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CÓDIGO DE ÉTICA DOS TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA DE SINAIS: QUAIS VERDADES SE CONSTITUEM NESSE DOCUMENTO SOBRE A PROFISSÃO? Daiana San Martins Goulart 1 Inscrito no campo teórico dos Estudos Culturais, este artigo tem como objetivo analisar as representações sobre os tradutores/intérpretes de Libras que constam no código de ética que regulamenta a profissão, buscando compreender de que forma tais representações constituem determinadas “verdades” sobre esses profissionais. O presente texto trata-se do recorte de uma pesquisa mais ampla, realizada no Mestrado em Educação. As políticas inclusivas vêm se referindo ao tradutor/intérprete de língua de sinais como uma forma de acessibilidade linguística às pessoas surdas, prevendo a presença desses profissionais em diversos contextos sociais em que a Libras é utilizada como meio de comunicação. Diante disso, visando configurar o campo de ação possível e as atribuições do tradutores/intérpretes de língua de sinais, em 2004, o Ministério da Educação, através do Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos da Secretaria de Educação Especial SEESP, publica o código de ética que analiso neste trabalho. Esclareço, entretanto, que esse documento foi elaborado em um momento de forte mobilização e luta das comunidades surdas e de ampliação de profissionais requeridos para intermediar a comunicação. Nesse contexto, o MEC publica, em parceria com a FENEIS 2 , o livro “O Tradutor/Intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”. A publicação foi organizada por Ronice Muller de Quadros (2004) 3 e, desde 2004, o código tem sido utilizado em cursos de formação para tradutores/intérpretes de língua de sinais, em processos seletivos na área e em documentos que se referem a essa profissão. O código de ética brasileiro é uma tradução e adaptação do manual de conduta dos intérpretes de línguas de sinais dos EUA, publicado no documento Interpreting for Deaf People, 1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especialista em Educação com Ênfase em Educação de Surdos pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação, Stricto Sensu, da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). 2 FENEIS: Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. 3 Desde a década de 90, Ronice Muller de Quadros vem realizando pesquisas na área da educação de surdos e da língua brasileira de sinais no Brasil.

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CÓDIGO DE ÉTICA DOS TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA DE SINAIS:

QUAIS VERDADES SE CONSTITUEM NESSE DOCUMENTO SOBRE A

PROFISSÃO?

Daiana San Martins Goulart1

Inscrito no campo teórico dos Estudos Culturais, este artigo tem como objetivo analisar

as representações sobre os tradutores/intérpretes de Libras que constam no código de ética que

regulamenta a profissão, buscando compreender de que forma tais representações constituem

determinadas “verdades” sobre esses profissionais. O presente texto trata-se do recorte de uma

pesquisa mais ampla, realizada no Mestrado em Educação.

As políticas inclusivas vêm se referindo ao tradutor/intérprete de língua de sinais como

uma forma de acessibilidade linguística às pessoas surdas, prevendo a presença desses

profissionais em diversos contextos sociais em que a Libras é utilizada como meio de

comunicação. Diante disso, visando configurar o campo de ação possível e as atribuições do

tradutores/intérpretes de língua de sinais, em 2004, o Ministério da Educação, através do

Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos da Secretaria de Educação Especial SEESP,

publica o código de ética que analiso neste trabalho.

Esclareço, entretanto, que esse documento foi elaborado em um momento de forte

mobilização e luta das comunidades surdas e de ampliação de profissionais requeridos para

intermediar a comunicação. Nesse contexto, o MEC publica, em parceria com a FENEIS2, o

livro “O Tradutor/Intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”. A publicação

foi organizada por Ronice Muller de Quadros (2004)3 e, desde 2004, o código tem sido utilizado

em cursos de formação para tradutores/intérpretes de língua de sinais, em processos seletivos

na área e em documentos que se referem a essa profissão.

O código de ética brasileiro é uma tradução e adaptação do manual de conduta dos

intérpretes de línguas de sinais dos EUA, publicado no documento Interpreting for Deaf People,

1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especialista em Educação com Ênfase

em Educação de Surdos pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e aluna do Programa de Pós-Graduação

em Educação, Stricto Sensu, da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). 2 FENEIS: Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. 3 Desde a década de 90, Ronice Muller de Quadros vem realizando pesquisas na área da educação de surdos e da

língua brasileira de sinais no Brasil.

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em 19654. É importante destacar que esse não é o único código de ética existente, uma vez que

a Federação Brasileira de Profissionais Intérpretes de Língua de Sinais – FEBRAPILS, em

2014, criou seu Código de Conduta e Ética5, buscando contemplar as especificidades da

tradução/interpretação no Brasil. Nesse documento, alguns princípios do código de ética da

FENEIS são mantidos, outros foram reelaborados, estando mais voltados às competências

tradutórias. Entretanto, me ocupo nesta análise do primeiro código, que teve, e ainda tem, uma

grande repercussão no país.

Assim, ao discorrer sobre a atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais, o

código de ética colaborou para estabelecer as bases da nova profissão. Contudo, interessa-me,

no documento em questão, compreender as representações da profissão e as “verdades”

apresentadas sobre a conduta desses profissionais. Portanto, durante a análise desse código e

com base nas narrativas das tradutoras/intérpretes de Libras entrevistadas em minha pesquisa

de mestrado, busquei atentar-me para as seguintes questões: Quais verdades se constituem sobre

os tradutores/intérpretes de língua de sinais no código de ética que orienta a profissão? O que

relatam as tradutoras/intérpretes de língua de sinais sobre as prescrições do código de ética?

Como esses profissionais ressignificam as orientações desse documento em diversos contextos

de atuação?

Percurso investigativo

O percurso investigativo desta pesquisa ocorreu por meio de uma revisão de literatura

sobre o tema, uma análise dos documentos que regulamentam a profissão dos

tradutores/intérpretes de língua de sinais no país, em especial do código de ética publicado em

2004 pelo Ministério da Educação, bem como de entrevista com quatro tradutoras/intérpretes

de língua de sinais de diferentes cidades do Rio Grande do Sul. As entrevistas foram gravadas

e posteriormente transcritas, selecionei para esse artigo as narrativas que faziam referência à

4 O código de conduta americano foi traduzido pelo intérprete de língua brasileira de sinais Ricardo Sander e

apresentado, em 1992, no II Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, que ocorreu no Rio de Janeiro. Nesta ocasião esse documento foi votado e aprovado pelos representantes dos estados brasileiros, passando a fazer

parte do regimento interno da FENEIS. 5 O Código de Conduta e Ética elaborado pela FENEIS não foi quase divulgado e, para ter acesso ao texto, é

preciso realizar várias consultas. No período em que fiz esta pesquisa, este código não estava disponível no site da

FEBRAPILS, o que dificulta ainda mais sua divulgação.

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ética profissional, assim como aquelas que atribuíam sentido ao código de ética que orienta a

atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais.

Buscando manter o anonimato, durante a entrevista, solicitei às colaboradas que

escolhessem um nome fictício para usarem durante a pesquisa. Os nomes escolhidos são:

Débora, Clarisse, Camila e Eduarda. Para diferenciar as narrativas das citações, os excertos

das falas das entrevistadas aparecerão, no decorrer do texto, grafados com recuo, letra em

itálico, seguidos do nome de cada colaboradora.

Código de ética e a constituição do “ser” tradutor/intérprete de língua de sinais: quais

discursos circulam sobre essa profissão?

Este documento discorre sobre a importância de um estatuto profissional para o

intérprete de línguas de sinais e defende a necessidade de se estabelecer um código de conduta

para orientar os profissionais. O código define o que seria uma adequada atitude profissional,

trazendo orientações sobre como o profissional deve se comportar em diferentes ocasiões,

ressaltando as diferenças entre a tradução/ interpretação em espaços formais e informais.

De acordo com Vinícius Nascimento (2014), embora o código de ética seja um

documento frequentemente citado nos cursos de formação de tradutores/intérpretes de língua

se sinais, ele não é um documento amplamente divulgado, explorado e, tampouco, muito

analisado no âmbito acadêmico. Ele ainda ressalta que o código de ética é um documento

prescritivo, que:

Arbitra sobre questões não negociáveis da atividade de trabalho do TILSP, pouco diz

sobre as situações que estão ligadas às inter-relações estabelecidas durante o ato de

interpretação, mas menciona a importância da fidelidade como aspecto constitutivo

do fazer laborioso deste profissional (NASCIMENTO, 2014, p. 1143).

O código de ética prescreve condutas e modos de agir (questões inegociáveis),

sublinhando aspectos que seriam indispensáveis ao trabalho de tradução/interpretação. Um

deles é mencionado no excerto anterior, e diz respeito à fidelidade (ou seja, a mensagem que

está sendo traduzida). Porém, esta fidelidade têm desafios imensos – a ambivalência da

linguagem, a impossibilidade de expressar certos sentidos de uma língua a partir da estrutura e

sentidos da outra, os diferentes níveis de proficiência na língua de sinais, o entendimento de

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termos técnicos, expressões, conceitos de um dado campo profissional ou acadêmico pelo

tradutor/intérprete e/ou pela pessoa surda a quem se dirige a mensagem, etc. Além disso, na

dinâmica da tradução simultânea, muitas questões dependem da capacidade do profissional de

improvisar e de encontrar soluções consistentes. Algumas das narrativas que analiso adiante

são exemplares para se pensar o processo de tradução/interpretação em aspectos que não podem

ser antecipados, que são parte daquilo que poderíamos chamar, com base em Larrosa (2002),

de acontecimento.

Nascimento (2014) salienta que o código de ética – assim como outros documentos

que prescrevem o que fazer e como fazer – é tomado como uma espécie de manual prático.

Todavia, nele não se explora o dinamismo das diferentes situações tradutórias nas quais o

profissional precisa fazer escolhas. Nele também não se dá visibilidade, por exemplo, ao que

há de conflituoso nesse processo que envolve expectativas de diferentes sujeitos – quem fala,

quem interpreta e quem recebe a mensagem interpretada.

O pesquisador ainda destaca que a existência desse documento colabora para a

construção de um imaginário social sobre a profissão, mas, raramente, essa representação é

problematizada. Avalia-se a conduta discrepante ou fidedigna do profissional, sem levar em

consideração o contexto em que o ato de tradução e interpretação ocorreu, sem considerar

também que todo ato de tradução é um ato de recriação (SOBRAL, 2008).

Ao referir-se à ética do profissional na área da tradução, Sobral (2008) enfatiza que ela

diz respeito à utilização dos saberes do profissional a serviço da compreensão do que é dito,

proporcionando o entendimento entre pessoas que utilizam línguas diferentes. Nesse sentido,

ele afirma:

A postura ética do tradutor, nessa sua tarefa de dar a conhecer o que “pensam” outras

culturas e de defender a diversidade, condição de avanço do mundo, é um elemento

fundamental no processo de tradução. Essa postura envolve aprimoramento constante,

auto respeito profissional, a recusa de aceitar tarefas acima da capacidade pessoal, a

dedicação permanente aos estudos – inclusive teorias da interpretação (SOBRAL,

2008, p. 125).

As argumentações do autor colaboram para atribuir grande carga de responsabilidade

ao tradutor/intérprete: sob seus ombros, o fardo de assegurar a comunicação entre mundos; de

investir em si constantemente e se manter atualizado, informado; de ajustar-se ao lugar em que

atua; mas de recusar tarefas acima de sua capacidade pessoal (e formação profissional). Sobral

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(2008) também argumenta que seria papel do tradutor/intérprete, nas suas interfaces entre

surdos e ouvintes, esclarecer sobre os direitos, deveres, atribuições e limites para seu trabalho

de interpretação.

Elisama Rode Boeira Suzana (2012), referindo-se ao código de ética, discute o

significado da palavra ética. De acordo com a autora, uma conduta ética não pode ser pensada

e definida como algo homogêneo, por outro lado, toda conduta ética é constituída por valores,

costumes e opiniões de cada cultura/grupo social. A ética profissional estaria, assim, flexionada

por distintas circunstâncias, ou seja, estaria atravessada pelos valores adquiridos pelos

profissionais nos diferentes contextos sociais e culturais onde estão inseridos. Feitas essas

breves referências ao sentido de ética, passo a fazer, a partir de então, algumas apreciações

sobre o que se estabelece nesse código de ética.

No capítulo I, o código de ética institui os princípios fundamentais para a atuação dos

tradutores/intérpretes de língua de sinais, dentre os quais destaco os artigos 2º, 3º e 5º. De acordo

com o art. 2º, “o intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da

interpretação, evitando interferências e opiniões próprias” (QUADROS, 2004). Logo, entende-

se que, durante a atuação, o tradutor/intérprete de língua de sinais deve manter-se concentrado

porque a atividade de traduzir de uma língua para outra envolve um ato cognitivo e linguístico

que exige extrema atenção.

Destaco, nesse princípio, a noção de imparcialidade, pois penso que cada pessoa é

constituída pelas diferentes experiências culturais, familiares, sociais, que, de algum modo,

“falam” nos processos de tradução. O sentido de imparcialidade é, portanto, parte de um

entendimento de que seria possível assumir uma atitude neutra, como se o intérprete pudesse

assumir a forma de um “corpo neutro”, um mero veículo de comunicação, capaz de executar a

tarefa de tradução/interpretação sem intervenções.

Pergunto, no entanto, se, ao traduzir/interpretar, não estariam também envolvidas

nossas emoções, nossas convicções, nossas formas particulares de ver o mundo. Tal questão

me fez prestar atenção a certas narrativas das profissionais que entrevistei, pois nessas falas é

possível perceber que o ato de traduzir e interpretar escapa a qualquer tentativa de normatização

e ou padronização descrita no código de ética. Portanto, trago a seguir excertos das entrevistas

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que comprovam essa característica de construção e recriação que envolve o processo de

tradução e interpretação.

Sempre tem algo relacionado ao código de ética que tu acaba tendo que

ressignificar para o teu espaço. É como eu já falei: enquanto profissional tu prevê

um distanciamento do aluno, mas involuntariamente, até por ser uma comunidade

pequena, tu acaba te envolvendo... mesmo que isso possa não influenciar a tua

questão profissional e a tua questão ética (Clarisse).

As colocações de Clarisse remetem principalmente ao espaço educacional, onde

diariamente o tradutor/intérprete de libras está junto aos alunos. Por mais que esse profissional

procure manter um distanciamento, o próprio fato de conviver com as mesmas pessoas já

proporciona um vínculo, além disso, é preciso considerar que os intérpretes não são máquinas

desligáveis, pois eles se comunicam com os surdos em outros espaços e há, em muitos casos,

vínculos de amizade que se constituem e que precisam estar sob controle durante os momentos

de atuação, mas que não se apagam nem se rompem, uma vez que eles estão presentes e

constituem os tradutores/intérpretes e surdos no contexto de enunciação. De acordo com

Eduarda:

Se pensar, eu acho que sim, tu tens que estar imparcial no sentido de não interferir

na informação, mas o processo de interpretação nunca é imparcial, porque as

coisas vão passar por ti, pelo que tu sabe, e claro que, às vezes, para não interferir

na interpretação, tu usa a datilologia ou usa um português sinalizado6, palavra –

sinal, para tu te “eximir” daquela interpretação. Mas, se pensar nos estudos da

tradução e interpretação, até que ponto tu é fiel aos discursos? (Eduarda).

Na narrativa de Eduarda é possível constatar os conflitos que os tradutores/intérpretes

enfrentam durante sua atuação, buscando estratégias como o uso da datilologia e do português

sinalizado como forma de reconstituir o sentido da mensagem o mais próximo do “original”.

Contudo, conforme menciona Eduarda, não há como negar as “interferências” dos

tradutores/intérpretes na mensagem a ser transmitida.

6 Essa forma de comunicação consiste em fazer um sinal para cada palavra da língua portuguesa. Diferente de uma

tradução/interpretação, nesta última não há correspondência palavra-sinal porque se traduz o sentido da mensagem,

fazendo-se as adaptações necessárias de uma língua para outra e respeitando as diferenças que existem em ambas

as línguas e suas especificidades culturais.

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De acordo com Martins (2009, p. 103), “a neutralidade não pode ser vista de forma

dissociada ao processo de formação social do intérprete”. Também para Sobral (2008), não há

neutralidade no trabalho de um tradutor/intérprete, ao contrário, ao traduzir um texto e/ou um

discurso, o profissional promove alterações, criando nesse processo novas relações enunciativas

que se materializam no ato da tradução. Devido a isso, o autor compara o processo de

tradução/interpretação ao de coautoria, uma vez que a mensagem original (a do autor) passa de

uma língua a outra, e, nessa passagem, se modificam as formas de comunicar, de modo a dar

sentido à mensagem (recriada).

Destaco a fala de Eduarda ao referir-se a “neutralidade”. Segundo ela, “se tu pensar

na tradução e na interpretação, elas sempre vão passar pelo que tu sabes, pelo que tu viveu, e

até pelas tuas opiniões”. Na mesma direção, Silva (2013) enfatiza que uma tradução literal,

sem nenhuma adaptação linguística (e mesmo estilística), não deixará clara a mensagem a ser

transmitida. Para ela, a neutralidade seria inviável na tradução:

Se o intérprete revestisse, verdadeiramente, a manta da neutralidade, o que é

impossível em qualquer ato comunicativo, implicaria em comprometimento com o

objetivo principal de sua presença em sala de aula, qual seja, mediar os processos de

ensino e aprendizagem dos alunos surdos (SILVA, 2013, p. 82).

Silva (2013) ainda ressalta que isso não implica pensar que o tradutor/intérprete atue,

em espaços educacionais, como professor. O que ele faz é utilizar suas competências

referenciais para adaptar o conteúdo a ser traduzido por meio de estratégias que proporcionem

o entendimento do assunto abordado. Penso que, além do exposto, é preciso considerar também

que a reconstrução de enunciados é feita por um sujeito situado em certo lugar social, que pensa,

vive, sente as coisas de seu jeito, e, portanto, está atravessado por fatores sociolinguísticos,

como também culturais e por experiências pessoais do profissional.

No Art. 3º do código consta que “o intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor

da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a intenção e espírito do palestrante”

(QUADROS, 2004). Neste artigo, salienta-se que o profissional deveria tornar o ato tradutório

praticamente “invisível”, de modo a fazer prevalecer a mensagem “original” (aspecto que já

pontuei anteriormente). Reafirma-se, nesse documento, a crença numa certa “pureza” no ato da

tradução, que poderia ser alcançada mediante vigilância, método e treino. Também gostaria de

questionar, aqui, a noção de que seria possível “transmitir o pensamento, a intenção e o espírito

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do palestrante”, o que parece supor não apenas a transparência da língua, como meio de

comunicação, como também a crença na total tradutibilidade dos enunciados.

De acordo com Sobral (2008), o significado de fidelidade em uma tradução vem sendo

defendido, por alguns teóricos da área, como uma “essência” do texto original que deve ser

preservada em qualquer língua, ou seja, esses profissionais acreditam que, para ser fiel, seria

preciso manter o sentido “original” da mensagem, sem alterações, traduzindo termo a termo e

mantendo certa coerência com a cultura de partida. Ele argumenta que, isto não é possível, e

defende que ser fiel é traduzir um texto e/ou mensagem considerando os sentidos

correspondentes entre uma língua e outra e realizando as adaptações linguísticas e culturais

necessárias na reconstrução do texto de partida.

Entende-se, assim, que os discursos traduzidos não são cópias fiéis do original, não

havendo como transpor um conteúdo de uma língua para outra de forma compreensível sem

considerar os fatores culturais presentes nessas relações. Além das diferenças linguísticas e

culturais presentes nesse processo há também a presença do tradutor, que não é neutra, pelo

contrário, uma vez que suas experiências também estarão presentes nesse processo. Para

Débora:

Na fidelidade das coisas que estão sendo ditas eu acho que tem suas ressalvas, e não

é só com a Libras, qualquer língua, ela tem uma estrutura própria, e tu não consegue

passar cem por cento do significado de tudo que foi dito em uma língua para outra.

Às vezes tu precisa pegar o essencial... tu precisa pegar o que o “outro” quis dizer...

depende da nossa interpretação (Débora).

O que implicaria, então, “ser fiel” em um ato de tradução/interpretação? Não pretendo

oferecer respostas a uma questão como essa, com tamanha complexidade, entretanto, penso

que, ao invés de buscar uma suposta fidelidade – num sentido que não poderia ser alcançado –

poderíamos afirmar que o trabalho do tradutor/intérprete de Língua Brasileira de Sinais deve se

sustentar em escolhas lexicais necessárias para a adequação da mensagem ao contexto de outra

língua, considerando o público a que se destina a tradução/interpretação.

O último destaque que gostaria de fazer (sobre o capítulo I, do código de ética) diz

respeito ao disposto no Art. 5º, que afirma que: “o intérprete deve adotar uma conduta adequada

de se vestir sem adereços, mantendo a dignidade da profissão e não chamando atenção indevida

sobre si mesmo, durante o exercício da sua função” (QUADROS, 2004). Há, no código de 2004,

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prescrições sobre as formas de vestir e adornar o corpo que, nos dias atuais, soam bem mais

como intromissões no plano individual, no âmbito da vontade, das preferências e dos estilos

dos sujeitos. A prescrição diz respeito a um entendimento de que cores neutras favoreceriam a

compreensão da mensagem sinalizada pelo receptor, já que a língua de sinais é visual. Para

além desse aspecto, pode-se pensar em razões relacionadas a certa moralização do profissional

– tal como se processou a moralização do corpo do professor. Portanto, essa orientação faria

parte do “pacote” da boa conduta, de conduzir esse corpo que é veículo, que se exime de

expressar opiniões e preferências, de exibir marcas. Ou seja, um corpo que se contém para fazer

fluir a mensagem.

O capítulo 2 do código de ética trata das relações com o contratante do serviço de

tradução, dispondo em seu Art. 6º que: “o intérprete deve ser remunerado por serviços prestados

e se dispor a providenciar serviços de interpretação, em situações onde fundos não são

possíveis” (QUADROS, 2004). Chamo atenção para a ambiguidade desta afirmação – ao

mesmo tempo em que ela permite pensar no reconhecimento profissional, afirma a atuação dos

tradutores/intérpretes como voluntária, reforçando, assim, a concepção assistencialista que

marca historicamente essa profissão.

Também no capítulo 3, Art. 12, este aspecto é reforçado quando afirma: “o intérprete

deve esforçar-se para reconhecer os vários tipos de assistência ao surdo e fazer o melhor para

atender as suas necessidades particulares” (QUADROS, 2004). Além de reforçar uma atitude

assistencialista, o documento parece atribuir aos tradutores/intérpretes uma responsabilidade

que vai além de sua função. Reconhecer os vários tipos de assistência e atender as necessidades

dos surdos é uma responsabilidade das instâncias governamentais e envolve a criação de

programas e políticas que contemplem as especificidades dos sujeitos surdos, inclusive quanto

à acessibilidade linguística. Nesse sentido, Eduarda enfatiza: “O código de ética deveria ser

discutido amplamente... deveria contemplar o direito do intérprete de condições de trabalho.

Eu acho que a questão da dupla deveria estar ali garantida. (Eduarda)”.

As considerações de Eduarda são extremamente pertinentes para refletirmos sobre o

processo de profissionalização dos tradutores/intérpretes de língua de sinais, uma vez que o

código garante os direitos à acessibilidade linguística dos surdos, mas não se ocupa diretamente

com a profissionalização dos tradutores/intérpretes. Ele respalda essa atuação, mas descreve o

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profissional tradutor/intérprete de língua de sinais ora como um “não humano”, alguém neutro

e imparcial – como se essa condição fosse possível –, e, por vezes, como alguém com viés

assistencialista que deve “providenciar atendimento ao surdo” (QUADROS, 2004).

Para Nantes (2012) e Silva (2013), é necessária uma reformulação do código de ética

não apenas para contemplar as mudanças ocorridas na profissão, como também para incluir

problemáticas que ficaram “de fora”. Também se pode indagar, nesse contexto, se a afirmação

da necessidade de atualização desse código não acomodaria uma vontade de controle sobre a

ação desses profissionais – uma vez que o que está de fora deveria ser incluído é porque se

considera que este documento tenha relevância.

É importante salientar que existem outras proposições de código que disputam esse

lugar de “verdade” sobre como deveriam atuar os tradutores/intérpretes de língua de sinais. Um

exemplo é o Código de Conduta e Ética, da FEBRAPILS, mencionado anteriormente. Tal

documento apresenta orientações mais voltadas às especificidades da tradução/interpretação da

Língua Brasileira de Sinais. Apesar de mais atual, este código não possui o prestígio e a

aceitação do anterior, que continua sendo reconhecido e utilizado como uma referência para a

atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais em todo o país e é apresentado em muitos

cursos de formação, como uma espécie de manual a ser seguido.

Cabe questionar o porquê esse código de ética, lançado em 2004, permanece com tanta

credibilidade até os dias atuais. Acredito que a capacidade de fornecer respostas é uma condição

que coloca esse documento em uma posição de destaque, pois ele diz o que pode e o que não

pode ser realizado pelo tradutor/intérprete, servindo como um regulador de conduta. Considero

importante destacar que minha análise sobre ele não é no sentido de julgá-lo como algo positivo

ou negativo, pelo contrário, busquei compreender seu potencial em permanecer, por tantos anos,

como uma referência nesta área, principalmente quanto à constituição e manutenção de

verdades sobre esses profissionais. Durante minha atuação, muitas vezes, recorri – e ainda

recorro – a este código como um respaldo, sentindo as mesmas necessidades relacionadas à

profissão como consta nos relatos das tradutoras/intérpretes de libras entrevistadas.

Observei nas narrativas das profissionais entrevistadas que embora existam algumas

reivindicações dos profissionais quanto à inserção neste documento de questões voltadas para

a tradução e interpretação e para as condições de trabalho, sempre que é necessário pautar os

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limites de atuação e esclarecer sobre questões pertinentes ao desempenho profissional, esse

documento é utilizado. Isso fica evidente quando Camila menciona: “Muitas vezes utilizei o

código de ética para dizer que eu sou profissional! Quando o professor me questiona: Que

garantia eu tenho de que tu não vais dar cola? Eu digo: tá aqui no código de ética”. Dessa

forma, os sentidos atribuídos à profissão pelo código de ética são negociados pelas

tradutoras/intérpretes, pois ele não é assumido como uma ferramenta de trabalho, mas como

um respaldo à profissão e atuação, principalmente quando sua conduta é questionada e posta

sob suspeita.

Os aspectos destacados e analisados neste artigo tem relação com as práticas

representacionais. Tomaz Tadeu da Silva (2014) afirma que a representação diz respeito aos

sistemas de significação e de atribuição de sentido: “Como tal, a representação é um sistema

linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”

(SILVA, 2014, p. 91). De acordo com o autor, é por meio da representação que a identidade e

a diferença adquirem sentido.

Os resultados encontrados na pesquisa permitem entender que o código de ética

descreve as atribuições desses profissionais e, ainda, prescreve condutas voltadas para a

regulação de seu corpo, conformando-o ora como veículo de comunicação, ora como parte do

processo comunicacional e da produção de significados no uso das línguas. Observa-se,

também, a permanência de sentidos da profissão ligados ao voluntariado, que a configuram com

certo caráter assistencialista.

As pesquisas centradas sobre o tema indicam que há representações convergentes e,

em outros casos, divergentes, sobre o código de ética, concernentes às lutas pela

profissionalização e aos sentidos da atuação. Já a análise das narrativas de tradutoras/intérpretes

de língua de sinais mostra que os sentidos atribuídos à profissão pelo código de ética são

negociados, e que este código tem sido assumido como uma ferramenta de trabalho a fim de

respaldar a profissão, principalmente quando a conduta destes profissionais é questionada e

posta sob suspeita.

Além disso, observa-se que os significados produzidos vão além da prescrição de

condutas, eles envolvem aspectos subjetivos, colaborando para constituir perfis profissionais,

embora a leitura e o uso deste código sejam negociados, ora aderindo mais, ora menos a tais

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prescrições. Nesse sentido, as tentativas de padronizar uma determinada forma de atuar como

tradutor/intérprete de Libras escapam, vazam e, na prática, constituem-se a partir da

imprevisibilidade e instabilidade dos acontecimentos.

Referências

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