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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] 199 CRÔNICA: UM GÊNERO MENOR? INDAGAÇÕES ACERCA DO TEXTO LÍTERO- JORNALÍSTICO Aline Cristina de Oliveira (Mestranda – UNESP/Assis) RESUMO: A dificuldade na definição do gênero cronístico está no hibridismo que esta mantém com outros gêneros e na mudança que a acepção do termo “crônica” sofreu no decorrer do tempo. A partir do século XIX e da popularização do jornal, a crônica ganhou status de gênero menor por seu caráter despretensioso e sua linguagem acessível, além dos temas relacionados ao cotidiano. A discussão das origens do gênero, das características inerentes a ele na visão de teóricos e dos próprios cronistas, bem como a literariedade presente em crônicas de escritores consagrados dão a tônica do presente trabalho, que visa colaborar para uma melhor compreensão do gênero no decorrer dos séculos. PALAVRAS-CHAVE: crônica; gêneros; jornal; século XIX. Ainda hoje, apesar de exaustivas pesquisas e inúmeras publicações sobre o assunto, muito se discute sobre a condição da crônica enquanto gênero textual. O rótulo de gênero menor relaciona-se à crônica produzida a partir do advento da imprensa, em meados do século XIX. A crônica, tal qual entendemos hoje, deu seus primeiros passos nas páginas dos jornais e valia-se, principalmente, dos faits divers e, se comparada à divisão clássica da literatura, ver-se-á que tal gênero assemelha-se ao chamado “gênero menor” praticado na antiguidade. Tal semelhança deve-se ao fato de ambos alimentarem-se da vida mundana, dos acontecimentos do cotidiano, do efêmero, afastando-se das grandes histórias, dos grandes heróis, matéria do chamado “gênero maior”. Atualmente, muitos pesquisadores têm-se debruçado sobre uma literatura que foge, ou fugia, ao padrão canônico. O estudo da crônica e de outros gêneros jornalísticos é um exemplo dessa mudança de concepção. Na antiguidade, havia uma divisão entre aquilo que seria literatura de elevação e o que seria subliteratura. Nesta última, ficavam os textos sobre a vida mundana, os acontecimentos cotidianos, o descompromisso com as grandes histórias. Os gêneros elevados, segundo a visão

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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2178-3683

www.assis.unesp.br/coloquioletras

[email protected]

199

CCRRÔÔNNIICCAA:: UUMM GGÊÊNNEERROO MMEENNOORR?? IINNDDAAGGAAÇÇÕÕEESS AACCEERRCCAA DDOO TTEEXXTTOO LLÍÍTTEERROO--

JJOORRNNAALLÍÍSSTTIICCOO

Aline Cristina de Oliveira

(Mestranda – UNESP/Assis)

RREESSUUMMOO: A dificuldade na definição do gênero cronístico está no hibridismo que esta mantém com outros gêneros e na mudança que a acepção do termo “crônica” sofreu no decorrer do tempo. A partir do século XIX e da popularização do jornal, a crônica ganhou status de gênero menor por seu caráter despretensioso e sua linguagem acessível, além dos temas relacionados ao cotidiano. A discussão das origens do gênero, das características inerentes a ele na visão de teóricos e dos próprios cronistas, bem como a literariedade presente em crônicas de escritores consagrados dão a tônica do presente trabalho, que visa colaborar para uma melhor compreensão do gênero no decorrer dos séculos. PPAALLAAVVRRAASS--CCHHAAVVEE: crônica; gêneros; jornal; século XIX.

Ainda hoje, apesar de exaustivas pesquisas e inúmeras publicações sobre o

assunto, muito se discute sobre a condição da crônica enquanto gênero textual. O

rótulo de gênero menor relaciona-se à crônica produzida a partir do advento da

imprensa, em meados do século XIX. A crônica, tal qual entendemos hoje, deu seus

primeiros passos nas páginas dos jornais e valia-se, principalmente, dos faits divers e,

se comparada à divisão clássica da literatura, ver-se-á que tal gênero assemelha-se

ao chamado “gênero menor” praticado na antiguidade. Tal semelhança deve-se ao

fato de ambos alimentarem-se da vida mundana, dos acontecimentos do cotidiano, do

efêmero, afastando-se das grandes histórias, dos grandes heróis, matéria do chamado

“gênero maior”.

Atualmente, muitos pesquisadores têm-se debruçado sobre uma literatura

que foge, ou fugia, ao padrão canônico. O estudo da crônica e de outros gêneros

jornalísticos é um exemplo dessa mudança de concepção. Na antiguidade, havia uma

divisão entre aquilo que seria literatura de elevação e o que seria subliteratura. Nesta

última, ficavam os textos sobre a vida mundana, os acontecimentos cotidianos, o

descompromisso com as grandes histórias. Os gêneros elevados, segundo a visão

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aristotélica, seriam a tragédia e a epopeia, em ambas os grandes feitos e a nobreza do

caráter eram superestimados. Segundo Welleck (apud GUERINI, 2000, p.15)

Aristóteles e Horácio eram as autoridades clássicas em matéria de divisões principais do drama e da epopeia. [...] As preferências sociais da época pelo estilo elevado e o fato de Aristóteles tratar da tragédia e da epopeia, e Horácio, principalmente, do drama, fizeram que convergisse a maior parte das teorias para estes dois gêneros, determinando o estabelecimento de uma elaborada hierarquia dos gêneros, cujo fundamento racional exato não era porém muito claro. [...] Raramente, afirmava-se, de modo claro, que a tábua dos gêneros era fechada ou que podiam ser admitidos novos gêneros. Na prática, nasciam e eram tolerados gêneros híbridos ou novos gêneros sem princípios, e além da tábua das categorias. O esquema neoclássico foi, contudo, minado pelo sucesso dos gêneros que a teoria não tinha feito grande esforço para compreender: o romance, o ensaio periódico, a peça de teatro séria com desfecho feliz, e outros.

A palavra “crônica” tem origem grega, vem de chronos, que sugere uma

noção de tempo e memória e, portanto, mantém íntima relação com o passado. Ao

relatar acontecimentos vividos, o cronista, que viveu o período anterior à História

enquanto ciência, encarregava-se de narrar fatos sucedidos sem, no entanto,

preocupar-se com a racionalidade dos cientistas que lhe sucederam. O cronista

medieval, por exemplo, valia-se dos acontecimentos históricos e organizava-os

seguindo uma linha cronológica. Um dos principais expoentes da crônica medieval é o

cronista português Fernão Lopes, considerado o grande mestre da arte de narrar.

Ainda que ignorasse estar praticando a crônica, Pero Vaz de Caminha, ao

dirigir-se ao rei de Portugal relatando minuciosamente o dia-a-dia em território

brasileiro, ocupava o ofício de cronista de viagem. O texto de Caminha, por exemplo, é

crônica no sentido histórico da palavra, e antecipa a existência de uma historiografia

nacional. A produção dos cronistas de viagem foi legitimada pela literatura que a

recolheu como representativa da expressão de uma determinada época, o que na

visão de muitos estudiosos, denominou-se uma literatura de informação sobre o novo

mundo. Na modernidade, porém, essa tarefa foi passada à historiografia. Com o

passar do tempo, o termo crônica foi ganhando outras acepções, bem como o

cronista. Machado de Assis, em crônica publicada em 1º de novembro de 1877, no

jornal Ilustração Brasileira, comenta sobre a origem da crônica, sem, no entanto,

conseguir precisar seu nascimento:

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas.

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Nesta primeira concepção de crônica, percebemos que os fatos narrados

sempre estão vinculados ao aspecto cronológico, ou seja, em se tratando do relato de

fatos passados ou presentes, os cronistas sempre se preocuparam com a observação

e registro dos fatos relacionados ao tempo. Portanto, este último é um fator que

acompanha não apenas a etimologia da crônica, mas continua a perpetuar-se em

todas as suas definições.

A partir do século XIX, com a disseminação da imprensa, o fator tempo

passou a não ser tão fundamental. O aspecto cronológico cedeu caminho às inúmeras

possibilidades de significados da crônica, à sua abrangência temática e linguística.

A crônica enquanto gênero é hoje vista como fruto do jornal, nascido em

meados do século XIX. A publicação do gênero nos jornais começou timidamente e foi

ganhando espaço pela cumplicidade com o leitor e pela facilidade da linguagem

empregada. Além disso, o tom leve e bem humorado fez da crônica um gênero que

atravessou os séculos e caiu no gosto popular, sem, contudo, possuir uma definição

definitiva e unânime.

A era da máquina trouxe consigo a rapidez dos acontecimentos. O jornal

aclimatou-se a um público leitor ávido por novidades, que consumia rapidamente o

que lhe era ofertado. Segundo Machado de Assis, em crônica publicada em 7 de

janeiro de 1862:

Bem se podia comparar o público àquela serpente – deus dos antigos mexicanos – que, depois de devorar um alentado mamífero, prostra-se até que a ação digestiva lhe tenha esvaziado o estômago; então o flagelo das matas corre em busca de novo repasto, emborca novo animal pela garganta abaixo e cai em nova e profunda modorra de digestão. Esquisita que pareça a comparação, o público é assim. Precisa de uma novidade e de uma grande novidade; quando lhe aparece alguma, digere-a com placidez e calma, até que desfeita ela, outra lhe fica ao alcance e lhe satisfaz a necessidade imperiosa. Como o réptil monstro de que falei, o público não se contenta com os manjares simples e as quantidades exíguas; é-lhe preciso bom e farto mantimento.

A crônica começou a ilustrar as incertezas, angústias e as inquietações do

homem num ambiente urbano que refletia os sintomas de uma sociedade capitalista,

seduzida pelo consumo e pela fugacidade da vida moderna. Diante desse quadro, o

cronista utilizou-se de recursos estéticos que passaram a traduzir as relações sociais

fragmentadas deste século na produção cronística. O caráter heterogêneo da crônica,

seja por meio da sua linguagem, da utilização de recursos estilísticos ou mesmo pela

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amplitude de leitura que ela nos permite fazer da realidade, pode ser observado em

trecho de Fragmentos sobre a Crônica, de Davi Arrigucci Jr:

...tornando-se, pela elaboração da linguagem, pela complexidade interna, pela penetração psicológica e social, pela força poética ou pelo humor, uma forma de meandros sutis de nossa realidade.

É difícil definir a crônica, afinal, trata-se de um gênero cujas raízes estão

ligadas à narração do individual, do subjetivo. Além disso, o gênero ganhou força a

partir do advento da imprensa, mais precisamente com a popularização do jornal, em

cujo veículo se comentava, de maneira pessoal, as notícias da semana. Outro fator

que dificulta a definição da crônica encontra-se na sua semelhança em relação a

outros gêneros, como o relato de viagens, o ensaio, a carta e o conto, por exemplo.

Para Afrânio Coutinho, em seu “Ensaio e Crônica”, o gênero da crônica

confunde-se, não raramente, com o ensaio. Este, como aquele, equivale, grosso

modo, a uma dissertação de curta extensão que não segue uma sistematização. Além

disso, ambas compartilham da ideia do texto inacabado, cujos assuntos parecem

tender ao infinito. Diante da ideia da multiplicidade temática, Carlos Drummond de

Andrade, em trecho de “O Frívolo Cronista”, compartilha da visão de Coutinho:

Pode ser um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia. Pode ser um verso, que não seja épico; uma citação literária, isenta de pedantismo ou fingindo de pedante, mas brincando com a erudição; uma receita de doce incomível, em que figurem cantabiles de Haydn misturados com aletria e orvalho da floresta da Tijuca. Pode ser tanta coisa! Sem dosagem certa. Nunca porém em doses cavalares. Respeitemos e amemos esse nobre animal, evitando o excesso de graça. Até a frivolidade carece ter medida, linha sutil que medeia entre o sorriso e o tédio pelo excesso de tintas ou pela repetição do efeito. Não pretendo fazer aqui a apologia do cronista, em proveito próprio. Reivindico apenas o seu direito ao espaço descompromissado, onde o jogo não visa ao triunfo, à reputação, à medalha; o jogo esgota-se em si, para recomeçar no dia seguinte, sem obrigação de sequência.

O tom de intimidade com o leitor, a linguagem coloquial e a franqueza dos

comentários são outros aspectos semelhantes aos gêneros textuais em questão. O

autor vai ainda mai longe, sustentando a teoria de que a crônica seria uma das

modalidades do ensaio: a modalidade informal. Dentro dessa modalidade, a crônica

poderia ser dividida em categorias, como a crônica narrativa, a crônica filosófica, a

crônica poema-em-prosa, a crônica comentário e a de informação.

Sabe-se, no entanto, que a maioria dos cronistas, sobretudo os intelectuais,

denominava seus textos como sendo crônica comentário, o que não excluía,

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absolutamente, a possibilidade de adicionarem características das demais categorias

aos seus textos. Talvez por isso seja tão difícil estabelecer especificidades ao gênero

que é, na verdade, híbrido por excelência.

Na compreensão do crítico literário Massaud Moisés, a crônica pode ser

classificada como um gênero ambíguo, transitório entre a literatura e o jornalismo.

Essa classificação sugere uma dependência da crônica à estrutura jornalística e

literária. Com relação ao jornalismo, pode-se dizer que a narrativa cronística contém

características inerentes aos periódicos, mas a sua amplitude linguística consegue

ultrapassar a referencialidade a que os textos jornalísticos estão submetidos. Dessa

forma, a crônica se constitui num discurso aberto a vários significados e inúmeras

possibilidades de construção. Essa amplitude semântica, entretanto, muitas vezes não

é produzida pelos demais discursos que encontramos ao longo do periódico, os quais

são dependentes de normas técnico-linguísticas fixas na organização das

informações.

O fato de o jornal ser o suporte de inserção da crônica, num primeiro

momento, já cria por si só um elo entre os dois gêneros. Embora estudiosos do

jornalismo considerem a crônica um gênero jornalístico opinativo, a riqueza temática e

as inúmeras possibilidades conotativas e denotativas da narrativa cronística

ultrapassam o mero sentido de opinião. A função referencial da linguagem que

predomina no jornalismo é apenas uma das funções linguísticas que podemos

observar na crônica, a qual perpassa a função poética, expressiva, metalinguística,

entre outras.

Na narrativa cronística, o autor utiliza-se de várias figuras de linguagens –

metáfora, hipérbole, personificação etc. Esse mecanismo lhe possibilita criar uma

riqueza de significados conotativos e denotativos para o seu texto. Os leitores, ao

entrarem em contato com essa crônica, não lhe atribuirão apenas um sentido, mas

serão capazes de retirar diversas significações, devido ao potencial linguístico que

possui. Neste sentido, a crônica ultrapassa as limitações do texto jornalístico, o qual

transmite para o leitor um discurso que traduz basicamente uma leitura, entre tantas,

que um fato pode ter.

Ao cronista não cabe apenas implicar significados conotativos aos fatos, ele

também se preocupa em reinterpretar o conteúdo que aparece no corpo do jornal.

Mesmo quando trabalha os fatos sob a perspectiva da denotação, o seu texto está

aberto a múltiplas interpretações do leitor.

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A crônica, embora definida como gênero, mantém um hibridismo que a torna

facilmente confundível. Sabe-se que a palavra “gênero” não se aplica somente à

literatura, de maneira geral, tem ideia de origem, como denota seu equivalente em

latim1, da qual deriva. A definição de gênero não é uniforme; assim, fala-se da

epopeia, da poesia lírica e do drama como três grandes gêneros e, ao mesmo tempo,

a novela, o romance e a crônica são também chamadas de gêneros. Portanto, vê-se

que um único conceito abarca coisas diferentes. O problema dos gêneros remonta da

antiguidade. Desde a Poética de Aristóteles, a definição do que seria gênero vem

provocando discussões. Na tentativa de facilitar a identificação quanto ao gênero

textual, pode-se partir da ideia de que um texto pertença a este ou àquele gênero por

uma série de características cuja presença é predominante em determinada obra.

Dizer que um texto pertence a um gênero pode ser demasiadamente perigoso, pois

todo texto, na verdade, participa de um ou mais gêneros, sempre existe gênero nos

gêneros, mas participar não significa pertencer. René Welleck e Austin Warren

defendem uma teoria sobre o assunto:

É preciso, pensamos, conceber o gênero como um agrupamento de obras literárias baseado, a um só tempo, em teoria, sobre uma forma exterior (metro ou estrutura específica) e sobre uma forma interior (atitude, tom, objetivo e – mais concretamente – sobre assunto e público).

A noção de gêneros seguiu sofrendo modificações ao longo dos séculos. A

sistematização clássica entra em declínio na Idade Média, volta à baila no

Renascimento e modifica-se totalmente no século XVIII. Sobre o declínio dos gêneros

puros, o crítico Massaud Moisés, em seu A criação literária, faz a seguinte

consideração:

Com o Romantismo, já na segunda metade do século XVIII, na Alemanha e na Inglaterra, a situação muda completamente de figura: caem por terra os gêneros, a distinção clássica dos gêneros é substituída por uma noção de gêneros impuros mistos ou comunicantes. Daí nascerem o drama (fusão de tragédia e comédia) e o romance; à ordem clássica sucede a liberdade, ao absolutismo, o relativismo e o liberalismo. O gênero deixa de ser entendido como absoluto ou fixo, pois “a moderna teoria dos gêneros é manifestadamente descritiva. Não limita o número de possíveis gêneros nem dita regras aos autores. Supõe que os gêneros tradicionais podem mesclar-se e produzir um novo gênero...

Podemos nos referir à crônica de maneira mais ampla, enquadrando-a no

gênero narrativo por sua apresentação exterior: uma história em prosa, contada por

1 genus ou generis

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um narrador. Entretanto, podemos conceituá-la mais estritamente, ao atentarmos para

suas características interiores: linguagem simples, tom leve, estilo direto, etc. No caso

específico da crônica oitocentista, pode-se ainda acrescentar a questão informativa. O

que quer que se utilize como recurso na delimitação da narração cronística, sejam

elementos exteriores ou interiores, cairá, fatalmente, na impossibilidade de uma

acepção que se queira unívoca. Para Jules Lemâitre2, a crônica (entenda-se aquela

produzida no século XIX) não passa de:

... um certo número de linhas impressas, onde se relatam coisas insignificantes, ou o que disseram e fizeram os homens do dia, que as mais das vezes são os homens de um só dia...

Talvez a tentativa de definição acima se ajuste às crônicas banais, escritas

por uma série de jornalistas que, como os textos que escreviam, caíram rapidamente

no esquecimento. Mas o que dizer das inúmeras crônicas deixadas por grandes

ícones da literatura? Não seria injusto colocá-las no mesmo patamar de textos cujas

intenções sequer beiravam o domínio estético? Uma página escrita por nomes como

Machado de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac entre outros é a pintura de um tempo,

é o esboço de uma obra-prima, é a vida vista de um ângulo privilegiado, é a comunhão

de fatos e ideias, do sério e do jocoso. Os cronistas são os diseurs de riens. O fato é

apenas o princípio, o engenho e a arte do cronista é que determinam o fim.

Tendo sua propagação atrelada ao jornal, a crônica, a partir do século XIX,

tem como uma de suas principais características a matéria efêmera, as notícias

semanais, a vida mundana. É nesse sentido que o rótulo de gênero menor ganhou

força. De fato, a crônica não foi feita visando aos livros; constituída dos faits divers,

tornava-se rapidamente descartável e era exatamente esse descompromisso que lhe

dava liberdade para ousar uma linguagem simplificada, menos pretensiosa, cuja

semelhança com uma conversa entre amigos a fez tão querida do público leitor. A

ligação profunda com o dia-a-dia fez da crônica um gênero mais próximo da vida real.

Os gêneros elevados, embora nos arrebatem e nos causem espanto por seus enredos

estruturados e personagens inesquecíveis, tiram-nos a possibilidade de enxergar as

coisas com retidão, de maneira direta e simples.

O cronista, diante de um texto despretensioso e muito irônico, liberta-se do

sério, do solene e explora as possibilidades de um discurso fútil ou aparentemente

fútil. Ele acolhe o desejo do leitor de uma leitura leve, para sorver enquanto se toma

um café, como diz Drummond em trecho de sua crônica “O frívolo cronista”:

2 Escritor e crítico francês do século XIX.

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...O inútil tem sua forma particular de utilidade. É a pausa, o descanso, o refrigério, no desmedido afã de racionalizar todos os atos de nossa vida (e a do próximo) sob o critério exclusivo de eficiência, produtividade, rentabilidade e tal e coisa. Tão compensatória é essa pausa que o inútil acaba por se tornar da maior utilidade, exagero que não hesito em combater, como nocivo ao equilíbrio moral. Não devemos cultivar o ócio ou a frivolidade como valores utilitários de contrapeso, mas pelo simples e puro deleite de fruí-los também como expressões de vida. No caso mínimo da crônica, o autorreconhecimento da minha ineficácia social de cronista deixa-me perfeitamente tranquilo. O jornal não me chamou para esclarecer problemas, orientar leitores, advertir governantes, pressionar o Poder Legislativo, ditar normas aos senhores do mundo. O jornal sabia-me incompetente para o desempenho destas altas missões. Contratou-me, e não vejo erro nisto, por minha incompetência e desembaraço em exercê-la. De fato, tenho certa prática em frivoleiras matutinas, a serem consumidas com o primeiro café. Este café costuma ser amargo, pois sobre ele desabam todas as aflições do mundo, em 54 páginas ou mais...

Na Poética, de Aristóteles, observa-se a intenção explícita de exaltar a

tragédia, como imitação de uma ação nobre, realizada por personagens de condição

elevada (reis, príncipes, heróis mitológicos etc). A comédia, ao contrário, limita-se à

imitação dos piores homens, aqueles que não têm grandes virtudes. Os assuntos da

comédia são populares e a força cômica é evidentemente essencial para o seu

sucesso. Por colocar em cena homens comuns e retirar da vida cotidiana as ações

que encena, por exprimir-se numa linguagem simples e coloquial, a comédia foi taxada

de gênero menor. Sobre a concepção aristotélica acerca da comédia, William K.

Wimsatt e Cleanth Brooks Jr, em sua Crítica literária: breve história, comentam:

Tal como a catarse, a comédia é um assunto sobre o qual Aristóteles se poderá ter pronunciado mais demoradamente numa segunda parte de sua Poética. A ela se refere várias vezes na parte existente dessa obra, mas um tanto acidentalmente, como se a comédia constituísse um gênero menor, espécie de contrário ou paralelo grotesco da poesia séria.

A similaridade das características da comédia em relação à crônica pode ter

motivado a equiparação entre elas. Mas é no objetivo que comédia e crônica

compartilham da mesma regra: o público. O ideal de agradar a qualquer custo, de

submeter-se ao gosto do público, de diverti-lo. Se o público é o alvo a ser atingido,

nada melhor do que dar a ele personagens próximos da vida real, com deformidades,

sejam elas físicas ou psíquicas. Essa tendência em aproximar o personagem do

homem real, comum, foi observada por Aristóteles quando este conceituou a comédia:

A comédia trata de coisas inferiores e, consequentemente, de um tipo de personagem que, pelo menos, podemos supor existir facilmente na vida de todos os dias.

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O fato é que a divisão clássica que separava a literatura de elevação da

chamada subliteratura, já não se adéqua à literatura pós Semana de 22, em que a

ruptura com o passado e com as regras tornaram o cânone mais flexível. O que hoje

chamamos crônica moderna utiliza-se dos mesmos moldes da crônica oitocentista,

mas possui maior liberdade de expressão, característica típica do Modernismo. Na

atualidade, a crônica foi deixando sua relação com os faits divers e assumindo uma

prosa mais poética, confessional, na qual a linguagem tradicional convive

harmonicamente com a linguagem moderna. E afinal, a arte não imita a vida? Não é

dos acontecimentos cotidianos que se retira matéria para a ficção? Desse modo, a

crônica não estaria distanciada da grande literatura.

Os grandes gêneros eternizam-se, são absolutamente universais e imortais.

Lidos e relidos ao longo dos séculos, estão sempre a nos dizer algo novo. Essa talvez

fosse uma explicação plausível para colocar a crônica no rol dos gêneros menores.

Mas nem todas as crônicas perderam seu valor dias depois de sua publicação. Ainda

hoje, o leitor curioso pode facilmente remontar ao século XIX em leituras de crônicas

escritas por um José de Alencar ou um Machado de Assis e apreender toda uma

história da sociedade oitocentista. Pode ainda verificar que alguns assuntos são

facilmente reconhecíveis e outros ainda passíveis de discussão. Muitas das crônicas

praticadas no século XIX imortalizaram-se nos livros, ainda que não os tenham

pretendido. A posterior consagração de certos escritores fez com que alguns de seus

textos jornalísticos recebessem a mesma importância daqueles que objetivaram,

desde o início, os livros. Mas o que fez com que a crônica, despretensiosa e efêmera,

ganhasse status de literatura? Se suas raízes estavam nas notícias da semana, por

que ainda hoje conhecemos e nos deliciamos com a leitura de crônicas escritas no

século XIX? A resposta a essas questões está no talento de quem as escreveu, na

magnitude do manejo com a linguagem de seus autores, na arte de transformar, da

dar ares literários à pequenez das coisas fugidias.

Muitos dos escritores brasileiros consagrados tiveram sua carreira iniciada

nos jornais. Era ali que encontravam seu meio de sobrevivência, uma vez que a baixa

taxa de alfabetização somada à dificuldade de publicação de uma obra era

desanimadora para a ascensão no mercado editorial, extremamente precário. Esses

jovens escritores, ainda desconhecidos do grande público, viam na imprensa uma

porta de entrada para a vida literária.

Numa sociedade escravocrata, as camadas populares ficavam à margem de

uma cultura letrada, ou seja, além do analfabetismo, o alto custo dos livros que

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circulavam entre as classes mais abastadas deixava os menos favorecidos cada vez

mais longe de uma cultura dita superior. Talvez a questão financeira, juntamente com

uma cultura basicamente e tradicionalmente oral no Brasil, expliquem o consumo

massivo do jornal, que democratizou a informação, o entretenimento e a literatura no

período em questão.

Quando se fala na democratização gerada pelo jornal, não podemos pensar

somente no acesso físico ao veículo. Embora a imprensa tenha representado uma

área empresarial bastante fecunda de enriquecimento, a tiragem dos jornais em nada

se assemelhava à da atualidade, pois o público leitor era uma minoria. A população

pobre e analfabeta costumava reunir-se na intenção de ouvir a leitura, o que dificultava

sensivelmente a vendagem dos números. Sob o pseudônimo Manassés, em crônica

publicada em 15 de agosto de 1876, Machado comenta o problema do déficit de uma

cultura letrada no Império e lança mão de peculiar ironia ao personificar um algarismo,

ao dar voz a um número:

A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade: - A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância.

Mesmo com todos os problemas, o jornal foi ganhando cada vez mais força e,

por consequência, tornou-se um campo fértil para os jovens talentos, que o tiveram

como ganha pão e laboratório de formação do fazer literário, bem como uma maneira

de se fazerem conhecidos do grande público. Segundo Nelson Sodré em História da

imprensa no Brasil, o final de década de cinquenta e o início da década de sessenta

foi a época em que os homens de letras começaram a fazer imprensa.

Os chamados romances de folhetim, verdadeira epidemia da época,

demonstram quão fecundos eram os jornais para os escritores da época. Histórias

fictícias cujas intrigas mantinham o leitor ávido pelo próximo capítulo eram publicadas

diariamente nos jornais, que detinham um consumidor fiel até o término da história;

esta poderia ser alongada, diminuída e até mesmo modificada, de acordo com o

desejo do público. Segundo Gramsci, em seu Literatura e vida nacional: “Os folhetins,

tanto na intenção do diretor do jornal quanto na intenção do folhetinista, foram

produzidos sob a inspiração do gosto do público e não do gosto dos autores”.

Mais tarde, muitas dessas histórias ganharam espaço nos livros, como é o

caso de “O Guarani” de José de Alencar e “Memórias de um Sargento de Milícias” de

Manuel Antônio de Almeida, por exemplo. A grande maioria dos autores de romances

folhetinescos tinha na mulher burguesa seu consumidor mais fiel e, dedicados a ela,

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produziam histórias recheadas de aventuras; heróis e heroínas que lutavam contra

tudo e todos para viverem seu amor; intrigas que almejavam a separação dos heróis; a

morte como solução amorosa, entre outras características peculiares do gênero. Tal

literatura ditou o comportamento feminino da época, moldando a etiqueta, a moda e

até mesmo a personalidade da leitora. A mulher, destinada a cumprir seu papel de

mãe e esposa, via nos romances de folhetim um novo universo, no qual poderia se

desvencilhar dos afazeres domésticos e viver as aventuras amorosas propostas pelo

romancista. O público feminino foi decisivo para o sucesso desse novo gênero literário;

este, por sua vez, foi decisivo no processo de formação de uma literatura nacional.

Não se discute a importância do romance de folhetim na formação da

literatura brasileira. Contudo, a crônica também tinha um espaço significativo nos

jornais, seja como literatura, seja como resumo dos acontecimentos semanais, o fato é

que o gênero ganhou as ruas e os talentosos romancistas renderam-se também a ele.

Era na escritura das crônicas que os autores podiam opinar, discutir e, por que não,

educar. Naquele espaço mostravam-se mais livremente, ganhavam o carinho e a

admiração do público e do próprio jornal, faziam seu nome no mundo das letras.

Como nos romances folhetinescos, a mulher também era consumidora das

crônicas e, muitas vezes, via-se representada nelas. Tal preocupação com suas

interlocutoras pode, talvez, ajudar a explicar o caráter simplório e descompromissado

do gênero, já que esse público era afeito às publicações menos sérias dos jornais.

Não se pode esquecer que a mulher detinha forte poder nas decisões editoriais, já que

era um consumidor assíduo dos periódicos.

Tem-se aí uma incógnita: o cronista escrevia o texto ameno para manter o

público feminino já existente ou para conquistá-lo? O fato é que, ora ironizando, ora

elogiando, os cronistas dedicavam às leitoras uma significativa fatia de seus textos.

Em crônica de 7 de fevereiro de 1865, no Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis,

muito literariamente, faz a seguinte homenagem ao público feminino:

...Já consagrei algumas palavras de homenagem aos corações patrióticos que, na hora do perigo, se esqueceram de tudo, para correr em defesa da pátria. Mas nada escrevi a respeito das damas, e quero hoje reparar a falta [...] dedicando às damas estas humildes colunas. Não nascestes para a guerra, isto é, para a guerra de pólvora e espingarda. Nascestes para outra guerra, em que a mais inábil e menos valente vale por dois Aquiles. Mas, nos momentos supremos da pátria não sois das últimas. De qualquer modo, ajudais os homens. Uma, como a mãe espartana, arma o filho e o manda para a batalha, outras bordam uma bandeira e a entregam aos soldados, outras costuram as fardas dos valentes, outras dilaceram as próprias

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saias para encher os cartuchos, outras preparam os fios para os hospitais, outras juncam de flores o caminho dos bravos.

Tarefa interessante é a de pensar o cronista como antecessor do romancista,

isto porque não se tem notícia de um literato que tenha se destacado primeiramente

como autor de crônicas. Aí está mais uma possibilidade dos motivos que levaram a

crônica a ser rotulada como um gênero menor. Sabe-se de um largo rol de grandes

romancistas que, antes do sucesso, atuaram como cronistas, o caminho contrário,

porém, não foi trilhado por nomes reconhecidos da literatura. É como se o trabalho de

cronicar fosse um trampolim para se alcançar a “literatura elevada”. Verdade é que os

próprios cronistas viam seu trabalho como indigno dos livros. A matéria efêmera dos

escritos jornalísticos não tinha aspirações à posteridade. Salvo raras exceções, as

crônicas de ícones da literatura mundial só vieram a público, nas páginas de livros,

depois da consagração dos mesmos. O próprio Machado de Assis, o maior escritor

brasileiro de todos os tempos, muitas vezes explicitava o caráter fugaz daquilo que

escrevia, como se pode observar no trecho de uma crônica publicada em 1897 no

jornal Gazeta de Notícias: “Há cerca de cinco anos vos digo aqui ao domingo o que

me passa pela cabeça a propósito da semana finda e até sem nenhum propósito”.

Não há como pensar a crônica, sem pensar seu espaço de publicação: o

folhetim. Originário da França, era um espaço no rodapé da primeira página dos

jornais: o rez-de-chaussée. O folhetim francês data de 1830, no jornal La Presse e

aportou no Brasil através dos paquetes vindos da Europa, que ancoravam trazendo

não só as notícias do velho mundo, mas todo um modo de ser e de pensar baseados,

principalmente, na França, símbolo de civilização da época. Sobre esse momento da

imprensa brasileira, Nelson Werneck Sodré, em seu História da imprensa no Brasil,

comenta: “O noticiário do exterior dependia ainda da chegada dos vapores, e Alencar

escrevia: ‘Há três ou quatro paquetes soubemos que...’”.

Alguns jornais adotavam a língua francesa em seus números,3 tamanha era a

influência francófona no país. Em solo brasileiro, o folhetim foi adaptando-se ao clima

local, sem perder os aspectos de origem, como a destinação às escrituras diversas,

que variavam de receitas culinárias, charadas até anúncios de compra e venda. Nesse

espaço, cuja intenção era a de entreter e divertir o leitor cabia também as narrativas

em série e, é claro, o relato das notícias da semana, contadas de forma leve e

individual. Machado de Assis, em uma de suas crônicas, nos diz:

3 Vide anexo

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O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama de inverno. De lá, espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal.

O folhetim, enquanto espaço geográfico do jornal aceitava tudo; qualquer

coisa que se fizesse entender a partir de signos linguísticos poderia obter um lugar no

feuilleton. Com o tempo, esse termo, bastante abrangente, foi ganhando outra

conotação. Muitos cronistas, no entanto, confundiam o espaço do folhetim com aquilo

que ele trazia. Para exemplificar essa afirmação, segue a citação de Eça de Queirós,

jovem jornalista português que, anos mais tarde se tornaria um dos mais importantes

escritores de seu tempo. A crônica de 21 de fevereiro de 1867, publicada n`O Distrito

de Évora, nos diz:

...há muita gente que se persuade que estas futilidades que se chamam crônica, folhetim, noticiário, variedades, não têm importância num jornal político, não pesam na opinião, não atacam e não combatem...

Com o sucesso do espaço do folhetim, o termo folhetim passa a designar

textos publicados naquele espaço. As narrativas em fatias tornaram-se largamente

consumidas; isso fez com que o folhetim ganhasse mais espaço e adentrasse o jornal.

Surge o romance de folhetim. Portanto, há que se distinguir o folhetim espaço

geográfico no jornal do folhetim narrativa rocambolesca e ainda do folhetim enquanto

sinônimo de jornal. Como já mencionado, o folhetim, diferentemente de outras

matérias jornalísticas, tem, no início, seu espaço sagrado no rodapé do jornal e era

como que uma escritura de encaixe numa estrutura fixa e vazia. Segundo Machado de

Assis, em crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 5 de junho de 1864, sob a

rubrica Ao Acaso:

O folhetim não é outra coisa mais do que o acaso, o vago, o indeterminado; é o acontecimento que há de haver, o lucro que se há de imprimir, o sarau que se há de dar; é o dito que escapa, a anedota que circula, o boato que se espalha; é o capricho do tempo, o capricho da pena, o capricho da fantasia; é a chuva e o sol, a elegia e o cântico; o folhetim reside no dia seguinte, vive do futuro, sai do ventre de todas as semanas, às vezes Minerva armada, às vezes ridiculus mus.

A crônica era uma das escrituras de encaixe do folhetim. Cabia ao cronista

redigir um texto comentando as notícias da semana, dando seu toque pessoal, sempre

atento à utilização de uma linguagem simples e direta. Ao cronista era dada a tarefa

de discutir amenidades; as coisas sérias, estas ficavam sob a responsabilidade das

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outras colunas. Ironicamente, Drummond comenta em sua crônica “O frívolo cronista”,

o papel designado às partes do jornal:

A informação apurada, correta, a análise de fenômenos sociais, a avaliação crítica, tarefas essenciais do jornal digno deste nome, não invalidam a presença de um canto de página que tem alguma coisa de ilha visitável, sem acomodações de residência. Como você tem em sua casa um cômodo ou parte de cômodo, ou simplesmente gaveta, ou menos ainda, caixa de plástico ou papelão, onde guarda pequeninas coisas sem utilidade aparente, mas em que os dedos e os olhos gostam de reparar de vez em quando: os nadas de uma existência atulhada de objetos imprescindíveis e, ao cabo, indiferentes, quando não fatigantes.

Vestindo-se da fama de texto sem importância, a crônica usava e abusava de

sua condição. O cronista português Eça de Queirós não só utilizou-se do recurso

humorístico, como tinha consciência da força do riso e do chiste sobre aqueles que

não se deixavam abater em se tratando de crítica séria. A crônica queirosiana de 21

de fevereiro de 1867, publicada n`O Distrito de Évora, dá a ideia da eficácia desse

estratagema:

...A crônica é para o jornalismo o que a caricatura é para a pintura: fere, rindo; espedaça, dando cambalhotas; não respeita nada daquilo que mais se respeita; procede pelo escárnio e pelo ridículo; e o ridículo em política é de boa, de excelente guerra...

Conscientes de sua arte, os escritores do texto lítero-jornalístico deixaram um

legado de valor imensurável para as gerações que os sucederam, souberam dar à

matéria efêmera do dia-a-dia um tom individual, subjetivo e uma linguagem

comprometida com o belo. As colocações aqui empregadas, nem de longe têm a

aspiração de concluir o que quer que seja, ao contrário, visa aumentar a indagação

sobre o tema proposto, a fim de expandir a pesquisa acerca do gênero cronístico. Ao

dar voz aos próprios cronistas, no intuito de conceituar o gênero, verificou-se o quanto

ainda se pode debater até que se obtenha uma unanimidade em relação ao

julgamento daquilo que seria crônica. Assim como aqueles que a praticaram, a crônica

continua sendo assunto inesgotável de investigação. Se o rótulo de gênero menor lhe

caiu tão bem por sua efemeridade, seus temas mundanos e seu caráter simplório, por

que não lhe caberia o título de alta literatura, considerando seus praticantes e sua

propagação ao longo dos séculos? Eis uma boa questão a ser analisada.

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