO DE: DIOGO FREITAS DO AMARAL,

MARIA IOANNIS BAGANHA, GEORGES COURADE, JOSÉ LEITÃO,

MANUEL MEDINA ORTEGA E LAHCEN OULHAJ

COLÓQUIO GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E MIGRAÇÕES

MARIA IOANNIS BAGANHA (FEUC): GLOBALIZAÇÃO E DINÂMICAS MIGRATÓRIAS EM PORTUGAL

GEORGES COURADE (SORBONNE): LE MALENTENDU POSTCOLONIAL EURAFRICAIN AUTOUR

DES MIGRATIONS DES SUBSAHARIENS

JOSÉ LEITÃO (ALTO-COMISSÁRIO PARA A IMIGRAÇÃO E MINORIAS ÉTNICAS DE 1996 A 2002;

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA): A IMIGRAÇÃO E O FUTURO DAS RELAÇÕES ENTRE A UNIÃO

EUROPEIA E A ÁFRICA

MANUEL MEDINA ORTEGA (UNIVERSIDADE DE LAGUNA, CANÁRIAS): A EUROPA FACE AOS

NOSSOS FLUXOS MIGRATÓRIOS

LAHCEN OULHAJ (UNIVERSIDADE DE RABAT): GLOBALIZAÇÃO, MIGRAÇÕES E POBREZA,

UM PONTO DE VISTA MARROQUINO

MODERADORES: JOSÉ MANUEL PUREZA (FEUC) E ANTÓNIO GAMA (FLUC)

ENCERRAMENTO INTERVENÇÃO DE: PRESIDENTE DO CONSELHO DIRECTIVO

DA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS

NA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

ÁFRICA COMEÇOU MAL, ÁFRICA ESTÁ MAL: A TRAGÉDIA AFRICANA

Eles estão a chegar!Uma justificação para os títulos África começou mal, África está mal: a tragédia africana e Globalização, Pobreza e Migrações

3

Já não é o deserto que avança, são os homens e as mulheres que serpenteiam as areias, guiados por uma luz ilusória, e que, no final do percurso, acabam por se lançar contra as barreiras de arame farpado. Alguns fazem escadas com canas, outros escalam estas barreiras movendo pés descalços e mãos nuas. O vento cria buracos nestas fronteiras que os africanos ultrapassam com força e determinação, dispostos mesmo a perderem a vida. Como as suas vidas foram saqueadas, eles querem-nas mudar, eles querem salvar a dos seus filhos que permaneceram no país. Estes têm tempo de se familiarizarem com a própria morte.

Para além do choque das imagens e da emoção, esta nova desesperança não só nos fala como vem ter connosco, europeus bem favorecidos pela sorte, filhos caprichosos da democracia. E que nos diz ela? Simplesmente que a África, ou mais simplesmente aquilo em que este rico e apaixonante continente se tornou, é parte do nosso futuro.

Eles estão a chegar!Uma justificação para os títulos África começou mal, África está mal: a tragédia africana e Globalização, Pobreza e Migrações

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Já não é o deserto que avança, são os homens e as mulheres que serpenteiam as areias, guiados por uma luz ilusória, e que, no final do percurso, acabam por se lançar contra as barreiras de arame farpado. Alguns fazem escadas com canas, outros escalam estas barreiras movendo pés descalços e mãos nuas. O vento cria buracos nestas fronteiras que os africanos ultrapassam com força e determinação, dispostos mesmo a perderem a vida. Como as suas vidas foram saqueadas, eles querem-nas mudar, eles querem salvar a dos seus filhos que permaneceram no país. Estes têm tempo de se familiarizarem com a própria morte.

Para além do choque das imagens e da emoção, esta nova desesperança não só nos fala como vem ter connosco, europeus bem favorecidos pela sorte, filhos caprichosos da democracia. E que nos diz ela? Simplesmente que a África, ou mais simplesmente aquilo em que este rico e apaixonante continente se tornou, é parte do nosso futuro.

5 4

Este caos, sem que a gente o espere, espera-nos, envia-nos mensagens. Cabe-nos a nós descodificá-las e tê-las em conta, isto é, cabe-nos medir a gravidade do problema e a dimensão das suas consequências.

A descolonização não somente foi concluída de forma apressada como foi também sabotada, um pouco por toda a parte, onde as riquezas naturais atiçaram tantos interesses. A pilhagem de África foi sendo afinada ao longo do tempo, tornando-se um sistema paralelo, onde as funções estão bem distribuídas. Quanto menos organizados estão os Estados, mais fácil é então a pilhagem. Um Estado de direito solidamente instalado não toma o partido das sociedades que pretendem investir em África na forma como muitos o têm feito até aqui. De facto, as infra-estruturas, como as estradas por exemplo, são propostas às empresas estrangeiras cujo comportamento reforça o sistema de corrupção, compadrios e de ineficácia. Dá-se com uma mão o que se recupera com a outra. É necessário parar esta hipocrisia que alimenta as ligações desonestas mantidas com esta África nova pelos antigos colonizadores. Resultado: os países estão condenados a uma espécie de empobrecimento e marginalização. Os cérebros fogem, os jovens bacharéis assumem a via da emigração selvagem, a casta dirigente, militar ou civil, é mantida no poder através de comportamentos viciados, cuja finalidade consiste em garantir os interesses do protector.

Já no início dos anos 60, René Dumont, este homem do terreno, visionário, alertava o mundo com um livro panfleto com um título brutal: África começou mal. Ele tinha fortes intuições e, hoje, ninguém mais se atreveria a contradizê-lo. Não somente ela começou mal como também não chegou a lado nenhum, a não ser aos cemitérios que a epidemia de SIDA e doutras maldições como a fome e a guerra enchem copiosa e generosamente. Outros diriam que ela chegou ao espaço do esquecimento, aí onde nenhum olhar a vê, onde nenhum ouvido a ouve.

Um território tão seco como o deserto, tão branco como a morte que desajeitada e dramaticamente até as crianças espolia.

O mundo praticamente aceitou que milhões de africanos desapareçam na indiferença. E espantam-se de ver alguns milhares de homens e mulheres atravessar, a pé, o deserto de vários países e a dirigirem-se para uma fronteira em terra africana, cheia de buracos, e que dá para uma terra europeia.

Estas pessoas esfomeadas que marcham dias e dias, para não dizer meses, estas sombras escapadas à própria noite, estes viajantes perdidos no tempo, estas gentes vêm bater às nossas portas, dignamente, e fazem o gesto com a mão para expressarem a sua fome. Alguns foram despojados pelos passadores, verdadeiros mafiosos, e prosseguiram a sua marcha infinita. "Estas pessoas da periferia, habitantes dos bairros pobres da história… estes comensais não convidados, passados pela entrada de serviço do Ocidente, estes intrusos que chegam ao espectáculo da modernidade no momento em que as luzes se vão apagar", como o escreveu Octávio Paz a propósito dos latino-americanos que entravam na América, forçando as fronteiras, estes milhares de seres que ninguém quer à sua mesa não nasceram para errar no deserto nem para arriscar a sua vida numa embarcação duvidosa ou para se lançarem sobre o arame farpado. Não nasceram com a maldição nos genes nem com um destino votado à infelicidade.

Não são convidados e contudo eles estão lá: nós somos todos africanos, dizem os albaneses, os habitantes do Maghreb, os indianos, os paquistaneses, os filipinos…

O planeta vacila e o mundo contenta-se em colmatar o medo e em encorajar o isolamento. As fronteiras fecham-se, fala-se de invasão, procura-se abrir os campos de retenção na Líbia, espaços onde são

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Este caos, sem que a gente o espere, espera-nos, envia-nos mensagens. Cabe-nos a nós descodificá-las e tê-las em conta, isto é, cabe-nos medir a gravidade do problema e a dimensão das suas consequências.

A descolonização não somente foi concluída de forma apressada como foi também sabotada, um pouco por toda a parte, onde as riquezas naturais atiçaram tantos interesses. A pilhagem de África foi sendo afinada ao longo do tempo, tornando-se um sistema paralelo, onde as funções estão bem distribuídas. Quanto menos organizados estão os Estados, mais fácil é então a pilhagem. Um Estado de direito solidamente instalado não toma o partido das sociedades que pretendem investir em África na forma como muitos o têm feito até aqui. De facto, as infra-estruturas, como as estradas por exemplo, são propostas às empresas estrangeiras cujo comportamento reforça o sistema de corrupção, compadrios e de ineficácia. Dá-se com uma mão o que se recupera com a outra. É necessário parar esta hipocrisia que alimenta as ligações desonestas mantidas com esta África nova pelos antigos colonizadores. Resultado: os países estão condenados a uma espécie de empobrecimento e marginalização. Os cérebros fogem, os jovens bacharéis assumem a via da emigração selvagem, a casta dirigente, militar ou civil, é mantida no poder através de comportamentos viciados, cuja finalidade consiste em garantir os interesses do protector.

Já no início dos anos 60, René Dumont, este homem do terreno, visionário, alertava o mundo com um livro panfleto com um título brutal: África começou mal. Ele tinha fortes intuições e, hoje, ninguém mais se atreveria a contradizê-lo. Não somente ela começou mal como também não chegou a lado nenhum, a não ser aos cemitérios que a epidemia de SIDA e doutras maldições como a fome e a guerra enchem copiosa e generosamente. Outros diriam que ela chegou ao espaço do esquecimento, aí onde nenhum olhar a vê, onde nenhum ouvido a ouve.

Um território tão seco como o deserto, tão branco como a morte que desajeitada e dramaticamente até as crianças espolia.

O mundo praticamente aceitou que milhões de africanos desapareçam na indiferença. E espantam-se de ver alguns milhares de homens e mulheres atravessar, a pé, o deserto de vários países e a dirigirem-se para uma fronteira em terra africana, cheia de buracos, e que dá para uma terra europeia.

Estas pessoas esfomeadas que marcham dias e dias, para não dizer meses, estas sombras escapadas à própria noite, estes viajantes perdidos no tempo, estas gentes vêm bater às nossas portas, dignamente, e fazem o gesto com a mão para expressarem a sua fome. Alguns foram despojados pelos passadores, verdadeiros mafiosos, e prosseguiram a sua marcha infinita. "Estas pessoas da periferia, habitantes dos bairros pobres da história… estes comensais não convidados, passados pela entrada de serviço do Ocidente, estes intrusos que chegam ao espectáculo da modernidade no momento em que as luzes se vão apagar", como o escreveu Octávio Paz a propósito dos latino-americanos que entravam na América, forçando as fronteiras, estes milhares de seres que ninguém quer à sua mesa não nasceram para errar no deserto nem para arriscar a sua vida numa embarcação duvidosa ou para se lançarem sobre o arame farpado. Não nasceram com a maldição nos genes nem com um destino votado à infelicidade.

Não são convidados e contudo eles estão lá: nós somos todos africanos, dizem os albaneses, os habitantes do Maghreb, os indianos, os paquistaneses, os filipinos…

O planeta vacila e o mundo contenta-se em colmatar o medo e em encorajar o isolamento. As fronteiras fecham-se, fala-se de invasão, procura-se abrir os campos de retenção na Líbia, espaços onde são

6 7

"parqueadas" as sombras desta emigração selvagem, não tão clandestina como isso, pois as passagens fazem-se em pleno dia, empurra-se a porta.

O nosso futuro atingirá este inferno se nada de decisivo for feito. A Europa não poderá viver mais em paz e em segurança, porque o deserto avança, como se as crianças daqueles que foram despojados se tenham colocado instintivamente em marcha para os países do Norte, onde irão oferecer a sua força de trabalho. Mas o medo baralha as referências e incriminam-se as vítimas duma situação agravada pela globalização.

Empurrar estas mulheres e estes homens, abandoná-los no deserto ou mesmo acompanhá-los no seu repatriamento não resolve o problema. Marrocos viu-se a assumir o papel de polícia mau, impedindo a Europa de ser "invadida" por estas pessoas anónimas. Todos nós vimos as imagens dum negro desfeito em lágrimas, mostrando a cor da sua pele e a dizer ao jornalista europeu: "não é igual, não é igual".

Então, já é tempo de a Europa olhar para o Sul e ter suficiente imaginação para executar uma verdadeira política de emigração que seria acompanhada de planos de investimento nestes países pobres, ou antes, empobrecidos. É necessário criar uma política africana no seio da União Europeia, uma política séria e íntegra que trave os interesses particulares das antigas potências coloniais, ajude as democracias nascentes e apoie um desenvolvimento verdadeiramente durável.

Tahar Bem Jelloun, «Ils arrivent!», Le Monde, 29 de Outubro de 2005.

Parte 1.África em pedaços

1994-1998: o conflito no Ruanda atinge o ex-Zaire e põe a ferro e fogo a região dos Grandes Lagos, ainda hoje avassalada por massacres. Jihan Tahri, graças aos testemunhos dos principais actores deste drama, analisa este momento charneira da história da África num documentário esclarecedor e magistral.

Em Junho de 1994, Kengo Wa Dondo, primeiro-ministro do Zaire (1994-1997), é testemunha, no gabinete do marechal Mobutu, de uma conversa telefónica entre o ditador zairense e um alto responsável francês. Na véspera do lançamento da operação Turquesa, a França informa-se da situação nos aeroportos do Zaire. Em Março de 1997, em Kisangani, a capital regional do norte do Zaire, controlada pelas tropas de Laurent Désiré Kabila, o enviado especial da O.N.U Mohammed Sahnoun assiste ao triunfo de Kabila à frente de uma multidão que o pressiona para marchar sobre Kinshasa.

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"parqueadas" as sombras desta emigração selvagem, não tão clandestina como isso, pois as passagens fazem-se em pleno dia, empurra-se a porta.

O nosso futuro atingirá este inferno se nada de decisivo for feito. A Europa não poderá viver mais em paz e em segurança, porque o deserto avança, como se as crianças daqueles que foram despojados se tenham colocado instintivamente em marcha para os países do Norte, onde irão oferecer a sua força de trabalho. Mas o medo baralha as referências e incriminam-se as vítimas duma situação agravada pela globalização.

Empurrar estas mulheres e estes homens, abandoná-los no deserto ou mesmo acompanhá-los no seu repatriamento não resolve o problema. Marrocos viu-se a assumir o papel de polícia mau, impedindo a Europa de ser "invadida" por estas pessoas anónimas. Todos nós vimos as imagens dum negro desfeito em lágrimas, mostrando a cor da sua pele e a dizer ao jornalista europeu: "não é igual, não é igual".

Então, já é tempo de a Europa olhar para o Sul e ter suficiente imaginação para executar uma verdadeira política de emigração que seria acompanhada de planos de investimento nestes países pobres, ou antes, empobrecidos. É necessário criar uma política africana no seio da União Europeia, uma política séria e íntegra que trave os interesses particulares das antigas potências coloniais, ajude as democracias nascentes e apoie um desenvolvimento verdadeiramente durável.

Tahar Bem Jelloun, «Ils arrivent!», Le Monde, 29 de Outubro de 2005.

Parte 1.África em pedaços

1994-1998: o conflito no Ruanda atinge o ex-Zaire e põe a ferro e fogo a região dos Grandes Lagos, ainda hoje avassalada por massacres. Jihan Tahri, graças aos testemunhos dos principais actores deste drama, analisa este momento charneira da história da África num documentário esclarecedor e magistral.

Em Junho de 1994, Kengo Wa Dondo, primeiro-ministro do Zaire (1994-1997), é testemunha, no gabinete do marechal Mobutu, de uma conversa telefónica entre o ditador zairense e um alto responsável francês. Na véspera do lançamento da operação Turquesa, a França informa-se da situação nos aeroportos do Zaire. Em Março de 1997, em Kisangani, a capital regional do norte do Zaire, controlada pelas tropas de Laurent Désiré Kabila, o enviado especial da O.N.U Mohammed Sahnoun assiste ao triunfo de Kabila à frente de uma multidão que o pressiona para marchar sobre Kinshasa.

8 9

A primeira parte de "África em Pedaços" inicia-se com a primeira e a última destas duas cenas, contadas respectivamente por Kengo Wa Dondo e por Mohammed Sahnoun. Entre estes dois momentos, os acontecimentos sucedem-se: fuga de 1,6 milhões de Tutus para o Zaire; aproximação dos opositores a Mobutu e dos governos do Ruanda e do Uganda; criação da AFDL (Aliança das forças democráticas para a liberação do Congo); entrada no Zaire de Laurent Désiré Kabila e das suas tropas que rapidamente derrubam Mobutu.

A partir de entrevistas com testemunhos directos dos principais intervenientes, e após um rigoroso trabalho de investigação, Jihan Tahri fez um fabuloso trabalho de síntese. Mostra-nos, com uma clareza exemplar, o desenrolar dos acontecimentos, dos quais passamos simultaneamente a compreender a sua complexidade, os seus dramas e os seus desafios. Desvenda-se o papel e a personalidade dos novos líderes que presidiram ou presidem ainda aos destinos da região: Laurent Désiré Kabila, antigo rebelde assassinado em 2001; Paul Kagamé, Vice-Presidente do Ruanda de 1994 a 2000; o presidente ugandês Yoweri Museveni.

Compreendem-se melhor os conflitos de interesses subjacentes a esta crise, nomeadamente a dura e mortífera luta de influências entre a França e os Estados Unidos. Um mergulho instrutivo no centro dos acontecimentos que abalaram a África dos Grandes Lagos e perturbaram os equilíbrios em todo o continente. Um documento que fornece as chaves indispensáveis para compreender o presente.

Em Maio de 1997, a queda de Mobutu e a chegada ao poder de Laurent Désiré Kabila suscitam uma imensa esperança na região dos Grandes Lagos e não só. Uma esperança de muito curta duração. São estas as sequências iniciais e finais do documentário de Jihan GR Tahri e Peter Chappell, que aborda um momento chave da história contemporânea de África.

A 5 de Maio de 1997, Mobutu e Laurent Désiré Kabila sentam-se à mesma mesa, cada um deles ao lado de Nelson Mandela, a quem se deve este encontro. As tropas de Kabila ameaçam a capital do Zaire, mas o velho ditador recusa demitir-se. Alguns dias depois, é forçado a partir. Mobutu derrubado: é toda uma simbologia que desaparece. Simbolicamente é o fim de África sob o controle de ditadores protegidos pelos Ocidentais – neste caso, os franceses. Os congoleses, os ruandeses, os ugandeses, os angolanos, em suma os que puseram Kabila à

Parte 2.África em pedaços

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A primeira parte de "África em Pedaços" inicia-se com a primeira e a última destas duas cenas, contadas respectivamente por Kengo Wa Dondo e por Mohammed Sahnoun. Entre estes dois momentos, os acontecimentos sucedem-se: fuga de 1,6 milhões de Tutus para o Zaire; aproximação dos opositores a Mobutu e dos governos do Ruanda e do Uganda; criação da AFDL (Aliança das forças democráticas para a liberação do Congo); entrada no Zaire de Laurent Désiré Kabila e das suas tropas que rapidamente derrubam Mobutu.

A partir de entrevistas com testemunhos directos dos principais intervenientes, e após um rigoroso trabalho de investigação, Jihan Tahri fez um fabuloso trabalho de síntese. Mostra-nos, com uma clareza exemplar, o desenrolar dos acontecimentos, dos quais passamos simultaneamente a compreender a sua complexidade, os seus dramas e os seus desafios. Desvenda-se o papel e a personalidade dos novos líderes que presidiram ou presidem ainda aos destinos da região: Laurent Désiré Kabila, antigo rebelde assassinado em 2001; Paul Kagamé, Vice-Presidente do Ruanda de 1994 a 2000; o presidente ugandês Yoweri Museveni.

Compreendem-se melhor os conflitos de interesses subjacentes a esta crise, nomeadamente a dura e mortífera luta de influências entre a França e os Estados Unidos. Um mergulho instrutivo no centro dos acontecimentos que abalaram a África dos Grandes Lagos e perturbaram os equilíbrios em todo o continente. Um documento que fornece as chaves indispensáveis para compreender o presente.

Em Maio de 1997, a queda de Mobutu e a chegada ao poder de Laurent Désiré Kabila suscitam uma imensa esperança na região dos Grandes Lagos e não só. Uma esperança de muito curta duração. São estas as sequências iniciais e finais do documentário de Jihan GR Tahri e Peter Chappell, que aborda um momento chave da história contemporânea de África.

A 5 de Maio de 1997, Mobutu e Laurent Désiré Kabila sentam-se à mesma mesa, cada um deles ao lado de Nelson Mandela, a quem se deve este encontro. As tropas de Kabila ameaçam a capital do Zaire, mas o velho ditador recusa demitir-se. Alguns dias depois, é forçado a partir. Mobutu derrubado: é toda uma simbologia que desaparece. Simbolicamente é o fim de África sob o controle de ditadores protegidos pelos Ocidentais – neste caso, os franceses. Os congoleses, os ruandeses, os ugandeses, os angolanos, em suma os que puseram Kabila à

Parte 2.África em pedaços

frente do Zaire (renomeado RDC, República Democrática do Congo), falam em cooperação regional, na auto-suficiência alimentar, num mercado comum africano, no fim das guerras étnicas. A união das forças na região dos Grandes Lagos iria alterar a face de toda a África... Mas, o sonho desfaz-se rapidamente. Em Agosto de 1998, Kabila, ex-rebelde, deve enfrentar uma rebelião que estranhamente se assemelha àquela que o levou ao poder. Em Janeiro de 2001, após três anos de reinado, é assassinado por um colaborador, traído, como ele mesmo traiu a imensa esperança que entretanto tinha suscitado.

Esta segunda parte do documentário debruça-se sobre o período que vai de Maio 1997 a Agosto de 1998. O primeiro ano em que Kabila está no poder na RDC é-nos contado por diferentes testemunhos: os membros do novo governo (Bizima Karaha, Mwenze Kongolo...); o opositor Déogracias Bugera, que combate Kabila pelas mesmas razões que este combateu Mobutu; os antigos aliados ruandeses (James Kabarebe, Paul Kagamé) e ugandeses (Yoweri Museveni); o enviado especial de Clinton, Bill Richardson – nenhum representante oficial da França aceitou testemunhar... Com uma grande preocupação pelos pormenores e pelo rigor, e com uma montagem bem estruturada da expressão dos diferentes pontos de vista, os realizadores mostram de forma expressiva a perturbação da região dos Grandes Lagos, avassalada por interesses contraditórios. Uma região onde, após o assassinato de Kabila pai, os acontecimentos ganharão uma perspectiva mais animadora, com a dinâmica de negociação e de apaziguamento desencadeada pelo seu filho.

10 11

Entrevista com Jihan TahriRealizadora de África em Pedaços, a tragédia dos Grandes Lagos

Qual foi o seu método para realizar este trabalho, sobre um terreno tão complexo como o de África e enquanto se estava em guerra?

Havia muito pouca coisa escrita sobre o assunto e a história estava a desenrolar-se à frente dos nossos olhos. As principais fontes eram os jornais, com os artigos a serem redigidos no calor dos acontecimentos, o que nunca constitui a melhor referência. Era necessário sobretudo voltar ao assunto com um olhar de inocência, sem posição previamente tomada. Por conseguinte, elaborei uma lista de personagens a entrevistar – no início eram seiscentas pessoas! – que na sua maior parte foram contactadas. Durante um ano, houve um enorme trabalho de abordagem até se chegar àqueles que estiveram nos centros de decisão, interrogando os seus adjuntos e assessores, aqueles que os rodearam e que constituíram o seu meio social envolvente. Era necessário recolher o máximo de informações sobre os actores do conflito e sobre todos os acontecimentos.

frente do Zaire (renomeado RDC, República Democrática do Congo), falam em cooperação regional, na auto-suficiência alimentar, num mercado comum africano, no fim das guerras étnicas. A união das forças na região dos Grandes Lagos iria alterar a face de toda a África... Mas, o sonho desfaz-se rapidamente. Em Agosto de 1998, Kabila, ex-rebelde, deve enfrentar uma rebelião que estranhamente se assemelha àquela que o levou ao poder. Em Janeiro de 2001, após três anos de reinado, é assassinado por um colaborador, traído, como ele mesmo traiu a imensa esperança que entretanto tinha suscitado.

Esta segunda parte do documentário debruça-se sobre o período que vai de Maio 1997 a Agosto de 1998. O primeiro ano em que Kabila está no poder na RDC é-nos contado por diferentes testemunhos: os membros do novo governo (Bizima Karaha, Mwenze Kongolo...); o opositor Déogracias Bugera, que combate Kabila pelas mesmas razões que este combateu Mobutu; os antigos aliados ruandeses (James Kabarebe, Paul Kagamé) e ugandeses (Yoweri Museveni); o enviado especial de Clinton, Bill Richardson – nenhum representante oficial da França aceitou testemunhar... Com uma grande preocupação pelos pormenores e pelo rigor, e com uma montagem bem estruturada da expressão dos diferentes pontos de vista, os realizadores mostram de forma expressiva a perturbação da região dos Grandes Lagos, avassalada por interesses contraditórios. Uma região onde, após o assassinato de Kabila pai, os acontecimentos ganharão uma perspectiva mais animadora, com a dinâmica de negociação e de apaziguamento desencadeada pelo seu filho.

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Entrevista com Jihan TahriRealizadora de África em Pedaços, a tragédia dos Grandes Lagos

Qual foi o seu método para realizar este trabalho, sobre um terreno tão complexo como o de África e enquanto se estava em guerra?

Havia muito pouca coisa escrita sobre o assunto e a história estava a desenrolar-se à frente dos nossos olhos. As principais fontes eram os jornais, com os artigos a serem redigidos no calor dos acontecimentos, o que nunca constitui a melhor referência. Era necessário sobretudo voltar ao assunto com um olhar de inocência, sem posição previamente tomada. Por conseguinte, elaborei uma lista de personagens a entrevistar – no início eram seiscentas pessoas! – que na sua maior parte foram contactadas. Durante um ano, houve um enorme trabalho de abordagem até se chegar àqueles que estiveram nos centros de decisão, interrogando os seus adjuntos e assessores, aqueles que os rodearam e que constituíram o seu meio social envolvente. Era necessário recolher o máximo de informações sobre os actores do conflito e sobre todos os acontecimentos.

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Quisemos conhecer tudo, quisemos conhecer até os mais ínfimos detalhes, para reconstituir a história tal como eles a tinham vivido, para reconstituir o ambiente que tinha condicionado esses mesmos acontecimentos. Ao mesmo tempo, era necessário saber expurgar os episódios marginais, os testemunhos inúteis, para não complicar a história, mas sim para a aligeirar, torná-la legível, compreensível para todos. O grande defeito da mediatização desta situação de crise foi a confusão: tive que seguir uma linha clara de depuração cuidada. No total, o trabalho demorou três anos, reuniu seis pessoas, das quais Peter Chappell, o operador de câmara e co-realizador, que se juntou a nós para a rodagem, em Novembro de 1998. Filmamos cento e cinquenta horas de entrevistas e a montagem levou catorze semanas.

É um método que se aproxima do que utilizou quando trabalhou para as "Produções Brian Lapping", que realizou "Jugoslávia, suicídio de uma nação europeia", um filme que revolucionou o género do filme documentário. No que é que se sente herdeira de Lapping?

Do método Lapping, retive três coisas. Primeiro, o sentido da anedota. Tem-se tendência, como jornalista, a privilegiar o que é sensacionalista, a fazer da história um resumo das grandes datas. Mas, a pequena anedota, desconhecida de todos, revela-se frequentemente como bem mais importante sobre a lógica dos acontecimentos. Tomemos por exemplo o que nos diz James Kabarebe, o chefe do exército de libertação do Zaire. Com as suas tropas, está no rio que faz fronteira, que separa o Congo-Brazzaville do Congo Kinshasa. Está às portas de Kinshasa, na eminência de derrubar Mobutu. Foi necessário perguntar a alguém da zona ribeirinha para que lado do rio ficava Kinshasa. Nem sequer sabia a sua localização.

Esta anedota demonstra uma ideia mais profunda: todo este exército fazia uma guerra que não era a deles, num país que não conheciam! Segunda palavra de ordem, essencial: o rigor. É necessário tentar conhecer as

pessoas que se entrevista, até melhor do que o que elas se conhecem a si mesmas. Deste modo, não há aldrabice. Evitam-se as mentiras, os discursos que só são paleio. Quando a pessoa se dá conta que se conhece tudo sobre ela, mesmo as coisas de que já se tinha esquecido, é necessariamente menos propensa "a compor" a verdade. E, última regra, a imparcialidade. Tentei não dar a vantagem a nenhum dos dois campos: cada episódio foi contado sistematicamente dos dois lados, pelo mesmo número de pessoas.

O que é que acrescentou a este método? Qual é o seu contributo pessoal?

Tenho, primeiro que tudo, que homenagear Brian Lapping. Trabalhar com ele foi decisivo para mim, alterou a minha visão das coisas e da profissão. Não pude seguir exactamente a mesma via que ele neste filme pela simples razão de que a minha equipa era mais reduzida. Mas, aquilo permitiu-me ser mais flexível, nomeadamente com mais mobilidade no terreno. Em Lapping, a máquina e a logística são bastante pesadas. Tudo é antecipadamente decidido. Enviam-se antecipadamente as perguntas a fazer às personalidades; há por conseguinte poucas surpresas, e muito menos espontaneidade. Preferi criar uma relação mais pessoal com os nossos interlocutores, telefonar-lhes logo que um novo facto se me impusesse, que tudo deveria verificar com eles, que deveria contra-verificar com os outros. Isto permitiu-me estar aberta a enriquecimentos até ao fim do trabalho. Por último, em Lapping, a tónica é colocada mais sobre o testemunho do que sobre a imagem. Neste filme, a imagem tem mais importância: conta uma história autónoma, a que foi apreendida pelos jornalistas e pelo grande público da época, e reforça a outra história, íntima, vivida do interior, a que contam os decisores-chave dos acontecimentos.

Nenhum oficial francês se exprime no vosso filme. Porquê?

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Quisemos conhecer tudo, quisemos conhecer até os mais ínfimos detalhes, para reconstituir a história tal como eles a tinham vivido, para reconstituir o ambiente que tinha condicionado esses mesmos acontecimentos. Ao mesmo tempo, era necessário saber expurgar os episódios marginais, os testemunhos inúteis, para não complicar a história, mas sim para a aligeirar, torná-la legível, compreensível para todos. O grande defeito da mediatização desta situação de crise foi a confusão: tive que seguir uma linha clara de depuração cuidada. No total, o trabalho demorou três anos, reuniu seis pessoas, das quais Peter Chappell, o operador de câmara e co-realizador, que se juntou a nós para a rodagem, em Novembro de 1998. Filmamos cento e cinquenta horas de entrevistas e a montagem levou catorze semanas.

É um método que se aproxima do que utilizou quando trabalhou para as "Produções Brian Lapping", que realizou "Jugoslávia, suicídio de uma nação europeia", um filme que revolucionou o género do filme documentário. No que é que se sente herdeira de Lapping?

Do método Lapping, retive três coisas. Primeiro, o sentido da anedota. Tem-se tendência, como jornalista, a privilegiar o que é sensacionalista, a fazer da história um resumo das grandes datas. Mas, a pequena anedota, desconhecida de todos, revela-se frequentemente como bem mais importante sobre a lógica dos acontecimentos. Tomemos por exemplo o que nos diz James Kabarebe, o chefe do exército de libertação do Zaire. Com as suas tropas, está no rio que faz fronteira, que separa o Congo-Brazzaville do Congo Kinshasa. Está às portas de Kinshasa, na eminência de derrubar Mobutu. Foi necessário perguntar a alguém da zona ribeirinha para que lado do rio ficava Kinshasa. Nem sequer sabia a sua localização.

Esta anedota demonstra uma ideia mais profunda: todo este exército fazia uma guerra que não era a deles, num país que não conheciam! Segunda palavra de ordem, essencial: o rigor. É necessário tentar conhecer as

pessoas que se entrevista, até melhor do que o que elas se conhecem a si mesmas. Deste modo, não há aldrabice. Evitam-se as mentiras, os discursos que só são paleio. Quando a pessoa se dá conta que se conhece tudo sobre ela, mesmo as coisas de que já se tinha esquecido, é necessariamente menos propensa "a compor" a verdade. E, última regra, a imparcialidade. Tentei não dar a vantagem a nenhum dos dois campos: cada episódio foi contado sistematicamente dos dois lados, pelo mesmo número de pessoas.

O que é que acrescentou a este método? Qual é o seu contributo pessoal?

Tenho, primeiro que tudo, que homenagear Brian Lapping. Trabalhar com ele foi decisivo para mim, alterou a minha visão das coisas e da profissão. Não pude seguir exactamente a mesma via que ele neste filme pela simples razão de que a minha equipa era mais reduzida. Mas, aquilo permitiu-me ser mais flexível, nomeadamente com mais mobilidade no terreno. Em Lapping, a máquina e a logística são bastante pesadas. Tudo é antecipadamente decidido. Enviam-se antecipadamente as perguntas a fazer às personalidades; há por conseguinte poucas surpresas, e muito menos espontaneidade. Preferi criar uma relação mais pessoal com os nossos interlocutores, telefonar-lhes logo que um novo facto se me impusesse, que tudo deveria verificar com eles, que deveria contra-verificar com os outros. Isto permitiu-me estar aberta a enriquecimentos até ao fim do trabalho. Por último, em Lapping, a tónica é colocada mais sobre o testemunho do que sobre a imagem. Neste filme, a imagem tem mais importância: conta uma história autónoma, a que foi apreendida pelos jornalistas e pelo grande público da época, e reforça a outra história, íntima, vivida do interior, a que contam os decisores-chave dos acontecimentos.

Nenhum oficial francês se exprime no vosso filme. Porquê?

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É muito simples: todos recusaram. Foi-me transmitido directamente, da parte de Domínique Villepin, que nenhum oficial francês se pronunciaria sobre a questão. Era um não categórico, que não permitia qualquer dúvida. Penso que há duas razões para esta recusa. Primeiro, a França ficou escaldada com África. Prefere agora fazer figura discreta, deixar de estar à frente dos outros no terreno. E, depois, o papel desempenhado pelos políticos franceses está longe de ter sido claro... Só um representante, de resto, muito oficioso, Robert Bourgi, antigo braço direito de Jacques Foccart, advogado pessoal de Mobutu, um grande amigo de Chirac, aceitou falar. E não é assim tão mau: depois de tudo, é principalmente pela via oficiosa que a França age em África.

Depois de ter realizado este documentário, que ideia é que tem de África? Pensa que será bem sucedida em libertar-se dos seus antigos tutores?

Para dizer a verdade, fico com uma ideia bastante pessimista. Penso que a África levará muito tempo a libertar-se. A guerra começada em 1996 está longe de ter terminado. Desde 1998, estendeu-se mesmo e aprofundou-se a sua dimensão. Nove países estão, hoje, em armas na região. O sisma toca o coração do continente africano. No entanto, a África não é desguarnecida; tem recursos: tem os homens e os meios para se conseguir libertar. Creio que o que a pode salvar é conseguir, um dia, utilizar os seus próprios recursos para proveito próprio. Dizer às potências ocidentais: deixei de estar à venda.

Off-shore

Off-shore a) adj. ao largo; a pouca distância da praia; que vai da praia para o

mar; ~ fisheries pesca do alto, fora da praia; ~ wind vento da terra b) adv. para o mar largo; no

mar alto; to fish ~ pescar no mar alto; c) economia o termo designa as plataformas petrolíferas em

alto-mar; aplica-se também às sociedades comerciais quando são implantadas fora do(s),

país(es) de origem de seus dirigentes.

Os dicionários persistem em ignorar que a expressão offshore tende, cada vez mais, a descrever uma população desprovida de território. Uma população composta por pessoas que têm em comum experiências quotidianas de miséria extrema. Pessoas para quem o mar parece ser a última barreira que os separa de uma vida normal. Para quem fazer-se ao mar – numa jangada improvisada com desperdícios ou em embarcações decrépitas, ou sobrelotadas, ou ambas, com hipóteses mínimas de chegar a um destino qualquer – é um acto natural: não têm nada a perder.

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É muito simples: todos recusaram. Foi-me transmitido directamente, da parte de Domínique Villepin, que nenhum oficial francês se pronunciaria sobre a questão. Era um não categórico, que não permitia qualquer dúvida. Penso que há duas razões para esta recusa. Primeiro, a França ficou escaldada com África. Prefere agora fazer figura discreta, deixar de estar à frente dos outros no terreno. E, depois, o papel desempenhado pelos políticos franceses está longe de ter sido claro... Só um representante, de resto, muito oficioso, Robert Bourgi, antigo braço direito de Jacques Foccart, advogado pessoal de Mobutu, um grande amigo de Chirac, aceitou falar. E não é assim tão mau: depois de tudo, é principalmente pela via oficiosa que a França age em África.

Depois de ter realizado este documentário, que ideia é que tem de África? Pensa que será bem sucedida em libertar-se dos seus antigos tutores?

Para dizer a verdade, fico com uma ideia bastante pessimista. Penso que a África levará muito tempo a libertar-se. A guerra começada em 1996 está longe de ter terminado. Desde 1998, estendeu-se mesmo e aprofundou-se a sua dimensão. Nove países estão, hoje, em armas na região. O sisma toca o coração do continente africano. No entanto, a África não é desguarnecida; tem recursos: tem os homens e os meios para se conseguir libertar. Creio que o que a pode salvar é conseguir, um dia, utilizar os seus próprios recursos para proveito próprio. Dizer às potências ocidentais: deixei de estar à venda.

Off-shore

Off-shore a) adj. ao largo; a pouca distância da praia; que vai da praia para o

mar; ~ fisheries pesca do alto, fora da praia; ~ wind vento da terra b) adv. para o mar largo; no

mar alto; to fish ~ pescar no mar alto; c) economia o termo designa as plataformas petrolíferas em

alto-mar; aplica-se também às sociedades comerciais quando são implantadas fora do(s),

país(es) de origem de seus dirigentes.

Os dicionários persistem em ignorar que a expressão offshore tende, cada vez mais, a descrever uma população desprovida de território. Uma população composta por pessoas que têm em comum experiências quotidianas de miséria extrema. Pessoas para quem o mar parece ser a última barreira que os separa de uma vida normal. Para quem fazer-se ao mar – numa jangada improvisada com desperdícios ou em embarcações decrépitas, ou sobrelotadas, ou ambas, com hipóteses mínimas de chegar a um destino qualquer – é um acto natural: não têm nada a perder.

Uma ideia de Europa (e um território que lhe está associado) é seu destino desejado.

Nestes últimos anos, a costa norte do mediterrâneo – a fronteira mais a sul dessa ideia de Europa – tem-se vindo a entrincheirar para manter ao largo as populações migrantes. A apreensão de ‘pateras’ – as frágeis embarcações onde os passageiros se amontoam – tornou-se uma prática regular no estreito de Gibraltar. Os naufrágios também.

O aumento do fluxo migratório levou ao alargamento das fronteiras da Europa para a margem de lá do Mediterrâneo, ou para ilhas ao largo: aos enclaves territoriais espanhóis de Ceuta e Melilla, acrescentaram-se as ilhas de Malta e a ilha italiana de Lampedusa, junto à costa da Tunísia. A barreira marítima complexifica-se: os enclaves são vedados, patrulhados e armadilhados. Os migrantes são quase inevitavelmente detidos. Para evitarem o ‘repatriamento’ desfazem-se de toda a sua documentação de identidade nacional ou política. Assumem-se, apenas, como seres humanos, condenados a olhar para a Europa, offshore, do lado errado da vedação.

Esta é uma questão contemporânea no sentido etimológico da palavra: ocorre neste instante e, para mais, aqui. Uma questão de cuja complexidade nos podemos começar a aperceber pela perspectiva que nos é devolvida desse outro lado da vedação. Uma estranha ideia de Europa: em cativeiro, desigual e hostil.

Onde não temos lugar. Onde estamos off-shore.

Nuno Porto

16

Ciclo de Cinema e Debates

Africa começou mal, África está mal: a tragédia africana

1. Congo: Rei Branco, Borracha Vermelha , Morte Negra de Peter Bate

debate com a participação de

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

2. Lumumba de Raoul Peck

debate com a participação de

João Tolda (FEUC) e Jaime Ferreira (FEUC)

3. Mobutu rei do Zaire de Thierry Michel

debate com a participação de

Abílio Hernandez (FLUC), João Sousa Andrade (FEUC)

e José Manuel Pureza (FEUC)

4. Kisangani Diary de Hubert Sauper

colóquio sobre A ONU nas encruzilhadas da história e da globalização,

com a participação de

António Gama (FLUC), Francisco Louçã (ISEG),

José Soares da Fonseca (FEUC) e Pezarat Correia (FEUC)

5. Na linha da frente: os meninos soldados do Congo, de Beck-Bukeni T. Waruzi

O filho do diabo de Sacha Mirzoeff

Vendedores de milagres de Gilles Remiche

debate com a participação de Anselmo Borges (FLUC),

Carlos Saraiva (FMUC) e José Veiga Torres (FEUC)

6. Rio Congo: para lá das trevas de Thierry Michel

debate com a participação de Fernando Florêncio (FCTUC),

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

7. África em pedaços: a tragédia dos Grandes Lagos, de Jihan El Tahri e Peter Chappell

debate com a participação de Diogo Freitas do Amaral, Maria Ioannis Baganha,

Georges Courade, José Leitão, Manuel Medina Ortega e Lahcen Oulhaj

Uma ideia de Europa (e um território que lhe está associado) é seu destino desejado.

Nestes últimos anos, a costa norte do mediterrâneo – a fronteira mais a sul dessa ideia de Europa – tem-se vindo a entrincheirar para manter ao largo as populações migrantes. A apreensão de ‘pateras’ – as frágeis embarcações onde os passageiros se amontoam – tornou-se uma prática regular no estreito de Gibraltar. Os naufrágios também.

O aumento do fluxo migratório levou ao alargamento das fronteiras da Europa para a margem de lá do Mediterrâneo, ou para ilhas ao largo: aos enclaves territoriais espanhóis de Ceuta e Melilla, acrescentaram-se as ilhas de Malta e a ilha italiana de Lampedusa, junto à costa da Tunísia. A barreira marítima complexifica-se: os enclaves são vedados, patrulhados e armadilhados. Os migrantes são quase inevitavelmente detidos. Para evitarem o ‘repatriamento’ desfazem-se de toda a sua documentação de identidade nacional ou política. Assumem-se, apenas, como seres humanos, condenados a olhar para a Europa, offshore, do lado errado da vedação.

Esta é uma questão contemporânea no sentido etimológico da palavra: ocorre neste instante e, para mais, aqui. Uma questão de cuja complexidade nos podemos começar a aperceber pela perspectiva que nos é devolvida desse outro lado da vedação. Uma estranha ideia de Europa: em cativeiro, desigual e hostil.

Onde não temos lugar. Onde estamos off-shore.

Nuno Porto

16

Ciclo de Cinema e Debates

Africa começou mal, África está mal: a tragédia africana

1. Congo: Rei Branco, Borracha Vermelha , Morte Negra de Peter Bate

debate com a participação de

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

2. Lumumba de Raoul Peck

debate com a participação de

João Tolda (FEUC) e Jaime Ferreira (FEUC)

3. Mobutu rei do Zaire de Thierry Michel

debate com a participação de

Abílio Hernandez (FLUC), João Sousa Andrade (FEUC)

e José Manuel Pureza (FEUC)

4. Kisangani Diary de Hubert Sauper

colóquio sobre A ONU nas encruzilhadas da história e da globalização,

com a participação de

António Gama (FLUC), Francisco Louçã (ISEG),

José Soares da Fonseca (FEUC) e Pezarat Correia (FEUC)

5. Na linha da frente: os meninos soldados do Congo, de Beck-Bukeni T. Waruzi

O filho do diabo de Sacha Mirzoeff

Vendedores de milagres de Gilles Remiche

debate com a participação de Anselmo Borges (FLUC),

Carlos Saraiva (FMUC) e José Veiga Torres (FEUC)

6. Rio Congo: para lá das trevas de Thierry Michel

debate com a participação de Fernando Florêncio (FCTUC),

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

7. África em pedaços: a tragédia dos Grandes Lagos, de Jihan El Tahri e Peter Chappell

debate com a participação de Diogo Freitas do Amaral, Maria Ioannis Baganha,

Georges Courade, José Leitão, Manuel Medina Ortega e Lahcen Oulhaj