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Naíme Mansur Marcial COLONIZADORES, PURIS E BOTOCUDOS: GUERRA JUSTA E ACULTURAÇÃO NA BACIA DO RIO DOCE. 1808-1831 Dissertação de Mestrado submetida a aprovação da banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Severino Sombra – Vassouras- pelo mestrando Naime Mansur Marcial, orientado pelo Prof. Dr. Cláudio Antônio Santos Monteiro, como parte dos requisitos necessárias à obtenção do titulo de Mestre em História. Universidade Severino Sombra Vassouras – 2008

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Naíme Mansur Marcial

COLONIZADORES, PURIS E BOTOCUDOS:GUERRA JUSTA E ACULTURAÇÃO NA BACIA DO RIO DOCE.

1808-1831

Dissertação de Mestrado submetida a aprovação da banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Severino Sombra – Vassouras- pelo mestrando Naime Mansur Marcial, orientado pelo Prof. Dr. Cláudio Antônio Santos Monteiro, como parte dos requisitos necessárias à obtenção do titulo de Mestre em História.

Universidade Severino SombraVassouras – 2008

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Naime Mansur Marcial

COLONIZADORES, PURIS E BOTOCUDOS:

Guerra Justa e Aculturação na Bacia do Rio Doce. (1808-1831)

Dissertação apresentada à Banca de aprovação do Mestrado em História Social da

Universidade Severino Sombra.

Vassouras, 2008.

______________________________________________________________________Prof. Dr. Cláudio Antônio Santos Monteiro (Orientador) USS – Vassouras – RJ

_____________________________________________________________________Profª. Drª. Ana Maria da Silva Moura – USS – Vassouras - RJ

____________________________________________________________________Prof. Dr. Ivo Coser – PUC-RIO – Rio de Janeiro – RJ

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Para minha esposa Regina,

Minha filha Luciana,

Vida que da minha vida brotou.

Vida que da minha vida, razão se tornou!

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais incentivadores perpétuos,

ao meu Orientador Dr. Cláudio Monteiro

sem o quais não seria possível a

elaboração desta pesquisa.

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Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, 1967.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo retratar parte da história da ocupação da

região do Sertão do Rio Doce, nas primeiras décadas do século XIX, na província de

Minas Gerais, a partir do enfoque da história do contato entre índios e colonizadores

recém chegados a região. Neste sentido, a narrativa foi construída de modo a incluir

variantes políticas/culturais na análise dos diferentes períodos de ocupação desta

região.

A partir de 1808, a Corte de Portugal se instala no Rio de Janeiro, uma série

de transformações atingiram todo o país, como a abertura dos portos ao comércio e

a chegada de inúmeros viajantes. A partir da análise dos relatos desses viajantes

estrangeiros, presentes no vale do rio Doce (Minas Gerais, Brasil) ou em seus

arredores, focalizam-se as representações imaginárias construídas acerca de uma

grande área de Mata Atlântica, praticamente intocada até meados do século XIX.

Naturalistas como Maximiliano, Saint-Hilaire, Debret, Martius, Spix e políticos como

José Bonifácio de Andrada discutiram intensamente temas referentes às populações

indígenas que habitavam o sertão do Rio Doce e, eram apresentadas como grande

obstáculo para a conquista e ocupação da região sobe tutela de cartas Régias

editadas pelo Príncipe Regente. Aos índios botocudos, atribuíam-se atitudes

violentas e hábitos antropofágicos. Nessa polêmica, avaliavam-se a possibilidade de

colonização e as condições efetivas de ocupação do território através da

“Civilização”, “Catequese” e do “Aldeamento” dos indígenas.

Palavras-chave: Botocudos, Sertão do Rio Doce, Civilização e aldeamento.

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ABSTRACT

This research aims to portray a piece of the history of occupation of the

Hinterland see region of Rio Doce, in the first decades of the nineteenth century, in

the province of Minas Gerais, from the focus of the history of contact between

Indians and settlers newly arrived in the region. In this sense, the narrative was built

to include variants political / cultural in the analysis of the different periods of

occupation of this region.

From 1808, the royal family Portugal is installed in Rio de Janeiro, a series of

transformations achieved throughout the country, as the opening of ports to trade

and the arrival of many travelers. From the analysis of the reports of foreign travelers,

in the Vale do Rio Doce (Minas Gerais, Brazil) or in its outskirts, focusing on the

imaginary representations made about a large area of Atlantic forest, virtually

untouched until the middle of the nineteenth century. Naturalists as Maximilian, Saint-

Hilaire, Debret, Martius, Spix and politicians as Jose Bonifacio de Andrada

intensively discussed issues relating to indigenous peoples who inhabited the

backwoods of Rio Doce, and they were presented as a major obstacle to the

conquest and occupation of the region under the custody of letters edited by royal

regent prince. To Botocudo, the Indians, they gave violent attitudes and

Anthropophagic habits. In this controversy, assessed the possibility of colonization

and effective conditions of occupation of the territory by "civilization", "Catechism"

and the "Village" of Indians.

Keywords: Botocudo, Hinterland of Rio Doce, Civilization and village.

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Sumário

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES------------------------------------------------------------------------09

ÍNDICE DE TABELAS-------------------------------------------------------------------------------11

ABREVIATURAS -------------------------------------------------------------------------------------12

INTRODUÇÃO. ---------------------------------------------------------------------------------------13

CAPÍTULO I

O Sertão de Minas e os Botocudos: quem são, seus usos e seus costumes.--18

CAPÍTULO II

Cartas Régias: a questão indígena no sertão mineiro. ---------------------------------41

CAPÍTULO III

Aldeamento: política no sertão mineiro e política para o Estado brasileiro.----64

CAPÍTULO IVO olhar dos viajantes europeus sobre o povo Botocudo na construção do Estado Brasileiro. -----------------------------------------------------------------------------------89

CONSIDERAÇÕES FINAIS. ---------------------------------------------------------------------126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS------------------------------------------------------------130

Fontes-------------------------------------------------------------------------------------130

Referências on line. ------------------------------------------------------------------131

Referências Bibliográficas. --------------------------------------------------------132

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração1: Minas Gerais: Vegetação e Localização do Sertão do Rio Doce.--20

Ilustração 2 : Leste de Minas Gerais: Área de localização dos Principais Grupos Botocudos no Séc. XIX.----------------------------------------------------------------22

Ilustração 3: Viagem por um braço do Rio Doce. Ilustração de Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied.------------------------------------------------------------------23

Ilustração 4: Bacia do Rio Doce – Principais afluentes e subafluentes, cachoeiras e locais que serviam de referencia, no inicio da Colonização. Séc. XIX.--------------------------------------------------------------------------------------------------------24

Ilustração 5: Índios Puris na sua choça. Retratado por Maximiliano. -------------25

Ilustração 6: Os pintores da corte portuguesa esmeraram-se em retratar os botocudos, encantados com a estranheza de suas figuras e de seus costumes.-----------------------------------------------------------------------------------------------27

Ilustração 7: Coroado e Botocudo, in Viagem pelo Brasil, 1817 – 1820 de Spix e Martius.--------------------------------------------------------------------------------------------------28

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Ilustração 8: Índios Puris perambulando pelas matas do sertão do Rio Doce, observamos as mulheres carregando os filhos e os cestos com seus pertences. Ilustração do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied.------------------30

Ilustração 9: Família de Botocudos atravessando um rio.-----------------------------31

Ilustração 10: No 1º Tomo na prancha 20 Debret, retrata a utilização de tropas de soldados, constituídas de índios “civilizados” no combate e escravização dos selvagens.----------------------------------------------------------------------------------------46

Ilustração 11: Minas Gerais: Áreas de ocupação das Divisões Militares do Rio Doce e localização dos Quartéis. Fonte: ESPINDOLA. Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. IBGE – 1996----------------------------------------------------------------------------- 54

Ilustração 12: Rugendas em sua pintura, confirma a presença de colonos e indígenas convivendo no interior do sertão. --------------------------------------------- 61

Ilustração 13: Dança dos Puris. Representada por Freireyss, G. W. em Viagem ao interior do Brasil---------------------------------------------------------------------------------94

Ilustração14: As jovens florestas brasileiras que encantavam e ao mesmo tempo assustavam segundo Martius.--------------------------------------------------------99

Ilustração 15: Floresta Virgem no Sertão Mineiro. A gravura da Prancha 1 parte final da obra de Debret observamos a floresta impenetrável muitas vezes descrita pelos viajantes europeus.-----------------------------------------------------------100

Ilustração 16: Aldeia de Caboclos em Cantagalo --------------------------------------110

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ÍNDICE DE TABELAS

Tabela trazendo a Divisão Militar do Rio Doce que ficara estabelecida no período de 1808 a 1839. -------------------------------------------------------------------------- 52

Tribos de Índios da Província de Minas Gerais seu local, Mapas fazendo conhecer os aldeamentos das diferentes Populações, seu regimento, auge ou decadência, e as causas. -------------------------------------------------------------------------76

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ABREVIATURAS

AN – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

APM – Arquivo Público Mineiro.

BN – Biblioteca Nacional.

CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, Belo Horizonte.

DMRD – Divisão Militar do Rio Doce

RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.

RIHGMG – Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais.

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INTRODUÇÃO

Iniciamos nossa pesquisa após termos contato com os Botocudos (Krenak),

que hoje vivem as margens do Rio Doce, próximo á cidade de Resplendor, no

Estado de Minas Gerais. Cerca de 80 famílias vivem na Reserva Indígena Krenak

sob a tutela da FUNAI.

Chegamos a aldeia krenak com os alunos da Escola Estadual Cel. Calhau.

Fomos recebidos pelos indígenas e logo começamos uma conversa informal com

eles. Grande foi a nossa surpresa ao encontrarmos a frente da tribo uma mulher, a

Cacique Laurita, por sinal, uma das ultimas representantes dos Botocudos. É ela

quem nos relata sobre a sua luta pessoal pela sobrevivência da sua língua materna,

e sobre os principais conflitos da comunidade local com o Estado e com homem

“branco” na atualidade.

É intenção nossa, através desta pesquisa, iluminar uma parte importante da

história a respeito do processo colonizador que levou ao progressivo

enfraquecimento e desaparecimento das sociedades indígenas, nesta parte do

sertão mineiro. Movimento que se relaciona de forma direta com as políticas da corte

portuguesa e do futuro Estado brasileiro no cruzar dos séculos XVIII/XIX.

No final do séc. XVIII e inicio do séc. XIX, a região passa a despertar a cobiça

da Coroa Portuguesa e dos colonos. Na Carta Régia de 13 de maio de 1808, o

Príncipe Regente D. João VI, propõe a colonização da área e declara guerra

ofensiva aos Índios Botocudos que habitavam a Região. A partir de então, esse

pedaço de Mata Atlântica se torna palco de conflitos intensos entre nativos e

colonizadores que acabavam de chegar à região com intuito de fixar moradia nessas

paragens, até então “Zona Proibida”.

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Sabemos que o interesse dos governantes portugueses nesse processo esta

direcionado, para o incentivo à ocupação das terras das “Zonas Proibidas” no Sertão

do Rio Doce, um vale, até então, isolado da “civilização”.

Nesse sentido, nosso objeto de pesquisa compreende as diretrizes da política

do Estado, português, no uso da “guerra extermínio” e de “aldeamentos”, com

relação a essa nova frente pioneira do Sertão do Rio Doce, nas primeiras décadas

do século XIX. O Projeto colonizador iniciado pelo Príncipe Regente D. João VI se

estende ao reinado de Dom Pedro I e ao tempo das Regências intensificando o

controle e ocupação dessas terras por colonos leigos, com enorme impacto nas

populações indígenas que habitavam o Sertão do Rio Doce. A tentativa de integrar a

antiga “Zona Proibida” no domínio da burocracia ao Estado português faz-se em

uma época marcada pelas necessidades impostas pela instalação da Corte no

Brasil. Doravante, a zona do sertão mineiro, até então uma zona proibida, passa a

ser igualmente alvo das descrições e analises de inúmeros viajantes europeus, os

quais, informados pelos ideais do tempo de universalização das concepções liberais

de propriedade e de trabalho, procuram um lugar para as sociedades indígenas

brasileiras e para o próprio Brasil, no programa “civilizador” do ocidente. É nesse

ambiente que se processa a interiorização da metrópole.

Nesse sentido também, a presente pesquisa analisa as práticas políticas que

nortearam as ações do Estado, com relação às comunidades indígenas do Vale do

Rio Doce, analisando-as e confrontando-as, com as descrições e representações

criadas pelos relatos de viagens, em um período em que a política “civilizadora”

destinada ao sertão mineiro sofre profundas modificações.

Nossos objetivos visam contribuir com o resgate das representações da

identidade da população do Vale do Rio Doce, identidade que é apresentada pela

voz do colonizador. Objetivamos, também, a analise das representações feitas pelos

“civilizadores” em relação aos indígenas e sobre o conceito de “civilizado”, que

expressam e legitimam essa aproximação, bem como a analise sobre o debate

acerca das motivações e praticas que animaram a progressiva interiorização da

metrópole, nessa área. Por fim, refletimos sobre os resultados atuais desse

processo sobre uma população, que nos dias atuais, ressente e expressa os

conflitos entre indígenas e colonizadores no séc. XIX.

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A região em estudo está localizada no Médio Vale Rio Doce, especificamente

às margens do baixo Rio Manhuaçu, que é grande parte do então chamado Sertão

do Leste Mineiro, nos século XVIII e XIX.

Trata-se de uma área enorme de Mata Atlântica, com vales férteis propícios à

agropecuária, cortada por uma rica rede hidrográfica, situada entre a faixa costeira

do atual Espírito Santo e a região de extração aurífera na capitania de Minas Gerais.

Nossas balizas cronológicas compreendem o período transcorrido entre 1808

e 1831. O primeiro corte se justifica pelo fato de ter sido á esse tempo que as leis

decretadas pelo Príncipe Regente de Portugal, D. João VI, através de Cartas

Régias, foram emitidas e mantidas como legislação para os indígenas, até o fim do

1º reinado. Somente através da Lei de 27 de outubro de 1831, o Império Brasileiro,

apresenta um outro tipo de orientação, em relação à política “civilizadora” para a

região. Dessa forma, foi somente no final do Primeiro Império e no começo do

período das Regências, que foram oficialmente revogadas as determinações das

Cartas Régias: a pratica da guerra de extermínio e de servidão impostas aos índios

Botocudos do Sertão do Rio Doce.

Nessa perspectiva, o presente estudo, a articulação entre o campo Cultural e

Político se impõe e se justifica na medida em que se analisa uma ação política

determinada - a do Estado, português e, posteriormente o nacional, sobre os

indígenas do Sertão do Rio Doce no início do século XIX - sem se perder de vista os

seus significados culturais – na medida em que governantes e viajantes ainda eram

promotores dos princípios cristãos sobre “civilização”.

Por outro lado, da mesma forma, essa ação “civilizadora” permite-nos

identificar parte do processo de descaracterização das culturas nativas dessa

localidade, ao passo que se recria uma cultura local, visível até hoje na região.

Nossa pesquisa bibliográfica concentrou-se em alguns livros que abordam

diretamente a questão indígena no Século XIX. Nesse sentido, Sertão do Rio do

Doce, do Dr. Haruf Espindola, Pokrane: da Saga dos Botocudos ao Nascimento de

um Arraial, de Jonathas Durço, Indígenas de Minas Gerais: Aspectos Sociais,

Políticos e Etnológicos, de Oiliam José, Civilização e Revolta: os Botocudos e a

Catequese na Província de Minas Gerais Izabel Missagia de Matos e História dos

Índios no Brasil, organizada por Manuela Carneiro da Cunha, foram de fundamental

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importância para o desenvolvimento inicial do presente trabalho. Foi a partir dessas

obras que pudemos definir e traçar os passos da pesquisa, sobretudo, no que está

se articula particularmente com a ação do Estado (Português e depois Nacional)

sobre o Sertão do Rio Doce.

A interiorização da metrópole trouxe com ela a idealização de possíveis

caminhos civilizadores. Esses estão presentes nos discursos oficiais e nos relatos

de viagens. O sertão brasileiro é o vazio, o distante e desconhecido, o selvagem, a

espera da civilização para uma população que, para os europeus, viviam ainda em

sua ‘menoridade’. A temática é recorrente na literatura de viagem e cientifica da

época, e como enfatizaremos, uma preocupação do Estado. Nesse sentido, é nossa

intenção apontar as fronteiras entre as opiniões e as imagens expressas pelos

viajantes, de um lado, e de outro, o discurso e a ação do Estado. Tratando-se de

produtos de uma mesma época, seja do pensamento europeu na Europa ou na

Corte no Brasil, é importante saber até que ponto a ação expressa pelas cartas

regias articulam-se aos discursos que circulavam nos livros de viagens. Afinal, a

temática sobre a natureza selvagem, a ameaça botocuda e, sobretudo, a riqueza

das terras também freqüenta a literatura de viagem e cientifica da época.

Analisamos os significados de civilização, selvagem, sertão, guerra justa,

aldeamento, bárbaro, termos vulgarmente utilizados pelo discurso oficial e pela

literatura de viagem. Um mapeamento desses significados pode nos possibilitar

indicar alguns caminhos para possíveis respostas quanto ao processo em estudo.

Assim, nosso estudo em grande parte é baseado nas leis vigentes da época:

em carta dos Governadores de Província, Cartas Régias e leis do Império do Brasil,

nos relatórios e correspondências dos representantes oficias em missão na região,

bem como, nos relatos de viajantes que foram, muitas vezes, testemunhas oculares

do processo que examinamos.

No que diz respeito ao nosso corpus documental oficial, ele é composto de

documentos oficiais como as 7 Cartas Régias editadas nesse período.

Com relação aos relatos de viagem citamos as seguintes obras: Jean Baptiste

Debret Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil. MARTIUS, SPIX, Viagem ao Brasil:

1817-1820, Príncipe Maximiliano, Viagem ao Brasil: nos anos de 1815-1817, August

de Sant-Hilaire. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo

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1822. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Viagem pelas províncias do Rio de

Janeiro e Minas Gerais.

No primeiro capítulo tratamos do espaço que se tornou conhecido como

Sertão mineiro e trabalhamos a questão dos povos que habitavam a “Zona Proibida”,

em especial, os Botocudos. A nova área de interesse da colonização inaugura nos

primeiros anos do século XIX os contatos entre colonizadores e os antigos

habitantes da terra. Desses contatos constrói-se um saber sobre os botocudos, o

qual analisaremos.

No segundo capítulo analisamos as diretrizes políticas, com o uso da “Guerra

extermínio” e “aldeamento”, em relação á frente pioneira do sertão do Rio Doce, nas

primeiras décadas do século XIX.

No terceiro momento trabalhamos no sentido de pensar a interiorização da

metrópole através das diretrizes da política indigenista do séc. XIX expressa através

da ação de aldeamentos como forma de “catequizar” e “civilizar” o nativo do sertão

mineiro.

No ultimo capítulo realizamos uma reflexão sobre os relatos de vigem de

alguns naturalistas que percorreram o Sertão Mineiro descrevendo o contato com a

natureza e os habitantes da região no momento do contato com o colonizador. Em

primeiro lugar estudamos a ação política sobre indígenas de uma determinada

região e em segundo lugar essa ação ser legitimada por valores como “Bárbaros”,

“Civilizados”, “aldeados”, ou seja, pela adjetivação extremamente polarizada de

valores logo uma visão cultural. Estamos nesse contexto analisando se ocorreram

ou não mudanças de pensamento em relação a pratica de incorporação do Índio a

população do Estado Nascente – o Império do Brasil.

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CAPÍTULO – I

O SERTÃO DE MINAS E OS BOTOCUDOS: quem são, seus usos e seus costumes.

“Algumas [sociedades] acalentam o sonho de permanecer tais como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. É claro que elas se enganam: tais sociedades não escapam mais da história do que aquelas – como a nossa – a quem não repugna se saber históricas, encontrando na idéia que tem da história o motor de seu desenvolvimento.” 1

Quando os portugueses chegaram à Região das Minas no interior da Colônia

(séc.XVII), encontraram um verdadeiro "caldeirão" de culturas indígenas, que

sobreviviam através de caça, pesca, coleta e pequena agricultura de subsistência.

Dentre as culturas existentes na região, a que ocupava mais territórios e mais

resistências ofereceu ao colonizador foi a dos Botocudos, em uma disputa que,

começada no século XVI, só se encerraria no século XX.

A questão da ocupação do Sertão do Rio Doce passa a ser discutida com

mais constância, no começo do século XIX, quando entra em declínio a extração

aurífera das ninas e o grande contingente populacional deslocado para a região

passa a representar um grande problema para administração real. Desenganada da

“riqueza fácil” proporcionada pelo ouro, diz Capistrano de Abreu, buscou a

população outros meios de subsistência: criação de gado, agricultura de cereais,

1 LÉVI-STRAUSS, Claude. De Volta ao Passado. São Paulo: Bossa Nova. 1998. p.108

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plantação de cana, de fumo, algodão, etc. Disto resultara, a partir do início do século

XIX, um significativo crescimento demográfico da região do Sertão Mineiro o que

facilitou mais tarde a penetração na Zona do Vale do Rio Doce.

Assim, as terras ao leste da região das Minas surgem como a solução para a

questão do excedente populacional que passa a existir no período do auge da

mineração, mas como veremos a seguir, alguns obstáculos teriam de ser

transpostos e entre eles estão, as doenças tropicais, o medo do desconhecido e o

mais temido dos estorvos à colonização dessa região, as tribos indígenas, mais

especificamente, o temido Botocudo.

Esses habitantes, nos primórdios da ocupação, foram supostamente

empurrados no sentido litoral interior pelos seus inimigos Tupis, portugueses e

nativos aliados aos exploradores. Essas tribos passaram a habitar o interior

afastando-se do litoral, assim mantendo menor contato com o colonizador e sua

cultura, conservando-se arredio e dando sustento a toda uma rede de “mitos e

lendas”, que se formaria em torno da “agressividade” desses indivíduos. Assim, o

progressivo avanço da colonização correspondeu ao deslocamento indígena para os

sertões. Não sem traumas para as partes, conforme observa o historiador mineiro

Diogo Luis A. Vasconcelos (1948), que informa sobre o movimento territorial

indígena dos Aimorés nos primórdios da colonização:

“(...) Não devemos esquecer um ponto relativo aos aimoré, que ilucidaria muito o problema dos índios. Eram eles emigrantes do ocidente, a principio formaram uma nação temível, a que mais impedia a exploração(...). Depois da ocupação portuguesa do litoral de Porto Seguro e dos ilhéus, desceram e saquearam a colônia, destruíram o que puderam, ate que Mem de Sá os acometeu com dura guerra, os desbaratou e, os atirando contra o reino dos tapajós, acabaram estes por fazer o necessários para os debandar e destruir. Separados em hordas degradaram-se(...)” 2

No que diz respeito à movimentação territorial dos indígenas nos interessa a

dos Botocudos, então antigos Aymorés3. Esses, ao início da colonização, habitavam

a faixa litorânea do Espírito Santo e sul da Bahia, passariam a viver mais para o

2 VASCONCELLOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p.137. 3 JOSÉ. Oilian. Os Indígenas de Minas Gerais: Aspectos Sociais Políticos e Etnológicos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. p.11. Nome dado aos Botocudos pelos Jesuítas e Cronistas da época.

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interior da colônia. Mas, em torno dos séculos XVII e XVIII concentraram-se no leste

de Minas Gerais, ficando durante um longo período (entre 1600 a 1800),

encurralados e espremidos em uma faixa de terra, entre o litoral açucareiro e a

região aurífera.

Portanto, durante o século XVIII com a descoberta das Minas no interior da

colônia esses indígenas sofrem um outro impacto, com o novo movimento

populacional que ocorreria na colônia, causado pela descoberta do ouro.

Com a descoberta de ouro e pedras preciosas nesta região central de onde

posteriormente seria a capitania de Minas Gerais, houve um fluxo de povoamento e

a conseqüente formação de alguns núcleos de habitação e de comércio. Lugares

aonde os mineiros vinham nos fins de semana comprar mercadorias e assistir às

missas. Muitos desses núcleos estão na origem de importantes cidades mineiras.

Entretanto, ao leste de Minas Gerais, no entorno das minas, mais precisamente na

região do Sertão do Rio Doce, onde não se descobriu nenhum grande veio aurífero,

a localidade continuou intocável e “livre” das imposições da colonização. 4

4 ESPINDOLA. Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. São Paulo: Edusc. 2005.

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Ilustração 1 : Minas Gerais – Vegetação – Localização do Sertão do Rio Doce.5

Os habitantes do leste mineiro, os temidos Botocudos6, durante o auge dessa

produção aurífera eram considerados um obstáculo à colonização dessa área. Por

outro lado, havia por parte da Coroa Portuguesa um grande interesse em manter

fechado esse caminho para o litoral, evitando o contrabando do ouro, que saindo de 5 Idem. p. 666 PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Guido Pokrane, O Imperador do Rio Doce. Campinas: disponível na internet <http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Textos/MHParaiso.pdf, 2000.> p.03 acessado: 20/04/2007 Convém destacar que a denominação botocudo não deve ser considerada como um termo de cunho etnográfico, mas de caráter político-administrativo. Após 1808 todos os grupos indígenas que opunham resistência à conquista e dominação eram identificados como botocudos, pois garantia aos seus conquistadores os privilégios concedidos pelas Cartas Régias de 1808.

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Vila Rica facilmente alcançaria o Rio Doce, um caminho fácil para chegar ao oceano

e à Europa. Dessa forma, circunstancialmente, foi interesse do Estado Português a

crença, talvez exagerada, mas muito difundida, relativa à ferocidade dos habitantes

das margens do Rio Doce. Na realidade prestavam um grande serviço à Coroa

ajudando a manter fechadas as fronteiras dessa região. Uma das principais armas

da coroa no sentido de propagar entre a população local os requintes dos horrores,

caso caísse nas mãos de um Botocudo, foi a propagação de notícias relativas à

prática da antropofagia ou sobre a crueldade dos Botocudos.

Passa a ocorrer nesses séculos (XVIII e XIX), a interiorização da população

da Colônia, que influenciada pela promessa de enriquecimento rápido proporcionada

pelo ouro, se direciona para o interior da Capitania de Minas Gerais, realizando

dessa forma uma nova pressão nas tribos indígenas da região, que agora

empurradas no sentido oeste/leste, do interior para o litoral, são levadas e obrigadas

a viver em um corredor que se formou ao longo das cadeias de montanhas, que se

estendiam entre as divisas das Capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.

Já com a queda da produção de ouro no final do séc. XVIII e início do séc.

XIX, a geografia da conquista e da ocupação é redesenhada, e junto com ela, mais

uma vez, a sorte dos Botocudos, que foi condicionada aos interesses e

necessidades da Coroa. Com efeito, passada à euforia do ouro, a região habitada

pelos Botocudos passa a ser vista pela Coroa como solução de um impasse

delicado para o Reino: o de gerar uma fonte de trabalho para aquela numerosa

população atraída para Minas, mas que, na adversidade econômica do tempo, se

transformava em uma massa perigosa de desocupados e um prejuízo para os cofres

reais. Nessas condições, um paliativo ao problema foi a utilização da terra como

argumento de convencimento e, objetivamente, de ocupação para as atividades da

agricultura e da pecuária, já então privilegiadas.

Foi assim que os mineiros depararam com o extenso vale do Rio Doce. Uma

região de solos férteis, ao longo de um rio encravado no meio de uma mata densa,

no grande Sertão Mineiro, último reduto dos temidos Botocudos.

Sertão Leste Mineiro

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Ilustração 2 : Leste de Minas Gerais: Área de localização dos Principais Grupos Botocudos no Séc. XIX.7

7 Fonte: ESPINDOLA. Haruf Salmen. 2005. Op. Cit. p. 286.

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Lembramos, ainda que, partir dos setecentos, período auge da mineração, a

Região ficaria conhecida como “Zona Proibida”, permanecendo fechada aos

colonizadores, pois sua vasta rede hidrográfica facilitaria a comunicação entre as

minas e o litoral da colônia, representando para a Coroa Portuguesa uma ameaça

constante como facilitador do contrabando do ouro, retirado das minas, como já

apontamos.

Ilustração 3: Viagem por um braço do Rio Doce. Ilustração de Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied.8

8 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil: nos anos de 1815-1817. São Paulo: ed. Itatiaia e ed. Da Universidade de São Paulo, 1989. p. 152

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Mesmo levando-se em consideração os exageros oficiais sobre os indígenas

da região, é verdade que na Capitania de Minas Gerais, no decorrer dos séculos

XVIII e XIX, foram constantes os ataques realizados por índios Botocudos e Puris

aos colonos que se atreviam assentar no Sertão do Rio Doce. Extensa área com

83.400 Km², que cobria grande parte dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

Esta área banhada pelo Rio Doce e seus principais afluentes (os rios Piracicaba,

Santo Antônio, Suaçui Grande, Caratinga e Manhuaçu no território de Minas Gerais,

e os rios Guandu, Pancas, São José no território do Espírito Santo), recoberta por

densa floresta pluvial tropical, com predomínio de relevo acidentado, caracterizado

pelos “mares de morro” 9, eram entremeados por estreitas planícies aluviais. Fora da

calha do Rio Doce o relevo apresenta diversas formações; pontões, áreas de relevos

acidentados e vales profundos, com os rios formando uma sucessão de

cachoeiras10. A altitude entre a foz e a cidade mineira de Aimorés é de 83 metros, e

dessa à Ipatinga, região do médio Rio Doce, a altitude é de 137 metros. Afastando-

se da calha do rio, a altitude sobe rapidamente chegando a mais de 700 metros

tornando-se muito oscilante. A extensão territorial, a diversidade de seus ambientes

físicos e biótipos ali existentes nos dão à idéia da complexidade da exploração

dessa área, que após algum tempo fechada à “civilização”, passa, a partir do século

XIX, a despertar a cobiça da Coroa e dos colonizadores. Uma região, entretanto,

originalmente habitada por índios “Bravios” 11, termo usado para denominar os índios

Botocudos, habitantes da terra que não se submetiam aos colonizadores.

9 Região caracterizada pela presença de planaltos irregulares com topos convexos que dão a impressão de formarem ondas daí a denominação mares de morro.10 Adaptado de SIMIELLI, Maria Helena. Atlas Geográfico. São Paulo: Ática, 1994. 11 Designação que se dava aos nativos da região que não se submetiam aos portugueses.

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Ilustração 4: Bacia do Rio Doce – Principais afluentes e subafluentes, cachoeiras e locais que serviam de referencia, no inicio da Colonização. Séc. XIX.12

Como e quem seriam esses índios denominados de Botocudo? Quanto à sua

caracterização seguimos os estudos de Oilian José13: as tribos que povoavam a

extensa região do Sertão do Rio Doce em sua maioria pertenciam ao grupo Gê,

denominação adotada por Martius14, ou Tapuias que na língua tupi significava o

Bárbaro. Botocudos era o nome genérico usado pelos portugueses para denominar

grande bloco de tribos e subtribos de origem Gê. Segundo Oilian José atribuiu

Marlière a denominação Botocudo à iniciativa de portugueses, que a acolheram 12 Fonte: ESPINDOLA. Haruf Salmen. 2005. Op. Cit. p.325 13 Oilian José foi um dos mais importantes estudiosos da questão indígena em Minas Gerais. Deu importante contribuição para os vários estudos posteriores sobres os indígenas de Minas Gerais. 14 Naturalista alemão que visitou o Brasil nas primeiras décadas do século XIX, e classificou os habitantes dando grande proeminência ao fator lingüístico.

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porque esse gentio ornamentava os beiços e as orelhas com rodelas, os botoques,

preparados em madeira, substituindo os tembatás.15

Ilustração 5: Índios Puris na sua choça. Retratado por Maximiliano. 16

15 Palavra de origem tupi. No Museu Nacional, do Rio de Janeiro, há uma famosa coleção desses enfeites, que foram estudados por Ladislao Neto, em “Archivos do Museu Nacional”, vol. II, 1877. 16 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied.. 1989. Op. Cit. p. 72

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Os Botocudos tinham características físicas muito peculiares, mostravam-se

geralmente altos, corpulentos, de cabelos pretos e lisos, de olhos pretos e nariz

grande, tinham pouca barba e pêlo no corpo. Traziam o lábio inferior perfurado para

conter o botoque e seu aspecto geral mostrava rudeza. Indígena do tronco Gê, o

Botocudo, caracterizado por sua aparência física considerada desagradável, com

deformações causadas pelo uso do botoque17, o qual com o passar dos anos de uso

contínuo, causava-lhe deformação no rosto, deixava o nativo com uma aparência

monstruosa. Tal aparência ajudava a caracterizar o “monstro” botocudo.

Tornava-se impossível, a partir das primeiras investidas sobre o Sertão do Rio

Doce, evitar o choque no encontro entre colonizadores exploradores e indígenas.

Após mais de um século de “propagandas” que davam conta da ferocidade e

crueldade do habitante das matas mineiras, criara-se uma situação favorável ao

conflito já que os colonos esperariam grandes hostilidades. Às vezes, diante do

colonizador, ele surgia como elemento surpresa na destruição e no incêndio,

matando o invasor sem piedade. Pelas matas, irrompiam Botocudos e Puris quase

sempre resistindo às tentativas de aproximação. Infensos, reagiam de imediato á

presença de exploradores que tentavam penetrar no Sertão, descendo pelos vales

dos rios que cortavam o Leste Mineiro. Podemos constatar esse violento encontro

em relatos, notícias e observações sobre os índios Botocudos, que na época ainda

denominam Aymorés. Em dezembro de 1809 relatava José Pereira Freire de Moura,

um desses encontros conflituosos entre exploradores e indígenas:

“(...) Sobre a fereza lembra-me q’ no anno de 1755 veyo a Vila do Bom Successo das Minas Novas o Mestre de Campo João da Silva Guimaraens e ahi dice, q’ vindo em seguimento dos Ambarés q’ tinhão feito grandes danos sobre os índios, e Povos da Conquista, os encontraram na barra da Utinga, os atacara: q’ eles sendo no numero de cincoenta homens contra duzentos, e quarenta que mandava o Mestre de Campo, pelejarão ate se acabarem todas as frexas: morrerão todos os botocudos, menos hum, q’ se atou ao tronco de hua arvore para se não matar, não quis receber alimento algú por três dias, e por fim tanto bateo com a cabeça contra o tronco da arvore, q’ espirou. (...)” 18

17 Peça de madeira usada pelos indígenas nos lábios inferiores proporcionando-os deformações físicas na face o qual dava-lhe um aspecto assombroso particularmente característico do Botocudo. 18 Revista do Arquivo Público Mineiro – Noticias e observações sobre os índios Botocudos que freqüentam as margens do Jequitinhonha e se chamão de Âmbares ou Aymores. Dezembro de 1809 – Lorena dos Tocoyos – José Pereira Freire de Moura – Arquivo Público Mineiro, anno XI, p. 29.

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A narrativa acima relata o encontro entre o Mestre de Campo João da Silva

Guimaraens e os índios Botocudos na região de Vila do Bom Sucesso das Minas

Novas. Tal relato confirma o clima tenso existente entre Colonizadores exploradores

e Botocudos já no momento dos primeiros contatos. O colonizador tomado pelo

pavor da imagem monstruosa do índio Botocudo do Sertão Mineiro, criada e

propagada pela Coroa Portuguesa, atacava-os sem chances de um primeiro contato

amistoso, por sua vez, o índio Botocudo se defendia revidando a agressão com

muita violência, preferindo a morte ao domínio a ele imposto pelo colonizador.

Esses encontros conflituosos se tornaram freqüentes, como podemos

observar em vários relatos de época, onde o indígena por sua inferioridade

armamentista, perante o português, na maioria das vezes levou desvantagem. A

simples menção do seu nome e a conotação de que seus botoques "lhes

desfiguravam o rosto" sempre despertou no imaginário do colonizador, imagem de

fealdade, ou mais além, "de inimizade a todo o gênero humano".

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Ilustração 6 Os pintores da corte portuguesa esmeraram-se em retratar os botocudos, encantados com a estranheza de suas figuras e de seus costumes.19

Diversos termos foram usados para referir-se a esse povo nômade da região

do Vale do Rio Doce que, até o final do século XVIII, se manteve intocada. Boruns,

Bugres ou Tapuias eram termos constantemente usados para alcunhar tais

indivíduos, mas como constam em vários registros de época, tinham verdadeira

ojeriza e aversão a que os chamassem de Botocudo, termo usado pelos

portugueses, derivado da palavra botoque (arruela de madeira utilizada pelos

indígenas para enfeitarem os lábios e os glóbulos das orelhas). Esses adereços

chamavam atenção do explorador e levaram viajantes e naturalistas a estudarem

tais particularidades. O príncipe Maximiliano, em seu contato com os Botocudos,

durante sua viagem pelo Brasil entre 1815 e 1817, mediu uma dessas placas de

madeira (botoque), que chegou a “quatro polegadas e quatro linhas de diâmetro,

feito em uma madeira mole conhecida como Barrigudo (Bombax ventricosa), árvore

muito abundante nas matas da região.” 20

O hábito entre os índios Botocudos de fazer um corte nos lábios e nos lóbulos

das orelhas e depois enfeitá-los com os botoques era um costume generalizado

entre os gentios do botoque, mas, também foi muito usado pelo português para

identificá-los e classificá-los como selvagens. Por muitos anos esse costume se

impõe como sendo uma característica da “nação” botocuda, hoje, porém, sabemos

que o uso de botoque não era uma exclusividade desses grupos que habitavam o

vale do Rio Doce, pois outras tribos, das localidades mais distantes do mundo fazem

uso desse artefato. Como exemplo, podemos citar os Gamelas do Maranhão,

sociedade mais próxima a nós e algumas tribos dispersas em ilhas do Pacífico,

praticamente do outro lado do globo terrestre. Na ilustração 7 podemos observar

nativos do vale do Rio Doce usando os botoques, retratados por Spix e Martius na

obra Viagem pelo Brasil nos anos de 1817 a 1820. Ao iniciar o século XIX essas

figuras despertaram interesses na população do velho mundo.

19 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.23620 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.293

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Ilustração 7: Coroado e Botocudo, in Viagem pelo Brasil, 1817 – 1820 de Spix e Martius.21

O interesse despertado provavelmente pelo estranho aspecto físico e

costumes pouco conhecidos dos Botocudos, provocaram inúmeros estudos entre

pesquisadores alemães, russos, franceses, suíços e americanos durante o século

XIX. As imagens desses indivíduos, do seu modo de vida e seus costumes,

amplamente divulgadas no Velho Mundo, por esses naturalistas após suas viagens

ao Brasil, favoreceram, por um lado, o conhecimento dessa população, mas, por

outro lado, manteve a imagem de um índio “mau”. Essa imagem em muito favoreceu

a legitimação da política da Coroa em “civiliza-los”. Segundo depoimento da Índia

Krenak, Laurita22 ao perguntarmos como viviam seus antepassados os temidos

Botocudos do Rio Doce, ela diz ter sido um povo que possuía poucos objetos, pois

viviam em constante movimento pelo território que habitavam, sendo inviável a

posse de muitos materiais. Essa memória social revela que a sobrevivência

21 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. Viagem ao Brasil: 1817-1820. São Paulo, Melhoramentos, 1938. p. 201.22 Em visita a Tribo Krenak, em Resplendor MG, tivemos oportunidade de colher depoimento da índia Laurita que se encontrava a frente doa remanescentes da tribo.

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dependia ao máximo da sua adaptação ao meio e o aproveitamento dos recursos

oferecidos pela natureza.

A caça, a pesca e coleta eram atividades de subsistência desse povo. No

período da seca abandonavam seus acampamentos às margens dos rios e se

embrenhavam pelo interior das matas a procura de alimentos e material para

confecção de artesanato, sendo o jenipapo, o caratinga, o jatobá, o mamão, o imbu

e a pitomba os mais encontrados e utilizados pelos nativos. Essa atividade era

exercida por todos os membros da comunidade. A pesca e a caça também eram

abundantes na região e muito praticadas pelos Botocudos exercendo grande

importância na alimentação do indígena. Destacava-se na pesca o surubim,

cascudo, o bagre, a traíra, o lambari e a curvina que além de alimento também era

utilizado para fazer remédio. Na caça, prevalecia a busca pela capivara, o veado, o

caititu,o queixada, o tatu, o jabuti, o quati , além de aves como o pato selvagem, o

marreco, o jacu e o nhambu, e insetos como as tanajuras e as larvas de madeira e

taquara.23

Os grupos Botocudos viviam caminhando pelas matas do Sertão levados pela

necessidade da procura de alimentos e em defesa de seu território procurando

sempre resguardá-lo da invasão por outros povos.24

Segundo a índia Laurita, seus antepassados Botocudos subdividiam-se em

vários grupos. Essa fragmentação devia-se à maneira de como gostavam de viver,

com seus costumes particulares e específicos de cada grupo, mas segundo seu

depoimento os conflitos dentro dos grupos também foram grandes responsáveis por

essa subdivisão do povo Botocudo.

Na organização familiar a mulher Botocuda era obrigada a servir ao parceiro.

Eram sempre vítimas de maus tratos, por parte desses parceiros e era comum

trazerem pelo corpo marcas (cicatrizes), de castigos que serviam para que

recordassem sempre desses castigos sofridos por desobediência.

Cabiam às mulheres os mais variados afazeres, como a construção do

rancho, coleta de frutos, mudanças e transporte de cargas durante as viagens.

Assim, era relativamente comum, aos que se arriscassem pelo interior mineiro,

encontrar pelas matas caravanas de Botocudos em caminhada, aonde as mulheres

23 JOSÉ. Oiliam. 1965. Op. Cit.. p.p. 60, 61,62 e 63. 24 Índia Krenak Cacique Laurita.

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vinham sempre carregando, além dos filhos, as bagagens necessárias à

sobrevivência do grupo. Aos homens cabiam os deveres da caça e da guerra por

isso iam como se fossem escoltas às caravanas.

Ilustração 8: Índios Puris perambulando pelas matas do sertão do Rio Doce, observamos as mulheres carregando os filhos e os cestos com seus pertences. Ilustração do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied.25

Na ilustração 8 e 9 observamos essas caravanas, na visão dos europeus,

Maximiliano de Wied-Neuwied e Jean Baptista Debret, que retrata essas famílias no

início do século XIX.

25 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p. 209.

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Ilustração 9: Família de Botocudos atravessando um rio. 26

Segundo o pesquisador Jonathas Durço27, era comum entre os Botocudos

pegar as meninas para criar e depois fazer delas esposas. Não era costume de se

festejar casamento ou nascimento de filhos. Para o casamento acontecer, bastava

que o nativo manifestasse o desejo de se unir á uma mulher e, se essa aceitasse,

ele a tomava para si e ela se unia às demais esposas. Era comum ao chefe ter até

cinco esposas. Com relação aos filhos a mãe tinha pouco tempo para dedicar-se a

eles. Desde novos eles começavam a rastejar sozinhos pelo chão. Quase sempre

recebiam o nome de objetos, animais e coisas, como consta, nos vários relatos de

viagem feitos pelo Príncipe Maximiliano28 que os visitou no século XIX. Os pais

tinham certo carinho com os filhos, mas nunca demais. Quando uma criança

começava a chorar era levada para bem longe, pois eles não suportavam choro de

criança, e se essa persistisse no choro era surrada com as mãos ou varas. O parto

das mulheres eram muito fácil e muito raro era o nascimento de deficientes entre

eles.29

26 Viagem ao Brasil do príncipe Maximilian von Wied-Neuwied século XIX. disponível http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/24/Familia_botocudo.jpg. 27 DURÇO. Jonathas. Pokrane da saga dos botocudos ao nascimento de um arraial. Belo Horizonte: Impressa Oficial, 1989.pp.43-4428 No ano de 1817 esteve nas Matas do Sertão do Leste entre os nativos, o naturalista Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, autor de um dos mais completos relatos sobre os Botocudos. Hoje esses relatos estão disponíveis e servem de fonte para as pesquisas das populações daquela época. � MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. pp. 307-308 29 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p. 308

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Sobre a religião parece-nos unânime a opinião dos autores, (Maximiliano,

Saint-Hilaire, Martius, Freireyss, Oilian, etc.), ao afirmarem que os Botocudos não

possuíam tais manifestações religiosas.

Freireyss em sua Viagem ao Interior do Brasil – 1814 – faz a seguinte

observação sobre a religião dos índios do Sertão do Leste Mineiro:

“(...) Da religião não há vestígio entre eles, pelo menos no que diz respeito a práticas externas. Não adoram Deus algum bom mas temem um gênio mau que eles se figuram existir na trovoada, sem contudo importarem-se mais com ele. Que, porem, entre eles existia uma vaga idéia a respeito da imortalidade da alma, como todos os povos na sua infância, não há duvida, porque deixam aos mortos as armas no tumulo para, como dizem: usar lá em cima. (...)” 30

O inspetor Antônio Estigarriba, que durante longos anos esteve no serviço de

proteção aos índios do Rio Doce, reproduziu em seu relatório31 a opinião mais aceita

entre os estudiosos, sobre a religião entre os nativos do Sertão:

“(...) Quanto a crenças, eles têm o fetichismo mais elementar. Os do rio Doce falam em Tupan, que dizem, apontando o céu, morar lá em cima. Mas isso é claro: é uma idéia mal adquirida no seu contacto com os tolos catequizadores. Por quanto disseram os próprios jesuítas, Tupan foi uma inteligente transformação feita por eles para darem ao índio Tupi (muitíssimo mais adiantado que o Aimoré) uma idéia de Deus, assim transformando em vibrador do raio. (...)”

“(...) É palavra da língua tupi, e compreende-se e admira-se seu emprego genial. Os pobres padres, que mais tarde surgiram, ignorantes e tolos, achando que esta palavra tinha, por si só, o poder de fazer o índio acreditar na existência, que ela passava a representar, foram-na impingindo ao pobre Aimoré, de preferência a qualquer outra. Se estes índios tivessem, por si, semelhantes crença, o que era cientificamente impossível, teriam também uma palavra para designá-la. A não ser do Rio Doce, nenhum outro, fala ou sabe o que é Tupan. (...)” 32

Relatos como esses nos revelam o total desconhecimento dos nativos, com

relação à existência de um ser superior, conforme a crença cristã, da época.

30 FREIREYSS, G.W. Viagem ao Interior do Brasil. São Paulo. Itatiaia e Da Universidade de São Paulo, 1975. p.9631 Revista do Arquivo Publico Mineiro. Relatório ao governador de Minas Gerais sobre a situação dos Indígenas Mineiros, feito pelo inspetor Antônio Estagarriba em 1912. Arquivo Público Mineiro, anno XI, p. 42.32 Revista do instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. n.º 07. março de 1934.

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A prática de canibalismo entre os Botocudos ainda é um assunto de muita

controversa; os antropólogos não aceitam essa hipótese. Haruf Salmen Espindola,

Izabel Missagia de Mattos são exemplos de autores que argumentam ser a

antropofagia uma justificativa para a coroa declarar e manter a guerra de extermínio

contra os “monstros comedores de carne humana” do vale do Rio Doce. Mas entre

os historiadores – Oilian José, Jonathas Durço entre vários outros - aceitam a prática

de canibalismo entre os nativos. Entre os relatos de época dos explorados é comum

opiniões como a de Guido Tomás Marlière, que viveu entre os Botocudos de 1813 a

1829, que assim os definia: “Os mais irrequietos e mais perigosos índios de Minas

são os antropófagos Botocudos, que dominam particularmente a margem do baixo

Rio Doce.” 33

Os relatos de autoridades locais, viajantes estrangeiros e pessoas que

viveram entre eles na época dão fomento a essa discussão. Citaremos agora alguns

desses relatos.

Vejamos a opinião, por exemplo, do já citado Príncipe Maximiliano,

pesquisador alemão que esteve entre os Botocudos e deixou o seguinte registro:

“(...) Como acima fiz ver, os índios parecem preferir os macacos à qualquer outra caça, e, uma vez que o esqueleto destes animais tem tanta semelhança com o de um homem, é possível que os europeus ao encontrar restos das refeições dos Botocudos, cometessem o engano de acusá-los de preferir a carne humana. Seja como for, como espero mostrar adiante , esses selvagens não podem ser isento da culpa de comer carne humana; todavia, parece que não o fazem por achá-la mais saborosa, senão que raramente se entregam a essa inqualificável abjeção, e só com o fito de satisfazer a sede de vingança. Tem-se dito que os Tupuias preferem a qualquer outra carne dos negros: nada posso decidir a tal respeito, mas é também de que os botocudos têm os negros como uma espécie de macaco chamando-os por isso macacos do chão(...)”

“(...) Homens, mulheres e crianças são por eles mortos. A carne é devorada por alguns, exceção feita à cabeça e ao ventre, que põem fora. (...)” 34

Da parte de Freyreiss, viajante e naturalista europeu que percorreu a

capitania de Minas Gerais no início do século XIX por volta de 1813, observa-se um

ritual de características antropofágicas entre os Coroados, uma prática bastante

peculiar que chamou a atenção de muitos viajantes:33 RAPM 34 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.301

36

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“(...) Quando matam algum inimigo, de ordinário um Puri, levam consigo para a cabana um braço do cadáver, como uma espécie de troféu da vitória. Chegados (sic) em casa arranjam uma festa na qual se regalam com a bebida35 predileta que fabricam, (...) e que é servida em grandes potes de barro (...) Nestes potes colocam o braço do inimigo morto e cada um; por sua vez, tira-o do pote para chupar a extremidade cortada. (...)” 36

Entretanto, a acusação de antropofagia foi o grande argumento para justificar

as constantes decretações de Guerra Justa e convencer os grupos indígenas, com

os quais os Botocudos viviam em conflitos – Tupi, Malalí, Makoní, Pataxó, Maxakalí,

Pañâme, Kopoxó e Kamakã – Mongoio – a se aldearem com promessas de proteção

e acesso aos bens da sociedade dominante, como arma de fogo, facas, anzóis etc.

Na categorização do indígena do Rio Doce, os Boruns se enquadraram no

abrangente grupo de índios denominados genericamente de Botocudos. Um grande

bloco de indivíduos de origem Gê segundo a classificação de Martius. Aos

Botocudos vale lembrar, segundo os estudiosos, uniram-se povos de outras

ascendências, mas que falavam línguas ou dialetos de um mesmo tronco. Ainda

cabe ressaltar, que vários grupos indígenas foram enquadrados entre os Botocudos

apenas por habitarem os vales dos rios, Doce, Jequitinhonha e seus afluentes, pois

acabavam falando, com algumas modificações, a língua botocuda, o que levaram

muitos dos pesquisadores do gentio dos Botoques37 á generalizações na

classificação desses indivíduos, mantendo os mesmos estereótipos que os usados

para os Botocudos: feios, ferozes, selvagens, sanguinários.

Em contraste com a “feiúra e fereza” do Botocudo, como propagada pelo

português, encontramos uma descrição feita pelo já citado “civilizador“, o francês

Guido Thomas Marlière38, que viveu durante muitos anos entre eles, assim os 35 A bebida alucinogena indígena (veru) era originalmente consumida segundo um fim ritualístico. O relato acima exposto serve como um bom exemplo para entendermos tal lógica.36 FREYREISS, Georg Wilhelm. Viagem ao interior do Brasil. Trad. A. Löfgren, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Da Universidade de São Paulo, 1982. p. 92.37 Termo utilizado pelo pesquisador Oiliam José para designar as nações botocudas. JOSÉ. Oiliam. Os Indígenas de Minas Gerais: Aspectos Sociais Políticos e Etnológicos. Belo Horizonte. Itatiaia, 1965. p1638 GONÇALVES, Ary. O Segredo revelado de Guido Marlière. Disponível na internet <http://paginas.terra.com.br/turismo/guidoval/guidmarl.htm> Marlière era um experiente militar. Serviu nos exércitos imperiais de Luiz XVI, da revolução francesa e, por fim, nas tropas de Napoleão Bonaparte, quando pertenceu ao Regimento Conde. Aqui no Brasil ele foi promovido ao posto de major, isto em 1821, para chegar, no ano de 1827, ao de coronel de Cavalaria e adido do Estado-Maior do Exército. iniciou a sua tarefa de pacificar os botocudos pela criação de quartéis, em regiões

37

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caracterizam fisicamente: “são imensos em números, de bonita estatura, fortes,

robustos, e valentes, muito próprios para a agricultura e serviços dos rios.”39

Ainda sobre suas características físicas é interessante observarmos nas

fontes a comparação feita por Sant-Hilaire, do Botocudo com os povos mongóis,

vejamos o relato:

“(...) Enquanto me achava entregue à escrita deste diário na venda da Aldeia de São Pedro, descobri mais uma relação entre as raças mongólica e americana. Um chinês cantava ao meu lado e eu acreditei ouvir o canto dos Botocudos, amenizado e aperfeiçoado. (...)” 40

Sant Hilaire compara os povos mongólicos e Botocudos pela semelhança dos

tons de seus cânticos. Observando o cantarolar de certo chinês, habitante do interior

da colônia e os cânticos ouvidos por ele nos seus encontros com os índios

Botocudos do interior do Brasil, afirma ter descoberto uma relação entre esses

povos. Sant Hilaire continua sua comparação entre esses povos, comparando

aspectos físicos semelhantes entre eles como os olhos igualmente divergentes, o

nariz achatado entre outras características observadas pelo naturalista, no intuito de

provar a tese de que a “raça” americana e, sobretudo a Botocuda seria uma

modificação da “raça” mongólica, que se processara devido às modificações no

clima e a mistura com alguns ramos menos nobres da raça caucasiana 41, assunto

até os dias atuais, muito discutido no meio acadêmico cientifico.

Passando para a organização política entre os índios Botocudos, não

podemos afirmar que seria propriamente uma nação, mas sim uma mistura de povos

que habitavam a Mata Atlântica, concentrados principalmente na Zona da Mata e no

Vale dos Rios Doce e Jequitinhonha. Compartilhavam alguns hábitos como o uso do

botoque, o mais simbólico entre seus costumes. Assim era enquadrado como

estratégicas, ao longo das margens do rio Doce, em territórios capixaba e mineiro. Tomou para si a missão de integrá-los à civilização (visto, por essa época, como a política mais adequada à salvação dos indígenas brasileiros).39 Revista do Arquivo Publico Mineiro, ano XI, p.8340 SANT-HILAIRE, August de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. p 29541 SANT-HILAIRE, August de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Op. Cit 1941.. p.p294-295

38

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Botocudo qualquer grupo indígena que usavam botoques, isto é, aquele adorno nos

lábios e na orelha, uma questão de cultura de algumas tribos.

O “Grupo” indígena dos Botocudos pode ser dividido em diversas tribos, tendo

cada uma um chefe independente, possuía cerca de 50 indivíduos guerreiros sem

contar mulheres e crianças. Os chefes não possuíam sucessores pré estabelecidos

pela hereditariedade, sua forma de organização tribal seria muito precária se

comparada às organizações européias, como nos leva a pensar a descrição de

STEAINS:

“(...) Os Botocudos não se dispõem de nenhuma forma de governo, embora cada tribo tenha seu chefe (capitão). O chefe, porém, não exerce nenhuma autoridade real sobre a tribo. Geralmente é ele o melhor caçador e sendo assim, cabe-lhe em grande parte a responsabilidade de obter caça em períodos difíceis. (...)” 42

O futuro chefe não esperava que o indicassem como substituto, era obrigação

deste individuo se auto-proclamar capitão da tribo, muitas das vezes impondo-se

pela bravura, dado à veia guerreira desse povo.

As relações limitadas aos indivíduos não favoreciam a presença marcante de

um líder entre eles. Poucas eram as ocasiões onde os chefes exerciam sua

autoridade. Suas funções ficavam restritas quase sempre a conduzir seus homens à

guerra e a determinar as migrações constantes em busca de lugares com

alimentação mais abundante. Mas mesmo assim não deixara de existir a figura do

cacique entre esses indígenas, expressando a autoridade e coordenação de um

líder, necessária dentro de um grupo. Necessidade que Oiliam José exemplifica:

“(...) Entre os nacnenuques, o acerto dessa afirmação o privilegio do uso da barba apenas pelo chefe, porque na barba viam sinal de força e superioridade. Era o cacique geralmente o dotado de maior valentia e o servido de melhor capacidade de domínio, tanto moral como físico. (...)” 43

42 STEAINS, W. J. 1888. O Vale do Rio Doce. Revista da sociedade Geográfica do Rio de Janeiro IV, pp. 213-226. 43 JOSÉ. Oiliam. 1965. Op. Cit. pp. 103-104

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As lutas entre os diferentes grupos de Botocudos eram constantes. Segundo

relatos de época as tribos do Rio Doce viviam em guerra declarada entre os

indivíduos que habitavam o Norte e o Sul.

A Guerra parece ter sido muito comum entre os grupos. Guerreavam entre si

por vários motivos, como disputa por território, comida e influências dos

portugueses. Oilian afirma que as guerras “mobilizavam toda a tribo, exigindo a

cooperação de cada componente dela” 44. Segundo o autor, nas ocasiões de

conflitos, era prática dos Botocudos que as mulheres e crianças ficassem na

retaguarda ou nas aldeias, realizando trabalhos como o de abastecimento e o

preparo de setas e alimentos.

Movidos pela guerra e pela busca constante da sua liberdade, não passavam

muito tempo sem estarem envolvidos em um conflito. Desde os primeiros tempos

que se têm notícias, constata-se a fama de guerreiro desses povos. A prática

“antropofágica”, da qual eram acusados, deram á eles, certa vantagem sobre os

outros povos, pois os tornavam muito temidos.

As desavenças entre os grupos de nativos do Sertão Mineiro levaram, muitas

vezes, os grupos rivais dos Botocudos á se unirem aos exploradores e invasores de

suas terras. Tornou-se comum a aliança entre povos indígenas e os exploradores

portugueses. Temos notícias, por exemplo, que os Malalis teriam se unido com a

proteção do quartel de Peçanha, no alto Rio Doce. Já os Maconis resistiram por

mais tempo aos ataques Botocudos, levaram uma vida sedentária, procurando se

esconder dos inimigos, até que se viram obrigados a aceitar a presença dos padres

e a se catequizarem.

Muitas outras tribos uniram-se, não com o intuito de combater os Botocudos,

mas sim para fugirem dos seus constantes e horríveis ataques. Os Malalis se uniram

aos Penhames, aos Copoxós, aos Macunis e Monoxós, no início do século XIX, para

junto aos portugueses fundarem um povoamento denominado Santa Cruz, onde

pretendiam se proteger dos ataques do inimigo Botocudo.

O naturalista Sant-Hilaire em seus relatos de viagens ao interior do Brasil nos

dá conta da guerra sem fim travada entre Monoxós e demais tribos do Sertão com

os Botocudos. Temos notícias ainda de guerras travadas entre Botocudos e

44 Idem. p.54

40

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Pataxos, Maxacaris, Panhames e Capuxos, os últimos, por serem mais fracos

acabaram por desaparecer rapidamente.

O espírito guerreiro dos Botocudos foi motivo de várias anotações em

diversos relatórios que dão notícias deles durante o século XIX como veremos nos

trechos a seguir:

“(...) Atacando-se sem cessar entre si por traição, andando sempre em alerta, com o arco esticado, devorando suas vitimas, estes seres repugnantes, cujos dois sexos ficam inteiramente nus e sempre cobertos de lama, oferecem o aspecto mais horrendo do que pode apresentar a humanidade. (...)”

“(...) A cada dia eles mudam de pouso e depois de suas frugais refeições de raízes e de carne assada que rasgam com suas unhas, ou após seus horríveis festins de antropófagos, eles se jogam de qualquer jeito sobre a terra como um bando de javalis, um servindo de travesseiro para o outro (...)”45

Estas imagens selvagens dos Botocudos que vimos anteriormente, muitas

das vezes eram adquiridas durante as constantes lutas provocadas pela invasão de

uma tribo no território dominado por outras, em busca de alimentos, mas que, ao

nosso entender, dificilmente dizimariam os índios, pois já faziam parte de sua

cultura.

Defendemos a opinião de que espalhados pela colônia esses relatos surtiram

de certa forma uma propaganda de violência e de crueldade da parte do indígena

para com o Português, e que foram na verdade os grandes responsáveis pela

violência nos futuros encontros entre indígena e colonizador durante o decorrer do

século XIX.

Mas a entrada de um novo elemento muda a história dessa guerra já de

característica “cultural” entre os povos Botocudos do Rio Doce, elemento este que

invadia e roubava suas terras; os colonizadores, protegidos pela Coroa.

Vale lembrar que, para os Botocudos, não havia motivos para respeitar os

colonos que se instalaram em suas terras e se denominavam agora, senhores e

45 As Minas Gerais aos olhos de Victor Renault, carta encontrada na França, escrita pelo engenheiro Victor Renault ao irmão Leon, 1877 narrando seu contato na década de 30 com a região e os habitantes das Gerais. Disponível em www.virtualbooks.terra.com.br/doc_historicos_carta.htm acessado em 07/2007.

41

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proprietários de suas terras e de suas vidas, impondo-lhes novos hábitos e negando

seus costumes.

Os índios Botocudos de imediato resistiram e se transformaram em

agressores dos colonos. Por sua vez os desbravadores do Sertão do Rio Doce

passam a tratar o “gentil dos Botoques”, com barbárie, caçando-os, como se caçam

os animais mais ferozes. Da mesma forma o índio acuado colocava em prática todos

os tipos de horrores despertados, quando se viam diante da privação de seus

recursos, contra a fome e a morte. Matavam famílias inteiras de colonos com seus

respectivos animais e escravos. Queimavam todas as casas e mantimentos que

encontravam pela frente, como podemos comprovar em relatos da época:

“(...) Estes aimorés sam mui alvos e de maior estatura que os demais índios da terra, com língua das quaes nam tem a destes nenhuma semelhança nem parentesco. Vivem todos entre os matos como brutos animaes, sem terem povoações, nem casas em que se recolham. Sam mui compridos e grossos conforme as suas forças, e as flechas da mesma maneira. Estes alarves tem feito muito dammo nestas capitanias depois de descerem a estas costas e morto alguns Portugueses e escravos, porque sam mui bárbaros, e toda gente da terra lhes he odiosa: Nam pelejam em campo nem tem animo para isso; poen-se entre o mato junto de um caminho; e tanto que alguém passa atiram-lhes ao coraçam ou a parte onde o matem e nan despedem flecha que nam na empreguem.”

“As mulheres trazem huns páos grossos, à maneira de maças, com que ajudam a matar algumas pessoas quando se offerece occasião. (...)” 46

No que diz respeito aos colonizadores então denominados “civilizados” o

encontro não fora nada amistoso, ao contrário, muitas das vezes bem mais violento

e perverso:

“(...) O comandante da 5ª Divisão, Alferes Januário Vieira Braga, dominado pelo espírito de fanatismo, este oficial, carregava-se de insígnias religiosas e fazia rezar pelos soldados, antes do ataque longas ladainhas que eram a senha da carnificina iminente. Em seguida, recolhidos inúmeros prisioneiros, dentre os incautos aborígines, aquele oficial reunia-os, devotamente, e a sangue frio cortava-lhes a cabeça com um grande facão que trazia a cinta. (...)”47

46 Ed. Do Anuário do Brasil, pp. 142 e 143. 47 Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais – RIHGMG – vol. XIV. p. 381.

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Segundo Oilian, muito embora os Botocudos fossem numericamente

reduzidos, eles habitavam uma região bastante vasta. O fato da região desses

indígenas ser tão grande, provavelmente, aos olhos dos colonizadores, tornava os

Botocudos uma grande nação. Entretanto, sugere esse autor que, até o próprio

temor do colonizador, com relação a esses indígenas, tenha multiplicado o efetivo

indígena para além da realidade efetiva da tribo.

O discurso oficial e dos memorialistas fixaram a imagem de crueldade,

desumanidade e monstruosidade do Índio Botocudo. Em cada menção do nome

Botocudo, seguiam se qualificativos que reforçavam essas imagens de monstros,

carnívoros, ferozes, selvagens, antropófagos. Em todas as fontes que pesquisamos

se confirma tal opinião que corria frequentemente no século XIX.

Para combater um povo tão feroz e temido, que impediam o avanço dos

colonizadores sobre os vales férteis do Rio Doce, não havia alternativa além da

guerra de extermínio.

CAPÍTULO II

CARTAS RÉGIAS: a questão indígena no sertão mineiro.

“Nessa capitania se acha ainda terreno incomensurável ocupado pelo gentio Botocudo, o mais bravo do Brasil, particularmente nas margens do Rio Doce que é constantemente reputado por muito rico e muito fértil... Visto que seja possível outro meio que não seja o da força para opor tais monstros, engelados na fereza e sedentos de sangue humano.... O único meio que há

43

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a seguir é fazê-los recuar com a força ao centro das matas virgens que habitam.” (José Eloy Otoni – 1798)48

A monarquia Portuguesa no final do século XVIII empregou uma política que

objetivava a inserção do indígena, de maneira subordinada, á sociedade colonial,

usando como diretriz o chamado Diretório dos Índios, decretado ao tempo de

Pombal, em 1759. No início do século XIX, no entanto, devido ao contexto específico

do sertão do leste de Minas, uma nova frente de guerra, aos indígenas da região, é

organizada. A nação botocuda49, objeto central deste estudo foi praticamente

dizimada e o remanescente perdeu por completo sua identidade passando a

condição de mendigo nas pequenas cidades (vilas) do Leste Mineiro.

O Processo se estabelece á chegada de D. João, quando o Rio de Janeiro

torna-se sede da Coroa Portuguesa: as Cartas Régias permitem e oficializam a

guerra aos índios Botocudos, da Capitania de Minas Gerais, visando à posse de

suas terras, para a colonização. Para tanto, o futuro D. João VI declara a Guerra

como sendo a única forma de “civilizar” o feroz índio Botocudo:

“(...) Pedro Maria Xavier de Ataide e Mello, do meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Geraes. Amigo. Eu o Principe Regente vos envio muito saudar. Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes têm subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando os índios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo deságuam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas visinhanças e tem até forçado muitos proprietários a abandonal-as com grave prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzil-os a aldear-se e a gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas Leis que regem os meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto

48 SOARES, Geralda Chaves. Os Borun do Watu: Os Índios do Rio Doce. Contagem: CEDEFES, 1992. p. 49.49 JOSÈ. Oilian. 1965. Op. Cit.

44

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que os pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a cobrir o paiz.(...)”50(grifos nossos).

Nessa introdução do documento Régio de 13 de maio de 1808, podemos

destacar: o contexto conflituoso local e a intervenção real como uma resposta aos

apelos dos colonos, já assentados na região, conforme dever do governante para

com os seus súditos. Essa intervenção zelaria, também, sobre os direitos da Coroa,

na defesa de sua Real Fazenda (prejuízos ao erário). Observamos, também, a

manutenção do estereótipo sobre os botocudos: antropófagos, bebedores de

sangue, assassinos de portugueses e de seus aliados indígenas. Essa imagem de

profunda barbárie justifica por sua vez, o fracasso de inserção dessas populações á

uma “sociedade pacífica e doce”, porque possui leis e governo justos, isto é, á

civilização, aqui representada pelo governo joanino.

Ainda nessa introdução do documento Régio observamos o interesse

marcante da Coroa Portuguesa à presença dos colonos nas terras produtivas do

vale do Rio Doce. Esse interesse, legitimado pela Carta Régia, contribuirá para que

os portugueses dizimem os índios de suas terras. Essa mesma Carta é considerada

por alguns autores como, Jonathas Durço51, um paradoxo em relação ao Alvará de

1º de Abril de 1680:

“(...) Dom Pedro Príncipe de Portugal, e dos Algarves como Regente, e successor destes Reinos &c. Faço saber aos que esta Lei virem, que sendo informado ELRei Meu Senhor, e Pai que Deos tem, dos injustos cativeiros, a que os moradores do Estado do Maranhão por meios illicitos reduzirão os Índios delle, e dos graves damnos, excessos, e ofensas de Deos, que para este fim se commettião, fez humana(...).”52

O Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de junho de 1755,

firmava o princípio de que nas terras outorgadas a particulares seria sempre

preservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas53. Sendo,

50 Carta Régia de 13 de maio de 1808, In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Edusp: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992.pp.57-60. 51 DURÇO. Jonathas. 1989. Op. Cit.52 Alvará de 1º de abril de 1680. Legislação Portuguesa Copilada e Annotada. José Fustino de Andrade e Silva. Lisboa Imprensa de F X de Solza 187. disponível em: <http://www. iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=102&id_obra=63>53 Revista Arquivo Publico Mineiro. ano X. volume XIV.

45

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portanto tal dispositivo a “gênese da velha e tradicional instituição jurídica luso-

brasileira do indigenato.”54

D. João VI passava por cima do indigenato, que era uma velha e tradicional

instituição jurídica luso-brasileira que segundo o jurista José Afonso Silva:

“(...) Deita suas raízes já nos primeiros tempos da colônia, quando o alvará de 1º de abril de 1680 confirmado pela lei de junho de 1755, firmará o principio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores dela(...).”55

Portanto, a Carta Régia de 13 de maio de 1808 é considerada, por esses

autores, uma ruptura, se compararmos com toda a legislação anterior relativa à

questão indígena. Entretanto temos que relativizar esse enunciado, uma vez que, a

guerra justa manteve-se como pratica legal, até o Diretório dos Índios e, nas guerras

os indígenas sempre perdiam a liberdade e, também seu território.

Tendo em vista as dimensões continentais da terra descoberta, nos primeiros

séculos posteriores à chegada de Pedro Álvares Cabral, os governos coloniais já

contavam com legislações especificas, concernentes aos indígenas e seus direitos

ou, não, sobre a terra, legitimados por Bulas Papais ou Decretos reais. Entretanto,

os avanços da colonização, com o aumento do contingente populacional, a

diversificação e elevação dos interesses econômicos, bem como seus

condicionantes agrários, alem das questões relacionadas à própria existência da

Coroa Portuguesa, em um contexto de profundas rivalidades no mundo europeu,

implicaram em posicionamentos políticos e legais mais severos em relação às terras

do Brasil e á própria sorte dos indígenas da colônia. São essas as primeiras páginas

do processo histórico relativo à questão da Terra no Brasil.56

Posteriormente, com a chegada da expedição colonizadora (1530)

comandada por Martin Afonso de Souza57 os índios foram utilizados para ajudar os

54 DURÇO. Jonathas Gerry de Oliveira & Durço. Cristiane de Freitas Pereira. Considerações Sobre a Carta Régia de 1808 e a utilização de Normas Legais justificando o Genocídio dos Índios do Vale do Rio Doce. Governador Valadares. FADIVALE. 2000 p.655 SILVA,José Afonso, Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 200056 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Edusp: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992. p.p15-1657 Nomeado capitão-mor da esquadra e das terras coloniais pelo rei de Portugal, tinha amplos poderes para descobrir novas riquezas, combater estrangeiros, policiar, administrar e povoar as terras brasileiras. VICENTINO, Cláudio. DORICO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: ed. Scipione,

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portugueses a fixar-se na Terra brasileira. No combate aos índios ferozes, que

impediam a fixação, os donatários58 usavam os índios aliados, conforme podemos

confirmar de Beatriz Perrone:

“(...) Uma das principais funções atribuídas aos índios aldeados é a de lutar nas guerras movidas pelos portugueses contra os índios hostis e estrangeiros (...)”59

Na época das Capitanias Hereditárias verifica-se novamente uma tentativa de

utilizar a mão de obra indígena, dessa vez nos engenhos de açúcar, período

correspondente, também, às expedições de apresamento, para capturar os índios e

escravizá-los.

Para o início do século XIX, na realidade, a diretriz política da metrópole

portuguesa em relação ás populações nativas foi acompanhada de um conjunto de

dispositivos já editados ao longo dos séculos de colonização. Inicialmente, como

reza a Carta Régia, foi proibida a escravização dos índios, a exceção daqueles

aprisionados em guerra justa. 60 , que era uma prática que remontava ao início da

colonização. Nesse sentido, com relação aos habitantes indígenas da região

estudada, ressalta John Manoel Monteiro, o trecho da Carta Régia:

“(...) Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e que sejam entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle empregal-os em seu serviço particular durante esse tempo e conserval-os com a devida segurança, mesmo em ferros, emquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropophagia(...).”61

1997. p.70.58 Também chamado de “capitão”, “capitão-mor”, ou “governador”, tinha a prerrogativa de doar terras para serem exploradas, num prazo de 5 anos, tinha o direito de escravizar índios, montar engenhos, cobrar impostos e exercer a justiça em seus domínios. VICENTINO, Cláudio. DORICO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: ed. Scipione, 1997. p. 7459 PERRONE-MOISES, Beatriz. Índios livres e Índios escravos. In. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: ed. Companhia das Letras: 2ª edição, 3ª reimpressa. 2006.p.12160 MONTEIRO, John Manoel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 5961 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1992. Op. Cit.

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Observa-se aqui que, a sorte desses indígenas estava condicionada a sua

docilidade ou não, á aproximação do homem branco. Mas, na realidade, os índios

eram enquadrados na categoria de “bravios” ou Botocudos, segundo o interesse dos

colonos por suas terras, ou, ainda, pela necessidade de mão de obra. Assim, nas

duas primeiras décadas do século XIX, passavam a fazer parte dos “Povos

Botocudos”, nações das mais variadas etnias como, por exemplo, Puris e Coroados

que, muitas das vezes, tiveram suas Terras invadidas e foram escravizados, como

um Botocudo bravio.

É nessa perspectiva, de ocupação de terras e conflitos com as varias etnias

da região, que o Sertão do Rio Doce começa a ser incorporado á política portuguesa

de colonização. Aos poucos caem por terra às restrições à colonização e exploração

desse Sertão e os vários grupos indígenas que á ela reagem, passam a ser

conhecidos como Botocudos.

Ilustração 10 : No 1º Tomo na prancha 20 Debret, retrata a utilização de tropas de soldados, constituídas de índios “civilizados” no combate e escravização dos selvagens. 62

62 DEBRET, Jean Baptiste. Todas as Pranchas originais de Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil. Tomo I e II. Com legendas de MATHIAS. Herculano Gomes. São Paulo: Ediouro. 1980. p. 25.

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Em 1800, quando Antonio Pires da Silva Pontes assume o cargo de

governador da Capitania do Espírito Santo, leva consigo ordens de promover à

abertura do Rio Doce à navegação e de proceder a demarcação das divisas entre as

Capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo, como observamos na correspondência

trocada entre governadores da região:

“(...) OFÍCIO do Governador da Capitania do Espírito Santo, Antônio Pires da Silva Pontes Pais Leme e Camargo, ao Governador da Capitania de Minas Gerais, Bernardo José da Silveira e Lorena, a informar da franquia e abertura à navegação por águas até Minas Gerais, para assegurar o registro de ouro na Cachoeira das Escadinhas, no rio Doce(...).”63 (grifo nosso)

O oficio acima destaca que a incorporação do rio Doce passa a ser vista

como um potencial de riqueza. O Governador da Capitania do Espírito Santo,

Antonio Pires da Silva Pontes Pais Leme, recebe do Conde de Linhares, um dos

principais Ministros do Príncipe Regente D. João, a incumbência de estabelecer

comunicação terrestre entre Espírito Santo e Minas Gerais e de estudar e promover

a abertura e navegação do Rio Doce e a colonização das suas margens.

Observa-se que, ao enfraquecimento das atividades auríferas em outras

regiões da Capitania das Minas Gerais, foi conseqüente a liberação de parte da

população local, a partir de então, considerada ociosa e sem destino, pelas

autoridades coloniais. Para o Estado Português, uma massa perigosa, que poderia,

então, ser utilizada na colonização de uma nova área, até agora, restrita. (Zona

Proibida).

Nos anos que se seguem após 1800 há interesse da Coroa Portuguesa na

penetração em áreas do Sertão Leste Mineiro, ainda não explorado e que

permanecia intocado, até então somente abrigando as tradicionais e seculares

atividades indígenas. Dessa forma, após a diligencia política do novo Governador da

região, comentada pouca acima, diversas expedições aí penetraram, aproveitando-

se do grande caminho aberto pelo Rio Doce, considerado como a melhor via de

acesso ao Sertão e caminho rumo ao sonho de terras e riqueza. Essas expedições

mostram-nos a mudança da política oficial, de “zona proibida” á frente pioneira.

63 CTA: AHU- Espírito Santo, cx. 06 doc 15 – oficio 438. Espírito Santo 23, Abril de 1800, disponível na internet no endereço http://www.ape.es.gov.br/catalogo/cat-i-451-500.htm acessado em 24/06.

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Mudança essa que provocará os choques entre colonos e índios, ao longo dos anos,

e que resultará na Carta Régia de 1808.

Assim, na própria Carta o Príncipe Regente D.João deixa claro as suas

diretrizes políticas. Os incentivos da Coroa Portuguesa na nova empreitada territorial

traduzem-se assim no programa de consolidar a navegação do Rio Doce e a

colonização da sua bacia, o que significa a ocupação, por terra e água, garantindo,

assim, tanto a exploração econômica quanto a administração, de contingentes

populacionais desocupados. Nesse sentido, a carta regia de 13 de meio de 1808

enfatiza:

“(...) Propondo-me igualmente por motivo destas saudáveis providencias contra os Indios Botocudos, preparar os meios convenientes para se estabelecer para o futuro a navegação do Rio Doce, que faça a felicidade dessa Capitania, e desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real Fazenda, meios para tão saudável empreza; assim como favorecer os que quizerem ir povoar aquelles preciosos terrenos auriferos, abandonados hoje pelo susto que causam os Indios Botocudos(...).”64 (grifos nossos).

Tais providências apresentadas no documento Régio em relação à

navegação do Rio Doce visavam favorecer a entrada dos futuros colonos nesta

região, supostamente, terrenos auríferos.

A partir desses avanços sobre o Sertão do Rio Doce, os conflitos entre

indígenas e portugueses pela posse da terra passaram a ser freqüentes, surgindo a

necessidade da intervenção lusitana no sentido de criar normas que promovessem

efetivamente a ordem.

Aventuramo-nos assim a adiantar como hipótese que esta situação resulta,

então, de um novo contexto, cuja solução será a da tradição: guerra e escravização

das populações nativas. Envolvem antigas questões territoriais, econômicas e

populacionais ainda presentes para a Coroa Portuguesa.

A administração portuguesa estava ciente da pressão que sofreria por parte

dos colonos, apoiando-os, porque também representavam interesses econômicos da

Coroa. Colonos e Coroa interessados em apossar-se das terras indígenas, e da

64 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1992. Op. Cit. p. 61

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necessidade de meios drásticos para privá-los de um bem que encerra em si a sua

própria razão de existir. Daí porque, a nosso ver, um período tão curto separa a

chegada da Família Real Portuguesa (janeiro de 1808) e a edição de normas

jurídicas (maio de 1808), que culminariam com a destruição e/ou subordinação do

Botocudo no Vale do Rio Doce:

“(...) Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que movidos do justo terror em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade que é conseqüência necessária do estado social(...).”65(grifos nossos).

Segundo orientações da fonte, a guerra ofensiva seria o caminho para que a

coroa portuguesa se assenhoreasse das terras ocupadas pelos Botocudos e os

transformassem em “vassalos úteis”.

O caráter ofensivo da política que seria adotada, a partir desse momento

contra os índios ”Bravios” do Sertão mineiro, proporciona a criação de um “Corpo de

Soldados Pedestres”66 que também teria como objetivo, garantir segurança aos

colonos, para que pudessem fixar e expandir as fronteiras do Reino.

Ainda nesse contexto, cria-se a Junta de Civilização e Conquista dos Índios e

Navegação do Rio Doce, que ficaria com a função de fiscalizar e administrar a

exploração desse Sertão, assim como de estender na região, o que era feita em

outras: aldear e “civilizar” os índios. Essa medida previa a criação de áreas

administrativas, administradas por um Comandante. Com essa decisão ficava clara

a intenção da Coroa em se apropriar das terras indígenas da Zona “Proibida” e

distribuí-las a colonos que as tornassem produtivas. Já os índios tornar-se-iam

“administrados”. Formavam-se assim milícias armadas com objetivo de atacar e

combater os índios Botocudos.

65 Idem. p. 5866 BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. pp. 37-41.

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“(...) Em segundo logar sou servido ordenar-vos que formeis logo um Corpo de Soldados pedestres escolhidos e commandados pelos mesmos habeis Commandados que vós em parte propuzestes e que vão nomeados nesta mesma Carta Régia, os quaes terão o mesmo soldo que o dos Soldados Infantes;(...)”67

Essas milícias seriam chefiadas por Comandantes, indicados pelo Príncipe

Regente D. João. Eram formadas, muitas vezes, por índios “mansos”, que teriam um

soldo menor. Deveriam ser providenciadas, também, medidas para que não

aumentassem as despenas da coroa com a Capitania mineira e a “civilização” dos

índios. “(...) e sendo Índios domésticos, poderá diminuir-se o soldo a 40 réis, como

se faz na guarnição dos Presídios dos Barretos e da Serra de S. João (...)”.68

A estratégia de Guerra adotada pela Coroa Portuguesa e que será mantida no

1º Reinado, foi efetivada com a ocupação da região por destacamentos militares,

que também se estende por outras capitanias. Entre 1800 e 1814 foram construídos

sete quartéis no sul da Bahia, 27 no nordeste e leste de Minas (sendo vinte na

região do rio Doce) e 38 no Espírito Santo. Com a tônica voltada à violência, as

milícias eram formadas por todo tipo de gente: presos comuns, ex-garimpeiros, ou

convocados aleatoriamente. Cometiam as piores barbaridades, como aponta

Freireyss, um viajante europeu que esteve na região por volta de 1815:

“(...) O comandante [do quartel de Santana dos Ferros] nos contou que já tinha amansado quinhentos Puris e os domiciliados em lugares determinados, fazendo-os acabar com toda hostilidade contra os portugueses e seus amigos; mas acrescentou, com uma risada diabólica, que se devia levar-lhes a varíola para acabar com eles de uma só vez, porque a varíola é a doença mais terrível para esta gente(...).”69 (grifos nossos).

Assim como registra Freireyss, era comum o uso da violência por parte dos

comandantes dos quartéis em relação aos índios e, por vezes, chegavam a ser

irônicos ao desejarem acabar de uma só vez com os Botocudos através da

disseminação de doenças, como no caso, a varíola.

67 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1992. Op. Cit. p. 6168 Idem. p. 6169 FREIREYSS, G.W. Viagens as várias Tribos de Selvagens na Capitania de Minas Gerais, permanência entre alas, descrição de seus usos e costumes. RIHGSP. São Paulo: Diário Oficial, 1902.

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Com a justificativa de tornar os Botocudos vassalos úteis, “como já são as

imensas variedades de índios, que nestes meus Estados do Brasil se acham

aldeados, e gozam da felicidade que é conseqüência necessária do estado social”70,

define-se a estratégia de Guerra. No território do Sertão Leste de Minas Gerais

foram criadas seis divisões militares e para cada uma foi nomeado um comandante

com poderes militares, jurídicos, civis e policiais que formariam a tropa do

Regimento da Divisão Militar do Rio Doce (DMRD). Quanto aos poderes desse

comandante fica definido que:

“(...) A estes Commandantes ficará livre o poder em escolher os soldados que julgarem proprios para essa qualidade de duro e aspero serviço, e em numero sufficiente para formarem diversas Bandeiras, com que hajam constantemente todos os annos na estação secca de entrar nos matos; ajudando-se reciprocamente não só as Bandeiras de cada Commandante, mas todos os seis Commandantes com as suas respectivas forças, e concertando entre si plano mais proficuo para a total redução de uma semelhante e atroz raça antropophaga. Os mesmos Commandantes serão responsáveis pelas funestas conseqüências das invasões à sua guarda, logo que contra elles se prove omissão, ou descuido(...).”71 (grifo nosso).

O trecho da carta Régia demonstra a intenção do Governo Português, em

erradicar da área do sertão qualquer obstáculo a sua conquista, dando aos

comandantes dos quartéis poderes para combater e eliminar a força do antropófago

gentio mineiro.

Um dos maiores problemas para a efetivação da ocupação da área do Sertão

sem duvida era o “índio Bravio”, o “antropófago” Botocudo, que enfrentou, enquanto

teve forças a invasão de suas terras. É comum em relatos da época as noticias de

barbárie cometida pelos índios, em resposta às invasões praticadas pelos colonos,

como nos mostra os relatos da época:

“(...) Tenho memória de haver mandado, em 1814 ou 15, duas Bandeiras ao Matto, contra os Puris então bravos. A 1.a porq’ vierão matar á hum moço na Freguezia d’S. João Baptista do Prezidio, composta de Portuguezes da Esquadra do Matto, e de índios Coroados: a 2.a, inteiramente de Coroados, por virem os mesmos matar á hum Índio desta Nação chamado Silvestre, e

70 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). Op. Cit .pp.57-60.71 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). Op. Cit .p. 61

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a dous filhos deste, que estavam trabalhando nas plantações da sua respectiva Aldeã(...).”72

As Divisões Militares, em quartéis, passaram a combater mais de perto e de

forma mais ostensiva e ofensiva os “Botocudos bravios”. Essas divisões também

tinham a finalidade de facilitar a atração dos índios “mansos”, por intermédio de

“línguas73” e de quinquilharias que eram oferecidas. Esses índios considerados

mansos foram importantes para a efetivação da colonização, pois, passavam a fazer

parte das tropas para combater os “Bravios”.

Essa divisão ficara estabelecida no período de 1808 a 1839 da forma como

podemos observar na tabela a seguir:

DIVISÃO QUARTEL LOCALIZAÇÃO

1ª DMRD

Joanésia Margem do Rio Santo Antonio

Cachoeira Escura Rio Doce, cachoeira Escura Geral de Naknenuk Foz do Rio Santo Antônio Baguari Rio Doce, cachoeira do

Baguari Galho Belo Oriente

2ª DMRD

Presídio de S. João Batista Rio Pomba, cachoeira do Chopotó

Guidoval Rio Pomba, Rio Chopotó Meia Pataca ( Cataguases ) Rio PombaVargem Grande( Manoelburgo – Muriaé)

Rio Muriaé divisa com o Rio de Janeiro

Tapera Divisa RJ e abaixo Guidoval

72 Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XII, 1907/1908, p. 526-7.73 Línguas era como ficavam conhecidos os guias de expedições que aprendiam a língua do nativo e era usado para intermediar o contato entre o colonizador e o gentio.

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3ª DMRD

Abre Campo Entre os Rios Casca e Matipó

Ponte Nova Margem do Rio Piranga (Doce)

Casca Rio CascaMatipó ou Cachoeira Torta Rio MatipóGalho Ribeirão do Sacramento Itapemirim Div Minas e Espírito Santo Manhuaçu Cabeceira do Rio Manhuaçu Ouro Cabeceira do Rio ManhuaçuRio Pardo Divisa com o Espírito Santo Rio Preto Divisa com o Espírito SantoBarra do Rio do Norte Em território do Espírito

Santo São Lourenço Depois de Ponte Nova Entre Folha Entre os Rios Doce e

Ribeirão do SacramentoQuartel Localização

4º DMRD

Casca Barra do Rio Casca Mombaça Barra do Rio Mombaça Onça Rio Onça Pequena Antônio Dias Arraial de Antônio Dias, Rio

Piracicaba. São João do Madureira Próximo a Antônio Dias Porto das Canoas Rio Piracicaba, abaixo de

Antônio DiasRetiro Próximo a Antônio Dias

Abaixo

5º DMRD

Alto dos Bois Divisor de águas dos Rios Doce e Mucuri

Arapuca ( Urupuca) Entre Rios Margens do Rio Urupuca Peçanha Cabeceira do Rio Suaçui

Pequeno Entre Barras Margens do Rio Suaçui

GrandeRamalhete Rib Ramalhete, afl do R

Suaçui Grande São João Margem sul do Rio Suaçui

Grande Brejaúbas Ribeirão das Brejaúbas,

entre os Rios Corrente e Suaçui Grande.

Setúbal Margem do Rio Setúbal

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6ª DMRD

D. Manoel (Figueira) Mg do R Doce entre Suaçui Grande e Pequeno

Cuieté Rio Cuieté, próximo ao Rio Doce

Barra do Cuieté Na foz do Rio CuietéLorena (Natividade Aimorés) Rio Doce cachoeira da

Escadinha Bananal Grande Margem Sul do Rio Doce

7ª DMRDSão Miguel do Jequitinhonha Margem do Médio rio

Jequitinhonha Rubim Rio Rubim do Sul afluente do

Rio Jequitinhonha

Fonte: Retirado na integra do Livro Sertão do Rio Doce. 74

A criação dessas divisões Militares, ao longo da Bacia do Rio Doce, contribuiu

muito para a dizimação dos Indígenas da região, tanto os considerados “bravios”,

como também os “mansos”. Esses índios serão atraídos pelas promessas dos

comandantes dessas áreas administrativas, sofrendo através dessa ação um forte

impacto cultural.

Sertão Mineiro: Localização das DMRD e principais Quartéis.

74 ESPINDOLA. Haruf Salmen. Op. Cit . pp. 427 a 429

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Ilustração 11: Minas Gerais: Áreas de ocupação das Divisões Militares do Rio Doce e localização dos Quartéis. Fonte: ESPINDOLA. Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. São Paulo: ed. Edusc 2005 IBGE – 1996

Podemos perceber, pelo mapa, a intensa militarização da área e seus pontos

estratégicos.

A partir do momento que o colonizador começa a penetrar no Sertão os povos

indígenas têm seu modo de vida gradativamente ameaçado. A disputa pelas áreas

férteis e o modo de vida indígena: “todas essas tribos são nômades no seu estado

livre e como nenhuma criação têm, nutrem-se de caça, de raízes e de frutas

silvestres” 75, não raramente deu lugar as intricadas disputas entre as tribos rivais,

que já ocorriam desde os primórdios, vem somar-se a disputa com o elemento

colonizador, que também entrara na luta pela posse e exploração da terra.

75 FREYREISS, Georg Wilhelm. 1982. Op. Cit. p.82.

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Nessa perspectiva, a questão primeira das relações indígenas e homens

brancos, sem sombra de duvidas foi a da posse da terra, na medida em que,

segundo Haruf:

“(...) o objetivo central da declaração de guerra foi desocupar as margens do Rio Doce da presença do Botocudo, para que pudesse liberar o território e ali ser introduzida com segurança na atividades econômicas mercantis(...)”.76

A partir do início do século XIX, portanto, “e, sobretudo a partir da chegada de

D. João ao Brasil, em 1808, a política indigenista viu sua arena reduzida e sua

natureza modificada, não havendo mais vozes dissonantes quando se tratava de

escravizar índios e ocupar suas terras” (Carneiro da Cunha)77, se levarmos em conta

as ações dos Jesuítas, que acabaram expulsos do Brasil pelo Marques de Pombal.

Os novos projetos e necessidades da coroa portuguesa não tinham espaço

para os indígenas da região. A própria ação do ministro Conde de Linhares78, era

destinada basicamente a dinamização da navegação pelo Rio Doce, no sentido de

se atingir a melhor maneira para o escoamento da produção das terras de Minas,

paralelamente, representando essa, uma forma de assentamento dos colonos, que

iam se multiplicando com o declínio da mineração na região central da capitania.

Nesse sentido, a carta Regia expressa o interesse da Coroa para com a posse da

terra assim dividindo-a entre os comandantes das divisões:

“(...) ordeno-vos que façais distribuir em seis districtos, ou partes, todo o terreno infestado pelos Indios Botocudos, nomeados seis Commandantes destes terrenos, a quem ficará encarregada pela maneira que lhes parecer mais profunda, a guerra offensiva que convém fazer aos Indios Botocudos (...).”79 (grifo nosso)

76 ESPINDOLA. Haruf Salmen. Op. Cit . p. 124 77 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: ed. Companhia das Letras: 2ª edição, 3ª reimpressa. 2006. p. 16 78 Titulo criado em 17 de dezembro de 1808, por D. Maria I a favor de D. Rodrigo de Souza Coutinho de grande influencia na Corte Portuguesa. 79 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org).1992 Op. Cit. .p.57-60.

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Todo “terreno infestado pelos Índios Botocudos”, segundo o trecho da carta

Régia, sofreria a conseqüência da guerra a eles declarada.

Assim, no corpo da Carta Régia, o Príncipe Regente tem a preocupação de

incentivar a colonização, fazendo com que avancem sobre as terras indígenas. Para

isso dava isenção de dizimo aos colonos que se sujeitassem a enfrentar a

empreitada.

“(...) vos ordeno que em todos os terrenos do Rio Doce actualmente infestados pelos Indios Botocudos, estabeleçais de accordo com a Junta da Fazenda, que os terrenos novamente cultivados e infestados pelos Indios, ficarão isentos por dez annos de pagarem dizimo a favor daquelles que os forem por em cultura de modo que se possa reputar permanente: que igualmente fique estabelecida por dez annos a livre exportação e importação de todos os generos de commercio que se navegarem pelo mesmo Rio Doce (...).”80 (grifo nossos)

A orientação de D. João demonstra claramente sua intenção de tomar as

terras do indígena e incorporá-las ás terras produtivas do reino. Quem invadisse

mais terras ficaria 10 anos sem pagar o dizimo como vimos no trecho do documento

Régio acima. Também na mesma Carta de 1808, concedia moratória para os

grileiros das terras indígenas durante seis anos:

“(...) que finalmente fique decretado, que concedo a todos os devedores da minha Real Fazenda que forem fazer semelhantes estabelecimentos de cultura e de trabalhos auriferos, a especial graça, de uma moratoria, que haja de durar seis annos da data desta minha Carta Régia, em cujo periodo não poderão ser inquietados por dividas que tenham contrahido com a minha Real Fazenda, (...).”81(Grifos nossos).

Através do documento citado, percebemos tamanha intenção do Governo

Português na exploração das riquezas destas terras, ao conceder a quem se

aventurasse a moratória de dividas, entre outros benefícios.

Assim, no período de vigência da Carta Régia de 13 de maio de 180882,

poderemos verificar a intensificação do processo de ocupação das terras do Sertão 80 Idem. p. 6181 Idem. p. 6182 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org).1992 Op. Cit. .p.57-60. p. 61

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do Rio Doce pelos colonizadores, empurrando as populações nativas para as

margens da sociedade. Quando estas não foram dizimadas, foram obrigadas a

assimilar uma cultura totalmente diferente que, em médio prazo, destituirá o nativo

de sua cultura e identidade.

Dessa forma, como nos evidencia o documento citado, podemos dizer que na

política de ocupação do interior da colônia, toda sorte de privilégios foram

concedidos aos colonos, no sentido de deslocarem a colonização para a posse e

fixação no Sertão mineiro. Afastando de todos os modos as ameaças representadas

pelos temidos índios Botocudos, esperava a Coroa explorar as terras férteis, as

possíveis veias metalíferas e a navegação dos rios, sobretudo o Rio Doce.

Do que foi exposto até aqui podemos entrever o quanto a sorte dos indígenas

da região esteve associada diretamente aos problemas da Coroa. Nesse sentido,

em pouco mais de meio século, da segunda metade do XVIII ao inicio do XIX, a

política do governo português, que era de manter esta região isolada, se transforma

completamente. Em um primeiro momento, quando foi interesse da Coroa limitar o

acesso a essas regiões, incentivou-se a difusão do temor relativo aos índios da

região, assim evitava-se, sobretudo, o contrabando do ouro, que era, inclusive,

proibido de ser aí explorado. Com esse sentido, a representação e circulação de

notícias quanto ao caráter ameaçador do “bravio Botocudo” foi em uma primeira

etapa, uma estratégia de vigília barata para os cofres da Nação. Em outras palavras,

um empreendimento cômodo e barato, pois a simples presença dos Botocudos na

região era considerada suficiente para manter isolada esta parte do Sertão Mineiro,

sendo feito pelo governo para a divulgação, entre os garimpeiros e colonos, das

ameaças dos selvagens índios da região, especialmente dos “antropófagos”

Botocudos.

Sendo uma área proibida, os Sertões do Leste mineiro funcionara como uma

barreira natural contra o contrabando da produção de ouro. Nesse sentido, a noção

de habitantes naturais da terra ganha novo significado, no alvorecer do século XIX: a

presença dos Botocudos servindo como uma barreira natural aos interesses que

ameaçavam os cofres reais. Enquanto tal noção prevaleceu, os diversos grupos

indígenas ali situados estiveram praticamente livres do contato com os

colonizadores, muito embora alguns aventureiros já desrespeitassem as

determinações da Coroa, infiltrando-se nas “áreas proibidas”, a fim de obter minérios

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e a cobiçada poaia.83 Mas sem que os indígenas soubessem, já prestavam

“serviços” ao Estado84, como nos sugere Maria Leônia Chaves de Rezende:

“(...) A impossibilidade da autoridade colonial de controlar o extravio da exploração aurífera fez com que a política do Estado mantivesse populações indígenas afastadas do contato - como um cinturão de resistência nos sertões, intimidando a penetração dos contrabandistas, ávidos em explorar as jazidas minerais à revelia do controle metropolitano. Por isso mesmo, o Estado nem sempre se preocupou de fato com a “civilização” dos índios, que, muitas vezes, prestavam melhores serviços na condição de bestas e selvagens (...)”85

A partir do momento que é editada a Carta Régia em 1808, a questão agora

era expulsar ou subordinar os indígenas e distribuir títulos de posse de terra a quem

ajudasse nessa investida. Aconteceu, porém, que estes nativos não entregaram

facilmente o seu território e promoveram, na história do Brasil, umas de suas

páginas mais sangrentas. Cada palmo de terras custava a morte de muitos índios

que, depois, retornavam á terra conquistada pelos brancos e destruíam tudo o que

fora plantado e edificado, fazendo jus, assim, as representações de “Bravios

Botocudos” .

Para completar a Carta Régia editada em (1808) e traçar o destino dos índios

Botocudos do Sertão do Rio Doce, o então Príncipe Regente edita, em 2 de

dezembro de 1808, um outra carta Régia. Nele, tratava sobre a Civilização e a

educação religiosa dos Índios, ainda sobre a navegação dos rios e a cultura dos

terrenos.86 Tal documento dispõe especificamente sobre a utilização do índio

prisioneiro, como mão de obra, pelos colonos. O documento dispunha:

83 Também conhecidas como ipeca ou ipecacuanha, estas raízes eram usadas como vomitório e antifebril, tendo grandes volumes exportados da Capitania de Minas Gerais. O comercio dessas raízes, que eram obtidas pelo branco por meio do escambo, no qual era oferecida aguardente aos indígenas, ocasionou um grande impacto na região. Se por um lado, a introdução de aguardente alterou as praticas indígenas herdadas do período pré-colonial, levando-os ao consumo indiscriminado da referida bebida, por outro, o acesso dos brancos e seus associados às regiões do Pomba e Alto Rio Doce foi facilitado por tal comercio. De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Antonio Moraes Silva: Poaia – s. f. Bot. Designação brasileira atribuída a varias plantas, em grande parte também designadas pelo nome de ipecacuanha; são eméticas e rubiáceas. 84 OLIVEIRA Ricardo Batista de. Os antigos habitantes do Leste mineiro. Universidade Federal de Ouro Preto.85 RESENDE, Maria Leônia de. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais Setessentista. Campinas, SP: [s.n.], 2003, p.76. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.86 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1992 Op. Cit. pp.66 a 69

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“(...) Em primeiro logar: que no território novamente resgatado das incursões dos índios Botocudos, ou ainda outros quaes quer, considereis como devolutos todos os terrenos” (...) Em segundo logar: que daqui em diante permittais a cada um dos Commandantes nas suas respectivas Divisões que possam demarcar e assignalar terrenos proporcionaes ás fabricas dos que forem entrando, ficando depois estes novos proprietarios que entrarem de posse, obrigados a procurar o titulo legitimo das sesmarias, intervindo a necessaria “informação dos mesmos.” (...) “Em terceiro logar ordeno-vos: que escolhais, de accordo com o Bispo, algum ou se necessario for, alguns Ecclesiasticos virtuosos, intelligentes e zelosos do serviço de Deus e meu, a quem possam encarregar a educação religiosa e civil do gentio que existe aldeiado, e do que for apparecendo, como aconteceu agora com mais de 500 Puris que se acham aldeiados, e que vieram buscar a protecção e suave jugo das minhas leis(...).”87(grifos nossos).

Como forma de demarcação do território e de seus habitantes o Príncipe

Regente reforça a necessidade da presença dos Eclesiásticos na “civilização” do

gentio aldeado.

Os aldeamentos passavam a ter o tamanho de seu terreno, proporcional às

necessidades dos aldeados e dos interesses comerciais da área, objetivando assim,

que o trabalho indígena tivesse uma produção excedente que poderia ser

comercializada pelas autoridades locais. Tal e qual já estava estabelecido, desde o

Diretório dos Índios, de Pombal. Mas, no dito documento D. João critica esse

sistema acusando-o de não haver alcançado lucros para a real fazenda:

“(...) havendo a experiencia mostrado que as Aldeias ou Povoações de Indios não têm igualmente prosperado, antes vão em decadencia, já pela natural indolencia e pouco amor delles ao trabalho, já pela ambição das pessoas que com o titulo de Directores, só têm em vista tirar partido de gente grosseira, rustica e pouco civilisada (...)”88

Assim, a fim de utilizar o próprio indígena a serviço da “civilização”, suprir a

escassez de mão de obra no Sertão e defender os cofres da real fazenda de gastos

dispendiosos, ordenou-se que só deveria aldear-se os índios quando estes se

apresentassem em grandes números, caso contrário, os nativos deveriam ser

87 Idem.88 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org).1992 Op. Cit.. pp. 66 a 69.

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distribuídos aos fazendeiros e colonos locais, que em troca da mão de obra se

encarregariam de educá-los, vesti-los e alimenta-los.

“(...) vos autorizo a que, sendo pequeno o numero de indios, que se vierem offerecer, procureis que os fazendeiros se encarreguem de os instruir, e possam tambem aproveitar-se do util do seu trabalho, como compensação do ensino e educação que se encarregam de dar-lhes(...)”89

Para que ocorresse com rapidez a domesticação dos indígenas, o regente

ordenava que casais de lusos brasileiros fossem inseridos nos aldeamentos pra que

vivessem e trabalhassem ao lado dos índios. Assim, seria possível que os costumes,

a língua, a religião fossem transmitidos o mais rápido e com a maior facilidade

possível:

“(...) que por sua diligencia e persuasão se achem misturados com os mesmos, vivendo em paz, e dados ao trabalho 100 casaes de Portuguezes ou Europeus (...)”90

Ilustração 12: Rugendas em sua pintura confirma a presença de colonos e indígenas convivendo no interior do sertão. 91

89 Idem. pp. 66 a 69.90 Idem pp. 66 a 69.91 RUGENDAS, João Mauricio de. Viagem Pitoresca Através do Brasil. IV edição. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1949.

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Em nossa pesquisa pudemos averiguar que, na primeira década do século

XIX, nos dois primeiros anos após a chegada da corte portuguesa ao Brasil,

intensificou-se o numero de decretos Régios que redirecionavam os tratos com os

índios do Sertão do Rio Doce. Nessa cronologia de decretos régios destacam-se,

em 1808, as Cartas Régias de 13 de maio, a de 24 de agosto e a de 02 de

dezembro, sendo que as duas primeiras legislavam e legitimavam a Guerra Ofensiva

decretada aos Índios Botocudos de Minas Gerais, e a terceira, sobre a civilização

dos índios, sua educação religiosa, a navegação dos rios e a cultura dos terrenos.

Em 1809 damos destaque para as seguintes Cartas Régias: a de 13 de junho, que

marcava o prazo de dez anos para a distribuição, por sesmarias, dos terrenos

resgatados das incursões dos Botocudos. Deixa claro o interesse da Coroa em

relação à Terra e, ainda, dava as providências para que fosse efetivada a conquista

das terras do sertão. Como veremos no trecho abaixo da dita carta:

“(...) dos terrenos resgatados das incursões dos Botocudos, se fossem logo distribuído sesmarias aos novos Colonos, que entrassem na tentativa de os povoar, e cultivar, como o principal objecto de saudáveis providencias, que já ordenado, e continuaria a dar em benefícios dos Povos dessa capitania: considerando agora as difficuldades que estes colonos terão na immediata demarcação de suas sesmarias na diligencias de tirar a sua competente Carta, e nas mais formalidades estabelecidas sobre esse objecto, e querendo de todos os modos auxiliar os seus trabalhos e animar quando se possa os seus estabelecimentos; sou servido declarar-vos que lhes fica concedido o prazo de 10 anos, para aquelas mencionadas diligencias no fim dos quais serão impreterivelmente obrigados a satisfazel-os, sob pena se perdimento das mesmas sesmarias (...)”92(grifos nossos)

As providências tomadas para a efetiva conquista do sertão mineiro

passariam, no entanto, pela distribuição de sesmarias aos colonos, e estes teriam

auxilio para colocar em prática a efetiva fixação à terra.

A Carta Régia de 28 de julho de 1808, tratava sobre o aldeamento dos Puris

na Capitania de Minas Gerais. Neste documento régio o Príncipe Regente deixa

explicito que, custe o que custar, os aldeamentos deveriam sempre dar lucro à

Coroa, cumprindo e mantendo as disposições das Cartas Regias anteriores, que são

também estendidas aos Puris.

92 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1996 Op. Cit. p. 74

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“(...) minha real aprovação as instruções, que provisionalmente se dispunha dar aos Directores dos Aldeamentos, que se fossem formando dos Puris e Xamexunas, e tendo eu encontrado nos differentes artigos, que elles contem indicadas todas as providencias, que por ora aprecem necessárias para que aquelles estabelecimentos se facão na boa ordem, que convem, afim de que tenham os úteis e vantajosos resultados, que me produz obter pelas disposições das Cartas régias de 13 de maio e de 2 de dezembro do ano passado; sou servido a aprovar as ditas instruções, que esta vos envio, e determino que ellas se cumpram literalmente em quanto eu não mandar o contrario (...)”93 (grifo nosso).

O documento acima confirma prerrogativa de sempre gerar lucro à Coroa

Portuguesa.

Sem duvida, foram os primeiros anos após a chegada da Corte Portuguesa

ao Brasil, o período de maior movimentação na corte no sentido de legislar, para

desocupar e “desinfetar” o Sertão do Rio Doce da presença do Botocudo. A política

dirigida aos índios do sertão mineiro estava explicitamente legitimada nas Cartas

Régias já citadas, além do grande número de Decretos, Avisos, Portarias etc. que

complementam a legislação indígena nas primeiras décadas dos oitocentos.

Após esse período de intenso movimento, no qual se decreta a Guerra

ofensiva e tomam-se as medidas que garantiriam as condições necessárias para

sua manutenção, nota-se certo afrouxamento em relação a decretos de Cartas

Régias, pois, apenas 10 anos depois já em 12 de dezembro de 1820 decreta-se, em

carta Régia, a criação de mais uma divisão de tropa paga, denominada a oitava do

Rio Doce, na província de Minas Gerais:

“(...) constando na minha real presença achar-se aberta a nova estrada de Minas Nova para a Vila de S. Jose de Porto Alegre, e fazendo-se portanto necessário a creação de mais uma divisão de tropa, paga, além das sete que já há, para conter as hostilidades dos Índios, e para guardar a mencionada estrada; Hei por bem ordenar que se cree esta divisão, denominada a oitava do Rio Doce (...) afim de que esta nova força seja melhor disciplinada, como convém a bem do meu Real serviço na segurança dos povos visinhos, as matas da mesma estrada, e dos passageiros que por ella transitem.(...)”94(grifos nossos).

93 Idem. p. 7494 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1996 Op. Cit. p. 101

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O que nos mostra duas questões: de um lado a resistência de indígenas da

região, todos genericamente considerados botocudos. Outra questão é que a

colonização avança, mantendo as tensões entre colonos e índios, fazendo-se

necessário segundo a metrópole a criação de mais uma Divisão Militar para garantir

a segurança dos colonos.

CAPÍTULO III

ALDEAMENTO: política no sertão mineiro e política para o Estado brasileiro.

Quanto mais a civilização se estender sobre a terra, mais verse-ão desaparecer a guerra e as conquistas, bem como a escravidão e a miséria. Condorcet, 1787.95

Até a primeira década do século XIX as ações tomadas contra os Botocudos

não surtiram os efeitos esperados. Conhecedores da região os índios se

embrenhavam na mata, fugindo do colonizador, e quando menos se esperava,

voltavam a atacar os colonos, destruindo suas habitações e plantações. Essa

95 CARITAT, Marie Jean Antoine Nicolas. Ensaio de um quadro histórico do espírito humano. Editora Unicamp, Campinas. 1993

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natureza ou prática de guerra dos indígenas pode ter sido responsável pela

desistência de muitos colonos em permanecer na região.

Após muitos ataques, muitas vitórias, mas também, marcantes derrotas, os

portugueses são levados a repensar a política violenta da guerra ofensiva, declarada

desde 1808 contra os povos Botocudos do Sertão. Não que as próximas ações

mudassem o destino desses povos oprimidos, mas uma trégua, por parte dos

colonizadores, durante a qual deixam-se presentes nas matas, procurando atraí-los.

No Aviso de 11 de dezembro de 1811, podemos averiguar as primeiras

reflexões a respeito da mudança de tática nas Divisões do Rio Doce principalmente

na 7ª Divisão: da guerra á atração e aldeamento. Apesar de, muito timidamente, o

Aviso alega que “atração” seria a melhor forma de combater o “bravio” Botocudo.

Essa atração seria feita por intermédio dos “Línguas” 96 e dos “Índios “Mansos”, mas

deveria ser seguida sempre por forte repressão aquele individuo que não aceitasse

a “subordinação”“:

“(...) Ordenou Sua Alteza Real que de tudo se fizesse um extracto, e se publicasse juntamente com a gazeta, para que a todos os seus vassalos constasse os esforços que S.A.R tem mandado fazer para refrear os excessos dos índios Botocudos, e para igualmente acelerar a sua civilização, sendo tudo dirigido por V.Ex. com o seu incansável zelo, se fizesse deixado se agora ver o fructo das resoluções tomadas e a esperança que pode haver de que se consiga com os meios fortes acompanhados dos de brandura o efeitto tão desejado de sua prompta civilização. S.A.R. vio tão bem .... e muito recomenda o Augusto Senhor que V.Ex. auxilie por todos os modos para captar a amizade e Aliança dos Botocudos mansos, e para por seu modo principiar a fazer Aldeas, que depois possam vir sucessivamente incorporar-se os Botocudos bravos, continuando a fazer-se-lhes huma dura Guerra em quanto não quizerem pacificar-se, e viver debaixo da proteção das leis de S.A.R (...)” 97(grifos nossos)

Nota-se uma atitude estratégica por parte da Coroa no processo de

“civilização” quando procura alternar guerra e brandura.

O mesmo Aviso de 11 de dezembro de 1811, deixava claro que aldeado, o

indígena poderia ser submetido aos ensinamentos da religião Cristã. A catequese é

96 Conhecia se como línguas os indivíduos brasileiros ou índios mansos que falavam a língua do povo a ser contatando, seu conhecimento da língua facilitava a comunicação e a atração dos demais indivíduos. 97 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1996 Op. Cit. p. 82

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apresentada como a forma mais apropriada para civilizar os povos bárbaros do

Sertão:

“(...) propagação de nossa Santa Religião entre os Botocudos muito manda recomendar o mesmo Augusto Senhor a V.Ex., sendo também o modo mais conveniente para civilizar Povos Bárbaros que só a Religião pode domar. (...)”98 (grifos nossos).

Os índios eram encarados como “ingênuas crianças”, que deveriam, para a

sua segurança e a dos colonos, ser dirigida à civilização. “Civilizar” era preciso, pois

este seria o caminho que enquadraria um conjunto de diferentes costumes,

contrapondo civilização/barbárie, religião/superstição. A prática de “civilização”,

como sinônimo de costumes cristãos, já era utilizada desde a chegada dos Jesuítas

e foi mantida ao longo de todo o processo de colonização. Para a efetivação desse

processo, custosas guerras foram desencadeadas, tornando-se necessário

encontrar um menos dispendioso a coroa, o que foi feito através da ação dos

religiosos. Finalmente, é preciso considerar as idéias da época, influenciadas pela

Revolução Francesa e as idéias ilustradas sobre o índio como ser da natureza, o

que torna a escravidão indígena um atraso. Essas idéias foram respaldadas pela

formação ilustrada de Marlière e Saint-Hilaire.

Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve entre os aimorés da região nas

primeiras décadas do século XIX, condenava veementemente a Guerra contra os

botocudos, relatando que: “... a guerra contra os Botocudos é um absurdo digno dos

tempos mais bárbaros”.99 Após visitar as divisões militares do Rio Doce deixa-nos

sua opinião acerca da situação vivida naqueles confins:

“(...) As tropas que se enviam contra os botocudos não são sufficientes para exterminal-os, e, por conseguinte, limitaram-se a matar de tempos em tempos alguns, morrendo também alguns soldados(...)” 100

98 Idem. p. 82.99 SANT-HILAIRE, August de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 364100 Idem. p..364

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Propõe ainda o viajante que os índios “mansos” fossem usados para atraírem

e intermediarem a negociação de paz com os “bravios”. Esses, atraídos por

presentes e algumas promessas de uma vida “melhor”, como súditos da coroa de

baixo do justo julgo de El Rei, viessem a liberar vasta extensão de terras férteis que

muito interessavam aos portugueses.

Entretanto é bom ressaltar que não conhecemos nenhuma prova documental

que nos indique que durante esse período (1813 a 1831) de aparente afrouxamento,

ou re-direcionamento da política portuguesa em relação ao indígena, de forma

alguma tenha sido acompanhado de tréguas nos conflitos.

Destaca-se, a partir de 1813, como fonte para o contexto do sertão mineiro, a

chamada Obra Marlieriana (1813-1829).

Guido Thomas Marlière nasceu em Jarnage, Departamento de Creuse, antiga

Província de Marche, na França, a 03 de dezembro de 1.767. De uma família

monarquista, após estudar humanidade e filosofia, entrou para o exército francês,

aos 18 anos. Sobreviveu à Revolução Francesa e à era Napoleônica. Lutando contra

as forças revolucionárias, vencido, fugiu, com os militares, para a Alemanha,

integrando-se à legião realista do Visconde Mirabeau, formada de imigrantes.

Enviado pelos ingleses a Portugal, em 1.797, para defender as terras lusitanas de

possível invasão napoleônica. Em 1.802 ingressa no exercito Português, na recém

criada Guarda Real a Pé e a Cavalo, em 1807 se torna Alferes e em 1808

acompanha a Família Real na fuga para o Brasil. Após uma curta e conturbada

permanência no Rio de Janeiro Marlière se entusiasmou com os sertões da

capitania de Minas Gerais transferindo-se para a tropa paga de Vila Rica em 1811.

Mais conturbada ainda foi sua estada na efervescente Vila Rica da época. Neste

mesmo ano foi preso sob suspeita de tratar-se de um espião de Napoleão

Bonaparte, mas essa acusação de espião, não procedia como nos informa um ofício

dirigido ao ministro d Conde de Linhares pelo Governador Conde de Palma:

“(...) Os papéis escritos na língua portuguesa e francesa, nada provam contra si (...) devo dizer que o referido oficial até agora não me consta haver soltado vozes contra o nosso Augusto Príncipe Regente e a nação portuguesa. (...)”101

101 Revista do Arquivo Publico Mineiro. Ano XI, p 15. disponível em CD-ROM

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Após sua libertação, Marlière como idealista que era e impregnado pelo

filosofismo da época (séc. XVIII e XIX), solicitou ao príncipe Regente D. João que

lhe concedesse a oportunidade de trabalhar entre os índios selvagens do Sertão

Mineiro, distante dos meios “civilizados” de modo que todas as suspeitas e

desconfianças esquecidas e seus inimigos sossegados.

Marlière enviou ao Desembargador Lucas Antonio Monteiro de Barros, em

junho de 1811, uma carta em que pedia para ser enviado para um lugar fora da

“civilização”:

“(...) Queira V.Excia. fazer uma proposta que talvez seja agradável e socegue os meus inimigos, que louvo, se sobrarem para o bem do estado, e que perdo-o se o fazem por malícia.

Mande-me sem forma alguma de processo para um deserto da capitania(Minas Gerais), que sua Altesa Real me deixe de esmola o meo pequeno soldo, a fim de que eu possa com minhas mãos cultivar a terra e sustentar a minha deplorável mulher e família(...)”102

As autoridades portuguesas aceitaram o pedido de Marlière e logo após sua

libertação, deram-lhe uma missão, enviado-o em 1.813, para pacificar o Presídio de

São João Batista (Visconde do Rio Branco), e apaziguar as tribos Kropós, Croatas e

Puris, trazendo-as à civilização.

Apesar de muito novo Marlière tinha uma boa formação cultural e sofreu

fortes influências de enciclopedistas e filósofos iluministas. Tal formação se tornaria

a viga mestra de sua grande obra civilizadora junto aos índios, nas matas de Minas

Gerais.

Argumentava Marlière com seus ideais impregnados pela filosofia da época:

“(...) Não ouso esperar para mim felicidade, sou muito velho, mas estes meninos terão na sua lembrança ao Capitão Nherame, a visão pagar o tributo de alguma lagrima de sentimento onde descansarem os meus ossos, porque sou amigo destes homens da natureza. (...) Não tenho escravos, cultivo hua fazenda em Guidowald, em que os índios me fazem grandes

102 Códice S.G. 356 do Arquivo Público Mieiro.

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plantações annuaes, pago-lhes o seu salário, e comemos juntos. (...)” 103

(grifos nossos)

A relação amistosa de Marlière com os índios expressa o desejo de realizar o

seu projeto de catequese e civilização dos habitantes das matas mineiras. Pregando

igualdade entre os homens, Marlière tentou colocar em prática, entre os índios, os

princípios nos quais acreditava. Dispunha-se a trabalhar de forma diversa dos meios

convencionais de civilização, de modo que as desconfianças reinantes entre os

nativos fossem esquecidas e eles sossegados. Desejava o francês realizar um

projeto de catequese e civilização baseado em ideais filosóficos das luzes, nos quais

todos os homens eram iguais em direitos e deveres, com direitos a liberdade,

igualdade e fraternidade.

Como já anunciamos a seu próprio pedido, Marlière foi enviado para junto dos

indígenas do Sertão do Rio Doce, sua missão era de averiguar atos de usurpação

de terras entre indígenas e colonizadores, praticados no distrito de São João Batista

do Presídio104.

Segundo Oilian José105 seu primeiro trabalho foi dentro dos quartéis, junto aos

militares, trabalhando o efetivo para prepará-los para lidar com o índio e, na medida

do possível, conquistar sua confiança. Uma mudança importante de perspectiva e de

ação dos militares sob o seu comando, uma vez que estes, até então, só eram

utilizados para a guerra contra os índios.

A ação de Marlière entre os indígenas se fez gradativamente e sem grandes

alardes, mas seu claro objetivo é o de civilizar. Sua trajetória nessa empreitada

deixa-nos entrever que além dos seus ideais iluministas, ele não possuía um plano

pré-estabelecido de ação. Seu trabalho junto aos Botocudos se realiza aos poucos,

na medida em que ele estabelece os primeiros contatos. Para Marlière sua missão

somente teria êxito se aprendesse a cultura e a língua desses indígenas, então

relata o francês:

103 Correspondências de Marlière – RAPM – in DURÇO. Jonathas. 1989.Op. Cit. p.64104 Hoje município de Visconde do Rio Branco.105 JOSÉ, Oilliam. Guido Marlière: O Civilizador. Belo Horizonte. Imprensa Oficial de Minas Gerais. 1971. p. 28

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“(...) A primeira e mais essencial prenda, que o legislador deve exigir dos empregados na civilização dos índios em geral, depois da pacificação, é o conhecimento da língua delles, sem o qual elles fazem o efeito de hua estátua em huma praça, que não ouve, e o povo admira, admira mas não entende(...)”106 (grifos nossos)

No depoimento de Marlière, o conhecimento da língua seria uma das partes

essenciais para o processo de “civilização”.

Cabe ainda destacar que o ponto comum entre as diretrizes políticas da coroa

e os ideais de Guido Marlière sem duvida se cruzavam em um ponto crucial,

segundo o modelo de “civilização”, empregado a partir de 1813: agrupar os índios

em aldeamentos e tira-los do nomadismo em que viviam.

Segundo o francês, para aldear esses indígenas, seriam necessárias algumas

estratégias, como por exemplo, a localização desses aldeamentos. Esses

agrupamentos deveriam ser realizados no interior das matas onde viviam os índios,

ou seja, em uma terra onde houvesse abundância de água, caça e pesca. Marlière

no ano de 1820 aponta os seguintes caminhos que deveriam ser seguidos:

“(...) Devem ser estabelecidos em Matas Virgens, pátria dos índios em vizinhança de Rios navegáveis, sendo possível abundantes peixes, que determinará a sua fixação pela abundância daquele sustento, e o deleite de banhos, sem os quais não passam”. 107 (...) “Os selvagens não se devem expatriar. No seu paiz natalício hé que se civilizão bem (...)”108 (grifos nossos)

Assim, aldear esses indígenas também significava garantir-lhes o sustento e a

satisfação de algumas necessidades que para eles eram básicas, como por

exemplo, fixar-se próximo aos rios o que possibilitaria deleitar-se nos seus banhos

diários.

Entretanto, muito embora os indígenas devessem permanecer em localidade

que assegurassem o seu habitar natural, a agricultura seria um dos sustentáculos da

obra de Marlière. Em seus depoimentos, registrados na RAPM109 ,fica explicito a

necessidade de se ensinar aos indígenas a prática da agricultura, ou seja, lê-se a

106 Idem. p. 28107 Revista do Arquivo Publico Mineiro RAPM, ano XI . disponível em acervo digital. 108 Revista do Arquivo Publico Mineiro RAPM, ano X. disponível em acervo digital.109 Revista do Arquivo Público Mineiro - RAPM –.

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prática do trabalho sedentário. Somente a agricultura garantiria a sua subsistência,

sem que eles precisassem continuar na peregrinação pelo sertão, á procura de

alimentos pra saciar sua fome. Garantida a produção de alimentos se evitava que o

indígena se embrenhasse pelas matas e invadisse as propriedades dos colonos.

Acreditava ainda Marlière que a catequese era muito importante na civilização

do indígena. O próprio Marlière encontra maior facilidade em trabalhar com os

gentios já moldados pela religião, e contribuía com envio de jovens indígenas para

estudos religiosos, na esperança que no futuro servissem de intermediários com os

índios ainda bravios.

Em nenhuma correspondência de Guido Thomaz Marlière, estudada para a

realização desse trabalho, foi encontrada uma citação dele em relação ao poder

espiritual do sacerdote, mas era comum tratar o sacerdote como uma força moral útil

nos aldeamentos e forte parceiro do Estado na “civilização” do gentio. Desta forma,

esse soldado ilustrado segue a sua tradição cultural.

Nessa nova fase da diretriz política do Estado português para civilizar os

Botocudos, vários serão os obstáculos enfrentados pelos idealizadores desse

processo.

A falta de princípios e de conhecimento de causa dos auxiliares do francês

comandante Guido Marlière, dos oficiais e dos soldados das divisões militares, que

em sua maioria eram recrutados entre a “escoria da colônia”110, dificultavam o

trabalho junto aos índios. A maioria desses homens, e a própria orientação geral do

Estado, não tinham a intenção de salvar os indígenas ou pacifica-los através da

civilização.

Segundo o pesquisador Jonatas Durço, a catequese, a civilização desses

indígenas, iria ocorrer de forma muito lenta e gradual. Marlière terá muita dificuldade

e sua obra “civilizadora” esbarrara na burocracia do Estado, muitas das vezes

faltando recursos financeiros para que se possa continuar a aproximação com os

gentios. Vários são os documentos encontrados no Arquivo Público Mineiro que nos

levam a crer na má vontade e na dificuldade de comunicação entre a maquina

burocrática do Estado e o Comandante das Divisões Militares do Rio Doce, que

110 O corpo de soldados das Divisões Militares do Rio Doce eram formadas por todo tipo de pessoas mas em sua maioria esmagadora eram de ex-garimpeiros, assassinos, ladrões e nativos recém “civilizados” que buscavam tirar aproveito nas incursões no Sertão.

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implorava ajuda para que pudesse dar continuidade à “Civilização” dos “Índios

bravios”:

“(...) Examinando proximadamente as minhas contas com o meu procurador nessa tarde reparei que não recebia se não a gratificação antiga de 25$000 Rs mensaes em lugar dos 30$000 Rs que a ley de 25 de março de 1825, e a tabela que acompanha me concede... nessas circustancias, e sem saber o motivo em que a mesma Exma. Junta se funda em me negar a devida gratificação a vista da ley tão explicita, qual a citada rogo a V.ª Ex.ª queira elevar pelas escalas competentes, ao Throno esta minha humilde supplica affim de que S.M.I. faça Justiça que costuma... addido eu, supplico que alem do laborioso comando das Divizoens do Rio Doce, sou obrigado a vultadas despezas como Diretor Geral dos Índios, cujo o cargo não recebo a 13 annos o menor emolumento. – Quartel Central do Retiro 30 de março de 1826 – P.ª Exmo. Snr. Tª Governador das Armas Antonio José Dias Coelho – Guido Thomaz Marlière Ten. Cel. Comandante das Divisões Militares do Rio Doce. (...)”111 (grifos nossos)

Marlière apresenta suas dificuldades, principalmente financeiras, no comando

das Divisões do Rio Doce e suplica a ajuda Real, visto que sua obra seguia a linha

de presentear os indígenas e manter contato amistoso.

Mas com a determinação que lhe era peculiar, Marlière, e uma pequena

parcela de colaboradores fieis ao seu ideal de “humanidade” para com os

“selvagens”, fizeram alguns avanços no contato e aldeamento com os habitantes do

Sertão Leste de Minas. Avanços que são apenas locais, no restante das regiões do

sertão mineiro os conflitos ainda são permanentes.

Já se admitia o fracasso da recém criada Junta de Civilização e Conquista

dos Índios e Navegação do Rio Doce, que na verdade, ao longo de sua existência só

fizera dificultar o contato com os índios. Fortemente armadas e pessimamente

dirigidas, as forças regulares de “colonização” só tinham como objetivo matar o

indígena, gerando, por sua vez, violentos conflitos entre as duas partes e geram

discursos como o expresso pelo governador da Capitania Pedro Maria Xavier de

Ataíde e Melo:

“(...) Das diferentes espécies de índios, o Botocudo, por experiência, he os como faziam em outros tempos os que viviam em Cuieté; os Portugueses

111 Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XII – Imprensa Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. 1907. p. 412. disponível em arquivo digital CD n.º 002. imagem 0213.

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não escapão igualmente à sua veracidade, e o único meio q’ há a seguir he faze-los recuar com força armada ao centro das Matas Virgens. (...)”112

Após chegar a conclusão de que tudo que estava conseguindo no Vale do Rio

Doce era tornar cada vez mais grave e fora de controle o conflito gerado entre

Botocudos e Colonizadores, dificultando cada vez mais o objetivo de conquista e a

própria navegação do rio, o governo toma a medida de encaminhar Marlière para a

região. Uma alternativa que se apresentava no momento, em decorrência da

conhecida tática de aldeamento e pacificação dos indígenas, implementada pelo

militar francês em outros tempos, e que dera alguns resultados nos afluentes do Rio

Doce, a exemplo do aldeamento dos Puris e dos Coroados. Nesse sentido, nada

mais pertinente que colocar tal política em prática nessa região. No dia 09 de

setembro de 1818, o governo decide-se por enviar Merlière para inspecionar a 1º, 2º,

3ª, e 4ª Divisão do Rio Doce, o que segundo autores como Oilian José e Jonatas

Durço, significava averiguar o que, até então, fizeram as Divisões e, que propusesse

novas medidas que se tornassem úteis aos colonos e ao Reino.

No inicio do ano de 1819 Marlière chega às margens do Rio Doce e começa

um trabalho diferente daqueles realizados, até então, pelas forças governamentais,

no contato com os índios Botocudos. Logo de inicio parte para o contato “pacifico”

procurando alguns indivíduos que pudesse servir como elo, entre ele e os

“selvagens” do Rio Doce.

É nessa empreitada que Marlière se encontra com uma das figuras mais

importantes para que sua ação frutificasse entre os Botocudos, o índio Pocrane113,

que muito o ajudou. Segundo Afrânio de Mello e Franco,114 Pocrane nunca mais

deixou a companhia do civilizador, só o abandonando em 1829, após a retirada de

Marlière e o fim dos aldeamentos.

O método utilizado por Marlière apesar de apresentar alguns resultados

positivos era dispendioso para os cofres da coroa, pois necessitava de alimentos

para sustentar os gentios aldeados, até que esses se acostumassem com a 112Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XI – Imprensa Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. 1907. p. 314 113 Indígena que veio com os soldados de Guido Marlière, após a primeira investida pacifica as margens do rio Doce e que segundo Afrânio de Mello e Franco nunca mais deixou a companhia do civilizador.114 FRANCO, Afrânio de Mello. Guido Thomas Marlière; o apóstolo das selvas mineiras. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1947.

75

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presença do colonizador. Também era necessária a compra de ferramentas, anzóis

e demais objetos utilizados para conquistar a confiança e realizar a aproximação

com o Botocudo.

Utilizando-se de índios menos arredios como o índio Pocrane, o aventureiro

francês, aos poucos, conquista os indígenas, os quais passam a vê-lo como um

aliado. As feras indomáveis do passado, agora eram agrupadas por Guido Marlière

como crianças. Em uma carta de Marlière á Saint-Hilaire observamos a confirmação

deste fato:

“(...) Continuamente cercado de Botocudos, não me é possível escrever; se fecho a porta, entram pela janela; numa palavra, eles me põem as vezes fora do assento; - havendo agentes para lhes ministrarem o necessário, não querem receber senão das minhas mãos até o próprio sustento!(...)”115

Outra prova da ação eficaz de Marlière junto aos Botocudos pode ser

constatada em carta de Guido Marlière, então Diretor das Divisões Militares do Rio

Doce, ao nosso novo Imperador, dom Pedro I. Escrevendo com o sentimento de

dever cumprido, escreve o francês ao chefe maior do Estado: “Agora creio que a

civilização dos Botocudos não será mais hum problema, para incrédulos”.116 A

correspondência de Marlière destinada ao imperador comprova-nos o grau de

importância que atingira o processo em questão. No entanto, a ação “civilizadora” de

Marlière que perdurou durante a maior parte do primeiro Império nos comprova que

a política do recém criado Estado brasileiro para com os indígenas não sofreu

mudanças abruptas após a Independência.

A criação do Aldeamento, enquanto um espaço pensado para a catequização

e “domesticação” dos indígenas no Sertão de Minas Gerais, tinha como base

fundamental o discurso civilizador dos costumes através da instrução à fé católica.

Nos aldeamentos os índios eram “educados” para viver como cristãos. Essa

“educação” significava uma prescrição forçada de outra cultura, a cristã. No entanto,

Igreja e Estado perceberam que para o êxito de tal Missão catequética era preciso,

antes mesmo de fundar o Aldeamento, conhecer a região e, sobretudo a cultura dos

115 Revista do Arquivo Público Mineiro – anno XI p. 314116 Correspondência de Marlière e D. Pedro I – Revista do Arquivo Publico Mineiro. ( RAPM) Ano XI, p.314

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índios. A catequese era utilizada para o projeto de conversão e, consequentemente,

implantação dos ideais propostos pelo governo. Para uma efetiva assimilação dos

indígenas no Aldeamento aos preceitos do catolicismo e seu conseqüente ideal de

civilização, os padres valiam-se de aspectos da cultura indígena, especialmente, da

utilização de um forte elemento da identidade indígena, o dialeto nativo,

possibilitando assim uma identificação entre os índios e os ditos “brancos”, tornando

mais fácil ser compreendido e assim se aproximando mais dos indígenas. Este elo

de comunicação deu-se primeiro através de contato e utilização dos “línguas”. Esta

ação incrementava a destribalização e violentava aspectos fundamentais da vida e

da mentalidade dos indígenas, como o trabalho na lavoura, atividade que

consideravam, exclusivamente feminina, e que nos aldeamentos eram levados a

praticar.

Do ponto de vista dos padres, principalmente dos jesuítas, o

desmoronamento da cultura indígena simbolizava o sucesso dos aldeamentos e da

política de catequização/civilização guiada por eles. Os religiosos argumentavam

que as aldeias não só protegiam os nativos da escravidão e facilitavam sua

conversão, mas também forneciam uma força militar auxiliar para ser usada contra

tribos hostis. Entretanto, os efeitos dessa política eram agressivos e aniquiladores

da identidade dos indígenas.

A legislação indígena em vigor a partir de 1808 com a edição da Carta Régia

de 13 de maio ampliaram o direito dos combatentes de reter ou oferecer os

aprisionados aos colonos ou autoridades que, sob o compromisso de educá-los,

poderiam usar seus serviços por quinze anos a contar da data em que fossem

batizados. Porém, o grosso dos índios conquistados eram localizados em

aldeamentos, onde deveriam ser transformados em combatentes dos grupos

arredios e em mão-de-obra a ser usada para viabilizar os empreendimentos de

conquista e colonização do Sertão Mineiro.

Em um documento encaminhado por Marlière ao vice Presidente da Província

de Minas Gerais; o comandante divide os indígenas em aldeamentos e fornece

dados estatísticos quanto ao número aproximado de seus habitantes:

77

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“(...) Tribus de Índios da Província de Minas Geraes seu local, Mapas fazendo conhecer os aldeamentos das diferentes Populações, seu augemento ou decadência, e as causas . Quartel Geral de Gerdorvald, em 20 de janeiro de 1828. (...)”117

Localidades Naçoens Seu Sub-Director Em que se ocupam

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Rio Pardo e Paraíba

Puris José Antonio Furtado

Agricultura e extrahir a Poalha

500 Em Junho de 1814. Pelo Director Geral

37léguas

Tem por território o rio Pardo e suas vertentes, em que se achão alguns fazendeiros Brazileiros tolerados pelos successivos governos. Os Índios deste aldeamento andão dispersos nas margens do Paraíba occupados a trabalhar para os fazendeiros, e pelos negociantes de poalha. Alguns ficão permanentes.

Pomba Coropós Capitão Silvestre Agricultura e Pescaria 300 Dezembro de 1767. 26

São cultivadores todos, e de grandíssima utilidade aos fazendeiros disseminados no terreno q habitão, que entrarão com poucos ou nenhuns

117 Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XII, p. 491

78

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Antonio Vieira. Pelo governador Luiz Diogo Lobo da

Silva.

escravos, e não deixarão de promover com ajuda dos índios o dregao eminente de cultura e comercio em que se acham hoje o Pomba.

Localidades Naçoens Seu Sub-Director

Em que se ocupam

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Prezidio de S. João Baptista.

Coroados Capitão Gonçalo Gomes

Barreto

Agricultura e pescaria

700Dezembro de

1767. Pelo governador Luiz Diogo Lobo da

Silva.

24

Todos são cultivadores, mas divertidos da própria cultura pelos negociantes de poalha que os occupão a maior parte do anno. Mais de hua terça parte dessa Nação se passou para o território de Manuelburgo onde formou novas aldeias e serve para industriar os Puris alli aldeados em 1819, aos trabalhos rústicos, fora o tempo de colher a Poalha.

Meia pataca na Estrada do

Presídio aos Campos

Goytacazes

Puris Manoel Carlos de Almeida

Agricultura e Poalhas

400 20 de setembro de 1822. Pelo Comandante

Geral

36Elles por ora não tem terras próprias para a sua cultura. Trabalhão como jornaleiros para os fazendeiros daquella Estrada e vendem poalha e outras drogas do Sertão.

79

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Manoel-burgo Puris Constantino Joze Pinto

Comercio de poalha e agricultura

1000 25 de maio de 1819, pelo

Director Geral

38

Este aldeamento he consideráveis. Já o diretor com os indios comunicam com os primeiros moradores dos campos Goytacazes pelo Muriahe, e por caminho de terra pelas suas margens. Tem capella e caza para índios Puris. Vários brasileiros entrarão, e entrão á possar-se daquellas terras de cultura e Auríferas. Falta hum Missionário para aqueles índios e Brazileiros.

Localidades Naçoens Seu Sub-Director

Em que se ocupam

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Aldeia de São Pedro do Rio

Preto. Estrada de Minas e Itapemirim

antiamente São Mateus.

Puris Antonio Joaquim Coelho

Poalha e algua agricultura

600 24 de maio de 1824. pelo

Director Geral

45

Esta aldea estava formada no Ribeirão de S. Matheus, e mudou-se p. o Rio Preto 4 léguas ao oriente de S. Matheus fronteira da província do Espírito Santo em 1826 á requerimento do seu director e com permissão do Ex.mo S. Presidente em conselho datado de 23 de fevereiro de 1826.

Santa Anna d” Abre Campo, e seu sertão até o corr. do ouro.

PurisAlferes

Reformado Joze Caetano da Fonseca

Poalha e agricultura 800 14 de maio de 1821. Pelo

Director Geral.

32 Occupão-se mais estes índios na extração de poalha, e na qual tão bem são bem industriados.

Ao sul do Rio Doce

Petersdoft

Botocudo Capitão Graduado

Lizardo Joze da

Agricultura, caça e pesca

Sendo ambulantes

Não se pode contar

12 de março de 1823, pelo

Director Geral p authoridade do

36Vão se applicando bem ao trabalho e neste anno passado coadjuvarão muito aos soldados nas plantações de nossas consideráveis, quo se fizerão para elles.

80

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Fonseca governo

Bananal Grande

Botocudo Alferes Comandante da

6ª divisão

Agricultura, caça e pesca

Sendo ambulantes

Não se pode contar

12 de março de 1823, pelo

Director Geral pela

authoridade do governo

45

Tem se feito plantações annuaes naquelle sitio mui freqüentado dos índios da margem meridional no seu tranzito de Cuyethé a Petersdorfi mas não permanecem alli, e não convem para não haver quem os discipline.

Lorena Botocudo Cabo Geral do Mundifer

Agricultura, caça e pesca.

Sendo ambulantes

Não se pode contar

12 de março de 1823, pelo

Director Geral

Antonio Dias AbaixoPelos rios 9 dias

Localidades Naçoens Seu Sub-Director

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Cuyethe

Barra do

Botocudos

Botocudos

Alferes Comandantes da 6ª divisão

Sargento

Agricultura, caça e pesca

Agricultura, caça e

Sendo ambulantes

Não se pode

contar

Sendo

12 de março de 1823, pelo

Director Geral pela authoridade

do governo.

12 de março de

Antonio Dias

AbaixoPelos rios 8 dias

Antonio

Este aldeamento he muito freqüentado, os índios mais industriozos, mais trabalhadores, e já muitos são jornaleiros de particulares, e outros arranca e vedem poalha. A conducta ativa, firme e prudente do alferes Comandante muito contribue para este como pra os mais Aldeamentos suffragandos da 6ª Divizão como são os abaixo designados de Barra do Cuyethé,

81

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Cuyethe Joaquim Joze do Amaral

pesca. ambulantesNão se pode

contar

1823, pelo Director Geral

pela authoridade do governo.

Dias AbaixoPelos rios 7 dias

Lorena, Laranjeiras e D. Manuel, todos comandados por Sargentos, e Cabos intelligentes, e que falo bem a língu dos Índios, meio essencial este de os entender, e de fazer obdecer por via da razão qual naturalmente se sujeitão.

Ao norte do Rio Doce

Laranjeiras vizinho a barra do Sassuhy

Grande

Naknenuks Hum Sargento da 6ª Divizão

Nada Incógnito Maio de 1825 pelo Director

Geral

Antonio Dias AbaixoPelos rios 6 dias e meio

Localidades Naçoens Seu Sub-Director

Em que se ocupam

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Quartel D. Manoel

Naknenuks O Comandante da Guarda

Nada excepto ajudarem aos sold.

na factura das rossas

Incógnito Em 1823 pelo Director Geral

Antonio Dias AbaixoPelos rios 4 dias

Rio Santo Antonio

Naknenuks

Naknenuks Alferes Comandante da 1ª Divizão

Exercitão-se ao trabalho com os

soldados

Ignoro 1823 pelo Director Geral

38Foi habitado em 1826 2 1827 por muitos índios do Norte bons e pacíficos. Os Botocudos do Sul alli passarão debaixo de pretexto de amizade, mas com o fim de lhes furtar as mulheres o que fizerão, sem combate. Os Naknenuks disgostozos se ritirarão para o Centro à exceção de poucos , mas, que voltarão

82

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em breve.

Ribeirão do Felix na

Freguezia de Passanha

Malalis O Comandante da 3ª Divizão

Agricultura Ignoro Ignoro 74São Chistianizados, cultivadores e dão soldados ás 5ª e 7ª Divisões não receberão que me conste soccorro algum do governo.

Minas Nova Alto dos Bois

Macones Antonio Gomes Leal

Agricultura Não sei 78Foram numerozos, mas as emigraçoens a Beira-mar, a Guerra q os Botocudos lhes fazião, as Bexigas, o Sarampo os tem reduzido ao pequeno numero em que os achei em 1821 quando inspectei. Nunca receberão soccorro outro do que do seu bem fazejo e pobre Director.

Localidades Naçoens Seu Sub-Director

Em que se ocupam

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Quando e por quem aldeados

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Notas

Giquitinhonhas Naknenuks e Malalis

Vigário José Pereira Lidoro

Agricultura e Navegação

Domiciliados

1631

Alli se acharão quando se fundou

a colônia da 7ª Divisão em 1810. Menos os Malalis

que foram mudados de

Tocayos para a Aldea dos Prates.

De 134 a 150 léguas

Depois que estes Índios, divididos em 7 Aldeas, que se vão augmentando progressivamente receberão hum Director iluminado e humano mancomonado com o actual Alferes Comandante da 7ª divizão que reúne os seus esforços aos daquelles, os indios trabalhão e comem, e recebem hua educação civil, e religioza proporcionada as faculdades intelectuaes que tem.

83

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5ª Divisão Aldeamento

Novo do Ramalhete

Naknenuks O Comandante da 5ª Divisão

Industriam-se nestes princípios na agricultura

Varia de 200 a 300

Em 1826 e 27 pelo Director

Geral

70 com pouca

diferenç.

Quartel Geral Entre Barras

Naknenuks O Comandante da 5ª Divisão

Industriam-se nestes princípios na agricultura

Varia de 300 p 400 e mais

Em 1826 e 27 pelo Director

Geral

80

Tem apparecido ao ano de 1826, e no curso de 1827, hum numero considerável de índios Naknenuks chamados por vários interpretes que alli mandei para os pacificar, e fizerão avultada despeza ao Governo por fim o principal interprete hum sargento, e Brasileiro, desertou com elles para o Matto, havendo, por authoridade sua mandado degolar pelos Indios muitas cabeças de Gado de toda a espécie em 11 ou 15 fazendas de Colonos. Ocupo-me de remediar a esta não esperada defcção: a qual acho tão extraordinária que sem ouvir primeiro aquelle Sargento não posso inteiramente acreditar.

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Na tabela acima, podemos observar onde se localizavam os principais

aldeamentos quando e por quem foram fundados, quem os comandavam na época

e comprovar estatisticamente, que os aldeamentos conseguiram arrebanhar um

número significativo de indivíduos.

Entretanto, as atividades do francês junto ao povo Botocudo chegam ao fim

pela ação de exploradores inimigos de Marlière, que se viam contrariados em seus

interesses, à medida que o francês buscava pacificar a relação entre indígena e

colonizador. Guido Marlière considerava como seus inimigos aqueles que tinham

interesse em assaltar as terras e as culturas dos indígenas, roubarem as suas

mulheres e os seus filhos, ou seja, os covardes assassinos dos silvícolas.

Após um longo trabalho que consumiu mais de 20 anos de sua vida, Marlière

almejava um título de nobreza. Incessantes pedidos foram feitos por parte dele, mas

sem nenhum sucesso, descontente ele abandona o trabalho de catequese em 1829.

Conseguem seus inimigos, tirar Marlière para sempre da Direção Geral dos Índios e

do Comando das Divisões do Rio Doce, fato com conseqüências extremas para a

comunidade Botocuda, na medida em que a partir daí, inicia-se a fase mais difícil

para os nativos: tirando Marlière de cena fica mais fácil a destruição dos Botocudos.

Pois, os índios, após viverem nos aldeamentos não sabiam mais viver no mato,

eram dependentes do “civilizador”. De feras temidas passaram á presa fácil para os

exploradores e o governo, que por sua vez, tira de suas costas a responsabilidade

da guerra e entrega aos colonos as terras dos índios.

Fato que comprova a difícil situação dos Botocudos nesse período é que em

1833, pouco após a retirada de Marlière, já não havia um só aldeamento nas

margens do Rio Doce. E seja como for, Marlière, que se julgava lutar em defesa dos

índios, acabou por deixá-los como alvos fáceis aos exploradores.

Após a saída de Marlière os aldeamentos entram em franco declínio, e a

Coroa passa a distribuir lotes de terras pertencentes à área dos indígenas como

gratificação a serviços prestados por antigos soldados, chegando estes às margens

do rio Manhuaçu e seu afluente José Pedro118 onde hoje existem algumas cidades,

como Manhuaçu, Ipanema, Pocrane, entre outras.

Justificavam o direito de entrar e demarcar as terras da seguinte forma:

118 Os Rios Manhuaçu e José Pedro são respectivamente afluente e subafluente do Rio Doce.

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“(...) Dizemos nos abaixo assignado que somos senhores e possuidores de uma terras de culturas nas vertentes do Rio Manhuassú adquiridas com permição dos comandantes dos Quartéis de Divizóis como era de direito, por serem as autoridades em combidos de diziguinar terras aos entrantes, afim de evitar duvidas entre elles e manterem a paz e tranqüilidade; o que nos foi concidido na qualidade de soldados das Divizóis, que ajudemos abrir a primeira e única estrada da capitania, que avia neste tempo, assim como à abertura do Aldiamento do Manhuassú, em cujos serviços estive eu e outros por lago tempo sem que persebesse lucro algum além das concisções de apussiarmos terrenos em recompensa de meos serviços: foi nesta dacta dispensado e authorizado pelos os mesmos governantes apor as minhas posses com condição de respeitar as posses de outros nas mesmas condições, que foram dispençados da quelles serviços primeiro que eu(...).”119

Uma das coisas que nos chama atenção no documento são as justificativas e

obrigações para a posse da terra.

Os nativos não mais reagiam, foram deixados à parte como se nunca

tivessem sido donos destas terras. A cada entrada feita pelos posseiros, mais os

nativos se distanciavam deles fugindo para locais mais ermos. Não havia mais o

espírito de luta para defender a posse de suas terras, lhes restando apenas à fuga.

Os que ficavam eram deixados à margem da sociedade, mendigando e sendo

explorado pelos novos proprietários.

Os terrenos antes pertencentes aos nativos agora eram divididos entre os

exploradores, que muitas vezes vinham fixar residência nas novas terras, nos vales

destes rios impulsionando a colonização rio acima e assim expulsado os antigos

donos.

O nascer do novo Estado nacional na América120, o Brasil, não significava que

a questão indígena tinha sido resolvida. Surgem novas polêmicas em torno do índio,

da sua terra e a da velha necessidade de civilizá-lo e cristianiza-lo. Surgem

propostas dentre as quais destacam-se os “apontamentos para a civilização dos

índios Bravos do Império do Brasil”, de José Bonifácio de Andrada e Silva.121 Nesse

projeto o autor, após evidenciar de forma contundente como se davam as relações

119 Autos da causa Souza & Souza contra o Estado de Minas Gerais, fls 162. 120 A 7 de setembro de 1822 nascia “oficialmente” o Império do Brasil. Cujo o Príncipe Herdeiro da Coroa Portuguesa e intitulado D.Pedro I Imperador e Defensor Perpetuo do Brasil 121 SILVA, José Bonifácio de Andrada. Projetos para o Brasil. São Paulo: ed. Companhia das Letras: Publifolha, 2000. pp.47 a 73

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entre brancos e índios no início do império, sendo estas de grande dificuldade, pois

colocava frente a frente interesses e costumes diferentes, nascidos da natureza em

que se achavam os índios e do desejo de domesticá-los; do fato de não terem os

índios, para o colonizador, freio algum religioso e civil que pudesse dirigir suas

paixões e, do estado “bravio” desse índio. José Bonifácio expôs sua proposta de

como “civilizar” os índios do Brasil à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa.

Em 42 itens detalha os meios para se levar adiante a “civilização dos índios”:

passando pela brandura no seu trato, até a criação de um Tribunal Provincial

encarregado de governar as missões e aldeias dos índios da província.

Apresentava-se assim um programa de integração dos Botocudos à sociedade

nacional:

“(...) Vou tratar do modo de catequizar, e aldear os índios bravos do Brasil: matéria esta de suma importância, mas ao mesmo tempo de grandes dificuldades na sua execução. Nascem estas: Primeiro, da natureza e estado em que se acham estes índios. Segundo, do modo com que sucessivamente portugueses e brasileiros os temos tratado, e continuamos a tratar, ainda quando desejamos domesticá-los e fazê-los felizes(...)”122

José Bonifácio acreditava que o modo de catequizar e aldear os índios

“bravos” do Brasil, seria através da mestiçagem, que possibilitaria o surgimento de

uma nova raça, e a criação de uma cultura comum, na qual prevaleceria o elemento

branco e civilizador. Para isso nos propõe no 5º item dos seus apontamentos:

“(...) Favorecer por todos os meios possíveis os matrimônios entre índios, brancos e mulatos, que então se deverão estabelecer nas aldeias, havendo cuidado porém de evitar, pelo seu trato e maus costumes, não arruinarem os mesmos índios; proibindo-se que não possam por ora comprar suas terras de lavoura sem consentimento do pároco e maioral da aldeia, e determinando-se que nos postos civis e militares da aldeia haja pelo menos igualdade entre ambas as raças(...).”123(grifos nossos).

José Bonifácio ressalta um dos meios que se deve lançar mão para a pronta e

sucessiva “civilização” dos índios, que é através do incentivo do matrimonio entre

122 SILVA, José Bonifácio de Andrada. 2000. Op. Cit.123 Idem.

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índios, brancos e mulatos. Além disso, destaca a necessidade de proteger a

propriedade do indígena, ações estas, resultantes de suas experiências.

Entre as propostas de José Bonifácio e a pratica de Marlière analisamos

alguns pontos em comum que ilustram as diretrizes políticas do Império como a

necessidade de “Aldear” “Civilizar” e “Catequizar” como o propósito de facilitar a

integração do indígena “bravio” ao Estado Nacional. As semelhanças entre os

apontamentos propostos a Assembléia Constituinte de 1823 por José Bonifácio e o

aldeamento posto em pratica por Marlière pode caracterizar de forma clara o

pensamento do homem civilizado em relação a sua superioridade cultural e espiritual

sobre o nativo da terra. Onde “civilizar e catequizar” era alem de tudo um processo

de aculturação pelo qual o indígena deveria passar para se tornar um “dente” nas

engrenagens que moveriam o Novo Estado – Império Brasileiro - que estava

nascendo.

Durante a década de vinte observamos nos decretos a permanência da

“Catequese” e do “Aldeamento” na legitimação da política indigenista do I Império do

Brasil. Era pratica recorrente do Estado a publicação de decretos e portarias que

tratavam da Catequese e do Aldeamento dos Indígenas do Sertão Mineiro. Em 28

de Janeiro de 1824, o Império do Brasil “da regulamento interino para o aldeamento

e civilização dos índios do Rio Doce, e ordena a concessão de sesmarias aos

indivíduos civilizados que as pedirem.” Fica claro que é interesse do Império misturar

Colonos e Indígenas pois ao seu entender essa mesclagem de cultura facilitaria a

integração do indígena na massa populacional do Império. Para efetivar esses

aldeamentos no Vale do Rio Doce o Império decretava em 28 de janeiro de 1824 um

regulamento que se refere a Ordem citada, o qual veremos os tópicos principais:

“(...) 1º Far-se-hão no Rio Doce três Aldeias de Índios Botocudos, nos logares que escolher o Director dos mesmos Índios (...)”

“2º Haverá um Director para cuidar na civilização e aldeamento dos Índios do Rio Doce, dirigir seus trabalhos, zelar seus interesses e applical-os à Cultura das terras e a navegação do Rio Doce (...)”

“3º Haverá um Secretário encarregado de toda a escripturação e expediente da Directoria (...)”

“4º Haverá um Cirurgião para o curativo dos enfermos (...)”

“5º Haverá um Patrão Mor para a Barra do Rio Doce (...)”

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“6º Haverá no Rio Doce uma Guarda de 80 homens á disposição do Director dos Índios (...)”

“10º Aos índios que se forem reunindo, e aplicando ao serviço das roças e navegação do Rio Doce, dar-se-hão ferramentas, sustento e vestuário de pano de algodão no primeiro ano, ou enquanto elles não obtiverem estes gêneros do seu próprio trabalho (...)”

“12º O Director dará mensalmente parte ao Governo da Província de todas as suas operações, do resultado de seus trabalhos (...)”124

Por esse decreto, o Estado normatiza os aldeamentos do Rio Doce, através

dos quais os índios deveriam acostumar-se aos serviços das roças e navegação,

amparados pelo Estado, até que pudessem obter o sustento pelo seu próprio

trabalho.

Durante os próximos anos da década de vinte o Governo Imperial segue

editando Decretos e portarias para que se cumpram a Catequese e o Aldeamento,

aqui incluído a dos Índios do Rio Doce.

Cabe analisar a lei de outubro de 1831, que constitui o marco cronológico final

da nossa pesquisa que oficialmente revoga as Cartas Régias de 13 de maio de 1808

e 02 de dezembro de 1808 que mandavam fazer Guerra e por em servidão os Índios

de Minas Gerais. Assim dispunha a lei de 31 de outubro de 1831:

“(...) A Regência, em nome do Imperador, o Senhor D.Pedro II. Faz saber a todos os súditos do Império, que a Assembléia Geral Legislativa Decretou e Ele sancionou a seguinte lei:

(...) Art.2º Ficam também revogadas as Cartas Régias de 13/05 e de 02/12/1808, na parte que autorizam, na Província de Minas Gerais, a mesma Guerra [Guerra decretada aos Índios Botocudos de Minas Gerais] e servidão dos índios prisioneiros.

(...) Art.4º Serão considerados como órfãos, e entregues aos respectivos juízes [de Órfãos] para lhe aplicarem as providências da Ordenação. (...)”125

(grifo nosso)

Assim oficialmente, a Regência coloca fim ao período marcado pelas Cartas

Régias, nas quais em um primeiro momento em 1808, D. João decreta Guerra de

Extermínio ao Índio Botocudo do Sertão Mineiro, D. Pedro I dá continuidade à 124 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1996 Op. Cit. p.p. 111,112,113125 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1996 Op. Cit. p. 137

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política ofensiva de seu pai, que só termina com a revogação das Cartas Régias de

13/05 e de 02/12/1808, na parte que autorizava tal Guerra.

Os primeiros quatro anos da presença do Príncipe Regente no Brasil foram

marcados por intensa produção legal sobre a guerra e escravização dos índios.

Seguiu-se um período em que se acumularam criticas contra o método de guerra

ofensiva, o que contribuiu para que se firmasse uma outra abordagem da questão

indígena.

Nos anos que se seguiram a Independência a idéia de extermínio cedeu lugar

ao principio da atração e redução dos índios126. Assim, mudou-se o enfoque dado

em 1808, que premiava o extermínio e destruição dos indígenas e autorizava a

escravidão, entre outras violências. A nova orientação foi se estabelecendo

gradativamente, até chegar, em 1831 na revogação das cartas Régias de maio e

dezembro de 1808.

Os resultados estratégicos obtidos com a guerra ofensiva foram mínimos e

circunstanciais, impondo mudanças táticas significativas. Ao fim das hostilidades,

seguiu-se o método “pacífico”, que da mesma forma seria lucrativo aos portugueses,

pois moldar o índio poderia resultar em conquistas de mais terras férteis. Esse

método “pacífico” deve ser entendido no sentido de “aterrar os índios”, ou seja, fazer

com que eles deixassem à vida nômade de caçadores e coletores e fixassem em

aldeamentos. O índio passou a fazer parte da vila, inclusive freqüentando os

quartéis a procura de alimentos e ferro. Mas, na medida em que o interesse oficial

pela região diminuía, as forças militares foram sucateadas e, as ações dos índios

passaram a ser vistas como problema de ordem pública, atribuindo-lhes importância

secundária entre as preocupações do governo. Os índios aculturados foram

transformados em indigentes, vitimas da fome, das epidemias e do alcoolismo

crônico.

O confronto entre dois caminhos táticos acompanhou o processo de

ocupação da região. Podem-se distinguir duas fases diferentes: uma em que

prevaleceu a alternativa do extermínio, e a outra em que prevaleceu a idéia de

126 A civilização dos índios bravios foi objeto de reflexão de José Bonifácio de Andrada e Silva cujas idéias se fundamentaram no direito que o Estado tinha de molda-los àquilo que conviesse a nós que eles fossem. Ele recomendava bandeiras acompanhadas de padres para “persuadir” os índios a morarem em aldeamentos fixos.

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aldear o índio. Táticas diferentes para se chegar ao mesmo fim, o de “civilizar” o

atroz gentil do botoque.

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CAPÍTULO IV

O olhar dos viajantes europeus sobre o povo Botocudo, na construção do Estado Brasileiro.

“Que piores inimigos tem o Império do que os súditos dele, que matam ou mandam matar os índios pacíficos sem manifesta ou prévia provocação? Que lhes usurpam a terra? Que os excitam à rebelião e à desconfiança espalhando entre eles insinuações de que os diretores os querem reunir para os matar? (...) Que bons cidadãos são os que lhes dão camisas de bexiguentos e dos que morreram de sarampo, para os exterminar? Que os convidam para comer, e lhes dão tiros? (...) Que esforçam as suas mulheres e filhas? Que os fazem trabalhar e lhes pagam com pancadas?”127

Durante os primeiros séculos da dominação lusitana, o território da América

Portuguesa foi proibido aos estrangeiros. As possíveis potencialidades econômicas

eram consideradas segredo de Estado. Raras foram as expedições científicas

organizadas sob auspícios da Coroa.

Somente no início do século XIX, a partir de 1808, com a chegada da Família

Real Portuguesa, a colônia conhece um período de mudanças em sua vida política,

econômica, social e geográfica. Algumas medidas tomadas pela coroa portuguesa

vão transformar os hábitos coloniais. Dentre essas medidas destacamos a abertura

dos portos às Nações Amigas, que veio possibilitar a emissão de permissões, da

parte da coroa portuguesa, para que fossem realizadas incursões estrangeiras no

território brasileiro. A referida permissão possibilitou a vinda de inúmeros viajantes

europeus, que passam a organizar expedições, em sua maioria cientificas, para

desvendar o sertão, até então, desconhecido dos europeus. Para Sérgio Buarque de

Holanda, este momento pode ser visto como um “novo descobrimento do Brasil”:

“(...) A não ser no Quinhentos e, até certo ponto, no Seiscentos, nunca o nosso país parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos simples viajantes, como naqueles anos que imediatamente se seguem à instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro e à abertura dos portos ao comércio internacional. O fato acha em si

127 Naud, Leda Maria, (org.), Informações Relativas à Civilização dos Índios,Ordenadas por Sua Magestade, o Imperador, no Ano de 1826. RJ: Revista de Informação Legislativa, nº 29, 1971, p.315.

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mesmo sua explicação. A contar de 1808 ficam enfim suspensas as barreiras, que ainda pouco antes, motivaram o célebre episódio daquela ordem régia, mandando atalhar a entrada em terras da Coroa de Portugal de certo Barão de Humboldt, natural de Berlim’, por parecer suspeita a sua expedição e sumamente prejudicial aos interesses políticos do Reino. De modo que a curiosidade tão longamente sofreada pode agora expandir-se sem estorvo, e não poucas vezes, com o solícito amparo das autoridades(...)”.128

Expedições como a realizada pelo português Alexandre Rodrigues Ferreira,129

ainda no século XVIII, logo, bem antes da abertura dos portos, inaugura uma

tradição científica que irá prosperar no século XIX, com a vinda de inúmeros

naturalistas e viajantes de outros países (alemães, russos, franceses, suíços,

americanos...), os quais são responsáveis pela produção de ampla documentação

relativa ao sertão mineiro.

A partir da popularização das gravuras e dos relatos extravagantes das

viagens realizadas pelo interior do Brasil, no século XIX, multiplicam-se as imagens

do sertão e dos “selvagens”, que iriam se contrapor à concepção de exaltação de

um índio genericamente Tupi, criado em parte pelo indianismo “tupiniquim”.130

Assim, expedições científicas do início do século XIX, deram origem a

inúmeros relatos de viagens, que publicados na Europa, despertaram grande

interesse no público leitor do Velho Mundo, ávidos por notícias sobre as

“excentricidades” da Terra Brasil. O interesse em informar sobre a realidade da vida

do indígena ao público europeu tinha certo limite. Muitas vezes, o imaginário era

importante para despertar o interesse dos leitores. As práticas da poligamia, da

antropofagia ou das guerras eram assuntos retratados correntemente nos textos.

De nossa parte, os relatos se tornam importantes na medida em que os

viajantes passam a reproduzir, em seus livros, um importante quadro sociocultural e

128 HOLANDA, Sergio Buarque. A herança colonial, sua desagregação. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, 1° volume. São Paulo: Difel, 1975. p.12129 Data do fim do século XVIII a primeira, única e valiosíssima expedição de um naturalista português ao Brasil. Trata-se de Alexandre Rodrigues Ferreira, que inaugura uma tradição cientifica que florescerá no século XIX, com a vinda de naturalistas e viajantes de outros países. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: 2ª edição, 2006. p.15130 Valendo pela ressalva de Manuela Carneiro para a existência de dois índios totalmente diferentes no século XIX: de um lado, o bom índio Tupi Guarani, que a autora classifica convenientemente como um índio morto, que seria símbolo da nacionalidade, e, de outro lado, um índio vivo que seria objeto de uma ciência principiante. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: 2ª edição, 2006.

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geográfico dos lugares, até então não explorados, e das populações, que

permaneciam ainda não contatadas pelo “civilizador” europeu.

Ao longo do século XIX, os relatos de viagem em questão tornam-se um rico

material no programa de construção da identidade nacional brasileira. Os livros de

viagens das primeiras décadas do XIX detalham os hábitos e os costumes das

sociedades indígenas, e registram igualmente, a ação do Estado em sua política

direcionada aos nativos brasileiros.

Entre os vários viajantes europeus que passaram pelo Brasil no início do

século XIX, damos destaque, na nossa pesquisa, aos que visitaram o Sertão do Rio

Doce, e que entraram em contato com o botocudo. São eles, o príncipe renano

Maximiliano, Alexander Philipp zu Wied-Neuwied,131 que esteve no Brasil no início do

século XIX, entre os anos de 1815 a 1817, usando o pseudônimo de Max von

Braunsberg. O príncipe alemão, estudou a flora, a fauna e as populações indígenas,

fazendo várias anotações que, posteriormente, foram transpostas para o livro

Viagem ao Brasil. Naturalista, etnólogo e explorador, o citado livro, foi publicado em

1820, com detalhadas descrições sobre tudo o que pôde observar o viajante. O

viajante em questão, contou com o apoio de auxiliares alemães, com experiência em

coleta de animais. Maximiliano coletou, entre outros objetos etnológicos, o

vocabulário, as plantas, os animais e os utensílios das tribos indígenas que visitou,

como a dos botocudos do sertão mineiro.

Outro viajante europeu foi o Naturalista132 e botânico francês August de Saint-

Hilaire,133 que viajou durante o inicio do século XIX pelo interior do Brasil. Saint-

Hilaire, veio para o Brasil em 1816 acompanhando a missão extraordinária do duque

de Luxemburgo, que tinha por objetivo resolver o conflito que opunha Portugal e

França quanto à posse da Guiana. Sant-Hilaire obteve e registrou informações sobre

a flora, a fauna e a sociedade por onde passou. Após deixar o Brasil, em 1820, o

131 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil: nos anos de 1815-1817. São Paulo: ed. Itatiaia e ed. Da Universidade de São Paulo, 1989. 132 O termo naturalista é empregado para se referir a um indivíduo com interesse ou talento em história natural ou ciência natural, também conhecida como naturalismo ou ciências da natureza, entre as quais a botânica, a geografia, a geologia, a meteorologia, a mineralogia e a zoologia.133 SANT-HILAIRE, August de. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo 1822. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Edusp, 1974.SANT-HILAIRE, August de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Edusp, 1974.SANT-HILAIRE, August de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Edusp, 1975.

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francês passa a publicar importantes livros sobre os costumes e as paisagens

brasileiras do século XIX, dos quais damos destaque aos títulos: Viagem pelas

províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, publicado em 1830; Viagem ao Espírito

Santo e Rio Doce, publicado em Paris em 1833, e, Segunda viagem ao Rio de

Janeiro, a Minas Gerais e a São Paulo (1822), publicado 1887.

Outro viajante, por nós privilegiado, foi Carl Friedrich Philipp von Martius,134

médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães,

que estudaram o Brasil. Seus estudos sobre botânica se transformaram em um

grande legado, cultuado até os dias atuais. Contudo, sua produção não se restringiu

à botânica. MARTIUS chegou ao Brasil fazendo parte da comitiva da grã-duquesa

austríaca, Dona Leopoldina, que viajava para o Brasil para casar-se com Dom Pedro

I. Nessa mesma comitiva veio o cientista Johan Baptiste Von Spix, naturalista

alemão que, juntamente com Martius, realizaram expedição pelo país entre de 1817

a 1820. Juntos, MARTIUS e SPIX, receberam da Academia de Ciências da Baviera,

o encargo de pesquisar as províncias mais importantes do Brasil, a fim de

contribuírem com os estudos sobre botânica, zoologia e mineralogia. Com o

falecimento de SPIX, MARTIUS encarregou-se de publicar Viagem ao Brasil: 1817-

1820, livro que foi publicado na Europa no ano de 1835 com o título original Reise in

Brasilien.

Por ultimo, destacamos o renomado pintor e desenhista francês Jean Baptiste

Debret.135 Debret integrou a Missão Artística Francesa de 1816, e foi um dos

responsáveis pela fundação, no Rio de Janeiro, da academia de Artes e Ofícios,

mais tarde, Academia Imperial de Belas Artes. Debret permaneceu no Brasil entre

1816 e 1831. De volta à França, em 1831, o pintor francês publicou, em 1834, o livro

intitulado Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, documentando aspectos da

natureza, do homem e da sociedade brasileira no início do século XIX.

Os cinco viajantes aqui citados foram muito lidos na Europa e no Brasil, sendo

suas obras incorporadas pela produção literária e intelectual brasileira, desde o

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro até as publicações e os estudos mais

134 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. Viagem ao Brasil: 1817-1820. São Paulo, Melhoramentos, 1938. 135 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil. Tomo I e II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.

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recentes. No nosso caso particular, são eles os principais responsáveis pelas

primeiras descrições sobre o sertão mineiro e sua população nativa.

Verifica-se a importância dessas descrições, na construção posterior das

representações das próprias raízes do que definimos como brasileiros;

provavelmente, uma das noções mais multifacetadas e intrigantes das ciências

humanas.

As imagens constituem fonte de produção de significado para os próprios

sujeitos, por eles originadas e constituídas, por meio de um processo de

subjetivação, que hoje faz parte da literatura atual. Sendo importantes fontes

documentais, que possibilitam o aprofundamento do estudo sobre esses sujeitos

sociais, o índio Botocudo, teve o seu lugar, na construção da identidade do nascente

Estado Brasileiro.136 Nessa perspectiva, as identidades também podem ser formadas

a partir de instituições dominantes, como por exemplo, a imagem depreciativa

alimentada pelo Estado em relação ao Botocudo do Sertão Mineiro.

Assim, são produzidos pelos viajantes europeus relatos que, no século XIX,

de certa forma, foram responsáveis pela formação de uma imagem de Brasil, e de

um imaginário nacional, no âmbito da construção do Estado emancipado. A partir do

momento que consideramos o lugar desses relatos de viagens nas origens do

próprio pensamento do povo em formação, estas descrições vêm, em parte, ratificar,

as diretrizes que nortearão a política do império, como é o caso das diretrizes

políticas para os indígenas do século XIX, sobre a qual nos debruçamos.

Interessam-nos ainda destacar que, os livros de viagem (com seus álbuns de

retratos pitorescos da paisagem e do nativo da região do sertão e do Novo Mundo),

foram consumidos avidamente pelo público leitor, do início do século XIX, como

bens culturais. Segundo Ana Luisa Fayet137, assim sendo, o que poderia ser

entendido como uma experiência particular e privada, deixa imediatamente de sê-lo,

ao ingressar no mercado simbólico de “bens culturais”. Essa relação entre o autor e

o leitor reafirma o caráter público da cultura, que longe de nos oferecer a verdade da

136 FAY, Ana Luisa. Imagens Etnográficas de Viajantes Alemães no Brasil do Século XIX. Disponível na internet < www.antropologiavisual.cl/fayet_imprimir.htm> acessado em 20 de abril 2007. 137 FAYET Ana Luisa Profesora, Doctora. Departamento de Ciências Sociais – Universidade Federal do Paraná. Imagens Etnográficas De Viajantes Alemães No Brasil Do Século XIX. Disponível em www.antropologiavisual.fayet.d/com.

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representação, oferece as idéias que eram compartilhadas por determinado grupo

acerca da natureza, do homem e da civilização do Novo Mundo.

Portanto, não se pretende buscar, ao se analisar essas imagens, o que era o

verdadeiro Brasil no início do século XIX, mas sim, como os viajantes europeus viam

o Brasil no século XIX.

Dessa maneira, os relatos de viagem do século XIX, retratavam o modo de

vida dos índios Botocudos do Sertão do Rio Doce em seu habitat natural. Sua

organização familiar, a construção de suas moradias, a forma como caçavam, cenas

guerreiras, suas danças e cerimônias rituais, além de instrumentos guerreiros e

artefatos domésticos, foram retratados buscando representar o que observaram e o

que julgaram significativo nos hábitos dos índios. Vejamos as palavras de Freireyss

ao retratar um ritual de dança dos Puris:

(...) Ao luar perto da fazenda Guidoval. Os homens formam a primeira fila e as mulheres, a segunda. As crianças, agarradas às coxas dos mais velhos, dão os passos furtados da dança para frente. Um dançador dá, como saudação, uma umbigada a cada um de nós observadores. (...)138

Ilustração 13: Dança dos Puris. Freireyss, G. W. Viagem ao interior do Brasil139

138 FREIREYSS, G.W. 1975. Op. Cit. p.133139 Idem. p.133

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Cada naturalista dava um sentido próprio às suas representações. Segundo

Ana Luisa Fayet, cada viajante utilizou-se de métodos diferenciados para a

construção de suas imagens etnográficas. Os métodos utilizados procuram dar

conta da dimensão temporal presente na narrativa, e que deveria ser traduzida em

diferentes imagens pela gravura.

Como inúmeros outros exploradores europeus, os viajantes examinados

passaram a visitar cidades e vilas, fazendas e áreas rurais, mas também, chegavam

à lugares ainda sem ocupação: matas, até então intocadas pela “civilização”, rios de

curso não delimitado, grandes extensões ainda não mapeadas. Uma dessas regiões

foi o Vale do Rio Doce, região, que no início do século XIX, se torna alvo da cobiça

dos fazendeiros e exploradores das áreas circunvizinhas. Vale esse que se tornara

um enigma natural e etnográfico para os vários viajantes, que nas tentativas de

decifrá-lo, percorreram seus caminhos “infestados” de Botocudos “selvagens”. Da

mesma forma, os viajantes presenciaram a tomada de importância das terras do

sertão, e são testemunhos do “processo civilizador” em curso no cruzar dos séculos

XVIII e XIX.

Ao nosso entender, existiu entre os viajantes, aqueles que contribuíram com o

discurso do Estado, por compartilhar da mesma opinião “oficial”; mas, por outro

lado, existe um grupo de viajantes que se opõe ao discurso oficial, mas que

igualmente têm suas imagens sobre os índios Botocudos usadas pelo discurso

violento do Estado.

Foi nas primeiras décadas do século XIX que se intensificou a entrada do

colonizador no Sertão do Rio Doce, mais precisamente, nas Capitanias de Minas

Gerais e Espírito Santo, quando então, temos notícias sobre o contato entre

“civilizadores" e Botocudos. Por essa época, os Botocudos viviam em grande

número de indivíduos espalhados pelas matas da região, podendo ser encontrado,

principalmente, nas margens dos rios Doce, do Mucury, do Jequitinhonha, do Pardo,

do Pomba, do Manhuaçu e dos vários afluentes espalhados pelo sertão.

O significado do termo “Sertão” para os viajantes e para o Estado português,

esta expresso na literatura de viagem do inicio do século XIX, na época o termo

sertão foi geralmente empregado para denominar uma região de paisagens

considerada bravia, desconhecida, inabitada, que estaria à espera do desbravador.

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Para os viajantes, os sertões brasileiros representavam uma incógnita, uma vasta

área no interior do Brasil, onde a natureza continuava intocada, uma enorme fonte

de pesquisas naturais, que fascinavam os naturalistas de todo o Velho Mundo.

Vale aqui observarmos as anotações de SPIX e MARTIUS a respeito dos

comentários da época sobre o sertão:

“(...) como, porém, nos chegou a notícia, por um viajante mineiro, de que o Príncipe Max Von Neuwied havia empreendido, com heróico sacrifício, a tarefa de investigar esses interessantes antropófagos, julgamos inútil nosso esforço nesse sentido, e volvemos, a 4 de julho, para o sertão, que, segundo informação dessa gente do lugar, nos aguardava como terra maravilhosa, ainda que igualmente cheia de perigos.(...)”140

Para SPIX e MARTIUS o Sertão brasileiro era uma área que contrastava com

as outras partes conhecidas do Brasil, sobretudo, no que diz respeito aos habitantes:

“(...) O acolhimento, por toda parte nesse sertão, não era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas; porém quão diferentes nos parecem os habitantes destas regiões solitárias, em conformidade com os sociáveis e cultos cidadão de Vila Rica ... O sertanejo é criatura da natureza, sem instrução, sem exigências, de costumes rudes.(...)”141

Vários são os autores que analisam o conceito de sertão, José Vieira Couto,

conceitua sertão como sendo, “as terras que ficam pelo seu interior, desviadas das

povoações de Minas, e onde não existe mineração”. 142 Segundo Haruf Salmen

Espindola143, no inicio do século XIX, o Sertão do Rio Doce permanecia um lugar

estranho, habitado por índios, aventureiros em busca de ouro e pedras preciosas,

preadores de índios, caçadores e coletores, posseiros pobres, mestiços e negros

livres, e de quilombolas.

O Sertão Mineiro nas primeiras décadas do século XIX foi representado como

um enorme vazio a ser preenchido, segundo os interesses e valores do mundo

civilizado. Para MARTIUS, “(...) sertão, como denominam os mineiros, é a vastidão 140 SPIX, MARTIUS. 1972. Op. Cit. p.62141 SPIX, MARTIUS. 1972. Op. Cit. p.66142 Cf. COUTO, José Vieira. Memória sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais. RAPM, Belo Horizonte, v.10, 1904. p.p. 60-166, 111. 143 ESPINDOLA. Haruf Salmen. 2005. Op. Cit. p.75

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deserta, na linguagem usual (...)”. Tratava-se também de um desafio para a

civilização, com seus animais e plantas fantásticos, com seus índios considerados

bárbaros e selvagens, lugar de caminhos inóspitos e dos grotões sombrios. 144

Entrar no sertão era enveredar-se por uma imensa região inóspita ao redor

das áreas de mineração da capitania de Minas:

“(...) Segundo as referências que até aqui nos haviam feito do sertão, para onde nos íamos dirigir agora, precisávamos recorrer às vendas do arraial, a fim de nos abastecer do necessário para uma longa viagem por zona quase despovoada.(...)”145 (grifo nosso)

Saint-Hilaire foi um dos primeiros europeus a descrever o sertão do Rio Doce,

uma região inóspita ao homem, com a presença de animais ferozes, mosquitos

insuportáveis, febres capazes de levar à morte e a presença constante do selvagem

Botocudo. Nas palavras de Saint-Hilaire, o sertão era uma ameaça aos que se

aventurassem enveredar-se pelos caminhos do Rio Doce. Segundo o viajante:

“(...) em Linhares, vi apenas o rio e inúmeras florestas que se estendem em suas margens, durante toda a vigem, nenhuma habitação se mostrou a meus olhos(...)

“(...) Essas florestas servem de refugio a grande numero de animais selvagens... Nessa época eram também asilo de tribos errantes de botocudos, dos quais os colonos só falavam com pavor (...)”

“(...) É incontestável que as terras da Província de Minas banhadas pelo Rio Doce são insalubres, como já disse; é incontestável, também, que, chegando à embocadura do rio, os estrangeiros são quase todos sempre atacados pelas febres (...)”146

Como Saint-Hilaire, outro viajante, o príncipe maximiliano, ao esquadrinhar a

paisagem do sertão do Rio Doce, registra as dificuldades do acesso e o quanto a

natureza era rude e inóspita. Mas, como parte integrante dessa natureza, inclui o

viajante, a presença do “selvagem” habitante desse sertão:

144 SPIX, MARTIUS. 1972. Op. Cit. p.65145 SPIX, MARTIUS. 1972. Op. Cit. p.61146 SAINT-HILAIRE, Auguste. 1974. Op.Cit. p.p 88-89

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“(...) Não obstante, os nomes Aimorés e Botocudos continuam a despertar nos europeus sentimentos de horror, de repulsa, em virtude da crença de serem antropófagos... Tanto em Minas Gerais como no Rio Doce vive-se em guerra contra eles; em tempos passados, eram os paulistas (habitantes da capitania de São Paulo) os seus piores inimigos. (...)”.147

Além da crença da ameaça que representava aos europeus a população

nativa do sertão brasileiro, registra o viajante que muitos aventureiros já teriam sido

surpreendidos pelas intempéries naturais do Sertão, quando grupos inteiros de

viajantes teriam sido surpreendidos pelos fenômenos naturais da região:

“(...) Consolávamos uns aos outros com a esperança de que essa catastrófica chuva não tardaria a passar; mas não poderíamos deixar de refletir que mal estaríamos se ela durasse vários dias, pois, em tais circunstâncias, os homens, e, sobretudo os animais, caem logo doentes, não suportando estes a umidade. Comitivas inteiras de viajantes têm em pouco tempo perdido a vida nessas florestas espessas e úmidas (...).”148

(grifo nosso)

Os viajantes SPIX E MARTIUS, descreveram a natureza do sertão das Gerais

comparado-a ao inferno de Dante, em seu aspecto mais sombrio. Serviu de cenário

para o relato desses viajantes a serra de São Geraldo, em Minas Gerais. Na

passagem por essas terras afirmam os viajantes:

“(...)escura como o inferno de Dante fechava-se a mata, e cada vez mais estreita e íngreme, a vereda nos levou por labirínticos meandros, a profundos abismos, por onde correm águas tumultuosas de riachos, e, ora aqui, ora ali, jazem blocos de rocha solta. Ao horror, que esta solidão agreste infundia na alma, acrescentava-se ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferozes ou de índios inimigos que a nossa imaginação figurava em pavorosos quadros, com os mais lúgubres pressentimentos”.149

147 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p. 284148 Idem. p.371 149 SPIX & MARTIUS. 1981. Opi.cit. p.220.

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Ilustração14: As jovens florestas brasileiras que encantavam e ao mesmo tempo assustavam segundo Martius.150

Autor de inúmeras pinturas e descrições de indígenas, Debret, também

registrou seu olhar sobre o sertão durante sua permanência no Brasil. Cabe aqui

lembrar que o pintor não manteve contato direto com as comunidades indígenas, o

que, no entanto, não o impediu de produzir escritos e pranchas sobre os índios

brasileiros. Ao nosso entender, ao contrário dos viajantes acima analisados por nós,

Debret, na sua idealização do sertão, preocupa-se em apresentar as florestas do

Brasil (então o Sertão) como o habitat dos primitivos habitantes, lugar onde a

150 MARTIUS. Carl.F . P von. Historia Naturalis Palmarum. 1823-53. vol.II. p.73

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natureza lhes proporcionava um clima agradável e alimentos em abundância. Ao

descrever a natureza, Debret, mistura temor e admiração, por paisagens tão

exóticas e pitorescas como as do Sertão do Brasil. Segundo seus relatos, o sertão, tinha clima agradável e abundancia de frutos saborosos. Em uma de suas anotações

afirma o francês:

“(...) É no centro das imensas florestas virgens do Brasil que o observador [europeu] deve procurar as antigas famílias de indígenas conservadas no estado primitivo, feliz de viver sob uma doce temperatura e de confundir as estações que lhe oferecem sem interrupção mil espécies de frutos saborosos. (...)”151 (grifo nosso).

Ilustração 15: Floresta Virgem no Sertão Mineiro. A gravura da Prancha 1 parte final da obra de Debret observamos a floresta impenetrável muitas vezes descrita pelos viajantes europeus.

151 DEBRET, Jean Baptista. 1975. Op. Cit. p.08

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Da mesma forma que os viajantes, O Estado português também teve o seu

interesse em emitir seu conceito de sertão. Entretanto, as referencias do pintor

francês sobre o sertão e a sua população, destoam das imagens, até então,

produzidas pelo Estado, as quais o próprio francês se encarregou de retratar.

Assim, do ponto de vista do Estado, o sertão é descrito, sobretudo, como uma

área despovoada de civilização e ameaçada por índios antropófagos. Por esses

motivos, como vimos anteriormente, na carta Régia de 13 de maio de 1808, quando

declarou veementemente a guerra ofensiva contra os Botocudos, o sertão aparece

como área a ser controlada pelo Estado, em respeito aos impulsos da civilização:

“(...) Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tèm subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo desaguam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas visinhanças e tem até forçado muitos proprietarios a abandonal-as com grave prejuizo seu e da minha Real Coroa (...)” “(...)como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações(...)”152 (grifo nosso)

A Carta Regia não deixa dúvidas: a presença dos botocudos no sertão

mineiro é considerada uma invasão, um atraso, um limite. O índio sendo

compreendido como um inimigo comum à todas as forças civilizadoras. Nessa

perspectiva, a Carta Regia tem o interesse de submeter os botocudos aos avanços

da civilização. O botocudo, que é reconhecido como o foco do problema, como uma

barreira a ser vencida, o que tendia à diferenciar os botocudos dos outros selvagens

e, à classificá-los secundariamente.

Porém, os viajantes aqui por nós analisados, não se limitam, em suas

crônicas, a registrar os aspectos da natureza do sertão, mas igualmente, se

preocupam em “discutir” os caminhos da civilização e da conquista, registrando e

refletindo, para tanto, uma posição com relação à ação do Estado em expansão.

A partir dos contatos mais amiúde com os indígenas, e principalmente com as

entradas no Sertão pelos naturalistas já citados, observa-se, nos diferentes relatos

152 Carta Regia 13 de maio 1808.

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de viagens, a necessidade de se classificar os botocudos. Grupo, que na visão dos

viajantes, não se enquadravam na conhecida generalização do habitante Tupi.

Autores como Jonathas Durço e Oiliam José153 questionam, com base nesses

relatos, algumas características atribuídas ao indígena Tupi. Segundo esses

autores, nas descrições dos viajantes, os Botocudos são geralmente apresentados

como um grupo inferior aos Tupis, isso ocorrendo, por exemplo, no que diz respeito

à organização tribal, ao uso de acessórios - como a tanga indígena – e à existência

da figura de um pajé. Essas diferenças registradas tendem, no olhar do civilizador, a

classificar os botocudos em uma posição inferior no conjunto das sociedades

conhecidas da época.

Nessa perspectiva, vale assinalar, no estudo da história do indígena no Brasil,

a importância das observações dos cientistas MARTIUS & SPIX,154 notáveis

naturalistas que, entre outros etnólogos, procuraram classificar etnograficamente os

Botocudos.

Para MARTIUS, os Botocudos eram uma ameaça a quem se aventurasse

pelos sertões:

“(...) a caminho de Bom Sucesso ou do Fanado, fomos subitamente tomados de surpresa por um bando de índios, homens e mulheres que vinham em completo silêncio pela estrada. Eram da tribo dos botocudos antropófagos. (...) eram estes cor de canela clara, de altura mediana, estrutura atarracada, pescoço curto, olhos pequenos, nariz curto achatado e lábios grossos. O cabelo negro brilhante, escorrido, caia em melenas revoltas; a maioria deles trazia-o raspado em volta da cabeça, até uma polegada acima das orelhas. As suas feições tornavam aspecto feroz com os botoques de algumas polegadas de diâmetro que eles metem no lábio inferior e nos lóbulos furados das orelhas. Tanto nos haviam causado dó e tristeza à fisionomia desconsolada dos coroados, puris e coropós, quanto agora era de pavor a nossa impressão, à vista destes homens que, no seu semblante assustador quase não tem traço de humanidade. Indolência, estupidez e selvageria animal, estampam-se-lhes nos rostos quadrangulares, achatados, nos pequenos olhos turvos; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios estufados, no ventre, assim como em todo o torso atarrancado e no andar incerto. (...)”155 (grifo nosso).

153 DURÇO. Jonathas.1988 Op. Cit e JOSÈ. Oiliam. 1965. op. Cit. 154 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. Viagem ao Brasil: 1817-1820. São Paulo, Melhoramentos, 1938. 155 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. A grande aventura de Spix e Martius. Por PAIVA. Mario Garcia. Brasília. Instituto Nacional do Livro. 1972. p.86

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Segundo seus estudos, esses indígenas pertencem ao Grupo Ge, por

comporem seus nomes tribais com a palavra Gê (pai, chefe), assim os enquadrando

junto com os demais povos, que formavam o grupo Gê.

Ao nosso entender, um dos viajantes que, ao analisar os indígenas brasileiros

não contribui, ou mesmo, contrariou, a construção do mito do bom selvagem foi

Martius. Ele acreditava que os índios eram os remanescentes degenerados de

povos "superiores", que teriam construído cidades, monumentos, e teriam tido

códigos de conduta muito mais "evoluídos". Suas críticas à crença no “bom

selvagem” são explícitas:

”(...) Ainda não há muito tempo era opinião geralmente adotada que os indígenas da América foram homens diretamente emanados da mão do Criador. (...) Enfeitado com as cores de uma filantropia e filosofia enganadora, consideravam este estado como primitivo do homem: procuravam explicá-lo, e dele derivavam os mais singulares princípios para o Direito Público, a Religião e a História. Investigações mais aprofundadas, porém, provaram ao homem desprevenido que aqui não se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrário o triste e penível (sic) quadro que nos oferece o atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que perdida história(...)”. 156

.

A monografia de MARTIUS (1838), “Como se deve escrever a história do

Brasil”,157 aparece inserida numa preocupação com uma história que tomasse a idéia

de um passado nacional, comum a todos os “brasileiros” e que teve início com o

surgimento político do Brasil independente.158

156 MARTIUS, C. F. von - Como se deve escrever a História do Brasil, publicado com O Estado de Direito entre os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982. p. 75157 MARTIUS, C. F. von - Como se deve escrever a História do Brasil, publicado com O Estado de Direito entre os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982.158 Desde o período colonial, é possível encontrar escritos que foram chamados de histórias do Brasil´, tais como relatos de administradores, missionários e viajantes que registraram os fatos ocorridos e observações sobre a vida e os costumes dos habitantes do Brasil entre os séculos XVI ao XVIII. Todavia, a preocupação com uma história que tomasse a idéia de um passado nacional é engendrada de maneira pontual com o surgimento político do Brasil independente. A partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), é que se percebe mais claramente a preocupação por parte da elite letrada e política com o projeto de formular uma história do Brasil, acentuando-se as questões referentes à formulação de uma história pátria. Em um momento que a elite dirigente buscava consolidar o Estado imperial, todas as questões relativas à história do Brasil seriam cruciais para traçar a forma de se contá-la e a forma como os brasileiros se veriam a si próprios. Para buscar as respostas a essas inúmeras questões, que o referido Instituto, propôs uma premiação para quem respondesse sobre qual o melhor sistema para escrever a História do Brasil. O ganhador do concurso foi von Martius, em contato com a voga da disciplina histórica na Europa, particularmente na Alemanha e propôs uma história do Brasil que fosse ao mesmo tempo “filosófica” e “pragmática”, tendo como eixo a formação de seu povo, incluindo nesta formação a “mescla das raças”.

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Outro viajante que descreve com imensa riqueza de detalhes os Botocudos

do sertão mineiro é o Príncipe Maximiliano. Em sua obra Viagem ao Brasil159 (1820),

o viajante dedica o capítulo intitulado “Algumas Palavras sobre os Botocudos”,160 a

descrição, entre outras coisas, de como era e como viviam os nativos do Sertão

mineiro, no momento do encontro com o colonizador brasileiro. Assim se expressa o

viajante:

"(...) o rude selvagem botocudo, habitante aborígene destas paragens, é mais formidável que todas as feras e o terror destas matas impenetráveis". De aspecto monstruoso e repugnante, entoando cantos descritos como "uivos desarticulados", os botocudos estariam no limite do humano(...)”.161

(grifo nosso).

Maximiliano inicia o capítulo destinado aos Botocudos afirmando, que na

região do sertão, entre “os paralelos 13º a 23º graus de latitude sul, ainda viviam

muitas hordas errantes de selvagens, sobre os quais, muito pouco se sabia”.162 O

viajante destaca entre esses índios os Botocudos, os quais, ao seu olhar, teriam

características muito particulares. Assim, segundo Maximiliano:

(...) Até aqui nenhum viajante forneceu informações precisas sobre os índios desse ramo. (...) Apenas eram conhecidos nos primeiros tempos pelos nomes de “Aimorés”, “Aimborés” ou “Amburés (...)”.163

Portanto, nas descrições feitas por Maximiliano, várias imagens se delineiam

na configuração de “um outro” da América, com a afirmação de um ser europeu, de

“cultura superior”. E nada deixaria mais intrigados à esses homens de letras que o

encontro com os Botocudos, habitantes de várias regiões da província de Minas

Gerais, das quais o Vale do Rio Doce se depara como um dos últimos redutos de

sua presença. Observemos as anotações do Príncipe Maximiliano quanto à

aparência desses indivíduos:

159 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. 160 Idem. p. 283161 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.315162 Idem. p.283. 163 Idem. p.283

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“(...) A natureza dotou esses indivíduos de boa compleição, sendo eles mais bem conformados e mais belos do que os das demais tribos. Apresentam, em geral, estatura mediana, não obstante apresentarem alguns portes mais avantajados. São fortes, em regra largos de peito e espadaúdos, mas sempre bem proporcionados; mãos e pés delicados. Como nos outros grupos, têm traços fisionômicos muito salientes(...)”.164

A indistinção entre esses homens e a natureza é um traço marcante da

narrativa do príncipe Maximiliano. Em um dos trechos de sua narrativa Maximiliano

registra as dificuldades que, segundo ele, um soldado teria para perceber a

presença de um botocudo, sobretudo, quando este último se punha na condição de

observador. Para tanto, o viajante relata sua surpresa, na ocasião em que foi

surpreendido por um botocudo, quando preparava-se para partir em uma canoa:

“(...) Sua cor bruno-acinzentada tornava seu vulto indistinto entre as rochas, sendo essa a razão por que esses selvagens se podem aproximar facilmente sem serem percebidos, e por que os soldados, em outras paragens, quando em guerra com eles, precisam de extrema cautela(...)".165

Denominando-os de “selvagens”, o Príncipe Maximiliano descreve algumas

características que, segundo ele, seriam próprias dos Botocudos:

“(...) Um dos traços mais característicos desses selvagens é a preguiça. Indolentes por natureza, o botocudo descansa em sua choça, sem nada fazer, até que surja a necessidade de alimentar-se. Ainda aqui faz ele valer os seus direitos de mais forte, deixando para as mulheres e filhos a maioria dos trabalhos.(...)”.166

Qualificando os botocudos como seres apáticos, preguiçosos e que se

confundiam à natureza, Maximiliano ainda afirma, em vários trechos de sua

narrativa, a avidez por comida, nesses grupos de errantes do sertão mineiro. Muito

embora a riqueza da mata, afirma o autor que:

164 Idem p. 285 165 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.285166 Idem.p. 293

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“(...) Nessas imensas extensões ininterruptas de florestas virgens, o reino animal fornece aos selvagens rica provisão de gêneros alimentícios, não sendo menor a quantidade de saborosos petiscos que o mundo vegetal põe à disposição de seu grosseiro paladar. (...)”167

“(...) Tudo quanto ficou dito mostra que os Botocudos, cujo paladar alias nada tem de exigente, não sofrem facilmente fome, até porque sabem acomodar a vida as circunstâncias de cada lugar. Não obstante, as vezes se vêem a míngua, por força de seu apetite descomedido; vão então pedir mantimentos aos estabelecimentos portugueses, e, caso lhos neguem, saqueiam as plantações.(...)”168

Conclui o viajante que a satisfação do "apetite insaciável é sempre a mais

urgente necessidade desses selvagens". Temos assim uma caracterização de seres

guiados pelo estômago, portanto pela necessidade.

“(...) a necessidade mais imperiosa dos selvagens é a alimentação; não há limite de seu apetite, pelo que comem com grande avidez e, enquanto comem, são cegos e surdos para tudo quanto se passa a seu redor. Para conseguir a sua amizade, basta que se lhe encha bem o estômago, e, se a isso se acrescentar algum presente, ter-se-á como certa a sua dedicação.(...)”169

À exemplo de outros viajantes, a prática da antropofagia dos Botocudos foi

outra questão abordada pelo príncipe Maximiliano. Em seus escritos, Maximiliano

compartilha da opinião de outros viajantes, quanto à prática do consumo de carne

humana. Segundo o viajante, não se devia à fome nem à apreciação de seu sabor,

mas ocorria raramente, e apenas com a finalidade de satisfazer o desejo e o objetivo

de vingança, como podemos observar nesse seu relato:

“(...) Causam horror o simples pensamento de cair nas mãos desses implacáveis bárbaros a quem uma justa e ilimitada sede de vingança tornam ainda mais terríveis. Eles fazem em tiras a carne de seus inimigos, cozinham-na em sua panela, ou assam-na; espetam-lhes depois, com grande festa, as cabeças estacas, em torno das quais dançam, cantam e gritam. Os ossos depois de chupados, seriam pendurados em suas cabanas(...)”.170

167 Idem p. 298 168 Idem. p.305 169 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit .p 296 170 Idem.. p313

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É expressivo o destaque que Maximiliano dá às descrições sobre como esses

indígenas esfolavam animais e os assavam, comendo-os quentes, ou ainda crus.

Além disso, relata o viajante, o quanto os botocudos adoravam a carne dos

macacos, dos quais comiam até a cabeça e os intestinos. Segundo o príncipe, seria

isso a causa das freqüentes confusões entre as ossadas de macacos e as de

humanos:

“(...) Como acima fiz ver, os índios preferem os macacos a qualquer outra caça, e, uma vez que o esqueleto desses animais tem tanta semelhança com o homem, é possível que os europeus, ao encontrar restos das refeições dos Botocudos, cometessem o engano de acusá-los de preferir especialmente carne humana.(...)”.171

Mesmo assim, Maximiliano decide, entretanto, pela afirmação em seus

estudos da provável prática do canibalismo entre esses índios. Para tanto,

Maximiliano se esforça em dar detalhes de um festim, descrito a partir de

informações de um jovem Botocudo, de nome Guack, acerca da evidência de um

episódio de morte, despedaçamento e cozimento de um inimigo pataxó. Ao defender

o caráter social do ritual antropofágico, o autor, decide-se pela atribuição de um

caráter definitivamente humano, dos índios que observa:

“(...) O que contou o jovem Botocudo Queck, tira qualquer dúvida a respeito. Durante muito tempo receou ele falar-me a verdade sobre o assunto; resolveu porém, finalmente, faze-lo, depois que lhe assegurei saber que todos os da sua horda, no baixo Belmonte, haviam desde muito tempo abandonado aquele hábito. Contou-me então a cena que vou narrar, e de cuja a verdade devemos tanto menos duvidar, quanto mais difícil nos foi conseguir dele sua descrição. Jonué Cudgi (...) aprisionara um patachó. Todo o bando se reuniu, o prisioneiro foi trazido de mãos amarradas, sendo morto por Jonué Cudgi, com uma flechada no peito. Fizeram então fogueira, onde cortadas e depois assadas, as coxas, os braços e as outras partes carnudas do corpo, que todos depois comeram, dançando e cantando. A cabeça foi pendurada num poste, por meio de uma corda, que entrava pelos ouvidos e saia pela boca, de modo a poder-se erguê-la e abaixá-la. Ali ficou a secar, depois de lhe haverem arrancado os olhos e raspado os cabelos, com exceção de um tufo na testa.(...)”.172

171 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p. 301172 Idem. p 315

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Outro viajante que afirmou a sua imensa aversão aos botocudos foi o

naturalista Saint-Hilaire. O viajante descreve os botocudos como seres nus,

desfigurados, lambuzados de tintas, cílios arrancados, com o lábio inferior tal qual

uma pequena mesa de três polegadas de diâmetro, com orelhas horrendas e o rosto

deformado pelo uso dos botoques.173 Relata então o viajante:

“(...) Pertenciam à tribo mais disforme da natureza encontrada durante minha permanência no Brasil. Aos traços da raça Americana, tão diferente da nossa, acresciam uma fealdade peculiar a sua nação: eram de estatura pequena; sua cabeça achatada em cima e de tamanho enorme, mergulhava em largas espáduas; uma nudez quase completa deixava a descoberto sua repelente sujeira; longos cabelos negros caiam em desordem sobre os ombros; a pele de um escuro baço, estava salpicada aqui e ali pelo urucu; percebia-se através de sua fisionomia algo de ignóbil, que não observei entre outros índios, e enfim, uma espécie de embaraço estúpido que traia a idéia de eles mesmos tinham de sua inferioridade.(...)”174

Saint-Hilaire ouvira dizer que, além de comerem quase crua a carne de

animais, os botocudos, devoravam também a de seus inimigos. Mostrando-se

aparentemente convencido da pratica do canibalismo entre os Botocudos, o viajante

tentou colocar à prova seus informantes, como por exemplo, o seu acompanhante, o

índio Firmino e alguns militares. Relata então o viajante:

“(...) Afirma-se, geralmente, na província das Minas, que os Botocudos são anthropophagos, e as informações que colhi em Passanha tendem a confirmar essa opinião. Quando esses índios matam algum inimigo saboreiam, disseram-me sua carne como se fosse um manjar delicado e não fazem o mesmo caso de todas as partes do corpo.(...)”175

Quando um militar relata ao viajante a confissão que obteve de um botocudo,

sobre a prática do canibalismo, surgem em Saint-Hilaire as mais diversas

indagações. Será que "esse Botocudo, que mal sabia o Português"176 queria

realmente dizer aquilo, ou se assim foram interpretadas suas palavras, dando-lhes

173SAINT-HILAIRE, August de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivalde Moreira; Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975 p.204174 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit.p. 30. 175 Idem. p. 367 176 Idem p. 248

111

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um sentido deturpado? Por outro lado, ao indagar ao índio Firmino, seu ajudante por

vários meses, se era ou não, o seu povo antropófago, recebeu a resposta negativa,

acompanhada da explicação de que, os portugueses teriam inventado tais

acusações de canibalismo, como pretextos para persegui-los. No momento em que

o mesmo informante admitiu o hábito de cortar os cadáveres dos inimigos em

pedaços, Saint-Hilaire tende a opinião predominante177, que afirma a prática

antropofágica entre eles.

Mesmo se o viajante não negou completamente a condição humana ao

botocudo, nem o caráter ritual de sua hipotética antropofagia, o distinto botânico,

caracterizou os Botocudos como raça absolutamente inferior, "condenados a uma

espécie de infância perpétua"178 e à uma inexorável extinção. Segundo o viajante,

tratava-se de seres desgraçados, que eram dignos apenas de compaixão:

“(...) Devo aqui dizer que Firmiano, o Botocudo que me seguiu durante vários annos, repellia a acusação de anthropophagia como uma mentira inventada pelos Portuguezes aim de terem um pretexto para fazer mal a sua nação; mas ao mesmo tempo accrescentava, que poderia ter dado ensejo a essa calunia o habito que tinha seus compatriotas de cortar em pedaços o corpo dos inimigos mortos.(...)”.179

Por sua vez, o pintor francês, Debret, destoando dos outros viajantes, faz

representações dos índios totalmente idealizados: fortes, com traços bem definidos

e em cenas heróicas. São aspectos claros do neoclassicismo. Contudo, ao

analisarmos os textos que acompanham as imagens, são notados aspectos não

neoclássicos, mas românticos. Suas aquarelas pitorescas que possuem o caráter

típico das representações feitas por viajantes, em busca de paisagens e de

exotismo. Entretanto, a sua arte conserva o caráter solene do neoclassicismo,

próprio do grupo de artistas da França napoleônica.

177 Idem. pp. 204, 252, 248, 215-257.178 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. pp.215-257.179 Idem. p.367

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Ilustração 16: Aldeia de Caboclos em Cantagalo180.

A prancha 06 da obra de Debret , Aldeia de Caboclos em Cantagalo (Figura

15), por exemplo, mostra uma aldeia “tipicamente” indígena do Brasil. Situada em

local alto – o que se supõe facilitar uma melhor visualização da chegada de

estranhos – no meio da floresta, com uma cabana comum – única para toda a aldeia

– e várias fogueiras para a preparação dos alimentos. Observa-se ainda, que as

mulheres da tribo cuidam da preparação dos alimentos e das crianças da aldeia. O

chefe encontra-se sentado, parece-nos em posição de descanso, e cercado por

seus guerreiros. No alto da imagem vê-se mais alguns componentes da tribo,

homens com arcos e flechas e mulheres carregando madeira. Um indivíduo da 180 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p.36

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aldeia aproxima-se com dois viajantes. Este índio traz na mão uma garrafa de

aguardente. Um cachorro, frutas típicas do Brasil e a floresta compõem o restante do

cenário.181

No capitulo do seu livro intitulado Estatística182, Debret, preocupa-se em

passar aos leitores informações sobre as crianças indígenas, parecendo querer

mostrar, que não são esses “selvagens” feios e de aparência monstruosa por

natureza. Alega Debret que as crianças são bonitas ao nascerem, mas que seus

pais logo tratam de “deformar” sua aparência. O que nos parece ser um hábito

comum entre os botocudos, no ímpeto de torná-los com característica de um futuro

guerreiro, temido e caçador audaz, aparece, aos olhos dos viajantes, como uma

deformação do ser. Observa então Debret:

“(...) As crianças selvagens principalmente as dos Botocudos são, não raro, bonitas ao nascerem; caracterizam-se em geral por olhos miúdos, pele morena, cabelos negros, duros e lisos. Logo que os cabelos do pequeno Botocudo aparecem, seus pais os raspam deixando apenas um pequeno chumaço para formar uma espécie de coroa. O pai escolhe e dá a criança um nome característico de planta, animal ou qualidade física.(...)”183 (grifo nosso)

Debret, como todos os viajantes por nós analisados, não deixa de citar os

rituais macabros de antropofagia, supostamente praticados pelos Botocudos.

Segundo o pintor, os selvagens viviam em constante guerra com seus visinhos, e,

aos seus prisioneiros de guerra, não havia outro destino a não ser servirem de

banquete em um de seus rituais. Isso os tornavam, perante os demais grupos

indígenas, os mais temidos habitantes do Brasil.

“(...) Belicosos e turbulentos os Botocudos mantêm-se em constante luta com seus vizinhos. Reúnem-se em numerosos grupos, para rechaçar, e o mais das vezes para atacar, as outras tribos selvagens; e, temidos com razão, vivem unicamente, por assim dizer, da carne de seus prisioneiros, que devoram com ódio, insultando os manes de suas vítimas com danças em torno dos restos ensangüentados.(...)”184

(grifo nosso).

181DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil. Tomo I e II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978. p.p 35-36182 O sentido da palavra estatística no início do séc. XIX era bem diferente do atual, era a época a estatística a ciência de recolher, descrever as cousas da atualidade mais dignas de nota. 183 DEBRET, Jean Baptiste. 1978. Op. Cit. p.17 184 DEBRET, Jean Baptist. 1978. Op. Cit. p. 18

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Através desses depoimentos, os viajantes foram contribuindo, em grande

parte, com a deformada imagem que a sociedade botocuda foi ganhando, com o

passar do tempo. Características como indolência, estupidez, selvageria animal,

voracidade, preguiça, grosseria, homens de semblante assustador que quase não

tem traço de humanidade. Características essas, que até então, eram produzidas e

divulgadas pelo discurso oficial do Estado, como podemos observar na Carta Régia

de 13 de maio de 1808. Nessa perspectiva, utilizando-se dessas imagens de horror,

criadas sobre a sociedade botocuda, o Estado português procura legitimar o

massacre prenunciado à esses povos. Tal serventia pode ser comprovada nesse

trecho do dito documento Régio:

“(...) Passam (os Botocudos) a praticar as mais horriveis e atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos;(...)”185

Cabe então discutirmos até que ponto o discurso do Estado com relação à

população mineiríndia186 brasileira se pautou, ou se legitimou, através da visão que

os viajantes europeus produziram e divulgaram, sobre as necessidades de um

programa civilizador, implantado no interior do Sertão do Rio Doce. As práticas, as

justificativas, os métodos e as intenções civilizadoras de um lado, o do Estado, e de

outro lado, dos viajantes, são para nós, as fronteiras entre um e outro discurso.

Assim, esse confronto pode nos revelar perspectivas distintas, no que diz respeito, à

incorporação dessa região e de sua população nativa, ao programa civilizador

daquela época.

Através do exame e da comparação dos discursos – oficial e de relatos de

viajantes – torna-se possível analisarmos as condições objetivas de como se

processou esse contato e uma das mais importantes, foi a catequese.

185 Carta Régia de 13 de maio de 1808. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). 1992.Op.Cit.p.57. 186 Expressão utilizada por Oilian José para designar os índios do Território das Minas Gerais. José, Oilian. 1965. Op. Cit. p 11

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Segundo Oilian José, na catequese, poucas e raras, foram as verdadeiras

conversões. Segundo o autor, a verdadeira conversão passaria por um longo e lento

caminho de preparação e substituição do “erro pela verdade”, o que muitas vezes

poderia durar por toda a vida do individuo. Converter-se significava aceitar a

substituição de seus hábitos e costumes, por estranhas realidades novas, as quais

deveriam passar a viver.

Aqueles que se propusessem a “converter” os indígenas teriam pela frente um

trabalho árduo e complexo. Muito mais intricado que o ato de civilizar, catequizar

consistia em uma revolução interna do individuo, e civilizar seria o ato de aceitar um

conjunto determinado de convenções e princípios.

Em Minas Gerais a partir do século XVIII, os missionários religiosos se

propuseram a catequizar o indígena, afim de que ele acolhesse a doutrina católica, o

que poderia não ser absorvido completamente, mas a viveriam na pratica do dia a

dia, quer nos aldeamentos, quer espalhados pelas matas mineiras. Na opinião do

historiador Oilian José os missionários:

“(...) sentiram que a catequese exigia em ultima analise para seu êxito, que o silvícola aceitasse efetiva e formalmente a doutrina Cristã. Ora, a conversão, meta final da catequese, só se realiza por um impulso interior e extra sensível de acolhimento da Fé.(...)”187

Saint-Hilaire também discorre sobre quem estaria disposto a entrar no sertão

e ai fixar morada, sendo que mesmo sendo uma região de terras consideradas muito

férteis, apresentavam vários perigos a qual estariam expostos a partir do momento

que aceitassem essa empreitada:

“(...) Apezar da extrema fertilidade dessa região, seus habitantes são pobres. Bastaria sua igreja para trahir-lhes a indigência; pois que em vez de cobril-a com tecto de taboas, contentáram-se com uma cobertura de esteiras. Não é gente rica a que se dispõe a penetrar no âmago de densas florestas, habitadas por homens que se consideram como antropophagos. Os colonos de Passanha estabeleceram-se sem cabedaes; não possuem escravos, e, si conseguem manter-se, é sem abastança.(...)”188 (grifo nosso).

187 JOSÈ. Oilian. 1965. Op. Cit. p 139188 SAINT HILAIRE. Augustin. Op. Cit. p 350

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Nasceriam assim os primeiros planos de catequização dos indígenas do

Sertão Mineiro. Planos esses, que não poderiam esquecer que, “mesmo

convertidos”, os nativos não se desprendiam totalmente de suas crenças e

superstições antigas, as quais poderiam se aflorar e voltar átona a qualquer

momento no menor sinal de descuido do catequizador. Portanto, poderia ser comum

entre os Botocudos, aceitarem o ensino missionário aproveitando-se das benesses e

consolo proporcionados pela suposta conversão. Assim sendo,poucos os que

realmente chegariam “plena e ardorosamente aos tesouros da Fé”.

O naturalista Saint-Hilaire, em suas incursões pelo interior de Minas, junto aos

mais diversos aldeamentos, observou esse fenômeno “catequético”, usando-o

muitas vezes para diminuir o mérito dos missionários:

“(...) o trabalho dos missionários com os índios perde parte de seu valor maravilhoso, quando consideramos a facilidade com que eles, os selvagens, esposam as nossas idéias, a pretensão para nos imitarem, o prazer que encontram nas cerimônias da igreja, o effeito que deve produzir sobre espíritos, ainda sem a menor noção religiosa, a evocação de um único Deus criador do Universo, onipotente, remunerador das virtudes e implacável vingador de suas leis conculcadas.(...)”189

Mas na realidade, a atração do indígena para a Igreja, não seria uma tarefa

fácil. Os missionários passaram à buscar os indígenas no interior das matas onde

habitavam, fundando nesses locais novas Capelas, onde futuramente, viriam a surgir

muitas das cidades do sertão mineiro. Assim, ao invés de trazer o indígena para os

aldeamentos, passariam a levar a catequese, e conseqüentemente, a civilização, até

o indígena, sem privá-los da liberdade e da estabilidade residencial e dos seus

meios de subsistência. Nessas paragens, além de vencer os obstáculos impostos

pelos indígenas, a catequese teria a missão de moralizar os colonos que chegavam

com freqüência, provindos principalmente das zonas de mineração de Vila Rica,

Mariana etc. nas quais a mineração entrara em decadência.

189 SAINT HILAIRE. Augustin. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Trad. Affonso de E. Tunay. 2ª ed. Coleção Brasiiana. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 1938. p. 189.

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Lembramos ainda que, entre os índios Botocudos a catequese foi iniciada

tardiamente no século XIX. A política adotada pela coroa Portuguesa, entre 1808 e

1831, foi a de Guerra de extermínio. Através de Cartas Régias e de decretos fazem

guerra ao indígena do Vale do Rio Doce. Substituíram sumariamente o diálogo que

haviam iniciado, pelo extermínio em massa, do qual é modelo a ação do truculento

comandante da 1ª e da 6ª Divisão do Rio Doce Januário, Vieira Braga:

“(...) cobria o peito de pequenos crucifixos e medalhas com efígies de Santos e, antes do ataque aos indígenas resistentes a catequese e a civilização, punha seus subordinados de joelhos e os fazia recitar longas orações. No correr da luta, fanaticamente travada em nome de Deus, como se nosso Senhor aprovasse as loucuras e os sandismos dos homens, matavam-se quantos indígenas caíam sob a pontaria dos componentes da Divisão e seus aliados. E os remanescentes indígenas da luta, considerados prisioneiros, eram colocados na presença de Januário que com perfeito domínio de possíveis reclamos de consciência mal formada e exteriorizando crer na pratica de devota ação, passava a degolar os infelizes nacnenuques.(...)”. 190

Saint-Hilaire, denuncia a guerra como sendo um absurdo, que segundo ele,

era digno dos tempos mais bárbaros. O viajante relata, com extrema fidelidade, a

paisagem da guerra levando seu leitor a concluir que os Botocudos não teriam

nenhuma chance, contra os portugueses:

“(...) Então começa o combate; os Portuguezes disparam tiros de espingarda, e os Botocudos lançam flechas. Pouco a Pouco diminuíam-se o circulo que se formara em torno destes últimos, e quando certo número já sucumbia, os restantes investiam sobre os inimigos afim de abrir passagem e fugir. Finalmente, quando não restavam mais no meio dos Portuguezes que mulheres e crianças, capturavam-nas e levavam-nas a força. As mulheres a principio soltavam grandes gritos, mas apenas caminhavam um pouco, pareciam conformadas, e apegavam-se a seus condutores. Quanto aos homens, se acontecia prenderem-se alguns, fechavam os olhos, negavam-se a responder ás perguntas que se lhes dirigia em sua própria língua, e deixavam-se matar. Os Botocudos temendo bastante as armas de fogo não atacam os Portuguezes de frente; escondem-se por traz das arvores, e lançam flechas aos que passam ao alcance. De qualquer forma a guerra contra os Botocudos é um absurdo digno dos tempos mais bárbaros (...)”.191

190 Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XI. p. 198 in JOSÈ. Oilian. 1965. op.cit. p. 142 191 SAINT_HILAIRE. Op.Cit. p. 364

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Da parte do príncipe Maximiliano, este estabelece um relato diferenciado

acerca dos Botocudos, aos quais dedica em sua obra Viagem ao Brasil um capítulo

especial. Ele os distingue duplamente, "pelo costume de antropofagia e pelo espírito

guerreiro":

“(...) Esses selvagens se distinguem pelo costume de comer carne humana e pelo espírito guerreiro: têm oferecido, ate agora, obstinada resistência aos portugueses. Se algumas vezes se mostram amigáveis em certo lugar, cometeram excessos e hostilidades em outro; daí nunca ter havido um entendimento duradouro com eles.(...)”.192

De acordo com o viajante, a guerra só fora declarada aos Botocudos após

constantes ataques desses aos colonizadores, e às fracassadas tentativas de

contato entre os dois grupos amistosamente. Relata o viajante:

“(...) Depois desses fatos (dos ataques de Botocudos a colonizadores e soldados), o último ministro do Estado, conde de Linhares, declarou-lhes guerra formal, numa proclamação bem conhecida; ordenou que os postos militares já estabelecidos à margem do Rio Doce fossem reforçados e que se instalassem outros, a fim de proteger os estabelecimentos dos europeus e as comunicações com Minas através do rio. Desde então, não se deu mais trégua aos Botocudos, que passaram a ser exterminados onde quer que se encontrassem, sem olhar sexo ou idade (...)”.193

O pintor francês Debret, também noticia a guerra declarada aos índios

Botocudos após a chegada da família real em 1808. Declara o viajante, notar que,

há uma preferência entre os colonos, em optar por índios “civilizados” no serviço de

soldados nos quartéis que se encontravam espalhados pelo interior do sertão

mineiro:

“(...) No Rio Doce encontra-se o Quartel de Aguiar, cercado pelas habitações de algumas famílias indígenas. Compõe-se unicamente de oito soldados, índios civilizados, preferíveis a qualquer outra espécie de soldado para o combate aos seus companheiros ainda selvagens. Estes os detestam, por isso, e visam-nos de preferência porque consideram traidores (...)”.194

192 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p. 153 193 Idem.p.153194 DEBRET, Jean Baptiste. 1978. Op. Cit. p. 55

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Da parte do botânico Martius, este salienta a exploração e a cobiça do

colonizador, que usava as tribos indígenas rivais para hostilizar e fazer a guerra,

sendo esse método também utilizado na guerra de extermínio contra o Botocudo:

“(...) O índio explorado pela cobiça e pelo interesse próprio dos colonos, vive entre eles com medo, ódio e desconfiança. Também o costume de servir-se de uma nação para hostilizar a outra, como já aconteceu com os Coroados contra os Puris, e a crueldade dos postos militares, que estenderam também aos Puris a guerra de extermínio legalmente autorizada contra os Botocudos, que ate agora tem sido o estorvo para a civilização desses selvagens (...)”.195

É nesse tumultuado período, mais exatamente por volta do ano de 1818, que

Marlière, cujo êxito civilizador em outras regiões, tem sua autoridade ampliada ás

Divisões do Rio Doce. Marlière retoma a catequese, promove a limpeza das

Divisões Militares do Rio Doce, com o afastamento de pseudos civilizadores, cujo

interesse econômico e a exploração sexual causa danos devastadores.

Podemos destacar, em seus relatos, que o colonizador ambicioso, explorador

e espoliador, seria o maior empecilho à catequização e à civilização dos indígenas.

Entrando em contato com o indígena, só pensavam em escravizá-los, submetendo-

os aos tratamentos desumanos, o que criava no nativo uma generalização de

hostilidade em relação ao branco, que segundo Oilian José, eram na verdade:

“(...) devastadores das matas, improvisados em colonizadores, eram péssimos modelos no terreno do comportamento social e das virtudes cristãs. Afirmavam crer e, de verdade, criam na doutrina da Igreja, mas não a viviam(...) rezavam implorando a indispensável misericórdia divina e a intervenção dos Santos, mas tratavam o indígena com ódio e nele viam um irracional(...)”. 196

Civilizar o indígena No início do século XIX significava criar um padrão de vida

civilizada, para o nômade Botocudo. Oilian José partilha da idéia de que civilizar o

indígena:

195 SPIX e MARTIUS. Op. Cit. p. 66. 196 JOSÉ. Oiliam. 1965. Op.cit. p 143.

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“(...) significava aproveitar-lhes o máximo a herança cultural e, com seus elementos positivos entrosados nos elementos brancos informar a pretendida nova civilização porque a simples civilização do branco jamais poderia adaptar-se plenamente aos usos e costumes do selvagem, porque a verdadeira conquista do indígena só se faria com a generosa compreensão da alma e dos ideais desses pioneiros das selvas mineiras e da inteligente solução dos problemas que adviriam desse doloroso processo de integração do indígena nos padrões sociais pretendidos pelo branco(...)”.197

O processo de civilização praticamente dividia-se em duas etapas: a primeira

cabia ao “civilizador” destruir os mecanismos de uma cultura, já existente, e a

segunda, mais difícil e mais penosa, se assim podemos dizer, seria a de implantar

os novos costumes, o que Oilian José diz ser “a milenária luta entre a tradição e o

progresso”.

Os catequistas, ou civilizadores, tentaram superar os conflitos, mas poucos

foram os que compreenderam os mecanismos e técnicas que poderiam utilizar para

superar as resistências indígenas. Em pleno inicio do século XIX eram constantes os

choques entre indígenas e colonos, e não se conheciam planejamentos demorados,

pois, fazia-se necessário, agir sem longas demoras, mesmo que essa ação

importasse perigosas conseqüências, tanto para o indígena, como para o civilizador.

Mas, mesmo com todos os esforços de alguns missionários e de comandantes como

Marlière, os aldeamentos não surtiram o efeito esperado, pois não foi dado o tempo,

nem os meios necessários, para que se realizassem a árdua tarefa de aculturar o

Botocudo, com os valores trazidos pelos civilizadores. Podemos notar que os

aldeamentos tiveram conseqüências desastrosas para a cultura indígena, que foi

praticamente destruída e ainda manteve o indígena como presa fácil da escravidão,

dos maus tratos e das doenças trazidas pelo branco.

Para Saint-Hilaire chamar os Botocudos à vida “civilizada”, fixando-os a terra,

já no início do período Imperial, tornar-se-ia um apelo comum na política para os

índios do sertão mineiro, sob a diretoria dos índios:

“(...) é preciso tirar esses desgraçados do embrutecimento em que estão mergulhados, e chama-los, na medida do possível, a uma vida inteligente e moralizada. Mas de que servirá alguns homens generosos derem-se o trabalho de instruí-los e arranca-los da selvageria, se outros vêm em massa corrompe-los por maus

197 JOSÉ. Oiliam. 1965. Op.cit. p. 145

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exemplos, e abusar da inferioridade dos selvagens para engana-los e reduzi-los a uma espécie de escravidão?(...)”198

O viajante francês Saint-Hilaire chama-nos a atenção para os métodos

agrícolas, destrutivos, propagados na América portuguesa:

“(...) Com exceção da Província do Rio Grande do Sul, da província de Missões e da província Cisplatina, não se fez uso, no Brasil meridional, nem do arado, nem de fertilizantes: todo o sistema de agricultura brasileira é baseado na destruição de florestas, e onde não há matas não existe lavouras(...)”199.

Saint-Hilaire, diversas vezes coloca em seus escritos, a necessidade de

melhor aproveitar a terra e os recursos naturais, disponíveis no território brasileiro.

Realizou um minucioso levantamento das plantas utilizadas pelos indígenas, para

fins medicinais e para a confecção de roupas e instrumentos, e afirma,

intensamente, haver uma riqueza desconhecida do governo português, que deveria

ser melhor explorada:

“(...) Poder-se-iam retirar do reino vegetal riquezas não menos importantes que as fornecidas pelo reino inorgânico. Os lavradores empregam em suas doenças uma multidão de plantas medicinais, e várias delas, mais bem conhecidas, poderão, sem dúvida, tornar-se de grande utilidade”. “[O governo português] despreza inteiramente uma multidão de plantas indígenas cujas fibras flexíveis podem ser tão utilmente empregadas no fabrico de cordoalhas e tecidos(...)”200

Dessa forma Saint-Hilaire constrói um universo traçando um paralelo entre o

domínio do gentio dos Botoques e o domínio português na mata do Sertão do Rio

Doce. Para ele, tecer ali a vida humana, isto é, civilizada, dependia do aniquilamento

do Botocudo e da mata. Considerando a superioridade da agricultura e dos animais

domésticos, apresentava-os como formas de vida viçosa, que as tornaria possíveis,

após o desmate e o calor das queimadas. Afirma o viajante, que fatalmente

desapareceriam as plantas nativas, animais selvagens e homens nascidos na

198 SAINT-HILAIRE. August. 1936 Op.Cit p. 276199 SAINT-HILAIRE, August. 2000 p.90200 Idem. pp.61 e 91

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escuridão do seio da Mata Atlântica. Nas luzes da civilização, as copas

esplendorosas de árvores altaneiras deveriam tombar junto com a obscura vida dos

seres que abrigavam.

O príncipe Maximiliano, que também deu sua opinião a respeito das etapas

do processo de civilização, deixou claro que eram os Botocudos difíceis de “civilizar”,

por se tratarem de seres arredios e turbulentos. Mas que, devido aos contatos com o

colonizador, e por conseqüência, com a “civilização”, já começava a se aproximar,

dando sinais de entenderem o bem que essa civilização poderia lhes trazer, tirando-

os da vida selvagem na qual se encontravam:

“(...) Para acima de Belmonte no território de Minas Gerais; há outro lugar em que os Botocudos fizeram plantações; daí também se retiraram para as florestas(...) esses exemplos mostram que os Botocudos já se vão aproximando da civilização, mas provam, igualmente, que lhes é muito difícil renunciar à vida natural de caçadores errabundos, de vez que abandonam com tanta felicidade as plantações feitas por eles mesmos.(...)”201

Realmente, não seria possível a substituição instantânea de civilizações, pois

isso resulta de processos e ações humanas, e não por um simples acontecimento

natural. Para o príncipe viajante, o ato de civilizar: “nasce da inteligência e da

vontade humana, em si mesma, bem mais complexa que as forças da natureza”.202

Para Maximiliano, somente com a chegada de mais europeus, com maior

exploração e ocupação da terra, a ponto de dificultarem a vida errante dos índios,

obrigariam o Botocudo a mudar seu modo de vida, pois, com a ocupação do sertão

pelos europeus, os indígenas seriam obrigados a fixarem-se na terra, cultivá-la e,

gradualmente, aceitarem a “civilização”:

“(...) Somente o aumento da população européia e a diminuição dos territórios de caça, pesca e coleta podem induzi-los a uma mudança gradual do modo de vida.(...)”203

201 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.251 202 JOSÈ. Oiliam. 1965. Op.cit.. p 145 203 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p.251

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Portanto, na ótica do príncipe Maximiliano, a civilização do indígena consistia

em pendê-lo a terra, pois somente após abandonar o velho hábito de nomadismo,

passariam a entender a necessidade da prática agrícola. Confirma-se que a

“civilização” do Botocudo era de fato norteada pela idéia da necessidade de

“incorporação deles à sociedade de trabalhadores”, sendo que, para isso, o Estado

lhes resguardavam direitos e deveres, como a posse da terra e o dever de cultivá-la:

“(...) O principal trabalho para aldear os índios a eles subordinados é de iniciá-los na arte da lavoura, a fim de cultivarem a terra cuja a posse lhes é dada, e, sobretudo, aconselhá-los e dirigi-los nas novas relações sociais. Para conseguir domesticar esses novos vassalos, vencer igualmente o seu instinto nômade, e habituá-los à vida sedentária, determinou o governo que os novos índios aldeados não só sejam dispensados de todos os impostos, mas também que nos primeiros anos lhe seja fornecida pelo diretor certa provisão de fubá, milho, instrumentos de lavoura, como faca, enxada, machado.(...)”204

Para o botânico Martius, o sistema de civilização usado pelo Estado, era o de

manter os índios sobre a sua tutela, nos quartéis ou nas divisões do Rio Doce, onde

os diretores e soldados seriam os encarregados de civilizar os indígenas:

“(...) As regras, pelas quais esses diretores e os cabos e seus subordinados devem transmitir a civilização aos índios, fazem honra ao governo. Eram relações de tutelados para com os diretores, e destes para com os índios aldeados.(...)”205

Para o francês Debret, o indígena Botocudo, quando civilizado, poderia servir

ao colonizador, pois a civilização o tornaria, até certo ponto, fiel e dedicado ao

colonizador, desde que tratado com afabilidade:

“(...) Quando o selvagem atinge um determinado grau de civilização, muitas vezes responde pela fidelidade e uma certa dedicação à benevolência e à franqueza com que por ventura é tratado. Entretanto, apesar desses traços favoráveis de seu caráter, é sempre perigoso acharem os brancos em numero reduzido na floresta, mesmo na companhia dos melhores dentre eles.(...)”206

204 MAXIMILIANO,Príncipe de Wied-Neuwied. 1989. Op. Cit. p 54205 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. Por: Mario Garcia de Paiva. A Grande Aventura de Spix e Martius. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972. p.54. 206 DEBRET, Jean Baptiste. 1978. Op. Cit. p.19

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Paralelamente à valorização do progresso e da civilização, ao longo da obra

de Debret, algumas imagens e trechos onde o autor parece lamentar a ação dos

colonos, sobre o modo de vida do nativo brasileiro, e que provocariam a

decomposição de seus hábitos, costumes e tradições. Assim relata Debret:

“(...) Seu apego a estas a estas fá-lo apreciar seus hábitos selvagens e temer a civilização que o corrói. Com efeito, tirado das florestas que lhe serviram de berços, amoldado à sociedade européia, ele se dobra e se resigna, mas somente por algum tempo, sempre saudoso do lugar de seu nascimento; e não demora em fugir, descontente com o destino que lhe quiseram dar e que ele não considera um progresso (...)”.207

“(...) Um Rico habitante da cidade da Bahia criara um jovem índio, naturalmente dotado de grande inteligência. Instruído com cuidado, já diversos êxitos havia obtido durante seus estudos quando, por vocação, pediu para tomar um hábito; acenderam, mas no dia de sua primeira missa ele se dirigiu para as florestas a que seu coração aspirava em silêncio e desapareceu para nunca mais voltar.(...)”.208

Assim, através da catequese ou da civilização, foi o Botocudo destituído de

sua cultura. Podemos dizer que não foi o Aldeamento a causa única da decadência

e morte do indígena. Mas o que o eliminou, sem sombra de dúvidas, foi a ação dos

civilizadores, que invadiam as aldeias, o destituía de suas terras, de sua saúde, de

sua honra, de suas mulheres, de seus filhos, e até mesmo da sua condição de ser

humano. Nessas condições, o aldeamento era apenas um dos cenários onde a

ação do Estado e da Igreja atuava sobre as comunidades indígenas.

Citando Flora Medeiros Lahuerta, quando compara SAINT-HILAIRE, a SPIX e

MARTIUS, afirma ter o primeiro uma visão muito mais positiva dos indígenas, mas

que mesmo assim, diversas vezes deixa transparecer que a falta de civilização seria

um embaraço ao progresso do país.

Em sua totalidade, as descrições de viajantes naturalistas remetiam, todos os

habitantes do Brasil à formulações negativas, seja desqualificando os costumes da

Corte, seja criticando a falta de iniciativa dos colonos, seja desclassificando os

“rituais bárbaros”, julgando como inferior indígena, ou a escravidão negra. “Mais

207 DEBRET, Jean Baptiste. 1978. Op. Cit . 27 208 Idem. p.27

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propensos a adotar os defeitos do que as virtudes dos europeus, seus vizinhos, os

nativos da terra, preferem passar o dia inteiro caçando...”.209 Ou ainda, citando o

naturalista francês SANT-HILAIRE, quando foi bastante crítico quanto ao reinado do

imperador D. Pedro I, e deixando registrada a sua opinião no apêndice de "Voyage

dans le district des diamants et sur le litoral du Brésil"210 :

"(...) Desde os primeiros momentos da revolução ( independência ), um bando de homens ignorantes, nutridos dos hábitos do servilismo, foram chamados bruscamente a participar do governo.(...)" 211

Para Flora Süssekind, na construção da literatura ficcional no Brasil do início

do século XIX, podemos destacar alguns elementos que torna possível identificar as

origens da identidade nacional, segundo a autora:

“(...)rascunhar origens étnicas e identidades nacionais mesmo onde se vêem ruínas de aldeias e divisões políticas e sociais. Pautados não apenas na ciência da observação, mas da exclusão. E exclusão não só de um modo de olhar reflexivo, descartado em prol ora do encantamento, ora de armadura naturalístico-paisagística, mas também, na figuração territorializada do Império, de qualquer ênfase nas divisões provinciais(...)”212

.

Os relatos dos mais diversos viajantes pelo novo mundo, do século XVI,

muitas das vezes eram transportados, como criticas à violência presente, na própria

sociedade européia. Tal “superioridade” serviu de suporte para que, os viajantes do

século XIX, apresentem seu modelo de sociedade como o único, realmente possível

e humano. Modelo que seria o único capaz de trazer o gentio, o “bárbaro”, do Sertão

do Rio Doce, às luzes e as sinecuras da “Civilidade”, na dificuldade de vislumbrar

uma saída para a difícil equação da nação, em um país “sem passado”, imerso em

contradições tão fortes. A incorporação desses relatos se deu pelo caminho que

levava às exaltações da natureza.

209 MARTIUS, Carl Friedr. Phil. Von; SPIX, Jonh Bapt. Von. Op.cit. p.133210 SANT-HILAIRE, August de. Voyage dans le district des diamants et sur le litoral du Brésil. Paris.1833.disponível<http://books.google.com/books?id=Dby5zW4WLEAC&pg=PR3&dq=inauthor:auguste+inauthor:saint-hilaire&as_brr=0#PPR3,M1> acessado em 20/10/2007 211 Idem. p.p V, VI. 212 SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p.113

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Na literatura houve uma tendência de privilegiar mais a natureza por sua

“excentricidade”. Já nos projetos políticos, para a formação do novo Estado

Nacional, procurou-se exaltar o caráter útil dessa natureza, levando-se em conta,

para a grandeza e indivisibilidade do território, suas potencialidades naturais, como

seus futuros recursos.

Com idéias que remetem a Debret, Saint-Hilaire, Maximiliano, Spix, Martius,

Marlière, José Bonifácio de Andrada e Silva entre outros, constrói-se projetos para

uma Nação independente, Brasil, sempre pautados na “catequização” e

domesticação dos povos indígenas, na revisão das práticas agrícolas, na melhor

exploração dos recursos naturais, na rígida manutenção da unidade territorial e na

necessária (ainda que gradual), abolição da escravatura.

As questões sociais, que tiveram grande peso em todas as considerações,

seriam resolvidas, segundo José Bonifácio, por um “amálgama de raças” a ser

conseguido no futuro, através da miscigenação. Se as promessas da natureza

pródiga reservavam ao Brasil um futuro grandioso, a resolução de questões sociais

também passaria por um porvir, e pela condenação do passado colonial, relegando

a população a mero instrumento da construção territorial do país.

“(...) E que país é este, senhores, para uma nova civilização e para um novo assento das ciências! Que terra para um vasto e grande império!”... “[Um território] banhado pelas ondas do Atlântico, com um sem número de rios caudais”, “riquíssimo nos três reinos da natureza. (...)”213

Entretanto, para os botocudos, a catequese, “atração”, com caráter

“humanitário”, não sobreviveu por muito tempo. Com o visível fracasso da

catequese, por volta de 1829, com o afastamento de Marliere, e pela escassez de

missionários dispostos a continuá-la, bem como pela falta de bens materiais,

reduziram-se os contatos ás sedes das paróquias e as capelas. Com a interrupção

da catequese, os colonos também passaram a viver isolados em suas localidades,

fazendas e sítios, e os indígenas, no meio das matas, em estado de Guerra contra

os brancos.

213 SILVA, José Bonifácio de Andrade. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Publifolha, 2000.

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De qualquer forma, os viajantes foram responsáveis pela divulgação desse

povo no Velho Mundo, para onde foram transportados seus adereços, seus crânios,

desenhos que os representam e, por vezes, algum exemplar vivo, como o que

aconteceu com dois índios que chegaram a ser expostos no Museu de História

Natural em Paris, na década de 1880. Certamente que, com isso, os viajantes

visavam dar às suas obras um efeito de verdade. Sob a aparência de observadores

inocentes, prometem aos seus leitores conhecimentos exatos e saberes concretos,

sobre o novo mundo e os seres exóticos que este abrigava, sendo o mais esdrúxulo

dentre eles, o Botocudo antropófago. Mas também, é necessário mencionar, a

contribuição notável da cultura indígena no desenvolvimento da colonização e de

sua sociedade: os colonos recorreram muitas vezes aos seus "costumes

abomináveis" para sobreviverem, para povoar e mesmo legitimar a conquista.

Para finalizar nossas considerações sobre as perspectivas do “processo

civilizador” (métodos, ações, efeitos e possibilidades), podemos concluir que, não é

possível falar em uma mesma imagem do sertão, de sua população, e de um

mesmo sentido de civilização entre os viajantes, e entre estes e o discurso oficial do

Estado, salvo algumas situações, apresentadas em ao longo de nosso trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciarmos a nossa pesquisa tínhamos em mente uma hipótese geral sobre

a dominação através da catequese e da “civilização” dos povos indígenas do Vale

do Rio Doce, na Zona do Sertão Leste Mineiro, dominação essa centrada na História

Política e Econômica da região fazendo interfaces com outras especialidades, onde

se destaca a História Social dos Povos Indígenas que habitavam a região

principalmente os “Gentios do Botoque”.

Com esse propósito saímos a campo no intuito de buscar as fontes que

possibilitassem a nossa analise sobre o nosso objeto de pesquisa que compreende

as diretrizes da política do Estado com o uso da “guerra de extermínio” e

“aldeamentos” em relação à frente pioneira do Sertão do Rio Doce nas primeiras

décadas do século XIX. Tal propósito inicial gerou enorme volume de fontes na

primeira metade do século XIX contrastando com a quase inexistência de estudos

sobre o tema no período das três primeiras décadas dos oitocentos.

Esse aspecto quantitativo das fontes demonstrava-nos a importância do Vale

do Rio Doce para época e os caminhos percorridos para que se catequizassem seus

habitantes e colonizassem suas terras, tornando-as produtivas para o bem da nação

que nascia, isso veio despertar-nos a curiosidade por tal interesse e em saber qual a

razão por tamanho destaque dado a região na época.

Depois de debruçarmos sobre a procedência da documentação e checarmos

o foco dos assuntos tratados, chegamos a certeza de que à ênfase dada ao assunto

no período foi devido ao objetivo governamental de livrar o Sertão Mineiro da

presença da ameaça do Botocudo e disponibilizar suas terras à colonização

proporcionando a abertura de novas fontes de riqueza.

A nossa hipótese inicial se confirma a partir do momento que se verifica as

investidas na região por interesse econômico-político fazendo a interfase com o

social a partir do momento que se propõe a transformação do índio Botocudo no

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principal e mais grave fator que impedia a colonização e o aproveitamento das

riquezas da Terra a serem exploradas, levantando a necessidade de estabelecer um

dialogo entre os aspectos políticos econômicos ligados as relações e

representações sociais.

A realização do projeto de ocupação do Vale do Rio Doce exigiu ações de

natureza política e social, como a de contatar e atrair os povos nativos e promover o

povoamento da região. Tornou-se assim indispensável legislar sobre os direitos e

deveres desses povos.

A natureza do nosso enfoque propiciou um dialogo com a História Política e a

História Cultural visto que foi o Estado quem promoveu e fez Guerra de extermínio

ao índio Botocudo e ocupou o território ao mesmo tempo era necessário tratar dos

mitos construídos com a necessidade de se justificar a investida violenta do Estado

sobre essas populações nativas.

Ao nosso entender o ideal da construção da nação e de identidade

culturalmente “civilizada”, buscada através da eliminação das diferenças, foi a base

norteadora das diretrizes políticas que nortearam os administradores dos índios nas

primeiras décadas do século XIX no Brasil e conseguintemente no Sertão Mineiro.

A construção de uma nacionalidade homogênea consistia na principal

exigência para o ingresso no mundo moderno alcançando o desenvolvimento social

desejado, sendo impossível fora do âmbito da nação. Assim sendo o ideal da

dissolução das diferenças era a base do sustentáculo para o sonhado e perseguido

“progresso”.

A nossa pesquisa desenvolveu-se enfocando as três primeiras décadas do

século XIX, período no qual população dos índios Botocudos do Sertão Mineiro

quase “desapareceu”. Devido a declaração de Guerra de extermínio em um primeiro

momento e em um segundo momento a política de aldeamento e a catequização

dos nativos como diretrizes da política do Império Nascente.

Tratamos em um primeiro momento dos mitos construídos para que se

pudessem legitimar as medidas tomadas pelo Estado. Entre esses mitos a acusação

de antropofagia dos botocudos, a que não encontrando fundamentos nos

documentos das divisões militares, e que muitas das vezes não passaram de

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acusações falsas para justificar as investidas contra eles e seus territórios, dentro da

tradição portuguesa do conceito de “Guerra Justa”.

Através das divisões militares que serviram de instrumento de liberação de

terras do Vale do Rio Doce, atraíram-se os indígenas oferecendo lhes presentes e

agrados eram facilmente convencidos a viver em aldeamentos ao longo do extenso

Vale onde foram catequizados no intuito de serem “incorporados” a sociedade

nacional.

Em um primeiro momento os Botocudos do Rio Doce foram vistos como

inimigos terríveis e poderosos chegando a ser decretado contra eles guerra

ofensiva, já em um segundo momento verificou-se a fragilidade dessas sociedades

que se desestruturavam facilmente nos primeiros contatos com o colonizador e sua

cultura de dominação.

A apropriação e a manipulação de uma imagem de “ferocidade”, vinculada ao

individuo Botocudo, contribuiu para a construção das estratégias de condução das

diretrizes políticas do Estado para com esse povo nas primeiras décadas do século

XIX. Mas também as pressões e as influencias de fatos exercidos pelos indígenas

sobre os colonizadores parecem ser propiciado pela relação de contato na qual o

reflexo da imagem do outro é prontamente correspondida com a mesma violência a

ele dispensada.

Nossas fontes indicam indícios na crença de que o Sertão do Rio Doce fosse

uma fantástica zona de reserva de riquezas minerais e vegetais próxima a uma das

regiões mais povoadas e desenvolvidas da época e que se mantêm escondidas pela

densa Mata Atlântica.

Através da criação das divisões Militares do Rio Doce pela Carta Regia de 13

de maio de 1808 abre-se o Sertão a exploração de seu potencial econômico. Para

abrir os caminhos do Sertão para o seu aproveitamento foi necessário livrar a região

da presença do Gentil do Botoque, fato que contribuiu muito no aumento do choque

entre os indígenas e os lusos brasileiros.

Essas divisões militares cumpriram seu papel apoiando aos colonizadores,

posseiros, aventureiros e exploradores do Sertão do Rio Doce ao mesmo tempo em

que procurou proteger os indígenas contra os ataques do homem “branco” através

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de ações administrativas como as tomadas pelo comandante Guido Thomas

Marlière.

Essa região foi povoada por todo tipo de gente ambiciosa que vieram das

mais diversas regiões do Brasil a procura de riqueza fácil. Esses indivíduos não

possuía afeição a natureza a via como uma floresta tenebrosa que guardava

inimigos cruéis como a malaria, a febre amarela, e o índio bravio, que levavam a

morte os que atreviam penetra-la.

O Estado desempenhou o papel de mediador entre os nativos do Sertão e a

sociedade luso-brasileira, tendo seus próprios objetivos como os de apropriar-se dos

territórios, promover a catequização e a civilização dos índios do Sertão tornando a

região em produtora de novas fontes de renda aos seus cofres.

Mas podemos constatar que o Estado não foi capaz de sustentar as diretrizes

da legislação, pois faltava-lhe recursos, capacidade de controlar os interesses dos

exploradores e as dificuldades impostas pelo meio entre vários outros problemas

que surgiram na tentativa de dominação do Sertão.

Os ataques dos índios Botocudos famintos as plantações dos colonos, a

resistência dos indígenas a invasão de suas terras, as agressões de ambas as

partes foram retratadas pelos naturalistas europeus em suas viagens pelo Sertão.

Seus relatos foram usados para reforçar o clichê que exagerava o obstáculo real que

os Botocudos representavam para o processo de ocupação do Sertão do Rio Doce,

também foram usados para reforçar o ódio dos populares aos Botocudos

alimentando os imaginários através de suas narrativas de ferocidade e antropofagia.

Coube ao Estado dessa forma ordenar a invasão promovendo a valorização

da agricultura assim propiciando a integração do Sertão e sua população à

sociedade brasileira.

Para tanto as Cartas Régias e seus decretos de Guerra de extermínio no

inicio do século XIX estudadas nessa pesquisa estabeleceram as diretrizes política

indigenista para os Botocudos do Sertão servindo de modelo ao restante do país e

prevalecendo durante todo o primeiro Império até o inicio da Regência onde foi

revogada pela Lei de 27 de outubro de 1831. Colocando no papel oficialmente o fim

da Guerra de extermínio ao Botocudo, o que vimos não ter ocorrido na pratica

realmente.

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