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  • No h como pensar em fico cientfica sem lembrar primordialmente de Isaac Asimov. Cari-nhosamente chamado pelos fs de O Bom Doutor, ele uma das referncias mximas deste gnero li-terrio, e no apenas entre os leitores, mas tambm para outros autores de reconhecido talento, que h dcadas tm se inspirado em suas ideias originais.

    Com uma extensa bibliografia, que inclui contos, novelas e romances, alm de vrios artigos cientfi-cos e trabalhos como organizador de antologias, Asi-mov traz em seu currculo a prova irrefutvel de que a unio de qualidade e quantidade possvel. Seus festejados trabalhos, seja como autor de fices lite-rrias, ou ento no valioso ofcio de divulgador do conhecimento (o que fez em vrias reas do saber), sobrevivem inclumes passagem do tempo. Mais do que isso: o Bom Doutor no cessa de conquistar novos admiradores. Alis, muitos jovens leitores so apresentados fico cientfica por intermdio de suas obras.

    , portanto, com imenso orgulho que o fanzine Somnium presta esta homenagem a Isaac Asimov. claro que no se pretende aqui tecer comentrios sobre toda sua produo (trabalho que, ademais, se revelaria sempre incompleto, por mais que nos es-forssemos). Trata-se apenas de uma maneira de expressar nossa gratido pelo majestoso legado que Asimov nos deixou e, quem sabe, instigar a curiosi-dade dos leitores acerca de algumas obras do Bom Doutor que talvez ainda no conheam.

    Apesar do escopo singelo desta edio, creio que conseguiremos mostrar com eficincia o carter multifacetrio do talento de Asimov. O leitor ter acesso a comentrios e/ou resenhas de publicaes famosas, e, em contrapartida, a apontamentos sobre obras de fico menos conhecidas (como Azazel, trabalho que nos remete veia humorstica do Bom Doutor), alm de consideraes acerca de alguns trabalhos de no fico.

    A arte de capa intitulada Edith & Timmie uma criao de Marcelo Bighetti e foi inspirada no conto O Garotinho Feio, publicado originariamen-te em 1958 sob o ttulo Lastborn (no ano seguinte, recebeu a tradicional denominao The Ugly Little Boy) e lanado no Brasil por intermdio da cole-tnea Sonhos de Rob. Alis, na opinio de muitos, um dos textos mais arrebatadores de Asimov, pro-vavelmente por ter o mrito de conseguir, de forma simultnea e com igual eficincia, instigar as mentes cientficas e encantar pela carga emocional.

    Os textos (e respectivos autores) que apresentare-mos para homenage-lo so os seguintes:

    Isaac Asimov: entre robs, imprios ga-lcticos e outros mundos (Marcello Simo Branco);

    827EraGalctica(Daniel Borba)

    Volta de um clssico ao Brasil TrilogiaFundao (Marcello Simo Branco);

    E D I T O R I A L

  • IsaacAsimoveosLegadosquaseCaticosdesuaObra-TrilogiaPs-Foundation (Ri-cardo Frana);

    CaaaosRobs (Marcelo Bighetti);

    OsPrpriosDeuses (Ricardo Guilherme dos Santos);

    OFimdaEternidade (Dario Andrade);

    Azazel (Daniel Borba);

    IsaacAsimov:obraensastica (Edgar Indale-cio Smaniotto)

    Por outro lado, o Somnium no pode ficar sem os tradicionais contos. Eles antecedero a homenagem a Isaac Asimov. Segue uma breve apresentao deles:

    Do Mar (Fred Oliveira): O professor Jlio um dos sobreviventes ao Dia. Ele est em busca de equi-lbrio em meio ao caos de sua mente e de todo o ambiente ao seu redor. O cenrio ps-apocalptico expe graves flagelos sociais e indica que h outros espreita, dentre eles algo que pode no ser deste mundo. Tudo que resta a Jlio a luta pela sua so-brevivncia (e a de quem mais conseguir proteger), enquanto ainda lhe remanescerem foras. Em meio aos suplcios, fica a questo: quem ser o verdadeiro inimigo?

    Insone (Octvio Arago): A pausa para o caf traz tona lembranas de momentos que marcaram a existncia do Insone. Vivenciando a tenso que an-tecede o clmax do projeto que chefia, ele se questio-na. Que tipo de pessoa teria se tornado? A criana, o jovem e o adulto, um nico ser, agora num momen-to de contrariedade e reflexo. De tormenta. O que o estaria deixando to apreensivo? Talvez, a preocupa-o com algo que parecia inquietar muito tambm a mente do autor homenageado nesta edio.

    A Mquina dos Sonhos (Joo Solimeo): O dra-ma do escritor atormentado pela ausncia de novas inspiraes. Embora desperte rotineiramente com a lembrana de ter sonhado com uma ideia genial, ela sempre lhe escapa da mente antes que consiga transcrev-la. Quando o dilema parecia no ter so-luo, eis que surge a notcia da fantstica mquina criada pelo Dr. Alptraum, que seria capaz de gravar sonhos. Poderia ser apenas uma engenhoca de um cientista maluco. Ou, quem sabe, uma verdadeira maravilha tecnolgica.

    Estranhas no Paraso (Jorge Luiz Calife): Uma l-grima de fogo caiu do cu, abrindo uma clareira na floresta de Kellyni, sul de Eloh. Liana, a mais sbia das themis (fadas, para os forasteiros), decide inves-tigar o estranho acontecimento. Na regio da queda, ela se depara com uma bela mulher chamada Ange-la, acompanhada por uma graciosa garota que esta-va procura de drages azuis. Para surpresa de Lia-na, ambas vinham de outro universo. Elas estavam prestes a viver uma grande aventura. Uma visita de Calife ao universo Hegemonia, criado por Clinton Davisson.

    A Lista: A ltima Supernova (Renato A. Aze-vedo): O universo agonizava. A vida na Terra era sustentada pela insuficiente energia de um buraco negro, o que condenava os humanos a uma hiber-nao. Ysaac Vergne era uma das poucas pessoas liberadas desta obrigao. Ele teve acesso a uma an-tiga teoria cientfica, a partir da qual vislumbrou a possibilidade de comunicao entre habitantes de realidades paralelas e, possivelmente, de se efetu-ar troca de matria entre elas. A Lista, um frum transdimensional, passou a representar uma grande esperana para a humanidade. Talvez a ltima.

    Dio, come ti ho amato! (Amanda Reznor): Ada, uma modelo italiana, casou-se com um rico polo-ns. Juntos, passaram a habitar uma grande e luxu-osa casa na regio rural da Polnia. O cenrio pa-recia ideal para o incio de um perodo de grande felicidade. Parecia. Ada logo comea a experimentar um grande incmodo, a vivenciar, entre o sono e a viglia, estranhos e terrveis acontecimentos. Apenas alucinaes? Da felicidade desconfiana, da lux-ria ao medo. Preparem-se: uma aura de terror tenta vir tona. Ela poder invadir o nosso Somnium. E no apenas ele.

    10 Opes (Marcelo Bighetti): O dilema de uma mquina diante do processo de aquisio de auto-conscincia. Uma nova realidade, muito mais com-plexa daquela a que seus processadores se habitua-ram a conhecer, comea a ser detectada. O despertar da curiosidade e a fascinao diante da possibilidade de tomar decises, mesclados apreenso frente ao desconhecido. Ter conscincia da prpria existncia e da realidade resulta na faculdade de fazer suas pr-prias escolhas. Um poder-dever, que deve implicar na compreenso de que cada opo gerar consequ-

  • ncias.

    Nas Sombras da Loucura (Roberta Spindler): Para desconfiana do Dr. Augusto Pereira, o misterioso Wesley Levy recebe a visita de algum que se apre-sentou como mdico da famlia. Um homem de apa-rncia desleixada e suspeita, que decidira aparecer no sanatrio em plena madrugada. Obedecendo a uma igualmente suspeita determinao superior, Augusto permite a entrada do sujeito no estabeleci-mento, mas decide alert-lo acerca das esquisitices de Wesley e sugere um adiamento da visita. Entre-tanto, talvez o encontro do mdico com o paciente seja inadivel.

    Aps a homenagem a Asimov, teremos a parte 3 desta edio, composta por uma resenha de um cls-sico de Vernor Vinge no lanado no Brasil (texto de Fred Oliveira), alm da estreia no Somnium da coluna Observatrio da literatura especulativa brasi-leira, bem como da anlise dos episdios 848, 849 e 850 de Perry Rhodan (textos de Edgar Indalecio Smaniotto).

    Posso estar enganado, mas tenho vislumbrado um aumento no apenas na produo, mas tambm na divulgao da literatura fantstica em lngua por-tuguesa. Na edio 108, fiz uma rpida citao no Editorial revista Bang!1 (tambm mencionada no artigo assinado por Joo Vagos). Desta vez, gosta-ria de registrar tambm a Trasgo2, publicao digital que recentemente disponibilizou sua edio n 04 e que tem apresentado contos e entrevistas com auto-res brasileiros.

    muito bom ver a literatura fantstica sendo difundida por novos veculos, embora me parea existir ainda um longo caminho a percorrer at que

    nossos autores recebam o importante incentivo de se sentirem lidos por um pblico maior, transpondo as fronteiras do fandom. A produo de fico cien-tfica no Brasil, em especial, carece de maior visibi-lidade. Que surjam, ento, outros meios de divulga-o e que eles possam propiciar uma aproximao cada vez maior entre autores e leitores do universo fantstico.

    Bem, isso. Contos nacionais, resenhas e aponta-mentos diversos, alm de textos em homenagem ao Bom Doutor os aguardam. Creio que vocs estaro em agradvel companhia.

    Sendo assim...

    Faa-se a luz!

    Ricardo Guilherme dos SantosEditor

    1 Website: http://revistabang.com/ 2 Website: http://www.trasgo.com.br/

    http://revistabang.com/http://trasgo.com.br/http://revistabang.com/%20http://www.trasgo.com.br/%20%20

  • Somnium Edio 110, novembro de 2014

    Editor responsvel: Ricardo Guilherme dos Santos

    Ilustrao da Capa: Edith & Timmie de Marcelo Bighetti

    Layout da Capa e Diagramao: Marcelo Bighetti

    Colaboradores: Fred Oliveira

    Octavio Arago

    Joo Solimeo

    Jorge Luiz Calife

    Renato A. Azevedo

    Amanda Reznor

    Marcelo Bighetti

    Roberta Spindler

    Marcello Simo Branco

    Daniel Borba

    Ricardo Frana

    Marcelo Bighetti

    Dario Andrade

    Edgar Indalecio Smaniotto

    CLFC - gesto 2013-2015

    Presidente: Clinton Davisson Fialho - scio n 546 (Rio de Janeiro - RJ)

    Secretrio-Executivo: Daniel Fusco Borba - scio n 547 (So Paulo - SP)

    Tesoureira: Amanda Reznor Scia n 591 (So Paulo - SP)

    Webmaster: Hugo Vera - scio n 465 (So Bernardo do Campo - SP)

    Contatos: [email protected]

    www.clfc.com.br/somnium

    mailto:contato%40clfc.com.br?subject=http://www.clfc.com.br/somnium

  • NDICE

    Contos8 Do Mar (Fred Oliveira);

    23 Insone (Octvio Arago);

    25 A Mquina dos Sonhos (Joo Solimeo);

    27 Estranhas no Paraso (Jorge Luiz Calife);

    35 A Lista: A ltima Supernova (Renato A. Azevedo);

    45 Dio, come ti ho amato! (Amanda Reznor);

    53 10 Opes (Marcelo Bighetti);

    56 Nas Sombras da Loucura (Roberta Spindler)

    Homenagem-IsaacAsimov61 Isaac Asimov: entre robs, imprios galcticos e outros mundos (Marcello Simo Branco);

    65 827 Era Galctica (Daniel Borba)

    67 Volta de um clssico ao Brasil Trilogia Fundao (Marcello Simo Branco);

    70 Isaac Asimov e os legados quase caticos de sua Obra- Trilogia Ps-Foundation (Ricardo Frana);

    73 Caa aos Robs (Marcelo Bighetti);

    75 Os Prprios Deuses (Ricardo Guilherme dos Santos);

    78 O Fim da Eternidade (Dario Andrade);

    81 Azazel (Daniel Borba);

    83 Isaac Asimov: obra ensastica (Egdar Indalecio Smaniotto).

    TextossobreObrasdeOutrosAutores-Resenhas88 A Fire Upon the Deep, de Vernor Vinge (por Fred Oliveira);

    90 Observatrio da literatura especulativa brasileira (Edgar Indalecio Smaniotto);

    94 Perry Rhodan (Edgar Indalecio Smaniotto).

    97 FotosdoBomDoutor

  • C O N T O S

  • um conto de

    FredOliveira

    Do Mar

    Como cair do cu to simplesQueda que a tudo e a todos transforma

    Ah! As bombas, a chuva, os anjos e os loucosO mundo todo na velocidade terrvel da quedaO mundo todo na velocidade terrvel da quedaResvalando em abismos um pr-do-sol furioso

    Que a sensao de perda ao ver exagera o desespero vermelho de um apocalipse luminoso

    (A Queda Lobo)

    Jlio abriu os olhos, tornando a fech-los imediatamente ante o claro escarlate que queimava a sua alma mesmo atravs das plpebras cerradas. Era o Dia novamente, a luz, os gritos, o fogo glido que dizimava tudo o que toca-va. Era a morte, atrasada, equivocada, finalmente dignando-se a lhe dar, em um instante congelado no fim de tudo, um pouco da sua ateno, da sua misericrdia vacilante. Mas havia algo errado. Di-ferente, a bem da verdade. Era a cor. Deveria ser um rosa violceo, fagulhas azuis danando selva-gemente em seu interior. E o som. No era aquele. Estava certo que no. Jlio se lembrava do rudo que acompanhou o aniquilamento. Jamais o esque-ceria. Como vozes mortas, lamentando ou louvan-do o horror que se multiplicava a cada ataque. O som que escutava agora era raivoso. Intermitente. Insistente e arrogante tambm. Uma voz de ho-mem. Jlio abriu os olhos mais uma vez, lenta-mente, incerto do que veria. Temeroso. Uma voz feminina, mais baixa, se contrapunha masculina. Por um instante louco, Jlio soube que Lcia es-tava de volta, que discutia, como era de seu feitio, que brigava com algum, lutava por sua vida, que precisava de sua ajuda desesperadamente e, quem sabe, dessa vez, houvesse tempo. Virou o rosto. O resto de luz que escapava do horizonte de prdios destroados tingia o cu de um vermelho profun-do, rubro como sangue recm-derramado. Havia adormecido, exausto, encarando uma rachadura

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    larga o suficiente para permitir a entrada de uma luminosidade mortia, agonizante, mas ainda ca-paz de cegar, ao menos por alguns segundos. Jlio esfregou os olhos doloridos e marejados e voltou a sua ateno para a discusso que acontecia a poucos metros de si.

    meu por direito! Me arrisquei, fui l fora, no meio dos escombros, do lixo, do fogo, de tudo! Eu trouxe, meu!

    Eu sei que seu, eu j me desculpei, meu filho tava com fome, ele viu e pensou...

    Pensou que podia levar o que dos outros, n? Ladrozinho safado! isso mesmo! Marginal, ma-loqueiro sem-vergonha o que ele !

    Moo, pelo amor de Deus, foi sem querer, ele devolveu, eu mandei ele devolver, no precisa...

    No precisa o caralho! Sabe o destino que ban-dido merece? Sabe?!

    Eu no sei. Qual ?

    Jlio interrompeu a discusso, fazendo um es-foro controlado para manter sua voz calma e bai-xa. O homem virou-se, assustado, os olhos esbuga-lhados, fios finos de cabelo castanho claro caindo sobre a testa brilhante de suor. Era branco. A pele, queimada impiedosamente pelo sol recifense, era de um tom rosa cmico, turstico quase. Arquejava profundamente, um som rascante que entrava pelo nariz estreito, passeava com dificuldade pelos pul-mes enegrecidos e fugia rapidamente do que havia encontrado l dentro pela boca entreaberta, respin-gos de saliva em sua moldura. O olhar de Jlio mo-veu-se lentamente da papada decorada de pelos cla-ros, passando pelo peito arfante e largo, detendo-se, por alguns momentos, no seu punho direito, lvido e cerrado. Preparado. Voltou-se para sua antagonis-ta. No era Lcia, claro, mas uma menina, magra, cabelos longos e ondulados, pele morena clara e olhos castanhos. O rosto ossudo estava banhado de lgrimas. A mo esquerda erguia-se, hesitante, na direo do homem branco, enquanto que a direita escondia, atrs de sua saia longa, um menininho, igualmente magro, que chorava desesperadamente, da maneira que s as crianas pequenas sabem fa-zer, agarrado aos panos sujos. Jlio voltou a encarar

    o homem. Com o canto do olho, percebia as pesso-as ao redor, todas famintas, exaustas e amedronta-das. Ningum fazia nada. Apenas observavam, com uma ansiedade desapegada.

    Ele... Esse moleque safado, ele pegou, ele ROU-BOU, foi, ele meteu a mo, ia comer tudo, me deixar sem nada, nada, NADA!

    O homem segurava furiosamente uma lata, tal-vez de sardinhas ou atum, em sua mo esquerda. Era a mesma mo que apontava para a garota acu-ada e a criana chorosa, que j haviam retrocedido quase at uma das paredes do galpo. Jlio cruzou os braos e inspirou profundamente. Estava cansa-do.

    O menino no sabia que no podia pegar. Mas j devolveu. Tudo certo. Pra que esse aperreio?

    Tudo certo?! Esse pivete, esse sem-vergonha, isso roubo, roubo, ROUBO! Quem rouba uma vez, rouba duas vezes, rouba trs, quatro, vai querer roubar tudo o que eu tenho, que j quase nada, porque essa rapariga dessa me dele mandou e...

    Ningum mandou nada, ningum roubou voc. E ningum quer ouvir os seus gritos. Baixe seu tom de voz. Agora.

    Baixar meu... T me mandando calar a boca?! T? T pensando o que, falando comigo desse jeito? T pensando que gente, t? T pensando, seu...

    Seu o qu? Termine a frase.

    Jlio descruzou os braos e deu um passo na di-reo do homem. No era exatamente musculoso, embora alto. Tampouco era particularmente co-rajoso e os nicos conflitos de natureza fsica nos quais havia se envolvido em toda a sua vida foram as disputas com os irmos. O mais velho o espan-cava, Jlio aprendia os golpes e os aplicava alegre-mente no caula, que se tornara um mestre da arte da guerrilha, coiceando os irmos quando distra-dos e batendo em retirada para a guarita das pernas da me. A mesma ttica utilizada pelo rapazinho sua direita, mas Jlio tinha dvidas se o homem se deixaria deter pelo escudo materno. Suspeitava mesmo que sua presena talvez no fosse suficiente para faz-lo mudar de ideia. Mas sabia que era o nico ali que talvez o fizesse hesitar. Jlio no era

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    o lder daquele grupo. No havia nada semelhan-te, mas era frequente que os outros sobreviventes o procurassem em busca de conselhos, indecisos quanto ao melhor curso de ao a tomar naqueles dias de total incerteza. A menina abrigando o filho assustado havia sido sua aluna antes do Dia, uma gravidez adolescente, indesejada, mas que no a im-pediu de concluir o Ensino Mdio nem de prestar o vestibular. E passar. Pedagogia, chutou Jlio, de si para si, sem conseguir lembrar, naquele momento, de algo que simplesmente no fazia mais o menor sentido no mundo que agora habitavam. A garota continuava tratando-o pelo ttulo dos tempos de escola, que rapidamente se tornou um apelido en-tre os sobreviventes daquele pequeno grupo. Jlio j calculara, distraidamente, que talvez angariasse um certo respeito ou at autoridade por isso. Uma questo de postura, talvez. Esperava que fosse o su-ficiente para demover o homem sua frente, que o olhava com um misto de nojo e raiva histrica.

    Ento? Voc ia me chamar de alguma coisa. Pode falar.

    Jlio pde perceber uma movimentao tmi-da, pessoas se posicionando mais ou menos ao seu lado ou atrs de si, aproximando-se lentamente da menina e seu filho, que havia finalmente parado de chorar. O homem lanou um olhar enraivecido em derredor.

    por causa de vocs! Gente que nem vocs! Eu sou advogado! Sou doutor! Ia pra igreja todo do-mingo, rezava, at esmola eu dava! Esmola! Isso no era pra ter acontecido comigo! Eu no devia estar aqui com vocs!

    Pois ento, saia. V embora do galpo. Nin-gum vai te impedir.

    O homem fechou a mo furiosamente em torno da lata. Jlio conseguia escutar o barulho do metal fino amassando levemente. Grande coisa. Jlio que-ria ver era ele abrir o invlucro na dentada. Permi-tiu-se um sorriso quase ausente. O homem o enca-rou, olhando descontroladamente para seus lbios grossos. Jlio se preparou para o golpe, retesando os msculos das costas e encolhendo um pouco os ombros. Mas o homem no ergueu a mo. Lenta-mente, rodopiou sobre o prprio eixo e se afastou.

    Lanou um ltimo olhar injetado para Jlio e o res-to do grupo, antes de marchar duramente para um canto mais afastado do depsito. Jlio soltou o ar contido lentamente, enfiando nos bolsos da cala as mos trmulas. Ningum precisava v-las. No ti-nha muita segurana de que levaria a melhor contra o ex-advogado, mas gostava de acreditar que, caso se engalfinhassem pelo cho sujo do armazm, o resto do grupo, ao menos, dirigiria alguns pontaps vacilantes na direo geral do seu oponente. Dessa vez, pelo menos, isso no seria necessrio.

    Alice, t tudo bem?

    Agora t, professor. Olhe, Leozinho no sabe o que faz. Ele s tem quatro anos, ele viu a latinha, que nem as que tinham na despensa l de casa antes do Dia e...

    Alice, Alice. Voc no precisa me explicar nada. Nada. O homem doido. Esquece isso tudo. E ele que faa bom proveito da sardinha dele. Se conseguir comer.

    Se conseguir? Como assim, professor?

    Jlio tirou a mo direita do bolso, produzindo um abridor de latas ancorado por um molho de chaves. Era o nico que existia ali e havia sido um presente da sua esposa. Com um chaveiro desses, voc ao menos no passa fome, Lcia falara, sorrin-do, ao lhe entregar o presente. Jlio era praticamen-te um deficiente dentro de uma cozinha, incapaz de elaborar mesmo o mais simples dos macarres instantneos. Alice levou uma das mos boca para abafar o riso. Jlio retribuiu com uma toro cansa-da nos cantos dos lbios.

    V sentar um pouco, brincar com seu menino. Qualquer coisa...

    Brigada, professor. Leozinho agradece tam-bm.

    Jlio passou a mo pelos cabelos do garoto, que no havia dado palavra desde o Dia, segundo Ali-ce. Observou enquanto me e filho se afastavam e concluiu que estava mais velho do que pensava. Sua mente retrocedeu aos tempos das aulas de Fsica no Colgio de Aplicao da Universidade Federal de Pernambuco. O professor de Histria chamava-se Wanderley, um homenzinho calvo, mope e que, na

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    ponta dos ps, talvez tocasse o nariz no peito de J-lio. Referia-se a si mesmo como o Conde Van der Ley, citando uma ligao direta e improvvel com os holandeses que haviam conquistado a capital pernambucana no sculo XVII. Dava-se ares de ri-dcula importncia e sempre arrumava um jeito de incluir um suposto ancestral, geralmente em atos de herosmo quase sobrenatural, nos momentos mais definidores da histria do estado. Vez por outra, parava Jlio em algum corredor, de preferncia na frente dos alunos do ltimo ano, e mirava-o da ca-bea aos ps com um olhar reprobatrio.

    Olhe, Jlio, vou te dizer uma coisa... Nos tem-pos do meu tatatatatatatatatarav, o Baro do A-car de Goiana, voc estaria era na senzala, dando duro.

    Se fosse nos tempos do seu tatatatatatatatatara-v, o Baro do Acar de Goiana, eu sairia da sen-zala para visitar a baronesa toda noite e daria duro do mesmo jeito.

    Os estudantes caam na gargalhada. Adoravam as brincadeiras entre os dois professores, os favori-tos do alunato. Jlio se permitiu sorrir quase imper-ceptivelmente ao lembrar-se do velho sem-vergo-nha e jovial, sempre rodeado de alunas a adul-lo, especialmente, na poca de provas finais. Poucos entre os professores e nenhum dos alunos sabiam que Wanderley era gay e que, apesar das inofensivas safadezas proferidas em sala de aula, cujo alvo eram quase sempre as garotas mais bonitas, mantinha um longo e estvel relacionamento com Pablo, um uru-guaio h muito radicado no Recife. Amado pelos alunos e bem-quisto entre os colegas, Wanderley te-mia o impacto que a sua orientao sexual poderia ter em sua carreira e preferia ocult-la da maioria das pessoas.

    Jlio, tem coisa mais feia que bicha velha? J passei da idade de grandes revelaes. Gosto da mi-nha vida como ela e o mundo... Jlio, esse mundo que a gente vive no vai mudar nunca. Vai por mim.

    A conversa havia acontecido dois, talvez trs dias antes do Dia. Quase dois meses depois, Jlio no fazia ideia do que poderia ter acontecido com o seu amigo. O bairro do Derby, onde Wanderley morava, fora um dos mais atingidos, a se fiar nas histrias

    que havia escutado de outros sobreviventes. Talvez ele no estivesse em casa no momento. Talvez hou-vesse, junto com Pablo, ido visitar algum parente no interior, como faziam amide. O mais provvel, Jlio sabia, que houvesse encontrado o fim rapi-damente, lendo um dos seus amados livros de His-tria sentado em uma poltrona, bem ao lado do seu companheiro de vida, sem tempo o suficiente para despedidas, arrependimentos ou recriminaes. Si-lenciosamente, Jlio pedia para que houvesse sido assim.

    Wanderley estava errado, claro. O mundo ha-via mudado sim, terrivelmente. Nos momentos de quietude, quando sua mente gravitava para lem-branas dolorosas demais, Jlio dedicava-se a ana-lisar o evento que alterara de forma irrevogvel sua existncia e a de milhes de outras pessoas. Entre os sobreviventes, uma das hipteses mais frequentes era a de ataque termonuclear. Um artefato dessa na-tureza seria capaz de liberar, a partir de uma bomba pesando pouco mais de um quilo, uma fora destru-tiva equivalente a um milho de toneladas de TNT. Talvez um pouco mais. Jlio no havia encontrado ningum que se lembrasse de um ataque areo ou mesmo de um avio sobrevoando a cidade no Dia, mas isso pouco significava. Uma aeronave poderia voar alto demais para ser vista e ouvida do solo, a no ser pelos equipamentos do Aeroporto Interna-cional dos Guararapes, do Aeroclube do Recife e de alguma das bases locais da Fora Area. Se esse foi o caso, alarme nenhum foi soado e toda a populao foi pega de surpresa. A entrega da ogiva poderia ter sido feita a partir de um mssil remotamente guia-do. Mas por quem?

    O Brasil era um pas pacfico, ao menos no que concernia sua poltica externa. Os Estados Unidos eram o seu maior parceiro comercial e um antigo aliado poltico, mas no era a nica nao a man-ter um arsenal nuclear pronto para ser deflagrado a qualquer momento. Jlio sabia que, at antes do Dia, a Federao de Cientistas Americanos estima-va um nmero aproximado de dezenove mil ogivas nucleares ao redor do mundo, embora apenas um quarto desse nmero se encontrasse operacional. Qualquer uma delas teria capacidade de arrasar o Recife sucessivas vezes, transformando o epicentro

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    da detonao em uma cratera radioativa, as edifica-es circundantes, em um raio de vrios quilme-tros, abatidas pela exploso como castelos de car-tas soprados por uma criana maldosa. As pessoas mais prximas seriam instantaneamente vaporiza-das, reduzidas a manchas empretecidas no asfalto, o formato vagamente humano denunciando a agonia efmera da morte pelo fogo nuclear.

    Mas no foi assim que aconteceu. Jlio conhecia bem o funcionamento de uma bomba nuclear, cos-tumava usar a arma como exemplo em sala de aula. A enormidade da destruio potencial de uma ogi-va desse tipo prendia a ateno at do aluno mais disperso, perversamente interessado nos aspectos mais horrendos da sua aplicao. No havia abertu-ras de impacto na cidade, ao menos, no de msseis, que deixariam buracos grvidos de entulhos entre as chamas. Secretamente, Jlio duvidava mesmo de que artefatos explosivos de qualquer nature-za houvessem sido utilizados no Dia. O Dia. Com maiscula. No que algum houvesse escrito des-sa forma. No se lembrava de algum escrevendo qualquer coisa desde ento, salvo uma ou outra pi-chao que pode ter ocorrido depois, mas a inflexo das pessoas ao se referir quela data especfica no dava margem para minsculas. Embora os relatos conflitassem quanto ao que havia acontecido, todos lembravam onde estavam e o que faziam naquele momento.

    Jlio conversava com Lcia pelo celular, pouco menos de um quarteiro de distncia do prdio onde moravam, claramente visvel a partir do esta-cionamento de um supermercado prximo. Ia en-trando no estabelecimento enquanto pedia esposa a descrio dos legumes que deveria comprar para o almoo do dia seguinte. Lcia, como sempre, es-tava em vias de perder a pacincia com o marido que, absurdamente, no conseguia diferenciar uma alface romana de um buqu de brcolis. Jlio estava prestes a fazer uma das suas piadas emergenciais, capazes de trazer Lcia da raiva extrema ao riso em poucas palavras, quando a ligao ficou muda. O celular estava desligado, a tela, subitamente insen-svel a qualquer toque, de um negror abissal. As lu-zes do supermercado piscaram, incertas. Decidiram por apagar de vez, enquanto, ao redor de Jlio, al-

    gumas pessoas apertavam furiosamente os botes dos seus aparelhos telefnicos mortos. Comearam a falar, todos ao mesmo tempo. Uns com os outros, alguns ainda com seus celulares inteis, outros com si mesmos, murmurando confusos enquanto olha-vam ao redor. Jlio sentiu uma brisa agitando os pelos do seu brao. Ergueu as mos, olhando para a pele escura que contrastava com a camisa branca de boto que usava. No havia vento ali dentro, os cabelos que se eriavam em seu corpo, como se adquirissem vida prpria, despertassem, tentando ver melhor o que acontecia, escutar com mais aten-o. Como se soubessem de algo.

    As pessoas pararam de falar. Jlio sentia o ar car-regado, eltrico. Seu corao acelerou. Largou o car-rinho de compras que trazia apenas uma solitria caixa de cervejas e se encaminhou para a sada. No correu. O verniz de civilidade ainda era mais forte do que seu medo. E, afinal de contas, por que have-ria de perder as estribeiras? Se havia algo que era comum na capital pernambucana, eram falhas na telefonia mvel e apages eltricos. No deveriam acontecer ao mesmo tempo, mas no era imposs-vel que fosse assim. Jlio acelerou o passo. Estava quase na porta dupla que dava acesso ao estaciona-mento. De l, pretendia correr para casa, ignoran-do os olhares tortos das pessoas ao verem passar, desabalado, um homem negro, alto, bem vestido e segurando na mo direita um molho de chaves com um abridor de latas escapando entre os dedos cerrados. Estendeu a mo para a porta automtica, que se recusou a admitir sua existncia. No havia energia, claro. Um funcionrio se aproximou, lenta-mente, como um escafandrista que vencia a custo o peso da gua ao seu redor. Tudo parecia mais deva-gar, o ar se adensara, gelatinizado. Jlio voltou seu olhar para o horizonte, institivamente buscando seu edifcio, onde sua esposa o censuraria pela falta das verduras prometidas. Foi ento que ouviu. Como vozes, um lamento terrvel, cujo volume ia aumen-tando enquanto o cu parecia ficar mais claro. Jlio comeou a bater furiosamente no vidro, enquanto o claro passava de um branco cegante para o ro-sa-violceo, manchas de ciano espalhando-se como uma chuva de fascas. A luz arrebatou o horizon-te, dominando-o, substituindo os arranha-cus por nada alm do fulgor tremendo, que a tudo envolvia.

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    Jlio acha que gritou antes de perder os sentidos.

    O barulho de gua em movimento no andar in-ferior parecia multiplicar-se pelas paredes do velho galpo. O som deixava Jlio nervoso. Nunca havia gostado do mar. Quando criana, quase se afoga-ra na praia de Boa Viagem, enquanto seus pais se distraam cuidando dos seus irmos. Um surfista o havia resgatado, puxando-o por um dos braos, dei-tando-o em sua prancha e remando at a praia onde seus pais, aflitos, o aguardavam. Surfistas. De quan-do as guas ainda no haviam sido infestadas pelos tubares expulsos do seu habitat natural pela cons-truo do monstruoso porto na cidade do Cabo, no muito distante do Recife, que h muito no possua mais a estrutura necessria para receber os volumes cada vez maiores que eram trazidos pelo oceano. Quando adolescente, Jlio jamais deixou de ir praia com os amigos, exercitar-se, paque-rar e at mesmo observar os surfistas manobrando despreocupadamente entre as ondas, mas jamais havia dado confiana ao mar. Um relacionamento perdido, pensava, sem mais volta, sem mais jeito. O som de batidas metlicas o arrancou das suas lem-branas. Dirigiu o olhar para a origem do som. O homem raivoso golpeava um alambrado com a lata de sardinhas. Jlio achava que ele no conseguiria abrir e torcia malevolamente para que o homem falhasse. Nas semanas aps o Dia, quando a cida-de mergulhou no caos, os supermercados foram os primeiros a ser saqueados. Seguidos logo de perto pelas lojas de eletrnicos. A eletricidade jamais foi reestabelecida desde os ataques, mas a natureza hu-mana era infalvel em sua estupidez mesquinha. Ou talvez fossem apenas otimistas, achando que logo a normalidade se restabeleceria e que poderiam ti-rar proveito das suas TVs de plasma roubadas. Jlio era mais ou menos indiferente ao eletrodomstico, utilizando a televiso basicamente para assistir a es-portes ou algum seriado mais interessante. Colhia suas informaes da Internet e filtrava o que lhe pa-recia mais relevante.

    Se a rede mundial de computadores ainda exis-tisse, talvez mostrasse o caos que se seguiu ao Dia, quando as poucas instituies pblicas sobreviven-tes foram avassaladas pelas desordens urbanas, que se espalharam como as chamas dos inmeros in-

    cndios que consumiram o Recife. Wanderley lhe dissera, certa vez, que eram os sinos das igrejas que alertavam os cidados quanto ao fogo e a destruio por eles causada. Sculos atrs, o repicar informava para onde os bombeiros deveriam se dirigir. Tantas badaladas, o bairro de So Jos em chamas. Outras tantas, a Torre queimava. Cada arrabalde possua seu toque. J no havia mais sinos e o sistema de som eletrnico adotado pela maioria das igrejas no mais funcionava. O fogo agora era raro e, quando contido, uma viso bem-vinda. Jlio frequentemen-te se arriscava fora do abrigo do galpo em busca de mantimentos, utenslios, ferramentas, qualquer coisa esquecida ou desprezada pelos salteadores ou poupada pelas chamas. Restavam poucos abridores de lata e Jlio possua o nico ali, depois que alguns indivduos haviam, na calmaria noturna, se esguei-rado de posse de mantimentos comuns ao grupo. Essas escapadas eram cada vez mais comuns. Um casal, uma mulher e seu filho, um homem solit-rio. Reuniam o que podiam carregar em uma sacola surrada e partiam para tentar a sorte em outro lu-gar. Jlio brincava com a ideia de fazer o mesmo. Caminhar pelos escombros, os esqueletos de pr-dios, andar sem parar, guiando-se pelo desenho apagado de antigas ruas e rodovias. Para o interior. Para qualquer lugar, pois lugar nenhum poderia ser pior do que aquele.

    Mas ele sabia o que o aguardava fora do galpo. Havia visto, enquanto serpenteava cuidadosamente pelos restos de civilizao. Havia assistido, horro-rizado, os linchamentos, pessoas atiradas ao cho como os bonecos da antiga brincadeira de Judas, sendo coiceadas e esmurradas, modas com peda-os de pau e vergalhes de ao. Viu, impotente, os estupros, mulheres, meninas, meninos tambm, aos berros, enquanto os homens se revezavam, cobrin-do os corpos franzinos com os seus, prostrados nas cinzas ou forados contra uma parede enegrecida. noite, podia ver, ao longe, o claro de fogueiras humanas, o cheiro de carne de gente queimando sendo trazido pelas brisas raras que vinham da ter-ra. O estmago de Jlio doa com o odor inebrian-te e era nesses momentos que sentia sua sanidade escorregando entre seus dedos. Uma vez, escutou o guinchar desesperado de um beb e os gritos his-tricos de sua me. Ambos foram silenciados e mais

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    uma pira se acendeu. Silenciosamente, Jlio agrade-ceu por Lcia jamais ter lhe dado um filho.

    Passou a mo pelos cabelos, depois pela barba. Duas, trs vezes. Eletricidade esttica. Fsica. Com os olhos fechados, podia pensar que era Lcia que o acariciava. Ela at gostava da barba, desde que bem cuidada e aparada. O cabelo, Jlio sempre o con-servava quase rente ao crnio. No era o caso ago-ra. No havia encontrado nenhuma tesoura em sua busca, mas ainda tinha algumas giletes. No havia creme de barbear, obviamente, mas Jlio possua um pequeno pedao de sabonete no bolso da sua cala. Em um dia bom, descia para o trreo do gal-po, cuja parte central havia se tornado uma espcie de piscina, cheia de gua do mar escura e serena, que servia de espelho enquanto Jlio escanhoava o queixo cuidadosamente. A gua. Havia avanado pelo bairro do Recife e arredores e toda a orla, do Pina Piedade, se transformara. O mar agora che-gava, em alguns pontos, at a segunda ou terceira fi-leira de prdios ou suas carcaas. No chegava a ser o cumprimento de uma profecia sebastianista, mas havia alterado sensivelmente a geografia da cidade, at onde Jlio ousara explorar e pelo que havia con-cludo de relatos alheios.

    Algumas dessas histrias asseguravam que os complexos militares haviam sido os primeiros a ser atingidos. Um homem baixinho dissera a Jlio, antes de roubar uma garrafa de gua mineral e de-saparecer pela noite, que o quartel do Derby, sede das foras armadas do estado, havia sido totalmente dizimado. Jlio no se aventurara to longe, mas de alguns pontos do antigo armazm era possvel ver o prdio da Prefeitura, reduzido metade dos seus catorze andares originais. Supunha que o Palcio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, ha-via sido engolido pelo Capibaribe ou pelas chamas, junto com o Palcio da Justia e o Teatro de Santa Isabel. A autoridade pblica jamais foi restabelecida desde o Dia. Jlio vira alguma movimentao mi-litar, desarticulada, despreparada, insuficiente, nos primeiros dias depois dos ataques. Com o correr das semanas, cada vez menos uniformes eram avis-tados entre os destroos. Pareciam mover-se para o interior, como se alguma batalha exigisse sua pre-sena em outro lugar. Ou talvez apenas fugissem.

    Jlio havia agarrado a manga do casaco de um dos ltimos soldados a passar por um abrigo improvisa-do em uma escola pblica da Boa Vista. O homem trazia um olhar assustado. As mos que seguravam o fuzil tremiam.

    Soldado. Soldado! Vocs vo pra onde? O que a gente...

    Cidado, me solte. Eu...o comando... a gente no pode ficar aqui...

    Que comando? Quem que t...? Olhe, esse pessoal aqui, eles, a gente precisa...

    Cidado, no adianta ficar aqui. V pro mar. Se alguma ajuda... v pro mar. Pegue a sua famlia e v.

    Eu no tenho... eu no... vocs no podem dei-xar a gente aqui! Vocs precisam fazer alguma...

    Cidado! Me solte. Eu no vou repetir.

    A ordem havia sido dada com a arma apontada para o queixo de Jlio. O soldado se afastou apres-sado, obedecendo alguma ordem inaudita. O mar. Parecia fazer algum sentido que um resgate se en-saiasse perto dele. Jlio no sabia o que acontecera com o interior, com outras cidades ou mesmo com o resto do pas e do mundo. Tinha uma tia idosa em Braslia, com quem se comunicava de quando em quando. Ligaes automticas em datas comemo-rativas. Imaginava que o Distrito Federal houvesse sido arrasado, obliterado, o seco cerrado do planal-to central inflamando-se em um oceano gneo. Tal-vez a luta pela capital demandasse o efetivo militar de todos os estados da Federao. Com tanques va-zios e sistemas eltricos inoperantes, os caminhes e helicpteros do exrcito eram apenas cascas ca-mufladas, imveis. Era preciso andar, marchar. Foi o que Jlio fez, mas em direo oposta. Havia passa-do por mais de um grupo de sobreviventes at final-mente chegar aos armazns do Porto do Recife, que foram convertidos em equipamentos culturais pela Prefeitura pouco tempo antes do Dia. Havia uma loja de artesanato, restaurantes, bares, escritrios, salas de exposio, anfiteatros, um pequeno cine-ma e at mesmo uma pista de boliche. Prometera a Lcia que a levaria para conhecer o lugar, jantar ob-servando o mar verde-escuro, mantido distncia por uma passarela de pedras que protegia o antigo

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    porto e abrigava as esculturas de cermica de Bren-nand. Mas, por algum motivo, a oportunidade ja-mais havia surgido. O arrecife no era mais visvel, mas a flica Torre de Cristal do artista plstico per-nambucano ainda teimava em erguer-se em meio a guas estranhamente calmas desde o Dia. As va-gas que castigavam as pedras quando da ressaca do mar haviam desaparecido, quase como se o oceano preferisse passear pelas ruas de forma mais calma, paulatina. Mais atenta mesmo. Um mar turista, ab-sorvendo aos poucos as vistas e pessoas estranhas. Jlio quase riu.

    Vozes alteando. Em algum ponto mais afasta-do do galpo, Jlio escutou os rudos abafados de mais uma discusso. Suspirou profundamente e levantou-se, tentando adivinhar qual seria, dessa vez, a causa da briga. Para sua absoluta ausncia de surpresa, o homem branco esbravejava, dessa vez tendo como alvo um rapaz, cujo nome Jlio jamais conseguiu guardar na memria. Algo como Hlio ou Felipe, embora as palavras no guardassem a menor semelhana entre si.

    V fazer suas macumbas longe daqui! T pen-sando que t no morro, ?

    Eu no tava... no macumba, no, eu tava re-zando junto...

    macumba, catimb que eu sei, gente que nem voc gosta mesmo dessas coisas!

    Moo, eu sou esprita, mexo com essas coisas no, eu s queria...

    Pois v fazer suas nojeiras l fora, junto com os bichos, , com os bichos, seu pret...

    Preto o qu? Safado? Sem vergonha? Preto la-dro? Ou tem alguma mais original?

    Jlio interrompeu a arenga, movendo-se para perto do rapaz, que era mais claro do que ele. Ca-belo crespo exibindo trancinhas afro mal cuidadas. Nariz estreito e lbios grossos. O menino provavel-mente seria considerado branco por muita gente. Jlio sabia que isso pouco importava. No Brasil, ser negro era mais dependente da condio social do indivduo do que propriamente da cor da sua pele. Negros bem sucedidos embranqueciam, tornan-do-se subitamente aceitos, ou ao menos tolerados,

    pela sociedade. Brancos pobres, a no ser que ab-solutamente arianos em seu perfil, acabavam en-trando no saco perverso de esteretipos nacionais, especialmente quando se apegavam a prticas mal vistas pela elite. Talvez o rapaz fosse umbandista praticante, escamoteando sua crena em espiritis-mo, muito mais consentido em um pas onde o ca-tolicismo era a religio da maioria e o cristianismo, em suas vrias vertentes, buscava abafar, de forma cada vez mais agressiva, outras fs. No importava. Jlio estava cansado. Cansado do frio noturno, da fome cotidiana, da imundcie sem fim e sem jeito, do barulho montono do mar. Exausto de saudade. E farto daquele homem.

    Ento? Voc ia chamar Hlio de qu?

    Maurcio, professor. Tem nada no.

    Maurcio. Nem perto.

    Isso, Maurcio. Me confundi. Mas e ento? Ia xingar ele de qu?

    Isso no da sua conta! J me cansei de voc, toda vez, toda vez se metendo!

    Pronto. Cansamos um do outro. E todo mundo aqui cansou de voc. Voc que devia sair, j que no suporta ningum e ningum te suporta.

    Eu devia...eu, sair?! Eu, que vou l fora, trazer coisa, trazer...trazer comida, trazer gua pra esse monte de...

    Como se voc dividisse com algum o que acha l fora. Eu sei onde voc guarda tudo. Cansei de ver, de noite, voc achando que tava s. Quer saber do que mais? Vou l, pegar e dividir tudo com as pes-soas daqui.

    Voc no... voc no t nem doido! Aquilo meu, meu, meu, eu que peguei! Voc igual aos ou-tros, ladro, cabra safado, preto filho da p...

    Eu fico at feliz de voc ter dito isso.

    OLHA!

    O grito havia partido de Maurcio. Ele puxava a manga de Jlio, que trazia os punhos crispados, pe-sados de raiva, frustrao e desespero. No era um lutador, sabia disso. Mas talvez pudesse descarregar no rosto do homem todas as semanas de sofrimento

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    e solido desde o Dia. Queria esmurr-lo, sentir o nariz estreito afundando a cada golpe, a cartilagem movendo-se para perto do crebro. Desejava enfiar os polegares nos olhos azuis aguados, sentir a con-sistncia gelatinosa dos globos oculares nas pontas dos dedos. Podia escutar a voz zombeteira de Wan-derley, sentenciando-lhe que as coisas jamais muda-riam. Jamais. Deu mais um passo frente, as mos desacostumadas a esse tipo de altercao tremendo violentamente. Talvez se as quebrasse contra a man-dbula daquele homem voltassem a lhe obedecer. Ouviu Maurcio gritar novamente e percebeu que todos olhavam para a sua esquerda, para o centro do galpo. A luz rosada que cintilava em todas as fa-ces lhe parecia estranhamente familiar. O sol havia se posto h muito tempo. J se erguera novamente? Uma das piores coisas de viver no inferno, Jlio ha-via concludo, era que o tempo se arrastava como um verme gordo, prenhe de maus futuros. Era em seu rastro viscoso que patinavam agora, lentamen-te, inescapavelmente. Lanou um olhar para o teto. Um enorme rombo deixava entrever uma lua into-cada, alva, cercada por estrelas indiferentes presas a um cu que era como piche. O homem a sua frente olhava para o lado, aparentemente j esquecido de Jlio. Baixou as mos, mas as manteve fechadas. Es-tavam no andar superior, cujo vo central chegava at o piso do antigo armazm, dominado pela gua do mar. No era fcil entrar ou sair e era por isso que o lugar oferecia um mnimo de segurana no meio da desolao. Um estranho silncio havia se instalado. Jlio se aproximou do parapeito interno e pousou a mo em uma balaustrada que havia deci-dido permanecer de p. No conseguia compreen-der exatamente para o que estava olhando.

    A gua parecia estar em chamas. Um fulgor ro-sado agitava-se sob a superfcie, acompanhado de um som. Jlio j havia escutado algo semelhante. Tinha certeza que sim. As pessoas ao redor se apro-ximaram cuidadosamente da beirada, mesmeri-zadas por aquela estranha luminescncia. Alice se materializara ao seu lado, silenciosamente, uma das mos puxando seu filho, a outra cobrindo a boca, como costumava fazer ao gargalhar frouxamente em sala de aula. Maurcio havia desaparecido do seu campo de viso e o homem agressivo parecia balbuciar consigo mesmo, como que rezando. E en-

    to algo comeou a se erguer. Jlio sentiu seu cora-o golpeando furiosamente suas costelas, o sangue pulsando em seus tmpanos. Era como uma nvoa, de cor rosa-violcea, efmera e ao mesmo tempo inexplicavelmente consistente, material. No tinha uma forma definida, mas parecia adensar-se em seu ponto mais alto, que se avolumava em relao ao caule que se projetava da gua do mar. Jlio sentiu a pequena mo de Alice tomando a sua. Estava suada e fria. Leozinho sorria em silncio, o rosto arredon-dado tomado pela luz rosada.

    A coisa movia-se lentamente, como se hesitasse. Mais um pouco e estaria na altura do primeiro an-dar. Os sapatos surrados de Jlio haviam se trans-mutado em chumbo. Percebia agora agitao dentro da estrutura maior. Manchas azuis dardejavam pelo corpo alongado, que agora parecia se assemelhar a uma caravela. O som. Que som era aquele? Como murmrios. Mas ningum falava nada. Ao atingir o piso onde estavam, a coisa deteve-se. Parecia pul-sar levemente. Como se respirasse. Como se vives-se. Inclinou-se para frente. Pequenas gotas dgua pingavam da criatura, cada uma delas desencade-ando um pequeno terremoto ao atingir o piso do armazm silencioso. Havia uma menina prxima do ser, perto o suficiente para toc-lo. Essa no fora aluna de Jlio. Tinha cabelos cacheados e amarelos. gata? Berenice? Ela encarava o centro da radiao rsea, seu rosto adolescente transparecendo mais curiosidade do que medo. Ergueu a mo. Os lbios de Jlio formaram a negativa, mas sua garganta a aprisionou dentro de si. A menina loira tocou a criatura. Por alguns instantes, nada aconteceu. E ento a nvoa envolveu a garota por completo.

    O berro de agonia pareceu despertar as pesso-as do transe. Jlio gritou tambm, libertando a voz dos seus pulmes. As fagulhas azuis pareciam via-jar pelo corpo daquele monstro at o ponto em que formavam um apndice, um bolso onde a silhueta da menina se debatia desesperadamente. A cria-tura parecia avolumar-se, expandir-se, seu brilho tornando-se mais intenso. Fez surgir outra protu-berncia, que se moveu rapidamente em direo a uma senhora de cabelos curtos, que apenas olhava boquiaberta enquanto tateava uma pequena cruz prateada em seu peito. Em instantes, tambm era

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    engolfada pela massa nebulosa, as manchas azuladas cercando seu corpo, como ces famintos. Os outros sobreviventes corriam desordenadamente, uns ten-tando alcanar a escada partida que dava acesso ao trreo, outros dando a volta pela passarela e tentan-do simplesmente se afastar o mximo possvel. Na correria, Jlio viu um homem ser derrubado no re-tngulo de mar de onde brotava a monstruosidade. Sabia que no mais emergiria. Uma mulher, acuada no canto oposto do galpo, chorava e suplicava aga-chada, enquanto a luz rosada se aproximava cada vez mais. Estava maior, mais rpida e parecia ago-ra estar em todos os lugares. Jlio respirou fundo, tomou Leozinho em seu brao direito e, puxando Alice por sua mo esquerda, desatou a correr.

    O ser agora multiplicava seus membros, alongan-do-os, como os tentculos de um animal marinho. Mais pessoas eram apanhadas pela nvoa serpente-ante e seus urros se sobrepunham quele estranho som que Jlio no conseguia identificar. No havia para onde correr. A coisa descansava pesadamente uma de suas protuberncias sobre a escadaria e o outro lado do parapeito estava obstrudo por mais apndices terminando em volumes do tamanho de corpos humanos, fascas azuis danando enlouque-cidamente em suas extremidades. Jlio recuou at a parede. Leozinho molhava de lgrimas sua boche-cha direita. sua esquerda, sentia que Alice podia desmaiar a qualquer momento. Encostou as costas na parede. No podia ser. No depois de tudo o que havia passado. No queria ter o mesmo fim das ou-tras pessoas, cercado por sabe-se l o qu, um troo, um bicho que sequer deveria existir, uma neblina slida, uma gua-viva, como as que encalhavam, pe-queninas, nas areias brancas de Boa Viagem, junto ao sargao malcheiroso, tornando-se presas inertes dos moleques maldosos, cutucadas com um peda-o de pau at estourarem, morrendo flcidas sob o sol, sem nem saber o porqu. O porqu. Ao menos isso Jlio queria saber. Talvez fosse melhor acabar com tudo rapidamente. Pular de uma das aberturas laterais que davam para o mar em direo s pedras embaixo. A altura seria suficiente para mat-los? Ou ser que apenas partiria seus ossos, quebrando suas espinhas, deixando-os imveis e agonizantes, caravelas na areia, engasgando no sangue de rgos internos dilacerados at que a criatura chegasse e os

    envolvesse tambm? Jlio preferia arriscar essa pos-sibilidade a conhecer o horror no interior do mons-tro. Segurou firmemente Alice e Leozinho e apoiou o p direito na parede s suas costas, preparando-se para o impulso final.

    A superfcie no apresentava a solidez que Jlio esperava. Na verdade, era quase flexvel. Virou-se para olhar com mais ateno. A luz rosada banha-va aquele canto do galpo, normalmente escuro e pouco visvel, mesmo durante o dia. A divisria entre armazns no era macia. Havia uma fen-da, coberta por uma folha de madeira corrugada. A respirao de Jlio acelerou. Comeou a chutar a madeira. Uma. Duas vezes. Pousou Leozinho no cho, apoiou ambas as mos no ngulo da quina e passou a coicear furiosamente. Sem uma palavra, Alice compreendeu e comeou a chutar tambm. Leozinho parara de chorar e dava tapinhas na ma-deira, o pequeno queixo voluntariosamente ergui-do. Sem se virar, Jlio podia perceber o aumento na claridade. O ser se aproximava. Passou a chutar com a perna esquerda, sem parar, sem prestar aten-o ao som de coisas partindo, sem saber mesmo se era a madeira ou seu p que cedia s pancadas. Sabia que grunhia com o esforo, mas s percebeu que gritava quando um chute derradeiro finalmente despregou metade da placa, que aterrissou com um estrondo na escurido frente. Pousou o p no as-soalho imundo e sentiu que algo havia arrebentado l dentro. A claridade agora j iluminava o espao mais prximo do galpo contguo. Jlio empurrou Leozinho pela abertura e em seguida Alice. O som. Quase como se algum sussurrasse em seu ouvido. Perto demais. Arrastou-se buraco adentro, sentindo uma dor lancinante a cada passo.

    No havia como selar a abertura. Jlio seguiu em frente, aos tropeos, o p como um nervo exposto, parecendo ter o dobro do tamanho do sapato que o envolvia. A mo de Alice o guiava. Degraus. Esta-vam descendo. Talvez conseguissem chegar ao tr-reo e, de l, alcanar uma sada. Uma que no desse para o mar. A viso de Jlio escurecia de dor com cada passada e baque, o que fazia pouca diferena no breu em que se encontravam. Quase no havia gua no piso daquele armazm. Chapinharam na escurido por longos minutos, sem referncia, sem

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    norte. Jlio chegou a temer que talvez voltassem ao lugar onde estavam anteriormente. Foi ento que Alice parou. Ela trouxe a mo de Jlio para frente, pousando-a em uma superfcie de madeira polida. Uma porta, trancada. Jlio deu com o ombro uma vez, mais outra e a moldura apodrecida soltou-se da parede. Encontravam-se em outro galpo, dessa vez sem gua alguma no assoalho. Para Jlio, aquilo era um bom sinal. O teto desaparecera completamente e a lua nova iluminava o que parecia ter sido um restaurante. Mesas viradas e outras ainda de p lan-avam sombras deformadas sobre as paredes. Cacos de garrafas e de pratos caros acarpetavam o cho. Leozinho abaixou-se para pegar algo e entregou a Jlio. Um cardpio. Estava to claro ali que era pos-svel ler a lista de pratos e seus preos. Uma mistura de ingredientes da terra e palavras em francs. Lcia saberia o que significavam os nomes daquelas estra-nhas comidas. At conhec-la, o nico interesse de Jlio era mesmo pela bebida. At conhec-la, Jlio no era nada. Sabia disso. E ela tambm, embora jamais houvesse admitido.

    A parede frente exibia um retngulo de vidro, milagrosamente inteiro, embora rachado em alguns pontos. Atrs dele, era possvel reconhecer uma ilha de coco, bancadas de metal, equipamentos culi-nrios. Passaram pelo balco. A porta da cozinha estava destrancada. No era muito grande, mas o espao era bem aproveitado. Um cheiro azedo es-capava do que devia ter sido a cmara fria. Jlio deixou-se cair pesadamente em um banco de pls-tico, apoiando a cabea com ambas as mos. Seu p esquerdo enviava ondas de dor para o resto do seu corpo que iam e retornavam, somando-se e multi-plicando-se em uma agonia sem fim. Escutou solu-os. Alice finalmente despertava para o que havia acontecido. Escondia a boca com as mos e o choro vinha como espasmos, sacudindo seus ombros ma-gros enquanto Leozinho abraava-se sua perna. Jlio apenas a observou, desapaixonado, exausto, esperando que as lgrimas secassem. Levantou-se e comeou a juntar coisas contra a porta. Era melhor nisso do que em confortar jovens mes. Pedaos de madeira, cadeiras, detritos irreconhecveis, empi-lhados no batente. Apesar da dor e do cansao, no conseguia ficar parado. Era perigoso ficar parado.

    Professor... professor, o que danado era aquilo?

    Eu no sei.

    Era... como que pode? Era um monstro, aqui-lo era um monstro. Professor, era um aliengena? Tipo... do espao?

    Eu no sei, Alice.

    Achei que fosse morrer, que meu filho ia mor-rer... quando eu vi aquela luz... rosada, as manchi-nhas azuis...e aquele barulho esquisito, como se fos-se umas vozes, um...

    O que foi que voc disse? Vozes?

    ... como se fosse... era tipo um coral, um coral de vozes... sabe, um monte de gente junta cantando, que nem minha me e as amigas dela na igreja, s que... que... no era um canto. Parecia que tavam, sei l...

    Sofrendo.

    ... tipo isso. Gemendo. Pedindo ajuda. Cha-mando.

    Jlio sabia do que ela estava falando. J havia escutado esse chamado antes. Mas, por algum mo-tivo, achava que era o nico. Admitia a si mesmo um certo alvio agora. Desde o Dia, sentia que a sua racionalidade se deteriorava, que sua mente era como uma fruta, lentamente corroda por insetos que davam cria a cada novo horror testemunhado. Observava os loucos eventuais e se enxergava ne-les em um futuro prximo. Ensimesmados em seus monlogos desarrazoados, atarefados em trabalhos invisveis, imundos, pestilentos, raivosos, fedoren-tos. Doidos, enfim. Quando Jlio tentou a travessia para o bairro do Recife, havia remado em um pe-queno barco esquecido na margem do rio. O bote fazia gua, escura, lamacenta, se acumulando entre os dedos dos seus ps. De ambos os lados, Jlio po-dia ver as pontes partidas, tornando inacessvel o arrabalde que retomava os ares de uma ilha quase isolada depois de sculos. De quando em quando, utilizava a ripa improvisada em remo para afastar algum corpo inchado, coberto de pequenos ca-ranguejos que se alimentavam da carcaa como os insetos que consumiam o seu juzo. Apesar de sua averso, Jlio arrastou-se pelos ltimos metros com a gua pela cintura, a pequena embarcao final-

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    mente afogando-se no lodo do Capibaribe. Seus ps nem sempre afundavam no leito pastoso. Por vezes, apoiavam-se em montculos mais ou menos firmes. Escorregava em um brao, pisoteava um rosto se-midevorado. Jlio estremecia e seguia em frente, sem olhar para baixo, sem olhar para trs. No ha-via nada para ele em nenhuma dessas direes.

    Antes de juntar-se ao grupo no galpo, Jlio pe-rambulou pelas ruas antigas, paraleleppedos secu-lares cortados por velhos trilhos de bonde. Vagou pela Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, um fino espelho dgua refletindo os prdios estreitos, como se fizessem um esforo para caber todos na mesma calada. Coloridos ainda. Passou pela sina-goga Kahar Zur Israel e emergiu na Praa do Arse-nal. Sobre a fonte quebrada, jazia o cadver intu-mescido de um cavalo. Achou estranho, um cavalo ali, a barriga aberta e despejando vermes ainda, cintilantes ao sol que se erguia. Talvez tivesse se ar-rastado at ali, patas estilhaadas, farejando gua. Sentia o fedor de morte e o zumbido das moscas varejeiras, uma mortalha de patas e asas sobre a ferida. E escutou um canto. Primeiro, pensou que pudesse ser o vento passeando pelas fachadas, as-sobiando zombador entre as janelas dos edifcios. Mas era uma voz de mulher. A pele de Jlio arre-piou-se enquanto procurava a origem daquela m-sica. Deteve-se em frente ao grande porto de ferro da Torre Malakoff. O relgio do velho observatrio astronmico estava rachado, mas afora isso a cons-truo parecia intacta. Jlio ergueu seus olhos um pouco mais e a viu. Estava envolta em tecidos alvos, difanos, que ondulavam ao vento da manh. Ti-nha a pele branca e os cabelos curtos, cacheados, de um castanho quase ruivo ao sol. Trazia um pe-queno embrulho junto ao peito e era para ele que cantarolava. Jlio gritou. Implorou para que recuas-se, para que o escutasse. Implorou. Jlio avisou que subiria, para que pudessem conversar, um de frente para o outro. Fez meno de dirigir-se ao porto e foi ento que ela deixou-se cair. Como uma pluma, lentamente, dando a Jlio tempo mais do que sufi-ciente para ver seu rosto. Ela sorria. Jlio a invejou. E ento seu corpo partiu-se contra as pedras da rua.

    O som trouxe Jlio de volta ao presente. Piscou, atordoado. Um corpo atingindo o vidro. Do outro

    lado do retngulo, Maurcio batia desesperadamen-te. Jlio ergueu-se em um timo, sentindo a cabea rodopiar. Alice gritava e Leozinho chorava com o susto. A voz de Maurcio lhe chegava abafada aos ouvidos. Mancou at a porta e comeou a remover a barricada, o p latejando intensamente. As bati-das se tornavam cada vez mais desesperadas. Jlio no tinha como trabalhar mais rapidamente. Esta-va esgotado, dolorido, ferido. Comeou a arrastar uma grande pea de equipamento quando percebeu a luz. O grito de Alice sufocou o de Maurcio, que esmurrava o vidro enlouquecidamente, deixando manchas de sangue onde os punhos faziam contato. Jlio no conseguia mover o objeto, parecia estar preso a algum outro destroo. Alice olhava horro-rizada para a janela, a mo cobrindo a boca e o ros-to banhado em luz rosada. Com o brao livre, em-purrava Leozinho para trs. Jlio criou coragem e olhou. A coisa parecia vir de lugar nenhum e j co-meava a envolver Maurcio. Por alguns momentos, ele parou, confuso. Ainda apoiava as mos no vidro, cujas rachaduras comeavam a alargar e se multi-plicar sob seus golpes. Jlio parou tambm, resig-nado. No havia tempo. Jamais houve. Pegou Alice pela mo e afastou-a da janela, sem tirar os olhos de Maurcio. E foi a que ele comeou a gritar. As chispas azuis o cercavam, transformando-o em um borro. Ele olhava ao redor, ensandecido, debaten-do-se, voltando a esmurrar o retngulo cristalino. Seus olhos se encontraram com os de Jlio. Supli-cantes. Ento, o horror comeou verdadeiramente.

    A pele de Maurcio parecia fragmentar-se, des-camar-se rapidamente. Como se a enxurrada azul arrancasse pequenos pedaos do seu corpo, a tez esvaindo-se e expondo os msculos vermelhos e brilhantes embaixo. Jlio queria parar de olhar, mas no conseguia. Os urros de agonia continuaram at Maurcio comear a engasgar. Seu pescoo era uma via aberta, mostrando laringe e esfago ao lado de tendes trmulos. O esterno aparecia amarela-do, nacos de carne ainda agarrados aos ossos, mas desfazendo-se com rapidez. Maurcio estremecia enquanto era dilacerado, esmurrando o vidro com mos esquelticas. Uma vez, duas, trs, golpeava sem parar enquanto engasgava com fragmentos da prpria garganta. A ltima pancada finalmente trincou a janela, o padro em teia de aranha expan-

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    dindo-se enquanto o corpo de Maurcio chacoa-lhava como um boneco nas mos de um titereiro cruel. O som arrancou Jlio do transe. Tomou Ali-ce pela mo livre e comeou a afast-la da terrvel viso. Leozinho ignorava o tenebroso espetculo e observava atentamente algo que havia recolhido do cho. No chorava mais. Jlio olhou para trs, buscando uma sada, enquanto escutava os esta-los do vidro. No duraria muito mais tempo, bem como sua frgil barricada. A coisa parecia tornar-se maior e mais slida. Mais forte. Havia uma porta no fundo da cozinha. Arrastou Alice naquela direo, ignorando seu p esquerdo que protestava doloro-samente a cada passada. Trancada. Jlio encostou a testa no metal frio. Sentia-se febril. Sabia que no poderia forar uma porta de segurana. Eram feitas para resistir, para impedir que um possvel incndio se alastrasse a partir da cozinha. Construdas para que o que estivesse dentro permanecesse dentro. Ficou de joelhos. Estava cansado demais. Ouviu o vidro partindo, um grande pedao indo ao cho, es-farelando-se em uma poeira grossa de cristais. No havia mais sentido em correr, gritar ou implorar. Ja-mais houve. Estava tudo acabado. Sentiu uma mo infantil tocando seu ombro. Virou o rosto exaurido para a direita e viu Leozinho, o bracinho estendido em sua direo. Entre os dedos sujos, uma chave, pequena e prateada.

    Jlio piscou, os olhos ardendo em contato com o suor que brotava da sua fronte. Pegou a chave com a mo trmula e encaixou na fechadura. Girou. A porta abriu-se com um gemido metlico. Um cor-redor escuro estendia-se sua frente, um pequeno retngulo vertical anunciando seu trmino dis-tncia.

    Alice, pegue seu filho e vai!

    Mas professor, o senhor...

    Eu tambm vou, mas vou fechar a porta. E com esse p, ia atrasar vocs. Vai!

    Alice tomou a mo de Leozinho e mergulhou na escurido. Jlio a seguiu e, antes de fechar a porta, viu a criatura fluindo para dentro da cozinha em meio a uma cascata de cacos de vidro. Fechou a pas-sagem, trancando-a por dentro. Torceu a chave at parti-la e ento virou-se. Viu que Alice j alcanava

    a soleira do que parecia ser mais um galpo ilumi-nado pelo luar. De repente, sua silhueta deteve-se. Continuava segurando a mo de Leozinho, que a olhava fixamente. Jlio acelerou o passo, o mximo que podia. Alice continuava imvel, recortada na moldura da porta. Parecia tremer agora. Jlio cha-mou seu nome. Manquejou em sua direo, sentin-do um peso sbito na boca do estmago. Mais uma vez gritou por ela. Alice virou-se e Jlio j estava perto o suficiente para distinguir seus traos. Ela parecia confusa. Lgrimas comeavam a escorrer placidamente dos seus olhos adolescentes. Ela tos-siu e Jlio viu o sangue misturado saliva sendo atirado ao cho. Uma mancha vermelha se avolu-mava em seu peito e do seu centro projetava-se um vergalho de ferro. Jlio cerrou os punhos, mas sua sanidade escorria viscosa mesmo assim. Pingava de seus dedos, como o filete de sangue que escapava do queixo de Alice. Uma hemorragia de racionalidade, logo no lhe sobraria mais nenhuma. Cambaleou para frente, tomando o corpo de Alice nos braos antes que ele despencasse, sua mo ainda seguran-do a do filho. No limiar entre o corredor e o galpo, Jlio percebeu a silhueta branca recuando nervosa-mente. A voz arrogante lhe chegou aos ouvidos, em um jorro, como se ainda restasse em Jlio algo que pudesse compreender a fala humana. Como se seu crebro, corao e entranhas no houvessem sido dilacerados, arrancados, substitudos por outra coi-sa, por bichos raivosos, que se mordiam e tentavam escapar pelos seus olhos. Mas o homem continuava tagarelando, insistente.

    No foi minha culpa! No foi! Eu tava aqui, tava aqui escondido e ela apareceu e veio, assim mesmo, sem mais nem menos, veio correndo!

    ...

    - Eu s queria me defender! Eu no sabia, no sabia, no sabia que era ela, achei que fosse a coisa vindo atrs de mim!

    ...

    A culpa foi dela mesma! Burra, burra, burra! Quem mandou? Heim? Quem mandou? Tava aqui na minha, a culpa dela!

    ...

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    Fez por merecer! Menino no brao, sem ma-rido, sem nada! Uma sem vergonha, uma perdida, uma vadia! Fez por merecer! T melhor assim, que vivendo no pecado!

    ...

    A culpa no foi minha! A culpa de vocs, de vocs, dos macumbeiros, das bichas nojentas, des-sas raparigas, embuchando por a, sem Deus, sem Jesus no corao!

    Jlio mal o escutava. Estava sentado sobre uma perna, com Alice deitada em seus braos. Podia sentir a outra ponta do vergalho em suas costas, o sangue escorrendo livremente e espalhando-se aos seus ps. Sua mo esquerda descansava prxi-ma do metal enferrujado, enquanto a direita ainda segurava a de Leozinho. O menino apenas obser-vava, sem chorar. Os lbios dela moviam-se, mas nenhum som escapava deles. Jlio percebeu que os dentes eram pequenos e tortos. Talvez no gostasse do prprio sorriso. Agora ela no escondia a boca ensanguentada atrs das mos. Alice suspirou fra-camente, virou o rosto na direo do filho e a vida a abandonou. Dentro de Jlio, as bestas selvagens e convulsivas arranhavam, tentando escapar. Sentia o p esquerdo dormente e pesado. Passou o corpo de Alice com delicadeza para o cho imundo e deixou seu filho apegado mo morta que ainda segurava firmemente os dedos infantis. Ergueu-se lentamen-te. O homem continuava arengando, vomitando improprios, falando de anjos, demnios, arrebata-mento e julgamento. Atrs de Jlio, o corpo de Alice esfriava. Ela havia sido a primeira pessoa que Jlio encontrara enquanto errava pelo Porto, ainda atur-dido aps a Torre Malakoff. Havia-o apresentado ao grupo. Dividido o pouco que tinha entre si mes-ma, seu filho e Jlio. E ainda sorria, depois de tudo. Sorrisos escondidos, tmidos, mas ainda assim, sor-risos. O homem virou-se para Jlio, fitando-lhe os olhos. Viu as feras e suas presas, as garras ansiosas, milhares de olhos amarelos e maus, bocas salivan-do em antecipao. O discurso cessou. O homem enxergou o que o aguardava e recuou. Falou de pre-tos, viados e putas. De cu, inferno e merecimen-to. Ergueu os braos ao teto esburacado, deixando antever estrelas, a lua e o olhar de Deus. Jlio no parou de se aproximar, nem mesmo quando o ho-

    mem desatou a chorar, miseravelmente agarrando o prprio corpo e balanando-o para frente e para trs. Mal resistiu mesmo quando sentiu as mos em volta do pescoo.

    Jlio apertou. No parou de apertar nem mes-mo quando o corpo do homem desabou, foran-do-o para baixo tambm. Empurrava os polegares contra a traqueia oculta sob a papada pontilhada de pelos grisalhos. A pele passava do rosa ao viole-ta, enquanto o homem engasgava, batendo as per-nas espasmodicamente. O movimento cessou, mas Jlio continuou estrangulando, at sentir o cheiro nauseabundo das imundcies que no mais podiam ser contidas nas tripas sem vida. Queria mais. Que-ria que o homem voltasse a viver, para que pudes-se dar-lhe fim mais uma vez. Torceria seu pescoo para o lado, mais e mais, at sentir os ossos esta-lando, a espinha partindo. Esmurraria at que seus punhos partissem e o rosto do homem afundasse em uma pasta de sangue e migalhas de cartilagem. Uma morte apenas no lhe bastava. Jlio respirava pesadamente. Sentiu um toque leve em seu ombro. Desprendeu as mos e virou-se para Leozinho. O menino apontava para as suas costas. Jlio final-mente percebeu a luz rosa-violcea que inundava o galpo. A coisa estava l. Flua de cada falha no teto, do corredor, juntando-se pesadamente no assoalho, em todo lugar. No havia mais nenhuma sada. Jlio estendeu os braos para a criana, estreitando-a em seu colo enquanto a criatura se aproximava inexo-ravelmente. O som, mais claro do que nunca agora. Para onde quer que se virasse, o leviat estava l, gi-gantesco, inescapvel, cercando-os. A poucos cen-tmetros parou, como se estudasse as pessoas a sua frente. Jlio via apenas a imensa massa tentacular, luminescente, preenchendo todo o seu campo de viso. Abriu a boca, como que para falar. Implorar, talvez. Pela sua vida e pela do menino. Que graa, implorar a um monstro. Preferia pensar que estava prestes a dirigir alguma palavra de conforto e enco-rajamento criana trmula em seus braos. Mas seus lbios se separaram e nenhum som escapou deles. E ento, a coisa os envolveu completamente.

    Foi como se o tempo houvesse parado. O verme, em sua jornada para lugar nenhum, detinha-se so-bre seu prprio rastro pegajoso. Jlio ainda enxer-

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    gava, ainda respirava. Ainda vivia. Bem como o me-nino. Mas tudo era silncio ao seu redor. As fagulhas azuis planavam preguiosamente em sua volta. Po-dia v-las com mais clareza agora. Pareciam parti-lhar de um formato mais ou menos comum a todas elas. Definido. Humanoide, quase. E ento Jlio sentiu um toque. No em sua pele, mas dentro de si. Em sua mente. Como se uma mo gentil acariciasse seu rosto para conseguir sua ateno. E ento o silncio foi par-tido. Uma voz, por falta de uma definio melhor. Sus-surrando em sua cabea. Paz. Jlio quase riu. Paz? Como podia um monstro falar sobre paz? No ha-via paz ali. Apenas horror. Apenas morte. Ns que-remos paz. Ns queremos unio. Ns quem? Quem estava falando? Todos ns. Todos um s. Para sempre. No. Jlio no podia acei-tar. As centelhas azuis se aproximavam. Havia familiaridade nelas. Em cada uma delas. No podia ser. Junto de ns. Sem dor. Sem sofrimento. Para sempre. Sempre. A palavra ecoava em seu crnio. Sentiu a raiva aflorando em seu peito. Haviam sido eles. Eles. Haviam comeado tudo. Os ataques, a destruio, as mortes. No. Ns no. Vocs. Uns aos outros. No atacamos. Desper-tamos. As manchas no eram mais manchas. Pare-ciam pessoas, silhuetas animadas e azuladas. Cada vez mais perto. A cabea de Jlio girava. No foi um ataque? O horror no galpo? Contato. Assimilao. Unio. Mais uma palavra, mais clara do que as an-teriores. Imortalidade.

    As sombras estavam perto agora. No precisa-vam de faces para que Jlio as reconhecesse. Esta-vam l. No haviam morrido. O corao de Jlio acelerou. Era loucura, mas permitiu-se um fio de esperana. Juntos. Para sempre. Lcia. Alice. Lcia. Lcia. Tornaria a v-la, a tom-la nos braos. Nunca mais se separariam. Sem angstia. Sem sofrimen-

    to. Sem morte. Hesitao. No. Por que no? Por que no, por tudo o que sagrado, por que no? Por que no poderia voltar para a sua esposa? Por que Leozinho no poderia rever a sua me? Cascas ocas. No h vida. No h assimilao. H ape-

    nas o vazio. No. No. Por favor. Mortas. Para sem-pre. Mortas. Nada a fazer. Quero v-la novamente. Nunca mais. Ento mor-reria tambm. No queria uma eternidade sem ela. Leozinho tinha tanto a co-nhecer ainda. Tanto a viver. Jlio no. Havia chegado ao limite. No desejava mais existir. Quero morrer. Pen-sou. Comunicou. Essa a minha escolha. Escolha. A palavra pairou no ar, rever-berando no tempo inerte. As sombras o cercavam, braos fantasmagricos es-tendidos em sua direo. Escolha. No h escolha. O corpo de Jlio foi imedia-tamente avassalado. Sentia

    a nsia, a fome dos espectros ao despedaarem seu corpo e o de Leozinho. Sua mente foi invadida por um conhecimento sem idade, profundo como os oceanos, sublime e terrvel como as mars. Sentia que retornava origem, de onde a vida havia emer-gido. Novamente um s. Como fora antes da sepa-rao. Da segregao. Do afastamento de onde tudo havia comeado. Do mar. Gritou por Lcia uma ltima vez. Sua voz juntou-se ao coral de lamentos eternos. E ento deixou de ser. Para sempre.

    FredOliveira gastrnomo por profis-so, historiador por formao e escritor por teimosia. Escreve h tempos, mas s agora criou coragem para mostrar o resultado ao mundo. f dos mestres da fico especulativa e da fantasia, tanto internacionais quanto nacionais, de onde tira inspirao infindvel e

    conselho silencioso.

    E-mail: [email protected]

    Ilustrao de Arthur Medeiros

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  • um conto de

    Octvio Arago

    O vapor embaa as lentes dos culos. O caf pssimo, como sempre, mas, graas a Deus, tenho uma garrafa tr-mica cheia. As instalaes so precrias. Como conseguimos ir adiante com um projeto meticu-loso, que exige preciso e acuidade, dentro de um ambiente to sujo? H areia do deserto em todos os consoles, todos os painis de controle.

    Estou h duas noites sem dormir. Eu e toda a equipe. Homens e mulheres sonmbulos pelos cor-redores, trabalhando sem parar, cheirando a graxa e coisa pior (sim, porque o banheiro est entupido h mais de uma semana e ningum tem tempo su-ficiente para dar ateno a uma coisa to insignifi-cante quanto merda flutuando no reservado mas-culino. No preciso dizer que a segurana aqui to alta que no h pessoal encarregado da faxina). Os militares esto pressionando. Querem resulta-dos, e eu, que chefio o projeto, sou o mais cobrado.

    Olho para a superfcie do lquido preto dentro da caneca de lato. Ainda sou eu. Mais feio, desca-belado e com olhos midos boiando em rbitas es-curas, mas ainda eu. Bebo um gole do meu reflexo. Meu gosto horrvel. Consegue ser pior que meu cheiro. Mau cheiro. Como o do banheiro masculi-no.

    Os culos embaam totalmente. Estou em meu quarto, aos dez anos. O caf tomou conta de tudo e a nica luz que resta vem por baixo da porta. No canto, encolhido, trmulo, sei o que acontecer. No um sonho, uma recordao, e lembranas no trazem novidades. No me espanto com a por-ta que se escancara, mas grito assim mesmo. Por-que tenho de gritar. a nica coisa que posso fazer alm de sangrar.

    A silhueta enorme. Recortada em frente por-ta, separada da realidade pelo umbral, ele me enca-

    Insone

  • Insone Octvio Arago

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    ra e sua voz, mesmo sussurrada, encobre meu grito. Ele fala e minha garganta arde. Repete a mesma la-dainha de sempre, diz que sou um fraco, que puxei minha me, que no sou homem. Eu me encolho mais e mais, tentando segurar as lgrimas. Tenho de provar que ele est errado, suportando tudo sem chorar.

    A ltima frase vem, como sempre. Trata-se de uma ordem e obedeo. essa altura no h mais luz, apenas o brilho da fivela do cinto. Uma fivela fascinante, com dois pinos que perfuram dois furos paralelos no couro reforado. Um cinto de homem, sem dvida. Mastigo essa imagem para escapar da dor e decoro cada centmetro da tira, cada ruga, cada imperfeio. Oito furos. Quatro pares. Dois a dois. Em sequncia. Paralelos. Que nunca se encon-tram. Para sempre. Juntos, porm separados. Mes-mo que se odiassem, nunca se afastariam.

    A dor acaba. A imagem se transforma e o caf no mais inunda o universo. Agora, uma floresta linda, mas impenetrvel.

    Tenho vinte anos. Estou no carro verde oliva com ela, no banco de trs, e posso ver a floresta, tocar as folhas e o orvalho. Mas s. Minhas calas parecem que vo explodir e eu imploro, estou fora de mim.

    No. De jeito nenhum. Eu estou pensando que ela o qu? No penso nada. Minha cabea um branco total. No, branco, no. Branco cor de pu-reza, de mulher. Outra cor. Minha cabea outra cor. Minha cabea da cor da frustrao, da inveja e da impotncia. No s minha cabea, a cor sou eu.

    No h mais carro, no h mais ela, no h mais eu. Apenas a floresta resiste, forte, inviolvel, sem fim.

    A mo sacode meu ombro e eu levanto mais rpido do que a outra pessoa esperava. ela. Ao fundo, uma sirene berra como se anunciasse o fim do mundo e eu, o ltimo passageiro a embarcar, estivesse atrasando o barco. Os culos, totalmente transparentes, esto largados sobre a mesa, ao lado da xcara fria.

    Est na hora. Se o general pega voc aqui capaz de lhe dar uma surra.

    Sinto a floresta recuar para dentro de mim, junto

    com toda a raiva. A cor se vai, a cala afrouxa.

    OK. Deixa eu passar uma gua no rosto e j vou pra l.

    Ela sorri e sopra um beijo. Deseja boa sorte em silncio e bate a porta.

    Tenho trinta e dois anos. O espelho do lavabo me encara como se no me conhecesse e, enquanto gotejo sobre a pia, ouo meu nome pelo comuni-cador interno. A voz metlica e indiferente. Aqui sou apenas uma palavra desprovida de sentido, uma bandeira sob a qual vrios se abrigam, garantem um salrio e a esperana de glria futura. Mais uma vez engolindo a raiva incipiente, visto o jaleco sobre o palet amarrotado, cheio de caspa, e saio.

    A janela da sala de testes mostra o cenrio de-srtico l fora. Aqui dentro h uma paleta de cores montonas. Toda a equipe me deseja bom dia. Os militares, no.

    Bom dia, senhores.

    Encaro os rostos esverdeados, feios, com falso entusiasmo, enquanto observo pela ltima vez o mundo antes que a floresta que mora em mim o en-gula. L fora, deitada sobre a areia amarela, a bom-ba dorme tranquila.

    OctvioArago doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ (2007), com a tese A Re-construo Grfica de um Candidato: como os chargistas cariocas perceberam a mudan-a de imagem de Lus Incio Lula da Silva. Professor Adjunto da Escola de Comunica-o - ECO/UFRJ e lecionou antes na Uni-versidade Federal do Esprito Santo - UFES (2006/2009), onde fez parte do ncleo de ensino distncia (ne@ad). Pesquisador

    convidado do Programa de Ps-Graduao em Estudos Cultu-rais, PACC/UFRJ, sob orientao da professora Helosa Buarque de Hollanda. Publicou artigos nas revistas RevistaUSP, Arte e En-saios e Nossa Histria. Autor da Graphic Novel Para Tudo Se Aca-bar na Quarta-Feira (Draco, 2011), em parceria com o ilustrador Manoel Ricardo, dos romances Reis de Todos os Mundos Possveis (Draco, 2013), A Mo que Cria (Mercuryo, 2006) e organizou a antologia de contos Intempol (Ano Luz, 2000). Co-autor do li-vro Imaginrio Brasileiro e Zonas Perifricas (7 Lettras, 2005), sob a coordenao da professora Rosza Vel Zoladz. Participou de diversas antologias literrias no Brasil, Portugal e Estados Uni-dos. Exerceu os cargos de editor de arte na Ediouro Publicaes (2000/2001), sub-editor de arte no jornal O Dia (1997) e coorde-nador de arte no jornal O Globo (1992/1997).

  • um conto de

    Joo Solimeo

    Toda manh era a mesma coisa. Roberto acordava com a ntida sensao de que havia sonhado com uma ideia fantstica para um livro, mas nunca se lembrava qual era.

    Ele j havia tentado de tudo. Colocara um blo-co de notas ao lado da cama, para tentar anotar os primeiros pensamentos que tinha pela manh. Nada. Havia colocado um gravador ativado por voz (quem sabe ele no falaria durante o sono e re-velaria a tal ideia genial?). Nada. Uma vez, desespe-rado, fora atrs de uma vidente, que alegava poder ver dentro da mente das pessoas. A nica coisa que ela queria descobrir, na verdade, era o nmero da conta bancria de Roberto.

    Ele estava com um prazo apertado. No publi-cava nada novo h anos, e a pouca grana que havia ganhado com o ltimo livro havia sido gasta faz tempo. Prometera uma primeira verso ao editor para o final do ms, e sempre que ele ligava dizia que estava nos ltimos retoques da nova obra-pri-ma. Na verdade, ele passava as noites olhando para a tela vazia do editor de texto, procurando por ins-pirao. Precisava de uma ideia nova, urgente.

    Todas as manhs, quando acordava, tinha certe-za de que havia sonhado com uma ideia genial, mas no conseguia se lembrar qual era.

    Foi ento que ouviu falar do Dr. Alptraum e sua mquina. O alemo alegava ter criado uma geringona que conseguia gravar detalhadamente os sonhos de uma pessoa. Diziam que ele era um charlato, que s estava atrs de uma gorda verba governamental, mas Roberto se interessou pela ideia. Atravs de um contato no jornal, conseguiu um frila para entrevistar o cientista maluco; de quebra, se ofereceu como voluntrio para experi-mentar a tal mquina dos sonhos.

    A Mquina dos Sonhos

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    A Mquina dos Sonhos Joo Solimeo

    O laboratrio do Dr. Alptraum ficava fora da cidade, em um lugar apropriadamente estranho e sombrio. Roberto dirigiu por uma estradinha sinu-osa e chegou l noitinha, em meio a uma chuva torrencial. Bateu na porta e foi recebido por uma senhora bem vestida, mas com cara de poucos ami-gos.

    Aguarde aqui - disse a mulher.

    Roberto esperou em uma sala grande e pouco iluminada. Na parede, quadros com temas notur-nos. Os clichs eram tantos que ele no se surpreen-deria se encontrasse, a um canto, uma lareira acesa e um mordomo encurvado, tocando um grande r-go de tubos.

    O Dr. Alptraum, no entanto, no era nada do que ele esperava. O homem de cabelos louros e om-bros largos entrou na sala com um grande sorriso, oferecendo a mo estendida.

    Hallo! Fez boa viagem?

    Boa noite! - respondeu Roberto - Consideran-do a estrada escura e a chuva, at que foi tudo bem.

    O Dr. Alptraum levou Roberto at uma sala branca. Havia apenas uma cama, tambm branca, no centro do quarto.

    E a mquina, onde est?

    tudo feito atravs de sensores embutidos. O senhor deite aqui - lhe explicou o doutor, apontan-do a cama - e durma. Se precisar de um tranquili-zante, podemos lhe oferecer um.

    Roberto declinou a oferta do remdio, mas acei-tou uma bebida.

    A noite veio e, com ela, um sono pesado, cheio

    de sonhos mirabolantes. Entre eles, sem dvida, es-tava a ideia que Roberto perseguia h tanto tempo.

    Pela manh, enquanto tomava um suco e passa-va manteiga no po, Roberto aguardava, ansioso. O Dr. Alptraum havia afirmado que a mquina fun-cionara perfeitamente e que, muito em breve, um relatrio seria impresso.

    A porta da copa se abriu e l estava o Doutor, todo sorrisos, com um mao de folhas na mo.

    Deu certo? - perguntou Roberto.

    Sim, claro. - respondeu o alemo - E, se puder acrescentar, o senhor tem uma imaginao muito frtil.

    Mesmo?

    Sem dvida! Tenho certeza que o senhor vai se aproveitar muito do contedo destas pginas - res-pondeu o Doutor.

    Roberto estendeu as mos e pegou o mao de pa-pel. Agora, finalmente, ia saber qual era a ideia com a qual havia sonhado tanto.

    Foi ento que Roberto acordou. E, como todas as manhs, tinha certeza de que havia sonhado com uma ideia tima, mas no conseguia se lembrar de nada.

    Joo Solimeo, 42 anos, natural de So Paulo, formado em Jornalismo pela PU-C-Campinas. Mantm o site de cinema Cmera Escura (www.cameraescura.com.br) e trabalha como Editor de Ima-gens no Centro de Linguagem e Comu-nicao da PUC-Campinas.

    http://www.cameraescura.com.brhttp://www.cameraescura.com.br

  • um conto de

    Jorge Luiz Calife

    1Anavecristalina

    Como representante das fadas, Liana era informada de tudo o que acontecia em sua floresta. Mas isso no fora necess-rio no caso da lgrima de fogo. A coisa cara do cu depois de atravessar o anel incandescente de Eloh como se ele no existisse. As naves da Hege-monia s podiam entrar no planeta pelos plos, mas aquela coisa de outro mundo tambm igno-rara essas convenes. Atravessara os campos gra-vitacionais com a mesma desenvoltura com que ignorara o anel de fogo. Cara do cu, brilhando como um minissol at abrir sua prpria clareira no meio da floresta.

    Assustados, os gelfos tinham mandado mensa-geiros pedir ajuda no reino de Basten. Mas a via-gem seria muito longa e Liana decidira no esperar por ajuda de fora. Era melhor investigar a lgrima de fogo, descobrir se era um fenmeno natural ou uma nave de outro planeta. As fadas e os outros povos de Eloh j tinham enfrentado problemas com naves estranhas e Liana decidiu no arriscar ningum de seu povo. Partiu sozinha, para fazer o reconhecimento do local de impacto. Afinal, a mais sbia das fadas, uma Themis guardi da sabedoria dos Orculos, estava mais capacitada a enfrentar o desconhecido do que qualquer uma de suas irms.

    Levou apenas dois dias para chegar at a clarei-ra, o ponto zero aonde o visitante viera repousar. As rvores em volta estavam chamuscadas, mas no havia mais calor. A lgrima de fogoesfriara e parecia agora uma espcie de grande semente cris-talina, sua forma afuselada apontando para o cu. A extremidade pontuda erguia-se acima da clareira enquanto a base arredondada, com uns seis metros de largura, repousava sobre a vegetao queimada.

    Estranhas no Paraso(Calife visitando o universo Hegemonia, criado por Clinton Davisson)

  • Estranhas no Paraso Jorge Luiz Calife

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    Era uma coisa bonita, apesar do tamanho. A luz que vinha do cu tirava cintilaes de sua estrutura cristalina. No, no era um fenmeno natural. Era um artefato, uma espcie de nave, mas uma nave diferente de tudo o que j pousara naquela regio da floresta de Kellyni, na regio sul de Eloh. Liana estava contemplando aquela estrutura, admirada, quando duas pessoas apareceram, vindas da floresta atrs. Uma mulher, de uns 30 anos de idade, e uma menina de uns nove, dez anos de idade. A mulher era bonita, cabelos dourados da cor do sol e olhos de um tom azul-violeta difcil de definir. A garo-ta podia ser sua filha, era graciosa e com cabelos castanhos esvoaantes. A roupa que elas usavam era como um manto iridescente que mudava de cor e exibia padres mutveis a cada movimento.

    Liana tentou se comunicar por gestos, mas a ga-rota falou com ela sem problemas.

    J aprendemos seu idioma. Nossa chegada foi imprevista, mas tnhamos conhecimento de sua ci-vilizao. Atravs da sonda que mandaram.

    Sonda? O que uma sonda?

    Deve ter sido h muito tempo, depois que construram a esfera de Dyson alm deste mundo disse a mulher adulta. Assim que entramos neste espao de fase, captamos algumas transmisses da Hegemonia. E conferia com o nosso conhecimento de seus idiomas.

    Desculpe, eu no estou entendendo bem o que vocs dizem. Eu sou Liana. Eu vivo aqui com meu povo. Fico feliz que possamos nos comunicar, mas acho que precisam explicar melhor de onde vocs vieram e como chegaram aqui.

    Eu vim pelos drages disse a menina. Sou Daniela, mas pode me chamar de Dani. Vocs tm drages aqui, no tm?

    J tivemos muitos. Mas houve uma guerra. Restaram poucos.

    Azuis?

    No, eles no so azuis.

    Outra pista errada, no Dani? disse a mu-lher loira. Atravessamos cinco universos, danifi-camos a nave no campo gravitacional maluco desse

    planeta. E nada de drages azuis.

    Mas eles existem. Eu tenho certeza disso. Esto me chamando atravs do espao onrico. Talvez em outro universo, alm da curvatura deste aqui.

    Vocs vm de... outro Universo? perguntou Liana.

    Sim, mas somos humanas, no se preocupe. H muitas colnias humanas nos dezoito universos conhecidos. Talvez existam mais. No sabemos. H muitos universos flutuando no grande rio do tem-po, e a maioria ainda no exploramos. Desculpe, es-tou sendo indelicada. Seja bem vinda a nossa nave, o sistema de propulso est inoperante no momen-to, mas o suporte vital no foi afetado. Entre, no vamos lhe fazer mal.

    Um crculo brilhante surgiu perto da base do fuso cristalino. A menina desapareceu atravs dele e a mulher indicou com a mo para que Liana fizesse o mesmo. Ela respirou fundo e passou pela interface cristalina.

    Piscou os olhos assustada com a claridade. Esta-va em uma praia de areia branca, onde ondas azuis quebravam em rendas de espuma. direita erguia-se uma montanha coberta pela floresta tropical e a casa, em estilo rstico, ficava uns 30 metros adiante, no fim da praia. Liana olhou incrdula para cima, para as nuvens que passavam diante de um sol du-plo, um componente amarelo, outro verde, cercados por um grande halo de luz refratada.

    Onde estou? Ela perguntou confusa.

    Em nossa nave disse a mulher loira, ao seu lado.

    Dentro da nave? Mas isso aqui enorme, com um oceano, uma ilha....

    s um ambiente simulado. Para tornar me-nos tediosa a viagem espacial.

    Simulado? Essa praia tem mais de cem metros de comprimento e a nave l fora no tinha mais do que... seis metros de largura.

    A concha externa sim. Mas o interior fica num campo da Quinta dimenso. Pode ter o tamanho que quisermos. Pode se estender infinitamente.

  • Estranhas no Paraso Jorge Luiz Calife

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    Quem so vocs? O que so vocs?

    Eu me chamo Angela e sou apenas uma mu-lher de uma civilizao diferente da sua, Liana. Desculpe invadirmos assim o seu mundo, mas Da-niela descobriu que vocs tinham drages e queria saber se eram azuis. Vamos at a casa. nossa base de operaes e centro de controle. Vamos explicar tudo. Nosso freio Alfven falhou na fase terminal de ingresso neste continuun e ns danificamos um pe-dao de sua floresta. Me perdoe, acho que podemos oferecer compensaes. Mas venha, temos ch e torradas. Por favor, aceite nossa humilde hospita-lidade.

    Liana usou de todo o seu autocontrole para en-frentar aquela situao. J tinha chegado at ali. No podia recuar. Precisava recolher todas as informa-es possveis para abastecer o Orculo. A menina continuou falando enquanto caminhavam, tinha a espontaneidade tpica de sua idade.

    Aquele mundo l fora um artefato, no?

    Artefato?

    Quero dizer, no um planeta formado natu-ralmente. Ele foi criado, pela mesma civilizao que construiu a esfera de Dyson neste sistema.

    Acho