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CLARA RODRIGUES MARTINS FUNDAMENTOS DA PRÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA DA PSICANÁLISE DE FREUD A LACAN IP/UFRJ 2008

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CLARA RODRIGUES MARTINS

FUNDAMENTOS DA PRÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA

DA PSICANÁLISE DE FREUD A LACAN

IP/UFRJ2008

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Fundamentos da prática: considerações sobre a ética da psicanálise de Freud a Lacan

Clara Rodrigues Martins

Programa de Pós-Graduação em Teoria PsicanalíticaInstituto de Psicologia

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientadora: Professora Doutora Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro – RJ

2008

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Fundamentos da prática: considerações sobre a ética da psicanálise de

Freud a Lacan

Clara Rodrigues Martins

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

Prof. Dra. __________________________________Professora Doutora Ana Beatriz Freire

Prof. Dra. __________________________________Professora Doutora Angélica Bastos

Prof. Dr. ___________________________________ Professor Doutor Luis Moreira de Barros

Rio de Janeiro – RJ

2008

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Martins, Clara Rodrigues.

Fundamentos da prática: considerações sobre a ética da psicanálise de Freud a Lacan / Clara Rodrigues Martins. – Rio de Janeiro, 2008.

viii, 106 f.: 29,7cm.

Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, 2008.

Orientadora: Ana Beatriz Freire

1.Psicanálise. 2. Ética. 3. Freud. 4. Lacan. I. Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.

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Agradecimentos

Agradeço especialmente a minha orientadora, professora Ana Beatriz Freire, pelo apoio,

incentivo e confiança através desses já longos anos de pesquisa e trabalho conjunto;

À professora Angélica Bastos, pelas indicações preciosas em meu exame de qualificação,

pela participação na banca examinadora e também pela presença fundamental em meus anos

de graduação;

Ao professor Luis Moreira de Barros, por aceitar participar da banca examinadora;

À professora Ana Cristina Figueiredo, cuja participação em meu exame de qualificação foi

determinante para o rumo deste trabalho;

A todos os professores do PPGTP, com quem aprendi muito;

À Paloma Moura, Julia Kligerman e Julia Quaresma, amigas queridas que, cada uma de um

jeito, ajudaram tanto;

Às amigas de jornada, Fátima Pinheiro, Jaíra Perdiz e Fernanda Canavêz, por compartilharem

comigo os momentos mais difíceis;

Ao mestre querido, Ricardo Cabral;

A minha mãe, meu pai e meus irmãos, pelos eternos bumbos tocados;

Ao meu padrinho, José Cardias, pela presença e pela ajuda;

Ao meu amor, Conrado Gonçalves;

Aos órgãos de fomento, CNPq e FAPERJ, pelo amparo facilitador da pesquisa.

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Resumo

MARTINS, Clara Rodrigues. Fundamentos da prática: considerações sobre a ética da psicanálise de Freud a Lacan. Orientadora: Ana Beatriz Freire, Rio de Janeiro. PPGTP/IP/ UFRJ, 2008. Dissertação.

Com o objetivo de encontrar os princípios orientadores da clínica psicanalítica, o presente trabalho examina a ética da psicanálise, a partir da formulação lacaniana sobre o tema. Visando circunscrever tanto os aspectos teóricos quanto os aspectos práticos próprios do campo da ética, dividimos a pesquisa em três partes. Na primeira, levantamos os conceitos que participam do funcionamento psíquico, tal como desenvolvidos por Freud ao longo de sua obra. A partir disso, num segundo momento, levantamos a ética decorrente da descoberta freudiana, através das indicações e problematizações introduzidas por Jacques Lacan no final da década de 50 sobre o terreno da moral. Na terceira e última parte, verificamos a incidência dessa ética na clínica, através da análise de elementos da técnica da psicanálise. Desse modo, pretendemos extrair tanto a originalidade quanto os impasses presentes na clínica psicanalítica.

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Résumé

MARTINS, Clara Rodrigues. Fundamentos da prática: considerações sobre a ética da psicanálise de Freud a Lacan. Orientadora: Ana Beatriz Freire, Rio de Janeiro. PPGTP/IP/ UFRJ, 2008. Dissertação.

Avec l'objectif de découvrir les principes qui orientent la clinique psychanalytique, ce travail examine l´éthique de la psychanalyse, à partir de la formulation lacanienne sur le thème. Dans le but d'embrasser autant les aspects théoriques que pratiques, propres au sujet de l'éthique, nous avons divise notre recherche en trois parties. Dans la première, nous avons vérifié les concepts qui participent au fonctionnement psychique, comme l'a développé Freud au cours de son oeuvre. A partir de cela, dans un 2eme temps, nous avons examiné l'éthique découlant de la découverte freudienne, au travers des indications et des problématiques introduites par Jacques Lacan à la fin des années 50 sur le thème de la moral. Dans la 3eme et dernière partie, nous avons vérifié l'incidence de cette éthique dans la clinique, au travers de l'analyse des éléments de la technique de la psychanalyse. De cette manière, nous prétendons extraire aussi bien l'originalité que les impasses qui sont présents dans la clinique psychanalytique.

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Sumário

Introdução ................................................................................................................ 01

Capítulo 1: sobre o funcionamento mental ........................................................... 07

O recalque ...................................................................................................... 08

Os princípios do funcionamento mental ........................................................ 13

O supereu ....................................................................................................... 23

Capítulo 2: sobre a ética .......................................................................................... 32

Aristóteles e o Bem ........................................................................................ 37

Kant e a Lei .................................................................................................... 41

O paradoxo do gozo ....................................................................................... 49

A sublimação .................................................................................................. 60

O desejo .......................................................................................................... 61

A ética da psicanálise ..................................................................................... 66

Capítulo 3: sobre a técnica ...................................................................................... 73

A situação analítica ........................................................................................ 74

A posição do analista ..................................................................................... 80

Política, estratégia e tática .............................................................................. 89

Conclusão ................................................................................................................. 94

Referências Bibliográficas ......................................................................................102

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Introdução

O panorama atual da prática psicanalítica é bastante vasto. Hoje, é possível encontrar

psicanalistas em escolas, em instituições militares, penitenciárias, na área jurídica, nos

hospitais gerais, maternidades, em instituições de saúde mental, em favelas, nas mais diversas

organizações não-governamentais, nas universidades, entre outros. Essa ampla extensão da

psicanálise a permitiu conhecer enquadres muito diferentes do consultório particular e seu

divã, trazendo com isso dificuldades e impasses, mas também avanços.

Novos contextos e novos enquadres geram dúvidas, embaraços e confusões exigindo,

conseqüentemente, reflexão e discernimento. Por esta razão, vimos recentemente

psicanalistas lacanianos se voltarem para um grande e profícuo debate sobre os atuais usos da

psicanálise na diversidade de sua prática. Com o cuidado de não deixar a psicanálise estagnar

em velhos padrões e nem resvalar para uma prática psicoterápica qualquer, mesmo longe de

seu lugar original – a clínica da neurose no consultório particular –, esses psicanalistas

entenderam que era preciso, nesse momento, retomar os princípios da prática para estabelecer

uma orientação estrutural. Lição aprendida, inclusive, com o próprio Jacques Lacan.

Em 1958, em seu escrito intitulado “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu

Poder”, Lacan fez uma espécie de balanço sobre aquilo que se fazia na época sob o nome de

psicanálise. Com o crivo das teorias freudianas, retratou e renovou o panorama da prática

clínica, colocando-a no eixo de uma orientação e dando, assim, abertura a um novo rumo

para a psicanálise. Nos anos consecutivos, 1959-60, aprofundando-se ainda mais na tomada

dos princípios da psicanálise, deu origem à formulação de sua ética.

Atualmente, os impasses conhecidos pela psicanálise em seus novos contextos e

diante de novos sintomas são obviamente diferentes daqueles encontrados por Lacan no final

da década de 50. Naquela época, a crítica recaía sobre uma prática engessada em

procedimentos ritualísticos, hoje denominados standard, e numa concepção clínica que

dividia os psicanalistas pós-freudianos entre a influência americana da psicologia do ego, de

um lado, e a perspectiva desenvolvimentista da libido que reduzia a psicanálise a uma

psicogênese, de outro (COTTET, 2005, p.12).

Foram os pós-freudianos, inclusive, aqueles que conheceram o primeiro movimento

de ampliação da psicanálise para além dos consultórios particulares. Na década de 20, época

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do pós-guerra, foi criado o Instituto de Berlim, cuja influência foi determinante na divulgação

e expansão da psicanálise.

De acordo com Sérgio Laia (2003, p.69-76), nos anos que sucederam o fim da Grande

Guerra, devido a seu conhecimento sobre o trauma e as neuroses de guerra, psicanalistas

foram solicitados por instituições militares para tratar de seus soldados traumatizados pelos

campos de batalha. Em 1918-19, inclusive, muitos militares passaram a assistir aos

congressos de psicanálise, propondo a criação de centros clínicos dedicados ao tratamento

psicológico de neuróticos produzidos pela guerra. É nesse contexto interessado que é criado

no Instituto de Berlim o primeiro serviço ambulatorial de orientação psicanalítica. Logo

depois, o instituto passou a sustentar um programa de estudos em psicanálise, destinado à

transmissão e à formação de analistas. Isso atraiu muitos psicanalistas, assim como leigos

interessados, fazendo de Berlim um centro de referência em psicanálise.

Com o serviço ambulatorial, a psicanálise conheceu sua primeira aplicação em larga

escala, o que exigiu algumas modificações práticas. Tempo, freqüência e custo da sessão, por

exemplo, necessitaram de uma adaptação. Quanto à direção do tratamento, Freud mesmo

advertira, em 1918, que quando a psicanálise dilatasse seu campo de aplicação para

instituições públicas e populares, poderia sofrer algumas deturpações, sendo necessário, por

exemplo, retomar técnicas já abandonadas, como a hipnose e a sugestão (FREUD,

1919[1918], p.181). Freud também alertou, entretanto, que independentemente da adaptação

e do elemento adicionado, os fatores mais importantes e efetivos seriam aqueles tomados da

‘psicanálise estrita’ e não ‘tendenciosa’.

Com o intuito, portanto, de proteger e manter os princípios da psicanálise tanto no

serviço ambulatorial quanto nas análises didáticas, os psicanalistas pioneiros no processo de

expansão desenvolveram o procedimento standard, que se caracterizava por uma

padronização da técnica, estabelecendo previamente alguns elementos da clínica. Essa foi a

maneira encontrada para não deixar que se fizesse um uso desfigurado da psicanálise. Depois

de algum tempo, porém, esse procedimento padronizado acabou trazendo alguns problemas.

O uso legítimo da psicanálise ficou fixado no standard, o que em última instância, reduziu a

psicanálise a uma técnica cega, fechando-a para a surpresa e a contingência da clínica.

Em 1958, numa via contrária ao standard, Lacan afirma que o analista está mais livre

em sua tática e menos em sua política, abrindo assim o terreno da técnica para a

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multiplicidade das contingências, sem com isso desviar-se de seus fundamentos. O que Lacan

assinala é que a legitimidade da prática deve estar baseada em seus princípios e não em sua

técnica.

Com esta lição, psicanalistas lacanianos envolvidos nos novos contextos trazidos à

sua prática pela civilização contemporânea aprofundaram-se nos princípios da psicanálise

para encontrar, desse modo, um fio condutor, uma bússola, em meio a tanta variabilidade. Os

novos sintomas, a instituição pública de saúde mental, os hospitais gerais, as escolas,

penitenciárias, a clínica do autismo, são alguns dos novos contextos diante dos quais os

psicanalistas hoje se viram embaraçados e incentivados a atualizar, e com isso reinventar, o

dispositivo analítico. Não é sem razão, portanto, que o texto de Lacan de 1958, “A Direção

do Tratamento e os Princípios de seu Poder”, foi recuperado, mostrando-se essencialmente

atual.

Por ter conhecido a psicanálise através da universidade, no curso de graduação em

psicologia, por meio de aulas teóricas e estágios clínicos de orientação psicanalítica em

instituições públicas, posso afirmar que sou fruto e testemunha dessa recente expansão da

psicanálise. Diante da aparente diferença entre a multiplicidade dos enquadres da prática

psicanalítica e os textos “clássicos” de Freud e Lacan presentes lado a lado neste meu curto

percurso, minha proposta para esta dissertação é investigar, na tentativa de encontrar os

fundamentos, o lugar do psicanalista em sua clínica: como ele se orienta, o que visa a sua

prática, a partir do quê ele se engaja em seu ofício, são questões que suscitaram a presente

pesquisa.

Se entendemos que questionar uma conduta em função de buscar nisso uma

orientação legítima para a ação é propriedade do campo da ética por excelência, nossas

questões nos levaram conseqüentemente para esse terreno. Desse modo, circunscrevemos a

pesquisa em torno da ética da psicanálise. Além disso, concordamos com Isabela Sá (2006, p.

77) ao afirmar que a psicanálise, ao se lançar nos domínios da universidade, dos hospitais ou

de onde mais ela venha a se incluir, não deve estar orientada por algo que não diga respeito à

sua ética.

A ética, de um modo geral, é um questionamento sobre o hábito, o costume, a conduta

humana. Questionamento esse que visa encontrar a melhor conduta, a mais correta, aquela

que leve o homem, de modo legítimo e garantido, à realização de seu ser, onde a felicidade

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reina soberana. É um terreno onde teoria e prática se encontram, já que o elemento em

questão é a ação, o agir humano.

Diferentes filosofias, religiões e outras doutrinas que propõem uma visão de mundo

sustentam suas práticas a partir de um código de valores, um sistema moral. Moral não é o

mesmo que ética, apesar de seus termos terem raízes idênticas e de que ambas tratam do

mesmo tema. Enquanto a moral sustenta um código estabelecido em torno de um ideal, a

ética suspende o ideal a favor de um questionamento que, em seu sentido último, visa uma

moral universal, quer dizer, um código válido para todo ser humano. A ética tem o peso da

universalidade, conforme veremos com detalhes no segundo capítulo desta dissertação.

A descoberta freudiana do inconsciente e do desejo indestrutível, a partir da

investigação sobre a etiologia dos sintomas histéricos, fez surgir no mundo uma nova

perspectiva de reflexão ética, trazendo para o debate um elemento conhecido, mas renegado

pelo pensamento filosófico tradicional: o desejo inconsciente como motivador da ação. O

desejo problematizou o ideal perseguido pelos sistemas morais, cavando assim, no seio da

moral, um questionamento genuinamente ético, ao mesmo tempo em que crava no seio da

ética, uma medida legitimamente singular.

Sabemos que Freud não escreveu sua psicanálise em termos de uma ética. Foi Lacan

quem elaborou o tema a propósito da descoberta freudiana, dedicando um ano de seus

seminários em torno daquilo que denominou como “a ética da psicanálise”. Problematizando

a existência do Bem Supremo da ética de Aristóteles com a incidência de das Ding, e o

alcance da felicidade com o paradoxo do gozo, retirado da radicalidade da moral kantiana,

Lacan afirma que a ética da psicanálise só poderia estar referenciada ao real, ao invés do

ideal, cujos efeitos de verdade são alcançados através da trilha do desejo. Desse modo,

conforme nos abrevia Quinet (1994) “se Lacan alinha a psicanálise no fio das éticas da

tradição filosófica, é apenas para mostrar o alcance do corte freudiano em relação a estas no

âmbito da moral” (QUINET, 1994, p.11).

Muitas reflexões éticas, com o intuito de discutir com a moral vigente, acabam

propondo uma nova moral em seu lugar. Levantam suspeitas e desconfianças sobre o ideal

em jogo, abalando-o a ponto de destruí-lo. Em seguida, porém, ao invés de deixar seu lugar

vazio, preenchem-no com um novo ideal para sustentar. A psicanálise lacaniana, justificada

pela função do desejo inconsciente, não permite a eleição de um novo ideal, deixando em seu

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lugar, o real, afirmando a condição de falta-a-ser do humano. Conseqüentemente, essa ética

não poderia dar origem a uma moral, mas somente a uma clínica.

Diante disso, decidimos para esta dissertação abordar o tema da ética da psicanálise

da seguinte maneira. Num primeiro momento, com o intuito de extrair da obra freudiana a

função do desejo e sua relação com o campo da moral, dedicamo-nos a explorar o modo

como Freud sistematizou o funcionamento psíquico, de onde participa a constituição do

sujeito. Para isso, destacamos três conceitos principais de sua obra: o mecanismo do recalque,

a influência do princípio do prazer no funcionamento mental e o exercício do supereu.

No segundo momento, adentramos no terreno da ética da psicanálise com os

balizamentos de Lacan presentes em O Seminário – livro 7: A ética da psicanálise, de

1959-60. A partir da problematização do Bem Supremo da ética aristotélica e da Lei prática

da moral kantiana chegaremos ao cerne da questão da felicidade com o paradoxo do gozo,

desmembrado pela relação entre lei e desejo. Veremos como e por que a ética da psicanálise

tem sua especificidade.

No terceiro e último tempo, em função da conseqüência clínica que essa ética

desponta, debruçaremo-nos sobre a técnica psicanalítica. Nosso objetivo será verificar como

a orientação do real delineia uma conduta própria ao analista na direção do tratamento e

como este se sustenta em sua prática. Será importante atentar para o vínculo existente entre

ética e técnica para saber até que ponto há aí uma dependência. Retomaremos textos

freudianos sobre a técnica da psicanálise, orientados com o texto de Lacan de 1958, “A

Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”.

Logo após, retiraremos desse percurso algumas conclusões a respeito da orientação do

psicanalista em sua prática, fazendo refletir alguns pontos sobre sua atualidade diversificada.

O que nos importa nesse momento é encontrar o sumo da orientação ética, aquilo a que o

psicanalista deve se voltar, se apoiar e se sustentar para mirar sua prática, esteja onde estiver.

Antes de iniciarmos nossa trajetória, cabe-nos fazer uma justificativa metodológica.

Sabemos que o pensamento de Lacan se desenvolve de maneira proficiente nos anos

seguintes ao seminário sete, principalmente em função da formulação do objeto a, em

meados dos anos 60, ponto de virada de seu ensino, a partir do qual alguns conceitos foram

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alargados e reescritos. Ainda que nos estimule repensar os balizamentos éticos da psicanálise

nesses moldes, isso não nos seria possível sem que primeiro nos apropriássemos do que está

em jogo na experiência freudiana – mesmo estando essa apropriação sob a perspectiva

lacaniana. Por esta razão, enquadramos nossa pesquisa nos dois trabalhos principais de Lacan

sobre os princípios da técnica e sobre a ética datados do final da década de 50. Devemos

dizer que esses textos escolhidos são, por sua vez, considerados fundamentais ao assunto, de

modo que independentemente do contexto de sua época, permanecem, ainda hoje,

atualíssimos.

Além disso, não podemos deixar de marcar que os limites impostos a uma dissertação

de mestrado nos levaram a uma escolha: seria preferível nos aprofundar no que está em jogo

na obra lacaniana sobre o nosso tema, contemplando nisso a obra freudiana, do que passar

rapidamente por diversos pontos do ensino lacaniano, cuja rica complexidade poderia sair

desfavorecida. Vale dizer também que as contribuições de muitos psicanalistas e autores

envolvidos no assunto serão consideradas.

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Capítulo 1 – Sobre o funcionamento mental

Toda prática deve estar fundamentada por um sistema teórico. Essa fundamentação é

necessária, e mesmo imprescindível, pois é ela quem sustenta e orienta a prática, ao mesmo

tempo em que a avalia como correta ou não, legítima ou não. Teoria e prática se concordam e

se fundam quanto à sua lógica, para se separarem em terrenos diferentes, sem, no entanto, se

perderem uma da outra. Se a teoria serve para calcular e validar a ação no terreno intelectual,

talvez pudéssemos afirmar que a prática encarna a teoria, reificando-a no terreno da ação. A

reflexão ética incide justamente no ponto em que teoria e prática – pensamento e ação – se

encontram.

Desse modo, se há uma ética da psicanálise, quer dizer, uma orientação do

psicanalista em sua práxis, esta não poderia vir de outro lugar senão de sua doutrina, de seu

sistema teórico. Tratando-se de psicanálise, aprendemos com Freud a maneira pela qual esse

sistema se constrói: partimos da clínica para a elaboração teórica, calculamos a técnica e,

com ela, voltamos à clínica. Apesar desse desenvolvimento não ser tão linear como o

descrito, entendemos que a incidência da clínica, com suas surpresas e contingências, na

formulação teórica acaba por deixar um espaço aberto nesse sistema. Só assim pudemos

assistir a teoria psicanalítica ser formulada e reformulada ao longo do trabalho vivo de Freud.

Dizer que a psicanálise comporta um espaço vazio em seu sistema teórico não

significa dizer que não haja aí princípios sólidos e permanentes. Há uma lógica revelada ao

longo da obra freudiana. Lógica essa que serve tanto para conduzir as próximas linhas de

raciocínio teórico quanto uma estratégia clínica. Lógica essa que outorga um lugar próprio

para a psicanálise.

Para iniciar nossa trajetória, partimos do modo como a experiência freudiana do

desejo inconsciente inaugura uma concepção específica sobre a constituição do sujeito.

Seguiremos neste capítulo, portanto, o funcionamento mental, tal como abordado ao longo

dos textos freudianos. Para seguir este funcionamento, circunscrevemos três conceitos

principais: a dinâmica do recalque, os princípios que regem o funcionamento mental e,

incluindo a reconfiguração do aparelho psíquico da segunda tópica freudiana, o exercício do

supereu. Nessa ordem. A razão da escolha desses conceitos encontra-se na relação que estes

mantêm com o campo da moral.

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O recalque

Comecemos com o recalque. Desde o início de suas investigações, Freud percebera

que o sintoma neurótico era resultado de um conflito psíquico, gerado pela emergência de

uma idéia tomada como atormentadora pelo sujeito. Para se desfazer deste conflito era

necessário deixar de lado a idéia aflitiva, fazê-la desaparecer de alguma maneira. O ato de

afastar para longe a idéia penosa, a fim de no mínimo amortecê-la, era chamado de ‘defesa’.

O sintoma seria, pois, derivado de um processo de defesa acionado pelo eu para se desfazer

de um conflito psíquico. Daí provém a primeira denominação freudiana sobre as neuroses,

que seriam “as neuropsicoses de defesa”, datada de 1894.

O termo ‘defesa’ foi substituído posteriormente por ‘recalque’. Essa substituição não

se deu apenas por uma questão literária. Num primeiro momento, Freud acreditava ser a

defesa um ato voluntário do eu, derivada da própria vontade consciente. Havia um dado

clínico, porém, que contestava essa proposição: o sujeito não sabia que, em seu sintoma, se

defendia de uma idéia, nem mesmo reconhecia esta ação como sua própria, caso o analista

lhe comunicasse. Como poderia um ato voluntário e consciente, não ser reconhecido pelo

próprio eu? Não poderia. O dado clínico levou Freud, portanto, a acreditar que o termo

‘defesa’ não era o mais adequado.

Por outro lado, afastar uma idéia da consciência também não poderia ser

simplesmente um mecanismo fisiológico, análogo ao movimento do arco reflexo, como, por

exemplo, um mecanismo fuga. Adotar a fuga como método para um estímulo externo é

possível, mas para um estímulo endógeno (a idéia incompatível) não tem qualquer serventia.

O sujeito não tem como fugir dele mesmo. Freud, inclusive, observara muito cedo que a

defesa estava situada na esfera psíquica, quer dizer, que ela não era efeito de um arranjo

físico, biológico – apesar de reconhecer a complacência somática na formação dos sintomas.

Isto significa dizer que o recalque não é nem a rejeição voluntária de uma idéia

baseada no julgamento consciente, ou seja, uma condenação ou uma repressão, nem a fuga de

um estímulo endógeno, visto a impossibilidade desta operação. Nem um arranjo intelectivo e

consciente, nem um arranjo orgânico e puramente inconsciente, no sentido descritivo do

termo. “O recalque é uma etapa preliminar da condenação, algo entre a fuga e a condenação;

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trata-se de um conceito que não poderia ter sido formulado antes da época dos estudos

psicanalíticos” (FREUD, 1915a, p.151).

O recalque é um dos destinos da pulsão, por isso não poderia ter sido formulado antes

da época dos estudos psicanalíticos. A satisfação da pulsão costuma gerar prazer num lugar e

desprazer em outro. Quando o desprazer é maior que o prazer há intervenção do recalque.

Isso ocorre porque, apesar da satisfação pulsional ser sempre agradável, ela pode apresentar-

se irreconciliável com outras intenções, isto é, pode trazer uma idéia incompatível que

provoque desprazer para a consciência. Como as noções de prazer e desprazer são percebidas

pela consciência, partirá dela o acionamento do recalque. Vejamos o mecanismo mais de

perto.

A pulsão se faz presente no aparelho psíquico através de dois representantes, a idéia

(representante ideativo) e o afeto (representante quantitativo), que nela se encerra. O recalque

irá incidir sobre o representante ideativo da pulsão, com o objetivo de afastar a idéia penosa

para o inconsciente, mantendo-a à distância da consciência. Nesta ação, o afeto ligado à idéia

é separado dela.

Para que uma idéia seja recalcada, além de despertar grande desprazer para o

consciente, ela deve ser também atraída por uma idéia recalcada anteriormente. O recalque é

um mecanismo dinâmico, conseqüência da influência das forças psíquicas – uma que repulsa,

outra que atrai – atuantes entre os sistemas (inconsciente, pré-consciente e consciente).

Afirmar que há uma atração da parte do recalcado fez Freud supor um recalque primevo, ou

seja, um primeiro momento do recalque em que uma primeira idéia teve seu acesso negado à

consciência, estabelecendo uma fixação e instaurando o inconsciente, lugar do recalcado. O

recalcado fixado, ou seja, investido constantemente pela pulsão, será uma das forças em jogo

– aquela que atrai – no recalque propriamente dito, que seria o segundo momento desse

mecanismo.

Sobre isso, vale fazer uma consideração. Freud especulou sobre o recalque primevo

para tentar dar conta teoricamente da origem desse processo, mas, apesar de numa primeira

vista parecer uma boa solução, sua inteligibilidade se esfumaça se olharmos uma segunda

vez. Tendo em vista que o recalque, por definição, participa de um jogo de forças, é uma

contradição afirmá-lo como resultado da atuação de uma única força. Dizendo de outra

maneira, o recalque é resultado da influência tanto do pré-consciente/consciente quanto do

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inconsciente. No recalque primevo, apenas o pré-consciente/consciente teria exercido força e

com isso produzido o inconsciente. Vemos, portanto, que a noção de recalque primevo

apresenta uma contradição na própria definição. Nisso está apensa, ainda, a própria descrição

sobre a origem do inconsciente. O resultado é um impasse que faz como que inconsciente e

recalque estejam um em função do outro num limite indiscernível, onde ora situamos o

inconsciente como efeito do recalque, ora o recalque como efeito do inconsciente.

Afora essa digressão, continuemos com os efeitos do recalque propriamente dito. O

recalque não elimina o recalcado. A idéia não é aniquilada, apenas afastada para o sistema

inconsciente. Nesse sistema, sem a influência da consciência, a idéia acaba por multiplicar-se

e ganhar força monstruosa. Isso é possível devido às características do sistema inconsciente.

O recalque primevo originou o núcleo do sistema inconsciente, formado por uma

idéia (um representante ideativo) fixada, ou seja, carregada de energia pulsional. Esta energia

é capaz de correr livremente por todo o sistema inconsciente e isso a permite investir outras

idéias recalcadas. Investir uma idéia significa carregá-la de energia pulsional. Como no

sistema inconsciente não há barreiras entre um representante e outro, a energia é muito

móvel. Através do processo de deslocamento um representante pode passar para outro a sua

energia e pode, também, apropriar-se da energia de várias outras idéias pelo processo de

condensação. Esses dois mecanismos – deslocamento e condensação – foram agrupados sob

a denominação de processo primário e é típico do sistema inconsciente. Outras importantes

características do sistema inconsciente são a atemporalidade; a isenção da contradição mútua;

a ausência de negação, dúvida ou incerteza e o desprezo pela realidade externa (ver FREUD,

1915b, p.191-192). Todas essas características criam um ambiente propício para que as idéias

recalcadas ganhem força. A ineficácia da passagem do tempo cronológico, a ausência de

contradição e a desconsideração pela realidade evitam o desgaste e o enfraquecimento do

recalcado.

Adicionando a isso o contínuo investimento de energia, o recalcado se fortalece e

acaba por exercer forte pressão para se descarregar. Isto dá origem ao terceiro momento do

recalque, o retorno do recalcado. Este terceiro tempo é conseqüência da quantidade de

energia acumulada e refere-se ao representante quantitativo da pulsão, o afeto. O afeto não é

a quantidade de energia em si, mas a expressão dessa quantidade, aquilo que é sentido como

aflitivo. Já vimos que o recalque incide sobre a idéia e não sobre o afeto, de maneira que este

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não fica impedido de passear pelo aparelho psíquico. Ao afeto será permitido o trânsito entre

os sistemas consciente e pré-consciente, contanto que disfarce bem a sua proveniência, a

idéia recalcada. O retorno do recalcado será a manifestação do afeto, originalmente

pertencente à idéia recalcada, nos sistemas consciente e pré-consciente.

Ainda que o recalque tenha instaurado certa distância entre o afeto e sua idéia

original, o afeto nunca poderá apagar a sua origem. É por isso que se afirma o retorno do

recalcado na manifestação do afeto. Sem poder apagar sua procedência, restará ao afeto,

portanto, uma única maneira de encontrar expressão na consciência: através do disfarce. Os

meios pelos quais o afeto poderá se disfarçar e retornar são vários, mas basicamente incluem

os mecanismos do processo primário – condensação e deslocamento. Notemos que, mesmo

constituindo o processo do recalque, como o terceiro tempo, o retorno do recalcado apresenta

mecanismos próprios, não coincidentes com o mecanismo de recalque. As expressões que o

recalcado poderá tomar serão variadas também, mas podemos reuni-las sob o nome de

formações substitutivas.

Interrompemos nosso caminho agora. Não iremos seguir pelas diversas vias de

formações substitutivas, seus mecanismos e construções. Isso nos levaria para uma infinidade

de casos. Nossa proposta é descrever o funcionamento mental e encontramos agora uma peça

fundamental dessa estrutura: o recalcado e sua insistência em retornar.

Na primeira tópica freudiana, o recalcado coincide com o sistema inconsciente, apesar

do contrário não ser verdadeiro. Nem tudo o que é inconsciente é recalcado, as operações

psíquicas e as idéias pré-conscientes, por exemplo, são também inconscientes, mas apenas no

sentido descritivo do termo. No que se refere ao sentido dinâmico, aquele próprio da

metapsicologia (que inclui a dinâmica e a economia das forças em jogo no aparelho

psíquico), o inconsciente diz respeito ao lugar do recalcado. Para verificar a operação do

inconsciente na atividade mental deveremos, portanto, seguir o movimento do recalcado.

Conforme já vimos, o recalque não elimina a idéia recalcada. Ainda que o recalque

obtenha êxito no que diz respeito à parcela ideativa, já que afasta a idéia penosa da

consciência, ele falha no tocante à parcela quantitativa. Isso nos permite dizer que esse

mecanismo é sempre falho, pois é o recalcado quem, de certo modo, retorna no afeto. O

recalcado recebe reforço de investimento pulsional no inconsciente e, conseqüentemente,

esforça-se para escoar essa energia e alcançar a satisfação – aquela que, de certo modo, fora

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barrada pelo recalque. A tentativa de escoamento da energia, ou seja, o retorno do recalcado,

é o que dá origem às formações substitutivas, que incluem as formações reativas, os sintomas

e as produções de derivados com os quais o recalcado mantém-se em associação.

Devido à insistência do recalcado, as formações substitutivas são produzidas

continuamente e em escala progressiva. É essa insistência também que dispara a produção e o

desenvolvimento das mais altas faculdades mentais, como a ciência, a estética e a própria

ética. Nas palavras de Freud,

“aquilo que numa minoria de indivíduos humanos parece

ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição pode ser

facilmente compreendido como resultado do recalque pulsional em

que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização

humana” (FREUD, 1920, p.60).

Isso nos permite supor que a ética, bem valioso da humanidade, estaria no rastro do caminho

traçado pelo recalcado para expressar-se. Levaremos essa suposição adiante.

Adiantemos, entretanto, que nenhuma formação substitutiva consegue estancar a

insistência pulsional do recalcado. O problema é que o caminho para a satisfação almejada,

que seria a repetição de uma experiência de satisfação passada, encontra-se obstruído pelas

forças mantenedoras do recalque. Por conta disso, o recalcado seguirá adiante na tentativa de

encontrar aquilo que ficou para trás e que não pode mais ser retomado, e será neste caminho

que produzirá a série de formações substitutivas. Esse caminho do recalcado poderá ser mais

bem explicitado através dos princípios que regem o aparelho psíquico.

Acompanhemos a partir de agora, por conseguinte, o movimento dos princípios do

aparelho mental. Ainda que façamos um corte com o mecanismo do recalque, visto que a

dinâmica dos princípios que regem o aparato psíquico não inclui diretamente o conceito do

recalque e do inconsciente, nosso rumo continua o mesmo, pois embora sejam esquemas um

tanto diferentes entre si, eles se encontram, ainda que num encaixe não muito bem acertado.

Os princípios do funcionamento mental

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A quantidade de energia presente no aparelho psíquico está estreitamente relacionada

à sensação de prazer e desprazer. De acordo com Freud (1920, p.18), um aumento de energia

provoca aumento de tensão e significa sensação de desprazer, já uma diminuição da energia,

possibilitada pelo seu escoamento, significa sensação de prazer. Regulando este

funcionamento de aumento e diminuição da excitação no aparelho psíquico entram em cena

quatro princípios: princípio de inércia, princípio de constância, princípio de prazer e princípio

de realidade.

A tendência ao escoamento completo das excitações que chegam ao aparelho diz

respeito ao princípio de inércia. Este princípio visa à manutenção do estado livre de tensão

inicial da vida mental. Uma vez perturbado por estímulos e precisando se desfazer deles, o

aparelho necessitará, entretanto, de alguma quantidade de energia para realizar o próprio

escoamento. Isto significa dizer que para realizar aquilo a que conduz o princípio de inércia,

o escoamento de toda energia, é necessário que nem toda energia seja escoada – o que

contraria o próprio princípio. Entra em cena, então, o princípio de constância deliberando que

alguma quantidade de energia, a mínima possível, deve ser mantida no aparelho. O princípio

de constância serve ao princípio de inércia, pois segue seu objetivo de escoar a excitação.

Este escoamento, num primeiro tempo, segue da maneira mais fácil e rápida possível

através dos caminhos facilitados no aparelho mental. De acordo com a primeira formulação

freudiana sobre o aparelho mental, descrita no texto “Projeto para uma Psicologia

Científica” (FREUD, 1950 [1985]), esses caminhos facilitados, que seriam trilhas sem

barreiras, foram demarcados na primeira experiência de satisfação.

Nessa primeira experiência, o organismo, débil em seu estado inicial, afetado por uma

grande carga de energia desfez-se dela através de uma ação específica, uma alteração no meio

externo que propiciou o escoamento. Essa ação específica só poderia se efetuar por ajuda

alheia, ou seja, com auxílio de uma pessoa experiente que, diante da agitação motora de um

bebê, incapaz de pôr sozinho um fim a seu estado de urgência, promove uma via de descarga.

Sobre isso, façamos uma breve digressão. Essa ‘ajuda alheia’ leva Freud a afirmar

que “o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”

(FREUD, 1950 [1985], p.370). Essa afirmação freudiana cintila em seu texto original.

Enunciada nos primórdios de suas investigações, numa primeira tentativa, julgada fracassada

pelo próprio autor, em desvendar o funcionamento psíquico, revela-se como um legítimo

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insight, pois já aponta, num salto teórico, àquilo que Freud veio a encontrar anos e

investigações depois com a formulação do supereu, conforme veremos mais adiante.

Deixemos assinalado o achado, para encontrá-lo depois. Por ora, continuemos a deslindar a

primeira experiência de satisfação.

O exemplo paradigmático de Freud dessa primeira experiência descreve um bebê com

fome que encontra no leite do seio da mãe o seu apaziguamento, deixando-lhe saciado e

satisfeito. Desta experiência restam alguns traços mnêmicos (marcas da mãe, marcas do seio,

por exemplo) e o desejo. Quando num momento posterior o organismo for afetado

novamente por um desconforto, o desejo irá mobilizá-lo a encontrar a mesma satisfação

outrora obtida.

Esta mobilização é posta em marcha pelo princípio do prazer, que conduzirá o

aparelho a investir imediatamente nos traços guardados na memória, cujo caminho estará

facilitado. O princípio do prazer busca o prazer através da diminuição da tensão. Diminuição,

e não extinção, pois ele segue o princípio anterior, o princípio de constância, mantendo um

nível basal de energia no aparelho. O investimento nas marcas da memória provoca,

entretanto, uma alucinação, uma percepção que quando acometida pela ação motora resulta

num inevitável desapontamento. A alucinação não contribui, fatalmente, para o escoamento

da energia, pelo contrário, só faz aumentá-la.

Assim, o princípio do prazer, seguindo livremente seu curso, não alcança seu próprio

objetivo. Ao invés da descarga (prazer), ele obtém alucinação (desprazer) – e novamente aqui

encontramos uma contradição no próprio princípio. Faz-se necessário, portanto, que um novo

princípio entre em ação e permita que o objetivo do princípio do prazer seja finalmente

conseguido.

Este será o princípio de realidade e sua especificidade será promover a prova de

realidade. Prova esta que irá impedir a alucinação, possibilitando a verificação da presença do

objeto da realidade, através do qual a ação específica do organismo irá permitir o escoamento

da energia acumulada. Assim, o princípio de realidade adia a satisfação para o momento

oportuno, aquele em que o objeto da realidade está presente, exigindo do organismo uma

certa tolerância temporária de desprazer.

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Antes de seguirmos o princípio de realidade, é importante assinalarmos alguns pontos

sobre este funcionamento do aparelho mental. Primeiro ponto: cada princípio atua no sentido

de proteger seu anterior e não depô-lo, levando adiante o mesmo objetivo, a saber, escoar a

quantidade de energia até alcançar o estado livre de excitação. Isto nos leva a um segundo

ponto: este objetivo não é alcançado em nenhum momento e o curioso é que este fracasso não

é conseqüência de um impedimento externo ao funcionamento do aparelho psíquico, muito

menos de um déficit ou de alguma incapacidade motora ou econômica, por exemplo. Este

fracasso constitui o próprio percurso, quer dizer, fracasso e percurso compõem,

estranhamente, uma única coisa. Vejamos o princípio do prazer: é na seqüência mesma de

seu objetivo de liberar prazer que encontramos a produção do desprazer na alucinação. Em

termos mais simples, é na busca mesma do prazer que se encontra o desprazer, e não fora

dela. Este ‘fracasso’ ou ‘falha’ – entre aspas porque estamos vendo que não se trata

simplesmente de uma incapacidade ou impotência – constituinte do percurso, manifestou-se

nos casos de ‘contradições’ que apontamos acima.

Uma última observação diz respeito ao caráter mítico da primeira experiência de

satisfação. Assim como o recalque primevo, essa experiência é mais uma suposição teórica

do que a afirmação de uma experiência vivida realmente pelo sujeito em um momento inicial

de sua vida. Essa suposição é necessária à psicanálise para dar coerência a sua lógica, mas,

ainda que funcione como peça-chave, permitindo um acabamento teórico, essa suposição não

se encaixa perfeitamente nesse lugar. Daí seu caráter mítico, pois engloba numa narrativa

teórica algumas antinomias. Esse caráter mítico dá ao objeto da primeira experiência de

satisfação a marca da impossibilidade, cujo alcance está por definição interditado.

Já mencionamos a contradição de termos do recalque primevo, o mesmo vale para a

primeira experiência de satisfação. O contra-senso diz respeito ao desejo, afinal se a

experiência proporcionara a satisfação, não haveria por quê restar dela desejo algum, já que

toda energia teria sido escoada. Uma outra maneira de revelar o encaixe forçado dessas

suposições teóricas diz respeito ao modo como foram elaboradas. Uma primeira experiência

de satisfação, assim como um recalque primevo, naquilo a que concernem – um primeiro

tempo, a causa, a origem –, deveriam servir como ponto de partida para um sistema teórico,

ou seja, servir como um princípio, um fundamento que uma vez formulado desencadearia

uma série de deduções conformes. Sua elaboração é erigida, porém, num segundo tempo,

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num tempo depois, a partir de outras formulações, figurando um ponto de chegada. E,

também, Freud nunca deixou de assinalar que essas suas construções eram suposições,

baseadas em uma série de razões.

Retomemos. O princípio de realidade coloca-se à disposição do princípio do prazer na

busca da satisfação. Seu percurso será, porém, diferente. Para executar a prova de realidade,

algumas modificações são necessárias ao aparelho psíquico, tal como Freud descreve no texto

“Formulações sobre Dois Princípios do Funcionamento Mental”, de 1911.

Em função da importância atribuída à realidade externa, os órgãos sensoriais passam

a ter relevância, pois são eles que se encontram voltados para o mundo externo.

Conseqüentemente, a consciência, ligada aos órgãos sensórios, também irá se desenvolver e,

com ela, surge uma função especial, a atenção, cujo efeito é um sistema especial de notação,

responsável por registrar os resultados dessa atividade. Esse sistema será a memória. A

memória, por sua vez, passa a atuar em conjunto com a atenção e inaugura-se a atividade

mental de julgar. O julgamento – inferência do que é verdadeiro e falso – será resultado da

comparação entre os traços de memória do objeto da primeira experiência de satisfação e os

objetos da realidade externa. A atividade do juízo é uma das atribuições do processo de

pensar, desenvolvido a partir da apresentação de idéias. Provido da faculdade de pensar, o

aparelho psíquico passará a empregar a descarga motora na alteração apropriada da realidade,

ou seja, transformará a descarga motora em ação. Desenvolvido deste modo, o psiquismo

poderá executar a prova de realidade e realizar a ação específica. A prova de realidade busca

uma identidade entre os restos mnêmicos do objeto da primeira experiência de satisfação e a

percepção dos objetos encontrados.

A faculdade do juízo permite ao aparelho tanto verificar ou não a presença na

realidade de uma representação mnêmica, quanto afirmar ou não um atributo a uma coisa.

Através dessas duas funções, descritas por Freud no texto “A Negativa” (1925), o aparelho

psíquico vai moldando a oposição do que é interno e pertence ao sujeito, do que é externo e

pertence à realidade, do que é subjetivo e objetivo, assim como do que é bom e mau. Nesta

organização que se inicia, o mais importante a ser observado não é, porém, a distinção entre

estes opostos, mas aquilo que orienta essa organização. Ao invés dos objetos da realidade

externa servirem como indicativos de que é subjetivo e objetivo, verdadeiro ou falso, será o

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objeto perdido da primeira experiência de satisfação quem guiará toda realidade a vir. Isto

significa que a mobilização do aparelho psíquico na construção da realidade é animada antes

por um objeto perdido, ou melhor, pelos restos mnêmicos de um primeiro objeto, do que por

um objeto da realidade. O objeto da realidade, na verdade, tem importância secundária, muito

menor. Nas palavras de Freud,

“o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente,

mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como

representação sem que o objetivo externo ainda tenha de estar lá.

Portanto, o objetivo primeiro e imediato do teste de realidade é não

encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao

representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele

está lá” (FREUD, 1925, p.267).

Podemos extrair disso algumas considerações. Se a realidade que então se descortina

para o sujeito é modelada pelo psiquismo, pelo fino crivo da tentativa de reencontrar o objeto

perdido, ao invés de ser erigida por uma suposta constatação de objetos reais e verdadeiros,

dados no mundo externo, podemos concluir que toda realidade é psíquica. Do mesmo modo,

podemos afirmar que a prova de realidade não coloca uma realidade psíquica submetida à

avaliação de uma realidade externa, objetiva, supostamente verdadeira, ou seja, não submete

a alucinação ao objeto da realidade, como se poderia supor à primeira vista. O que submete a

realidade psíquica nesta operação é o objeto perdido, é ele que coloca à prova a realidade

(ver FREIRE, 1996, p.22).

Vemos, então, que a relação com a realidade é secundária ao psiquismo. Ela se

desenvolve a partir do fracasso do princípio do prazer e funda nisso um campo novo: a

faculdade de pensar e suas atribuições, tais como comparar, substituir e julgar, necessárias à

prova de realidade em sua busca do objeto de satisfação. Isso faz do princípio de realidade

algo maior do que simplesmente uma continuação do princípio de prazer, ou uma tolerância

temporária de desprazer para realização do princípio do prazer. Podemos mesmo dizer que

este campo novo, inaugurado pelo princípio de realidade, é aquele que abre passagem para as

reflexões morais, o campo da ética. De acordo com Lacan (1959-60), “a via na qual os

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princípios éticos se formulam, (...) tem a mais estreita relação com o segundo princípio

introduzido por Freud, ou seja, o princípio de realidade” (LACAN, 1997 [1959-60], p.95).

Desse modo, Jacques-Alain Miller, no texto “La ética em

psicoanálisis” (1991a[1989], p.119), situa a ética – vale ressaltar aqui que estamos nos

referindo à ética em seu sentido largo e não à ética da psicanálise – na continuação do

princípio de realidade, sob a égide do princípio do prazer. Isto significa dizer que ainda que o

princípio de realidade corte com o princípio de prazer num certo nível, instaurando a

realidade, ele não perde o objetivo de escoar a quantidade de energia e obter prazer, ou seja,

continua de acordo com o princípio do prazer. Assim, a ética, em seguida, atuaria também

como um princípio, no sentido de levar adiante a tentativa de obter o nível zero de tensão no

aparelho psíquico.

Encontramos, então, a justificativa para a afirmação freudiana (citada na página 12

dessa dissertação) de que aquilo que há de mais precioso na civilização humana, seus mais

altos e sublimes valores, resguarda sua origem no recalcado e, podemos agora acrescentar, na

impossibilidade de retornar à primeira experiência de satisfação. Vejamos. Se o caminho

pregresso para a satisfação está impedido pelas forças do recalque, resta ao recalcado insistir

no caminho progressivo e, desta maneira, desenvolve-se uma série de faculdades mentais e

culturais. Com a introdução dos princípios e suas funções, poderíamos dispor esse caminho,

numa tentativa mais didática do que explicativa, da seguinte maneira: a alucinação leva à

realidade, que leva à consciência, que leva ao pensamento, que abre diversas ramificações,

dentre elas o julgamento que, finalmente, dá lugar ao campo da ética.

No texto “O Mal-Estar na Civilização” (1930[1929]), encontramos uma passagem em

que Freud menciona o papel da ética na civilização:

“as pessoas, em todos os tempos, deram o maior valor à

ética, como se esperassem que ela, de modo específico, produzisse

resultados especialmente importantes. De fato, ela trata de um

assunto que pode ser facilmente identificado como sendo o ponto

mais doloroso de toda a civilização. A ética deve, portanto, ser

considerada como uma tentativa terapêutica – como um esforço para

alcançar, através de uma ordem do supereu, algo até agora não

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conseguido por meio de quaisquer outras atividades

culturais” (FREUD, 1930[1929], p.145).

Não seria essa tentativa terapêutica o esforço para realizar o princípio do prazer em sua

radicalidade, ou seja, o escoamento de toda energia?

Em 1920, em seu texto “Além do Princípio do Prazer”, Freud descreve seus

argumentos sobre a desconfiança da existência de uma pulsão que visasse o retorno a um

estado anterior do organismo, quando inanimado. Ele conclui que a animação da substância

orgânica, ponto original da vida, cria com ela a pulsão de morte com sua insistência em

desfazer tudo o que se criou para retornar ao estado sem vida anterior. Essa pulsão de morte,

contrária à pulsão de vida de objetivo justamente oposto, estaria de acordo com os objetivos

do princípio do prazer, ou seja, buscar a satisfação através da diminuição da tensão, porém

ela almejaria um pouco mais, a quietação de um estado livre de tensão. O extremismo da

pulsão de morte resultou na adição de mais um princípio à organização mental, o princípio

do nirvana.

A expressão ‘nirvana’ foi tomada de empréstimo de Bárbara Low, psicanalista

contemporânea de Freud, utilizada no sentido equivalente à homeostase. Não deve ser

descartado, porém, seu sentido originário do sânscrito que descreve o nirvana como um

estado de aniquilamento da individualidade e extinção do desejo humano, quando o homem

atingiria um estado de quietude e serenidade perpétua (LAPLANCHE e PONTALIS,

2001[1982], p.363-364). Em seu sentido figurado, equivale a um estado de inércia. Qualquer

semelhança com o princípio de inércia não é mera coincidência.

O princípio do nirvana, apenas aludido no texto freudiano de 1920, recebeu mais

atenção em 1924, em “O Problema Econômico do Masoquismo”. Depois de alguns

embaraços desfeitos, Freud afirma ser o princípio do nirvana aquele “cujo objetivo é conduzir

a inquietação da vida para a estabilidade do estado inorgânico” (FREUD, 1924, p.177-178),

expressando a tendência radical da pulsão de morte. Este princípio, longe de dissonar de seus

antecessores, busca extinguir a quantidade de excitação da vida mental e apaziguar-se nesse

estado de morte. Assim como o princípio de inércia, o primeiro a ser posto em marcha pela

vida anímica, o princípio do nirvana também visa o escoamento completo das excitações que

chegam ao aparelho mental. Com isso, voltamos ao ponto inicial.

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Quando Freud afirma ser a ética uma tentativa terapêutica, um esforço para alcançar

aquilo não conseguido por nenhuma outra atividade cultural, sob o comando do supereu,

podemos sentir o peso de seu propósito. Uma tentativa terapêutica seria uma tentativa de cura

que, em seu sentido absoluto, seria a realização do princípio do nirvana, expressão pura da

pulsão de morte. O comando do supereu parece reforçar ainda mais essa exigência, mas de

que maneira? Qual a relação entre o supereu e a ética? Até agora, estabelecemos a relação

entre a ética e o funcionamento mental a partir dos princípios que orientam o sistema

psíquico. A passagem para a segunda tópica abre campo para a complexidade e o

amadurecimento dessas idéias, constituindo nosso próximo passo.

Antes, porém, de adentrarmos neste terreno, ainda nos restam algumas considerações

a fazer sobre a atividade do princípio do prazer na vida mental. Já indicamos que esta

atividade é dominante. Isso se confirma quando entendemos que os princípios que antecedem

e procedem do princípio do prazer carregam o mesmo objetivo, evitar o desprazer e obter

prazer através de um balanço econômico, onde a energia acumulada significa desprazer e

energia descarregada significa prazer.

Ao longo de seus estudos, Freud relacionou o princípio do prazer ao processo

primário enquanto o processo secundário tinha como regente sua alteração, o princípio de

realidade. Conseqüentemente, separou essas atividades entre as pulsões sexuais e as pulsões

de autoconservação. De um lado, o princípio de prazer em seu processo primário, seguindo

trilhamentos sem barreiras, sendo expressão das pulsões sexuais. Do outro, mas não oposto, o

princípio de realidade e suas barreiras de contato típicas do processo secundário, expressão

da pulsão de autoconservação. Quando essa dualidade pulsional foi posta em xeque pelo

narcisismo, aproximando as pulsões de autoconservação das pulsões sexuais, Freud insistiu

em afirmar uma outra dualidade pulsional, mesmo que seus argumentos se reduzissem

fragilmente a uma teimosa intuição e a sua tenacidade clínica. Lançou, assim, a hipótese da

pulsão de morte, novo pólo de oposição das pulsões sexuais. Rearrumando os princípios com

as pulsões, o princípio do prazer permaneceu regente das pulsões sexuais, mas agora

abrangendo as pulsões de autoconservação, sob o nome de Eros, aquelas que visam conservar

a vida, numa construção crescente e progressiva. A pulsão de morte, com seu caráter

destrutivo na insistência em restaurar um estado inorgânico original, afinou-se ao princípio

do nirvana. Tudo estaria muito bem organizado se esses pólos – pulsão de vida e pulsão de

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morte; princípio do prazer e princípio de nirvana – não mantivessem íntima relação entre si.

Assim, é possível ler ao final do texto de 1920 a seguinte frase: “o princípio do prazer parece,

na realidade, servir à pulsão de morte” (FREUD, 1920, p.85). Desse modo, Freud além de

afirmar a dominância do princípio do prazer na vida mental, reconhece a contradição que ele

implica, onde vida (princípio do prazer) e morte (pulsão de morte) se encontram. Neste nó

contraditório abre-se a via para o além do princípio do prazer, indicando que, ainda que

dominante, ele não compreende tudo.

Essa contradição ganha força e expressão no problema seguinte encontrado pelo

autor, o problema econômico do masoquismo. Se a vida mental é dominada pelo princípio do

prazer, como explicar a obtenção de prazer num aumento – e não diminuição – de energia? A

resposta freudiana recai sobre o estranho sentimento inconsciente de culpa ou, seu

prolongamento, a necessidade de punição, temas que veremos a seguir, quando entrarmos no

funcionamento mental da segunda tópica. Fazendo de certo modo uma antecipação, vemos,

no entanto, que este problema pode ser desenredado pela própria atividade do princípio do

prazer. Vejamos.

O princípio do prazer não se realiza. Ainda que seja ele o responsável pelo

funcionamento mental, o responsável pela realidade, o responsável pelas faculdades

superiores, pelos programas culturais, pela própria civilização, pelo progresso, enfim, pela

vida, curiosamente, a despeito de todo esse seu êxito, seu objetivo “se encontra em desacordo

com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há

possibilidade alguma dele ser executado; todas as normas do universo são-lhe

contrárias” (FREUD, 1930[1929], p.84). Como é possível que dois resultados tão

divergentes, o êxito da vida e o total fracasso em realizar-se, provenham do mesmo lugar?

Já havíamos colocado que o fracasso do princípio do prazer constitui o seu próprio

percurso. Vendo mais de perto, observamos que o princípio do prazer não faz sentido. Seu

alvo é escoar energia e para isso ele precisa reter energia. Reter e escoar fazem parte de uma

única coisa, ao mesmo tempo e que trabalham juntas, sendo que são duas tarefas opostas.

Eliminar, reter, diminuir, tolerar e extinguir, funções do princípio do prazer em cada uma de

suas facetas, são atividades que guardam um profundo contra-senso. Isso seria apenas uma

contradição se pudéssemos destacar cada uma dessas funções em módulos diferentes, onde

não houvesse nenhuma relação intrínseca entre elas, mas não é disso que se trata. O princípio

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do prazer incorpora essas funções contraditórias numa coisa só, configurando-se, assim, num

paradoxo. Trata-se de um funcionamento absurdo e, por isso mesmo, de solução impossível.

Como ele poderia realizar-se se ele próprio é um obstáculo a seu objetivo? Reiteramos que é

nesse paradoxo onde se situa o além do princípio do prazer. O masoquismo é a grande

expressão desse paradoxo, pois ele inclui explicitamente numa mesma coisa o êxito e o

fracasso, o acúmulo e o escoamento, o prazer e o desprazer.

Deixemos assim, apontado e reservado, o paradoxo do princípio do prazer. Veremos

outros mais no caminho e a partir daí tiraremos algumas conclusões imprescindíveis à ética

da psicanálise. Nosso trajeto segue agora o supereu, a partir das formulações de Freud em “O

Mal-Estar na Civilização” (1930[1929]). Por que a ética está sob o comando dessa instância?

O supereu

A ética está sob o comando do supereu na tentativa de alcançar algo precioso para a

civilização e ainda não atingido por quaisquer outras atividades culturais (Freud, 1930[1929],

p.145). No texto, Freud está se referindo à extinção da agressividade. Esta agressividade não

é nenhum conceito ou idéia nova. Trata-se simplesmente da desarmonia, dos desencontros,

da hostilidade, da brutalidade que, desde sempre, compõem as relações humanas. Freud

considerou esta agressividade como algo imanente ao homem, mas sem fazer dela uma

característica instintiva e natural, afirmando apenas que “os homens não são criaturas gentis

que desejam ser amadas (...), pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se

levar em conta uma poderosa cota de agressividade” (FREUD, 1930[1929], p.116). Não seria

preciso esforço algum para se perceber isso que seria uma obviedade se não fosse justamente

todo o esforço que se faz para ignorá-la.

A agressividade perturba as relações humanas. Estimulado por ela faz-se do próximo

um alvo de exploração, de sofrimento, de tortura física e psicológica e de morte. Condutas

que revelam o homem como uma “besta selvagem” (FREUD, 1930[1929], p.116).

Conseqüentemente, para que seja possível a convivência humana é preciso que se faça

alguma barreira, que se imponha algum limite, ao trânsito dessa agressividade. Para isso, a

civilização dispõe de alguns métodos, tais como as normas sociais, as leis governamentais e

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os mandamentos religiosos, todos encarnações da instância moral. Esses métodos não só

impedem a expressão da agressividade sobre o próximo como também fazem dela um

sentimento vil e abominável. Então, o que seria óbvio torna-se abominável.

Ter assinalado a agressividade como patente do ser humano não foi nenhuma idéia

original de Freud, mas ter se debruçado sobre ela e procurado entender como ela se

desenvolve no sujeito foi uma atitude ousada, não só por ter dado luz àquilo que sempre se

fez questão de manter apagado, mas, mais ainda, pelos resultados perturbadores dessa

pesquisa. A novidade foi perceber que os mais finos e sublimes valores humanos, aquilo que

se apresenta sob o nome de ética e estética, tem em sua origem nada mais que os

considerados mais baixos e execráveis valores humanos, aqueles que giram em torno da

agressividade. A psicanálise estabeleceu um elo entre dois valores considerados tanto opostos

quanto excludentes. Vejamos como esses dois adversários se entrecruzam e, mais ainda,

como um provém do outro.

Para o bem de todos e felicidade geral, a agressividade deve ser renunciada por cada

um. O funcionamento e a harmonia da vida social dependem da exclusão dessa agressividade

nas trocas afetivas. Essa renúncia, no entanto, não implica numa desistência banal. Renunciar

significa desistir de desejar algo, no caso, a agressividade, ou seja, significa desistir de

desejar a agressão ao próximo. E como isso é possível se a agressividade é componente

inseparável do homem? De outro modo, como renunciar a algo que é imanente, que é peça

não-destacável? A resposta está na pergunta, essa renúncia não ocorre, pelo menos ao pé da

letra. O desejo agressivo pode até ser afastado da consciência, mas nunca eliminado. Ser

afastado da consciência significa ser recalcado e assim como todo o recalcado ele retorna

numa formação de compromisso.

A agressividade recalcada é apoderada pelo supereu, o que o torna agressivo e severo.

E isto continua, quer dizer, a cada nova renúncia feita, a severidade superegóica aumenta,

proporcionalmente. A agressividade dominada, por sua vez, é utilizada pelo supereu para

torturar o eu com comparações entre as exigências do mundo externo – que remetem a um

ideal de agir, sentir e pensar – e os impulsos pulsionais provenientes do isso. O resultado

desta exigência iníqua é um profundo sentimento de culpa, dando origem a um eu obediente e

submisso. É deste modo que a agressividade renunciada dá lugar, de forma reativa, à

docilidade e à complacência.

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Vejamos, porém, este funcionamento mais de perto e mais devagar. Por que e como o

supereu se apodera da agressividade? E por que ele exige a realização de um ideal? Por que

tanta tortura para com o eu? Para responder a estas perguntas devemos nos adiantar para trás

pois é nos primórdios da vida infantil que encontramos a origem e o modelo deste

funcionamento.

Aprendemos com Freud que tanto o eu quanto o supereu não existem desde início,

eles são construídos, formados através de uma série de identificações. Essas identificações

seguem um modelo original, instalado como uma espécie de matriz na mais primitiva

infância, através da identificação primária. Essa identificação primária produz efeitos gerais e

duradouros guiando toda identificação posterior (FREUD, 1923, p.43-44). E ainda que essas

consecutivas não sejam reproduções idênticas, elas são num certo nível repetidas de maneira

tão aferrada ao longo da vida que nos permite dizer que fundamentalmente as coisas depois

permanecem como eram no início (FREUD, 1930[1929], p.129). Não entraremos nos

detalhes no mecanismo da identificação, apenas queremos assinalar como esse ‘primeiro

momento’ inicial da vida, da relação com o outro, impossível de precisar no tempo e menos

ainda na lembrança, deixa marcas não só indeléveis como também perseguidas ao longo da

vida.

No início da vida, a criança, desamparada em sua dependência vital para com as

figuras parentais – a mãe para dar-lhe o nome mais acertado – precisa se fazer amar ao preço

de sua sobrevivência. Isto ocorre porque estando dependente dos cuidados e da proteção do

outro, a criança, da mesma forma, está submetida à possibilidade de punição e agressão do

outro, tendo em vista a ambivalência presente em todo sujeito. Esta ameaça de sofrer a

hostilidade justamente daquele que protege é recebida, portanto, como risco de vida, ameaça

de morte. Na mira desta angústia, em seu aspecto mais radical, a criança se empenha em se

fazer amar, numa ação defensiva para garantir sua vida.

Para se fazer amar, a criança não pode dar expressão a seus desejos agressivos. Sendo

a agressividade uma expressão negativa, abominada das relações afetivas, conforme

indicamos mais acima, se a criança a manifestar sofrerá as punições disso e sentirá remorso.

Ainda que ela não saiba o que é certo ou errado, bom ou mau, as respostas e a autoridade de

seus pais a indicarão isso. Bom será tudo aquilo que for respondido com amor, mau tudo

aquilo que trouxer punição e perigo à vida. Esta é a primeira indicação moral do sujeito,

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representada pela autoridade parental. Só então, munido com esta consciência externa do que

é certo ou errado, é que será possível renunciar a agressividade pela primeira vez.

Nesta primeira renúncia, através do mecanismo de identificação, incorpora-se a

autoridade parental e a consciência moral que eles representam. Essa autoridade e essa

consciência, agora internas, é o que se chamará de supereu. Isso faz do supereu o resultado da

primeira renúncia pulsional. Sendo o representante da autoridade e da consciência moral, o

supereu será a instância psíquica controladora das próximas renúncias a serem feitas.

Apontemos, aqui, mais uma vez, um problema de lógica que reaparece em todas as

explicações psicanalíticas sobre o momento originário, a gênese, o início. A renúncia

pulsional é resultado da consciência moral, realizações do supereu. O supereu não é dado

desde o início, sua origem é procedente de uma primeira renúncia pulsional. Se o supereu é

responsável pela renúncia, como sua origem é produto de uma primeira renúncia se ele ainda

não existia? Este é o embaraço típico das perguntas sobre a origem, onde a existência de um

depende da existência do outro ao mesmo tempo em que esse outro depende da existência do

um. Numa perspectiva, a consciência é causa do supereu. Noutra, a consciência é efeito do

supereu. As duas perspectivas juntas não se encaixam, impossibilitando uma ordenação

cronológica desse momento inicial.

Com a introjeção da autoridade externa, a recém formada consciência passa a

observar o eu em suas ações e intenções, funcionando como um vigilante policial que guarda

pela obediência dos padrões morais. Essa observação não está sozinha, mas acompanhada de

um julgamento crítico bastante afiado. Neste julgamento, as ações realizadas pelo eu estão

sempre em comparação com aquelas condutas ideais, de padrões elevadíssimos, englobadas

sob o nome de ideal do eu. Este ideal do eu implica em agir conforme os padrões corretos e,

mais ainda, em desejar e pensar nesses mesmos moldes, configurando um ideal de máxima

perfeição. Olhando mais de perto, o ideal do eu significa agir conforme aquilo que o outro

que protege reconhece como amável, ao preço de sua sobrevivência. A exigência da

realização desse ideal coloca um problema: como despistar do supereu as intenções e os

desejos que estejam fora dos padrões? A possibilidade de esconder da autoridade externa uma

ação má até existe, mas como iludir uma vigilância interna e constante? Diante disso, o

supereu hipervigil não deixa passar nenhum desejo de agressão ou hostilidade, nenhuma

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intenção má qualquer do sujeito. Todas são “anotadas” e julgadas. O resultado desse

julgamento – imparcial, pois o supereu não quer saber das razões que impedem o eu de

realizar os ideais – é a condenação do eu como culpado. Assim, o eu passa a sofrer com

intensos sentimentos de culpa e de inferioridade. Esse sentimento de culpa torna-se

irremediável. Irremediável porque o desejo “fora dos padrões” não desaparece, ele está

presente de modo inseparável no eu devido àquele a quem deve proveniência originária, o

isso.

O isso é a fonte dos desejos pulsionais, agressivos ou não. É ele quem compõe, junto

com o eu e o supereu, a organização psíquica da segunda tópica freudiana. De modo oposto

ao supereu, a energia pulsional do isso exige satisfação imediata, sem qualquer mediania ou

temperança. Enquanto o supereu dá lugar à consciência moral, “o isso não conhece nenhum

julgamento de valores: não conhece o bem, nem o mal, nem a moralidade” (FREUD,

1933[1931], p.95). Ao passo que um é sede de interdições em função da sobrevivência no

mundo, o outro é sede de todos os desejos, negligenciando as ameaças do mundo externo.

Nessa oposição podemos reeditar a polaridade entre o princípio do prazer e o

princípio de realidade, onde o isso estaria sob dominância do primeiro, devido a sua

necessidade de satisfação direta, e o supereu sob dominância do segundo, devido as suas

funções de consciência, julgamento e orientação da ação. E, assim como os princípios, que

mantêm entre si algo em comum apesar da aparente antinomia, isso e supereu também

resguardam íntima relação sob o retrato contraditório, pois a satisfação renunciada por

exigência do supereu, além de ser originária do isso, é a mesma que irá torná-lo (o supereu)

mais forte e mais severo.

Então, a cada desejo “fora da lei” proveniente do isso, o supereu exige renúncia. A

satisfação renunciada é apoderada pelo supereu, engrandecendo-o, assim, em sua

rigorosidade e exigência de realização do ideal. Se a energia pulsional originária do isso

passa para o supereu, isso significa que este mantém em suas exigências a mesma força

imperiosa da pulsão. Deste modo, podemos dizer que supereu e o isso têm a força e a

necessidade pulsionais em suas exigências. Isso marca uma semelhança entre essas duas

instâncias de aparências opostas, mas não é só isso. A íntima relação entre isso e supereu diz

respeito à dependência vital entre os dois, pois é justamente o isso, aquele a quem o supereu

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se opõe, que dá origem, fomenta e mantém o supereu com sua energia pulsional. Assim, fica

selada entre essas duas instâncias uma relação indissociável.

Com a ferocidade renovada a cada renúncia, o supereu dirige sua agressividade para o

eu. Tortura-o, culpa-o e faz com que ele necessite de punições por não ter realizado o ideal.

Este ideal, já anunciamos, reúne padrões de conduta, de pensamento e sentimentos,

originários da autoridade parental e sua indicação daquilo que se estabeleceu como

moralidade no sujeito. É um ideal que, seguindo o raciocínio de Freud, exige a eliminação da

agressividade que, por sua vez, é proveniente do isso, fonte da vida pulsional. Logo, levando

o raciocínio até o limite, o supereu exige o aniquilamento de uma parte do isso e, em última

instância, sendo ele proveniência do isso, exige o extermínio dele mesmo. Dito de outro

modo, a agressividade dá origem ao supereu que exige a eliminação da agressividade. Nesse

nó desenhado pelo supereu vemos que ele exige a eliminação daquilo que o origina, sendo ele

mesmo um obstáculo em seu caminho, pois para acabar com a agressividade ele também

precisaria deixar de existir. Isso nos leva a dizer que a existência mesma do supereu

impossibilita aquilo que ele almeja. Nenhuma surpresa, o princípio do prazer já nos mostrara

o mesmo paradoxo.

Este é o paradoxo que compõe o próprio funcionamento do supereu, inserindo um

problema insolúvel entre sua meta e seus meios de consecução. Há também um outro

paradoxo, mais superficial, em relação ao supereu, naquilo que diz respeito ao sentimento

inconsciente de culpa. O supereu pune o eu com culpa não porque ele desobedeceu ou não

realizou uma conduta correta, não por uma falta do eu, o que seria esperado e perfeitamente

lógico. O supereu culpa justamente quando o eu obtém êxito. A consciência moral é “mais

cruel quanto menos, de fato, a ofendemos” (LACAN, 1997 [1959-60], p.114). A culpa é,

portanto, o resultado da realização daquilo que exige o supereu. Isso faz dela a incômoda

moeda paga para se viver feliz.

Então, voltemos à nossa pergunta mais acima: qual a relação entre a ética e o

supereu? Se o supereu guarda os valores morais e estabelece as condutas ideais para se viver

e ser feliz – expressão direta de ‘ser amado’ – é ele quem controla as rédeas nas relações

humanas, aquilo que se reúne sob o título de ética. Sob o comando do supereu, a ética é um

efeito daquilo que essa instância exige, a renúncia do desejo. Exigência autoritária, cruel, de

tom ríspido e caráter compulsivo, “que se manifesta sob a forma de um imperativo

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categórico” (FREUD, 1923, p.47) seguindo o pensamento kantiano. Essa severidade extrema,

como vimos, traz a marca da pulsão, denunciando uma ligação muito mais forte e primitiva

entre o sujeito e seus valores morais e questionamentos éticos, do que uma suposta expressão

natural e instintiva da espécie humana.

Importante dizer que estreitar os laços entre ética e supereu, de acordo com Freud,

não significa afirmar que toda ética está marcada pelo imperativo do gozo – solução

neurótica conseqüente de seu conflito entre consciência moral (ou a necessidade de ser

amado) e a realização de desejo (ou a expressão da agressividade) – mas, antes, significa

afirmar que o campo ético, aquele no qual se pergunta como agir em relação ao próximo,

implica em escolhas e renúncias. A ética da psicanálise é uma prova de como esse campo

pode se configurar de outra maneira que não aquela delineada pela neurose, conforme

veremos no segundo capítulo.

Respondendo a crítica sobre o fato da psicanálise ignorar o lado mais elevado e

sublime do homem, detendo-se apenas nas questões da sexualidade e dos apegos infantis, o

que revelaria o homem próximo de uma natureza animal, Freud mostra como através da

análise do eu, numa dissecção psíquica dos fenômenos normais e anormais dos sujeitos,

encontramos, conseqüentemente, seu “lado mais elevado” (FREUD, 1923, p.48). Esse

encontro, porém, não responde confortavelmente aos críticos da psicanálise que

vislumbrariam ser o lado moral elevado do homem a presença de uma natureza divina em

nós. A descoberta freudiana foi encontrar o fio de ligação entre ambos os lados, os valores

elevados e os apegos primitivos, sem separá-los em paralelas coexistentes, sem aproximar ou

distanciar o homem de deus ou dos animais.

Deste modo, o supereu, o lado mais elevado do homem, ao mesmo tempo em que

estabelece padrões sublimes ao eu é o resultado reativo dos desejos mais primitivos, assim

como “o que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado,

mediante a formação do ideal, no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de

valores” (FREUD, 1923, p.49). O que queremos ressaltar é justamente esta ligação vital

existente entre dois aspectos que na superfície se dispõem de modo oposto, a saber, o supereu

enquanto representante da moral, e o isso enquanto representante dos desejos mais íntimos.

Um outro ponto a ser ressaltado a partir do funcionamento do supereu é a relação

entre aquilo que se passou quase miticamente na origem – a relação com o outro e a formação

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da moralidade – e sua conseqüente incidência em todo o decorrer da vida. Isso nos remete,

em tom de esclarecimento e justificação, à afirmação adiantada de Freud em “O Projeto...”,

em que anuncia estar no desamparo inicial dos seres humanos, a fonte primordial de todos os

motivos morais, conforme destacamos na página 14.

Extrairemos agora, à guisa de conclusão do capítulo, algumas considerações sobre o

mecanismo e o funcionamento mental. Vimos que nele há um caminho, um movimento, que

parece seguir numa certa continuidade progressiva. Tanto na origem e funcionamento do

supereu, quanto no mecanismo do recalque e na incidência do princípio do prazer, observa-se

uma estrutura semelhante: um primeiro tempo impossível de deslindar, marcado por uma

perda; depois, um funcionamento paradoxal, marcado por êxitos e fracassos, por uma

insistência compulsiva de realização e por uma conseqüente insatisfação; e, no limite do fim,

a mais pura perda, a morte. Diante dos tropeços e paradoxos, conforme assinalamos, dizer

que esta é uma linha contínua e progressiva, entretanto, é negligenciar as voltas e os impasses

insolúveis que o funcionamento mental dá em si mesmo. Então, sem cair na afirmativa de

que esse funcionamento é descontínuo, onde o que vem a seguir não tem nenhuma relação

com o que veio antes, resta-nos dizer que o funcionamento mental guarda rompimentos em

seu percurso, cortes que instauram uma ruptura entre um antes e um depois, mas que, ao

mesmo tempo, não deixam de soldar entre eles uma íntima relação.

Seria absurdo coincidir essa perda inicial com o fracasso mediano e com o máximo da

perda final? Não seriam essas perdas, essas falhas, expressões de um mesmo fator? Será que

esse ponto cego difícil de localizar na origem não é o mesmo que faz ruptura no

funcionamento psíquico e que se encontra em seu auge no impossível ponto final? Esse fator

que anima ao mesmo tempo em que desanima o psiquismo, impulsionando-o sempre para

frente na tentativa de alcançar um ponto impossível que ficou lá atrás, traçando um caminho

de progressos à custa de fracassos e culpa, não figuraria aí o desejo inconsciente?

Na obra freudiana o desejo inconsciente tem a função de força motriz, de causa, de

instigador. É o desejo inconsciente que forma os sonhos, que mobiliza o psiquismo a

reencontrar seu objeto perdido e que dá origem ao supereu. O desejo dá o impulso de partida

e também sustenta a permanência, animando o organismo e o mantendo-o vivo. Assim é

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possível porque o desejo tem um caráter de indestrutibilidade típico dos atos anímicos

verdadeiramente inconscientes (FREUD, 1900, p. 583, nota), ou seja, o desejo não acaba,

persiste devido a sua não-realização.

Verificamos claramente esse funcionamento com o princípio do prazer. Resto de uma

primeira experiência mítica de satisfação, o desejo mobiliza o organismo a reencontrar o

objeto perdido, dando origem, assim, a uma série progressiva de funções, faculdades mentais

e culturais que nunca conseguem realizá-lo plenamente. Nessa série progressiva, ao invés do

desejo ser mitigado, como se poderia pensar, ele é, ao contrário, mantido idêntico,

empurrando para frente a mesma ausência que ele deixou cravada lá atrás. Essa não-

realização do desejo é, portanto, fonte de vida e, do mesmo modo, sua realização é sinônimo

de fim, fim de desejo, fim de vida, morte.

No funcionamento do supereu, vemos também que está no desejo inconsciente,

enquanto recalcado, a origem e a manutenção do exercício dessa instância. A relação entre o

campo da moral e os desejos mais baixos e particulares do sujeito é aquilo que fomenta a

realização de um ideal, necessário tanto para a constituição do sujeito quanto para o bom

andamento da civilização.

O que queremos colocar aqui é que acompanhando o funcionamento psíquico

encontramos o desejo inconsciente como peça-chave, apesar dele não ser personagem

principal. Ele está na origem como força impulsionadora, na manutenção falha de seus

mecanismos e no final impossível de seu apaziguamento mortal. O desejo não é um

mecanismo, como o recalque, o princípio do prazer e o supereu, mas é aquilo que sustenta,

ainda que de um modo falho, cada uma dessas estruturas. Sendo fator central na vida

psíquica, o desejo não poderia conhecer outro lugar senão também o central na ética da

psicanálise, conforme formulou Jacques Lacan.

Deixaremos, contudo, para o próximo capítulo mais desmembramentos sobre o desejo

inconsciente e, ainda, as conseqüências que ele promove para a ética da psicanálise.

Finalizamos aqui nosso percurso sobre o funcionamento do aparelho psíquico e sua relação

com o campo da ética com os seguintes resultados: a ética, em sua tentativa de harmonizar as

relações humanas e alcançar o nível zero de tensão no aparelho psíquico, está submetida ao

princípio do prazer e ao comando do supereu, sendo uma formação reativa de um desejo

recalcado; e o desejo em todos os mecanismos que seguimos de perto foi aquele quem o

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originou, sustentou e restou, marcando com isso a presença de uma falta irreparável no

funcionamento psíquico.

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Capítulo 2 – sobre a ética

Para formular a psicanálise nos moldes de uma ética, foi preciso, para Lacan, situar a

experiência freudiana, e sua concepção sobre o funcionamento mental, nas delimitações desse

campo. Sendo a ética propriamente um exercício da filosofia, Lacan alinhou a psicanálise à

ética de Aristóteles e Kant – dois pensadores excepcionais que captaram cada um em sua

época o espírito de seu tempo – encontrando nisso mais rupturas e cortes do que

conformidades.

Para a ética, de acordo com as descrições filosóficas, o ponto último da ação humana,

sua finalidade, é a realização do ser, onde o indivíduo encontra a paz e a felicidade plena. Por

esta razão, pode-se dizer que a felicidade é o objetivo último de cada indivíduo. No capítulo

anterior, já pudemos observar, em função da dominância do princípio do prazer na atividade

psíquica, que, de fato, essa busca pela felicidade plena é própria da condição humana. A

impossibilidade de realização do princípio do prazer, entretanto, inviabiliza de modo

estrutural o seu alcance. No capítulo que agora se inicia, veremos como Lacan se apoderou

dessa elaboração, adicionando nisso elementos não só da filosofia, mas também da tragédia,

da literatura e da religião, desenvolvendo de modo engenhoso e sofisticado uma ética própria

à psicanálise.

***

Na abertura de seu seminário sobre a ética da psicanálise, Jacques Lacan logo anuncia

que não foi sem razão que escolheu o termo ‘ética’ ao invés de ‘moral’: “falando de ética da

psicanálise escolhi uma palavra que não me parece por acaso. Moral, poderia ainda ter dito.

Se digo ética, verão por quê, não é pelo prazer de utilizar um termo mais raro” (LACAN,

1997 [1959-1960], p.10). Lacan atribui diferentes sentidos entre os termos e isso não só os

diferencia, como também – e principalmente – localiza a raiz de sua tese sobre a ética da

psicanálise. Vejamos, portanto, os sentidos em jogo entre os termos ‘ética’ e ‘moral’ antes de

adentrarmos na tese lacaniana.

Moral e ética são originalmente expressões equivalentes. Ambas têm raízes idênticas,

no sentido de apontarem para costumes: ética vem do grego ethos, enquanto moral vem do

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latim mores (PENNA, 1999, p.18). Posteriormente, porém, os termos foram recebendo

diferentes sentidos.

No Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2006, p.97 e 193)

encontramos as seguintes definições. De uma maneira geral, moral é sinônimo de ética

enquanto teoria de valores que regem a ação humana, tendo caráter normativo ou prescritivo.

Em um sentido mais estrito, a moral é relativa aos costumes de uma sociedade, cultura ou

grupo específico, enquanto a ética considera a ação humana de uma perspectiva mais

genérica e abstrata. Desse modo, a ética é considerada uma parte da filosofia, aquela que tem

por objetivo refletir sobre os problemas da moral – finalidade e sentido da vida, obrigação e

dever, o bem e o mal, o valor da consciência moral, etc. – fundamentada num estudo

metafísico do conjunto de regras de conduta consideradas universalmente válidas.

Yves de La Taille (2006, p.27), em seu estudo psicológico sobre a ética e a moral,

reconhece essa diferença como a mais comum entre os termos e ainda destaca uma outra,

aquela que estabelece uma fronteira entre as esferas privada e pública. O conceito de moral

estaria reservado para regras que valem para as relações privadas (a conduta que devem ter

um bom pai e uma boa mãe, por exemplo) enquanto o conceito de ética estaria destinado para

regras de conduta no espaço público. Nesse âmbito estariam todos os códigos de ética

profissional, as deontologias, assim como os “comitês de ética”, as regras de etiqueta, etc.

No Diccionario de Filosofía de Ferrater Mora (1975), encontramos o vocábulo ‘ética’

definido como doutrina de costumes, mas “na evolução posterior do sentido do vocábulo, o

ético se identificou cada vez mais com o moral, e a ética chegou a significar propriamente a

ciência que se ocupa dos objetos morais em todas as suas formas, a filosofia da

moral” (MORA, 1975, p. 595). Não é nossa intenção adentrar no imenso campo da filosofia

da moral, apontando em cada sistema filosófico a configuração e perspectiva que o

questionamento ético recebeu. Nosso intuito é apenas destacar uma diferença geral entre os

termos ‘ética’ e ‘moral’ para acompanhar a lógica lacaniana, e apontar nisso a especificidade

da ética da psicanálise.

A partir das definições acima, podemos dizer que tanto a ética quanto a moral se

ocupam da relação do homem com sua ação ou, mais especificamente, daquilo que orienta o

agir humano. A diferença recai sobre o nível de abstração. Enquanto a moral se reduziria aos

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costumes e hábitos da conduta, a ética seria uma reflexão sobre isso. Essa diferença parece

ser bastante simples, mas vendo-a de perto abrimos o leque de questões.

Sendo um conjunto de hábitos e costumes, podemos afirmar que a moral é um código,

quer dizer, um sistema de regras e normas. Este código está fundamentado por um conjunto

de valores que constitui um ideal de conduta. Em nome do ideal, a moral circunscreve,

portanto, um modelo de conduta a ser seguido. Esse modelo serve de parâmetro da ação e

suas orientações são aderidas sem questionamento, quer dizer, são tomadas como um dever,

ao qual se deve obedecer. Disso resulta seu caráter normativo e prescritivo.

A ética, enquanto uma reflexão sobre a moral, visa encontrar uma orientação da

conduta humana que seja universalmente válida e fundamentada. O acento é sua exigência de

validade e legitimidade universais. Com esse objetivo, a ética suspende os valores morais,

analisa-os, depura-os, a fim de encontrar aquilo que seja genuinamente humano na

determinação da ação. A reflexão ética, portanto, implica em deixar de lado o código moral e

seu ideal. Por conta disso, entendemos que o terreno da ética é muito específico e mesmo

difícil de ser sustentado. Essa dificuldade é fácil de perceber. Ocupando-se dos problemas da

moral, a reflexão ética acaba por estabelecer soluções que podem vir a ser acatadas como

verdades universais, promovendo assim um novo sistema de regras e normas a ser seguido,

ou seja, um novo código, assim como um novo ideal. É assim que em nome da ética, acaba se

fazendo uma moral, tornando confusa a distinção entre os termos.

De acordo com Deleuze (2002[1981], p.29-30), Espinosa foi um filósofo que retratou

essa diferença, relacionando a moral a valores transcendentes e a ética a uma tipologia dos

modos de existência imanentes. Para Espinosa a lei moral é um dever, a qual deve-se

unicamente obedecer sem questionar. Esse sentimento de obrigação apenso à lei moral faz

dela uma fonte de ignorância e não de conhecimento, servindo muito bem a uma certa

disposição da ordem social. O conhecimento é conseqüência da reflexão e do

questionamento, ou seja, da suspensão da moral. Desse modo, questionar a lei moral

significa, para Espinosa, refletir sobre os diferentes modos de existência imanente do homem,

prerrogativas do exame propriamente ético.

Tomemos, portanto, essa diferença entre os vocábulos. Para torná-la mais clara e

resumida, podemos dizer que enquanto a moral implica em obrigação e obediência, a ética

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implica em questionamento e escolha. Diante dessa diferença, voltemos ao apontamento de

Lacan.

Para Dóris Rinaldi (1996, p.67), quando Lacan se refere à moral prioriza seu caráter

prescritivo, em termos de valores e ideais de conduta, assim como seu conjunto de regras e

normas que funcionam como um sistema de coação social. A experiência moral é aquela que

tem no horizonte um ideal de conduta a se cumprir e que, portanto, se presentifica no

cotidiano das ações humanas através de normas e regras que são tomadas como um dever, às

quais se conserva um sentimento de obrigação. De modo resumido, podemos então dizer que

a experiência moral para Lacan engendra tanto um ideal de conduta quanto um sentimento de

obrigação sancionado a uma lei. A definição lacaniana está de acordo, portanto, à distinção

que colocamos acima.

No terreno da psicanálise, a moral está relacionada à origem e ao funcionamento do

supereu, conforme vimos no capítulo anterior. Sem, obviamente, distanciar o supereu do

campo da ética, Lacan, entretanto, aponta que a dimensão ética vai além disso, além do ideal,

do sentimento de obrigação e do funcionamento paradoxal do supereu, e encontra em seu

domínio “a função fecunda do desejo como tal” (LACAN, 1997 [1959-60], p.12).

O que Lacan assinala é que a dimensão moral, apesar de circunscrever-se na retidão

da razão encontra sua origem na sinuosidade do desejo, via aberta por Freud. Essa descoberta

freudiana implica numa reestruturação tamanha no campo da moral que gera, como

conseqüência, um campo propriamente ético, onde figura o desejo e a escolha ao invés do

supereu e do ideal. Ao longo deste capítulo, essa idéia será paulatinamente desenvolvida e,

esperamos, tornar-se-á cada vez mais clara.

Há, porém, um dado a mais na escolha de Lacan pelo temo ‘ética’. Para ele, havia um

alvo moralista a ser rigorosamente criticado em sua época, a saber, a psicanálise instituída

(RINALDI, 1996, p.68) e seus ideais do amor humano, da autenticidade e da não-

dependência. Esses ideais preconizavam o alcance de um bem, fosse da harmonia no campo

da sexualidade – uma certa integralização das pulsões – fosse da realização plena do sujeito

com o alcance de sua verdade, fosse da independência garantida em relação ao outro,

respectivamente. Esses bens a alcançar colocavam a psicanálise sob uma ética educativa, de

formação de caráter, e reduzia a sua prática a uma técnica de adestramento. Essa orientação

colocava a psicanálise próxima à ética de Aristóteles, no sentido de ser uma ética do mestre,

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aquela ocupada com a formação do caráter, com a dinâmica dos hábitos, com o adestramento

e com a educação, conforme Lacan descreveu.

Essa ética do mestre se afasta daquilo que é genuinamente psicanalítico, a saber, a

impossibilidade do alcance de um bem que venha pôr fim aos anseios do sujeito e permiti-lhe

viver sob o bálsamo da paz. A falta deste bem, é esse o ponto a que a experiência

psicanalítica nos conduz. No primeiro capítulo, vimos como Freud descortinou este universo

em que vemos a falta figurar como impossível de ser suturada, impossibilidade própria de sua

estrutura. O mecanismo falho do recalque, o funcionamento irruptivo do princípio do prazer e

a paradoxalidade do supereu apontam para o desejo inerradicável. Desejo esse que marca, por

definição, a falta como tal.

Diante dessa falta central, Lacan não pôde anunciar uma ética que não incidisse sobre

a noção de real ao invés do ideal – sendo, este último, aquele que resguarda a existência de

um Bem. A noção de real é aquela que deixa aberto o lugar da falta ao invés de tentar

preenchê-la com valores ideais, mandamentos religiosos ou leis naturais. De acordo com

Denise Maurano (1994),

“se prevalentemente as éticas tradicionais se colocam

como medidas terapêuticas [como observa Freud] para cicatrizar a

ferida da falta, ao estilo da promessa ou da esperança da ação

empreendida na direção correta conforme o que se tome por ideal ou

por realidade, buscando nesse ajuste a exoneração da falta, a ética da

psicanálise deverá estar referenciada à radicalidade da

falta” (MAURANO, 1994, p.116).

Assim, como já dissemos, a escolha do termo ‘ética’ para a psicanálise, e não ‘moral’,

diz respeito a uma tese a ser defendida por Lacan. Ao invés de situar a ética no domínio do

ideal, como tradicionalmente se faz, Lacan a situa em relação ao real. Seu movimento foi de

aprofundar-se no campo da moral, e nele encontrou não os ideais cristalizados numa verdade

absoluta, mas o real seco da ausência desses ideais. Desse modo, expandiu o campo da moral

para além dos deveres e prescrições seguidas para se chegar a esses ideais supostos e fundou,

a um só tempo, um campo ético guiado por este real, com toda paradoxalidade que isso

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contém, onde a moral tornou-se apenas um caso – a ser tratado. “A questão ética, uma vez

que a posição de Freud nos faz progredir nesse domínio, articula-se por meio de uma

orientação do referenciamento do homem em relação ao real”, eis a tese de Lacan que nós

iremos agora desmembrar a partir de seu próprio raciocínio em que afirma que “para

conceber isto, é preciso ver o que ocorreu no intervalo entre Aristóteles e Freud” (LACAN,

1997 [1959-60], p.21). Vejamos.

Aristóteles e o Bem

A reflexão ética coloca o homem diante de sua ação. Ação esta que se justifica, ou

não, a partir do ideal que a enquadra. Esse ideal, por sua vez, para além dos valores que

prescreve, não visa outra coisa que não a harmonia e a justiça, ou seja, a felicidade entre os

homens e de si próprio. O que devo fazer para ser feliz? Eis a pergunta ética por excelência,

colocando em pauta no cotidiano da vida humana o tema da felicidade e, mais ainda, os

meios para alcançá-la. Nenhuma surpresa, portanto, em afirmar que a demanda feita ao

analista não seja, ela também, uma demanda de felicidade.

A esta demanda, como o analista irá responder? Eis a pergunta sobre a ética da

psicanálise. O que dirige o analista em sua ação diante desse pedido obstinado do sujeito?

Lacan responde que a referência do analista em sua ação é o real, “o real como tal, o peso do

real” (LACAN, 1997 [1959-60], p.31). Já mencionamos que esse real está intimamente

relacionado à falta irreparável que sustenta o funcionamento psíquico. Essa falta, também já

mencionamos, procura-se a todo custo preenchê-la, elevando à categoria de um ideal

qualquer coisa que se coloque em seu lugar. Desse modo, a falta, real, é apagada, embaciada,

num bem ideal. Sustentar o peso do real, do real como tal, é justamente deixar o lugar da falta

conforme ele próprio, quer dizer, vazio.

É fácil entender por que Lacan insiste em sua tese. Tradicionalmente, os sistemas

filosóficos ocupam o real com um ideal. Aristóteles, pioneiro na organização de uma ética em

sua obra Ética a Nicômaco, colocou nesse lugar um bem, aliás, o bem, o Bem Supremo.

Vejamos seus pontos fundamentais.

A filosofia de Aristóteles descreve um mundo hierarquicamente organizado e

completo, onde cada coisa tem seu lugar próprio, seu lugar natural. É somente em seu lugar

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natural que cada coisa irá atingir sua realização e se tornar verdadeiramente ela própria. Se

um corpo não está em seu lugar natural, ele se dirige a ele. Se já está, nele se mantém, e

assim está justificado o movimento e o repouso dos corpos. Nesse sistema, a finalidade de

todas as coisas e de todo movimento é o equilíbrio, ou seja, o encaixe na ordem cósmica

(KOYRÉ,1991[1973], p.158). Esta ordem cósmica converge o macrocosmo (o cosmo, o

âmbito universal) e o microcosmo (a psique, o âmbito mais particular) no Bem Supremo. Isto

significa que o Bem Supremo está no centro de toda organização cósmica, justificando assim

não só o movimento dos corpos (a física) como também a ação humana (a ética e a política).

No campo da ética, o Bem a ser atingido se realiza na ação virtuosa e esta ação é

sempre acompanhada pelo bem-estar, pela sensação de prazer, de modo que o prazer,

tautologicamente, é índice da verdadeira ação. Se uma ação não for executada plenamente,

em consonância com o Bem, ela virá acompanhada de infelicidade e dor e indica um conflito

entre a razão e as paixões. Dois exemplos de Aristóteles: aquele que se regozija ao se abster

dos prazeres do corpo é temperante; se ele se abstém de mau humor, não o é. Aquele que

enfrenta os perigos com bom grado ou sem sentir dor, é corajoso; já aquele que enfrenta o

perigo com sofrimento, é um covarde (ARISTÓTELES apud JULIEN, 1995, p.26). A ação

virtuosa faz bem, se não fizer, não é verdadeira.

Partindo da premissa de que o Bem existe, a conciliação entre a ação correta e o

prazer garante a felicidade na virtude. Desse modo, todos estarão dispostos a agir

corretamente, pois todos querem ser felizes. É assim que a ética aristotélica engendra um

discurso educativo e ordenador. A felicidade é possível, para isso deve-se fazer o bem. E a

pergunta ética que se faz é: “como devo fazer o bem?” A esta pergunta, o educador responde

ensinando a distinguir claramente os verdadeiros bens dos falsos (JULIEN, 1995, p.26), ou

seja, ensinando a agir corretamente. Isso faz da ação virtuosa “um produto de uma espécie de

aprendizagem, adestramento” (MAURANO, 1994, p.123). Desse modo, a ética aristotélica

serve a uma organização social, distribuindo numa determinada ordem todo bem a consumar.

Devido a seu caráter educativo e ordenador, Lacan a definiu como uma ética do mestre.

Duas espécies de virtude são apresentadas na filosofia aristotélica: a virtude

intelectual, produto do exercício da razão; e a virtude moral, fruto não só de uma

aprendizagem racional, mas também de uma atividade prática, o hábito (ethos). É somente a

partir da prática dos atos morais que alguém se torna virtuoso. Para se tornar virtuoso é

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preciso, portanto, de um esforço, de um exercício a mais, além dos entendimentos lógicos da

razão. Esse esforço consiste na temperança, uma moderação dos apetites, das inclinações

pessoais e das paixões. Os atos morais “devem ser justos e temperantes. Não devem tender

nem ao excesso, nem à carência. Devem conservar-se na mediania, no meio-termo. Este

deverá ser o ortho logos, a regra correta da ação do homem para alcançar o

Bem” (MAURANO, 1994, p.123).

Vemos, portanto, que a ética de Aristóteles apresenta a existência na Natureza, na

essência de todas as coisas, do Bem, aquele que uma vez atingido promove a serenidade e o

prazer do bem estar. No entanto, e curiosamente, não basta viver livremente para alcançar

este Bem, ainda que seja ele o lugar para onde todas as coisas convergem naturalmente. É

preciso algum esforço, pois a intemperança, essa sim, tende a manifestar-se livremente no

homem, afastando-o do caminho do Bem e amaldiçoando-o à infelicidade. Foi este o

problema que Lacan destacou na ética de Aristóteles: “se a regra da ação está no ortho logos,

se não pode haver boa ação senão conforme a este último, como é que subsiste o que

Aristóteles articula como a intemperança? Como é que no sujeito os pendores dirigem-se para

outro lugar? Como isso é explicável?” (LACAN, 1997 [1959-60], p.34). A resposta a essas

perguntas Lacan diz que nós, psicanalistas, acreditamos saber muito mais, pois é justamente

por se deter e se aprofundar na presença patente dessa intemperança que a psicanálise outorga

seu caminho próprio, distinguindo-se do campo da filosofia.

A intemperança é o que leva o sujeito além ou aquém da mediania, fazendo-o

escorregar do caminho do Bem. Caminho esse que, curiosamente, é para onde todas as coisas

tendem naturalmente. Vemos aí uma contradição. Se o Bem supremo existe de fato e está

disponível para todos, não há razão para a existência de uma intemperança. Ela, porém, existe

e reconhece-se, inclusive, o necessário exercício da mediania. Nessa contradição, pomos a

lupa psicanalítica e prevemos que aquilo que está em jogo é a impossibilidade do alcance

desse Bem.

Ingressamos no domínio psicanalítico. A impossibilidade desse Bem é aquela que

incide sobre a impossibilidade de se reviver a primeira experiência de satisfação, tal como

desenvolvemos no capítulo anterior. Em O seminário: livro sete (1959-60), Lacan

desenvolve essa noção em torno de das Ding. Das Ding – a Coisa – é o objeto do desejo, o

bem supremo do sujeito, perseguido obstinadamente e exigindo, nisso, um intenso e

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inesgotável trabalho psíquico, incluído aí o próprio ortho logos. Faz-se oportuno neste

momento examinar o que está em jogo em torno de das Ding.

Das Ding é o lugar vazio do objeto, no qual o desejo está afiançado. Situa-se num

campo isolado ao sujeito, interditado pela impossibilidade de se reencontrar aquilo que esteve

desde sempre perdido. A relação entre o princípio do prazer e o objeto perdido da primeira

experiência de satisfação, descritos por Freud em seu projeto de 1895, Lacan reescreve – a

partir não só dos escritos freudianos, mas também marcado pelo pensamento de Kant,

Heidegger e pela influência de Hegel – com a cadeia significante e das Ding,

respectivamente, em seu seminário de 1959-60.

Assim, das Ding apresenta novamente os paradoxos do funcionamento mental. Do

mesmo modo como o objeto da primeira experiência de satisfação dá partida a um

movimento progressivo que busca, como alvo, esse mesmo objeto, das Ding também está na

origem e no objetivo, a um só tempo, da articulação significante, pertencendo a ela de um

modo extremamente íntimo ao mesmo tempo em que está radicalmente excluída.

Deste modo, das Ding ocupa uma posição de vazio central em torno do qual gravita a

cadeia significante, sustentando-a ao mesmo tempo em que a mantém incompleta. Se a

articulação significante, subordinada ao princípio do prazer, engendra-se numa produção de

sentido, a Coisa “é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado” (LACAN,

1997 [1959-60], p.71). Isto significa que das Ding resguarda, na relação com a cadeia

significante, a impossibilidade de todo o sentido ou, o que é a mesma coisa, de um

acabamento na significação. Assim, Lacan a caracterizou como justamente aquilo que do real

padece de significante (LACAN, 1997 [1959-60], p.149), ou seja, aquilo que é impossível de

ser capturado por um significante, insistindo em fazer restar uma ausência de sentido, o real.

Situada no interior e no exterior, a um só tempo, em relação à cadeia significante, a

Coisa dá origem ao desejo e, assim, determina um caminho a ser traçado pelo sujeito,

guiando suas escolhas e suas ações. É das Ding, portanto, quem orienta a construção da

realidade, a ordenação dos bens e a própria escolha da neurose. “É em relação a esse das

Ding original que é feita a primeira orientação, a primeira escolha, o primeiro assento da

orientação subjetiva que chamaremos, no caso, de escolha da neurose. Essa primeira moagem

regulará doravante toda a função do princípio do prazer” (LACAN, 1997 [1959-60], p. 72).

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Vemos, portanto, como a psicanálise se afasta do pensamento aristotélico. Se

enquanto para Aristóteles é o prazer quem orientação a ação, prazer esse fixado ao Bem

supremo, para a psicanálise é das Ding quem cumpre esta função. Sendo das Ding o bem

supremo impossível ao sujeito e sendo também promovedor êxtimo da dimensão do prazer-

desprazer, resta concluir que a psicanálise não só dissocia radicalmente o bem do prazer

como também anuncia a impossibilidade desta felicidade plena apresentada pelo mundo

aristotélico.

Esta impossibilidade, à qual sempre se chega através da análise dos conceitos

psicanalíticos, é a própria experiência psicanalítica. Não basta dizer que a psicanálise afirma

a inexistência do Bem e da felicidade plena, pois ela também não afirma seu oposto, o Mal e

o infortúnio desgraçado. Bem e Mal estão para a psicanálise no mesmo plano, plano esse que,

e essa é a diferença, ao invés de se situar num ideal difícil de se alcançar, situa-se num real

impossível ao sujeito. E aqui, novamente, encontramos a tese lacaniana sobre a ética da

psicanálise, aquela que apresenta o real, terreno vazio de atributos e que abre no horizonte um

campo para além do prazer e de sua regulação sobre os bens, como orientação da ação.

A psicanálise, entretanto, não surgiu de um pareamento dos pensamentos de

Aristóteles e Freud, absolutamente. No caminho entre os dois, seguindo o raciocínio

lacaniano, foi a presença imperiosa do pensamento kantiano que semeou o terreno de onde

pôde brotar a lógica psicanalítica.

Kant e a Lei

A partir do cristianismo, a ação virtuosa conhece outros fundamentos, dando origem a

uma ética totalmente diferente. De acordo com Philippe Julien (1995), a derrocada do Bem

supremo a partir da revelação mosaica e cristã desfaz o mundo harmônico e completo dos

gregos e questiona a relação entre a virtude e a felicidade. A crença na existência de uma

ordem superior detentora de uma sabedoria divina de onde se recolhe a verdadeira maneira de

viver foi profundamente abalada. A partir de agora, a lei emitida pela palavra será o

fundamento de toda ação, e não mais uma ontologia divina em que o ser e o bem seriam um

só (JULIEN, 1995, p, 28).

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Há uma grande diferença entre o Bem e a Lei. A existência do Bem concede aos

indivíduos uma natureza boa onde está garantida a felicidade e o bem estar. Essa natureza

boa já está em potência em cada um e basta agir para exprimi-la e realizá-la. De maneira

contrária, a Lei não oferece essa finalidade segura, pois não está fundamentada numa

natureza feliz, mas simplesmente em sua enunciação. Para agir bem, deve-se escutar a lei e,

deste modo, os mandamentos do cristianismo passaram a servir como guia.

A lei enunciada pela palavra abre um horizonte onde não figura mais um ser ideal, um

bem supremo, arruinando a finalidade e o sentido tanto do macrocosmo quanto do

microcosmo. De acordo com Julien, (1995, p.28), diante desta novidade assoladora, teólogos

cristãos tentaram conter este “vírus” de uma possível “epidemia” retomando ora o

pensamento de Platão, ora o de Aristóteles durante toda a Idade Média. No entanto, este

esforço foi em vão quando deixou escapar a ciência galileana.

De acordo com Koyré (1991[1975], p.155), a ciência moderna – sendo Galileu um de

seus fundadores – se caracteriza justamente pela destruição do Cosmo, e o conseqüente

desaparecimento de todas as considerações baseadas nessa noção, e pela geometrização do

espaço, isto é, a substituição de um espaço cósmico qualitativamente organizado pelo espaço

homogêneo e abstrato da geometria euclidiana. Desse modo, a ciência moderna instaura uma

mudança radical no espírito humano, uma das mais revolucionárias de acordo com Koyré. A

grande mudança é que com a dissolução do Cosmo e a matematização do espaço, a estrutura

do Universo deixa de ser finita, organizada e completa e passa a ser infinita e indefinida,

onde as noções baseadas nos valores, na perfeição e na harmonia tornam-se inválidas.

Para esse novo mundo surge uma nova ética, em conformidade com ele. A

substituição do Bem supremo, pleno de sentido, pela Lei emitida pela palavra vazia, no

campo da moral, é análoga à substituição do Cosmo pela algebrização, no campo da física.

Ambos cavam na finalidade de todas as coisas um vazio, uma indeterminação. Se até então

havia uma finalidade garantida, feliz e harmônica tanto para o macrocosmo quanto para o

microcosmo, agora não há mais garantia nenhuma, pois a lei não garante o bem.

O resultado imediato dessa mudança é a separação entre o campo da física e o campo

da moral. Isto significa que ambos passam a ser regidos por leis diferentes, ou seja, as leis de

um deixam de valer para o outro (por exemplo: por mais que as leis da física orientem a

direção de uma pedra lançada no ar, elas nada podem orientar no que diz respeito a conduta

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humana). Do mesmo modo, no campo da moral também se verifica uma separação: entre a

felicidade e a virtude. Isto significa que a felicidade deixa de ser um indicativo da ação

virtuosa. Esta nova organização do campo da moral quem formaliza é o filósofo Immanuel

Kant.

Kant irá afirmar que os princípios determinantes da filosofia prática (moral) não

devem ser empiricamente condicionados, quer dizer, não devem ter origem na experiência

sensível, pois desse modo perde-se sua validade objetiva e, assim, não constitui o fundamento

de um consenso universal. Para Kant, a razão pura já encerra em si mesma um fundamento

prático, o que é suficiente para a determinação da vontade. Isto significa dizer que o campo

da prática deve ser guiado pela razão, unicamente. Desse modo, pode-se afirmar que existem

leis práticas e são essas mesmas as leis morais. As leis práticas são objetivas e válidas para a

vontade de todo ser natural, diferente das máximas, que são subjetivas, verdadeiras somente

para uma vontade particular (KANT, coleção ediouro, sem data, p.31). É esse o pressuposto a

partir do qual Kant irá desenvolver a sua Crítica da Razão Prática, obra em que analisa os

fundamentos da determinação da vontade.

Sendo a lei moral uma expressão da razão pura, ela traz as mesmas características das

leis universais, ou seja, ela é imperativa, categórica e incondicional. Imperativa porque se

exprime por uma compulsão para agir objetivamente. Categórica porque é suficiente para a

determinação da vontade, deve-se apenas obedecê-la. Incondicional porque está

absolutamente livre de qualquer interesse e inclinação particular. A Lei moral direciona o

sujeito para andar numa linha reta e asséptica, extirpando de suas motivações toda e qualquer

vontade apetecida, paixão própria ou inclinação pessoal. “Age de tal modo que a máxima de

tua vontade possa valer-se sempre como princípio de uma legislação universal” (KANT,

op.cit., p.40), eis a lei fundamental da razão prática, lei essa que faz da vontade do sujeito um

meio puro de expressão de si própria. Qualquer subordinação às inclinações dos objetos

sensíveis, objetos patológicos, como coloca Kant, impede a lei prática de se exprimir,

deixando o sujeito à mercê de seus impulsos contingentes, frágeis e perturbadores.

A ética kantiana brilha exatamente por seu extremismo, pois leva ao máximo grau o

exercício da filosofia. Alocar a razão pura no corpo, enquanto motivadora da ação, significa

fazer da regra e do objeto que ela legisla uma só e única coisa. A vontade é a própria

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expressão da Lei. E, deve-se ainda dizer, que esta vontade é a vontade livre, ou seja, a própria

liberdade está submetida ao imperativo categórico.

Nesse ponto máximo da Lei, nos deparamos com um desdobramento interessante, a

saber, o esvaziamento da lei no que concerne ao seu enunciado. A Lei pura é formal e vazia e

sua incidência se faz antes por sua autoridade e enunciação do que por seu conteúdo. “A

autoridade da lei é, pois, uma ‘autoridade sem verdade’, um puro semblante que vale sem ser

verdadeiro, que só se assenta em seu próprio ato de enunciação” (ZIZEK, 1991[1988], p.

160). Disso resulta que à Lei deve-se apenas obedecer, nunca questionar, já que questioná-la

implica já em não obedecê-la. Do mesmo modo, e numa girada inesperada, vemos como a

Lei é estúpida e absurda, uma “autoridade sem verdade”, que na tentativa de exprimir o

máximo da racionalidade, acaba por cair na estupidez cega. Foi justamente este extremo

paradoxal da lei que fez com que Lacan afirmasse que Kant de certo modo abriu caminho

para das Ding.

O imperativo incondicional da Lei, em sua exigência de uma vontade livre de todo

sentimento e afetação pessoal, empurra o sujeito para além de suas aderências de prazer e

bem-estar, para além do princípio do prazer, campo onde está situada a Coisa. O objeto

asséptico da lei prática – das Gute, como denominou Kant –, livre de atributos como bom ou

mal, aproxima-se de das Ding na medida em que extirpa do sujeito qualquer paixão, qualquer

sentimento, aparecendo assim como objetividade pura e alteridade absoluta.

Na filosofia kantiana, das Gute é o nome deste bem almejado pela vontade livre, um

bem que está além das representações vinculadas ao prazer-desprazer, ao agradável ou

desagradável. Por esta razão, Lacan encontra uma simetria entre o objeto da Lei e o objeto do

desejo. “No horizonte, para além do princípio do prazer, delineia-se o Gute, das

Ding” (LACAN, 1997 [1959-60], p.93).

Escrevemos a Lei moral kantiana com L maiúsculo, pois, conforme assinalado por

Lacan, trata-se da lei de uma natureza e não das leis de uma sociedade (LACAN, 1997

[1959-60], p.99). Isto significa que há uma diferença entre Lei e lei. Segundo Zizek

(1991[1988], p.161), enquanto as leis estruturam as condições da realidade social, a Lei

descortina o real através de um imperativo categórico, abrindo a via de um impossível; as leis

possibilitam a homeostase social, enquanto a Lei perturba, provoca um curto-circuito nesse

equilíbrio; as leis proíbem, a Lei inflige; as leis indicam pressão externa da sociedade sobre o

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indivíduo, já a Lei é êxtima, um corpo estranho no próprio cerne do sujeito. Sendo a Coisa

aquilo que está no centro, na função de causa da regulação dos serviços dos bens, quer dizer,

na origem das leis sociais e, sendo também, e ao mesmo tempo, o objeto dessa regulação,

aquele que está localizado num ponto além da própria regulação, podemos ver como tanto

das Ding quanto das Gute exigem uma certa transgressão da lei para serem alcançados. Ao

mesmo tempo em que alcançar das Ding implica necessariamente, portanto, em aniquilar o

sistema de regulação dos bens sociais, onde se veiculam as leis.

Essa transgressão apresentada pelo campo da Coisa estabelece uma relação dialética

entre a lei e o desejo. Se alcançar das Ding implica necessariamente numa ruptura, numa

transgressão, numa aniquilação, fato insuportável ao sujeito, então é tão necessário manter-se

distante dela. Para isso servem as leis. As leis evitam o encontro com o objeto absoluto na

medida em que tornam proibido aquilo que na verdade é impossível. As leis estão sob

dominância do princípio do prazer, deixando o sujeito afastado do objeto de seu desejo, mas,

ao mesmo tempo, não deixam de afirmar a existência desse objeto, mantendo, assim, vivo, o

desejo e a transgressão que ele implica. Lei e desejo selam deste modo uma cumplicidade

erradicável.

Vemos, portanto, que o lugar em que se situa das Ding é insuportável para o sujeito.

Retomando a construção freudiana de 1895, o objeto da satisfação não só ficou para sempre

perdido como também em sua mais rápida e primeira tentativa de ser alcançado foi

acompanhado por um sentimento de desprazer na alucinação. A decepção da alucinação

sustenta o lugar alheio e estranho ao sujeito onde se localiza a Coisa (MAURANO, 1994, p.

126), sendo necessário defender-se dele de alguma maneira. Em termos lacanianos, das Ding

está situada num campo real onde figura o horror do desejo puro.

Esse campo de horror, do desejo puro ligado ao real da Coisa, é o acento posto por

Lacan neste seu seminário sobre a ética da psicanálise. Nisso vemos a importância da ética

kantiana para a ética da psicanálise: ela apresenta o campo impossível em que figura das

Gute e das Ding, muito mais do que oferecer um suposto desenlace derradeiro ao campo da

moral. Isto significa dizer que a importância da filosofia moral de Kant serve à psicanálise

justamente por seu negativo. Negativo esse que, de acordo com Lacan, pode ser mais

claramente demonstrado a partir da obra de Marquês de Sade. Vejamos.

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Os valores morais prezados tanto pelos filósofos quanto pelos religiosos são o alvo da

crítica provocante de Sade em sua obra de título irônico A Filosofia na Alcova. Pondo abaixo

a dignidade da virtude, Sade, através de seu personagem Dolmancé, propõe uma doutrina

baseada no prazer e no direito ao gozo do corpo. A obra ocupa-se, principalmente, em

derrubar, vez por vez, os valores virtuosos e substituí-los pelo seu avesso. Desse modo, no

lugar da verdade, da fidelidade e da castidade, por exemplo, Sade promove a mentira, a

traição e a perversão, através de um insistente exercício racional. Sua proposta provocante de

promover a perversão no lugar da moralidade, ou seja, de transgredir com a moralidade

vigente, Lacan, entretanto, observa que não se realiza completamente. Isso porque a aparente

oposição entre a filosofia kantiana (aquele que preza pela moral) e a doutrina sadeana (aquela

que preza por uma espécie de antimoral) é esfumaçada a partir do momento em que se

verifica que tanto uma quanto a outra defendem o amor à lei e sua exigência de uma vontade

asséptica, livre de qualquer interesse pessoal.

Sade, a partir do momento em que utiliza o exercício racional para legislar sua

doutrina, parte do mesmo pressuposto kantiano de que a razão pura é detentora dos costumes

e que sua validade requer um afastamento das paixões pessoais, dos sentimentos provenientes

do “coração”. “O coração engana porque ele não é senão expressão dos falsos cálculos do

espírito; (...) sempre falsas definições nos confundem quando queremos raciocinar; não sei o

que é o coração, só chamo assim às fraquezas do espírito” (SADE, coleção círculo do livro,

sem data, p.209). Deste modo, como observa Lacan, Sade utiliza os mesmo critérios

kantianos para dar forma a sua antimoral. Ambos formulam uma ética radical onde figura

muito mais a pureza da lei em sua expressão imperativa e categórica, do que seu conteúdo

moral ou perverso.

Um outro aspecto que confere a aproximação lacaniana entre Kant e Sade diz respeito

a uma característica muito singular referente à lei moral. Ainda que esta lei deva estar

essencialmente isolada de afetos pessoais, há, entretanto, um sentimento válido que pode

acompanhá-la, a dor. A dor é conseqüência da própria lei moral, produzida por ela a partir do

momento em que exige a ultrapassagem absoluta das inclinações particulares. Sade também

compartilha desta idéia, na medida em que faz do corpo do outro um objeto de desejo. Nas

palavras de Lacan,

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“Kant tem a mesma opinião de Sade. Pois, para atingir

absolutamente das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o

que Sade nos mostra no horizonte? Essencialmente a dor. A dor de

outrem e, igualmente, a dor própria do sujeito, pois são, no caso,

apenas uma só e mesma coisa” (LACAN 1997 [1959-60], p.102).

O paralelismo entre Kant e Sade, porém, traz muito mais do que uma compatibilidade

formal. Aliás, de acordo com Vladimir Safatle (2005, p.160), Theodor Adorno já havia

afirmado, mais de uma década antes do seminário de Lacan, a obediência cega dos

personagens sadeanos a uma Lei moral de estrutura idêntica ao imperativo categórico. Dois

anos depois de seu seminário sobre a ética, em 1962, Lacan, publica seu escrito Kant com

Sade, onde afirma que A Filosofia na Alcova fornece a verdade da Crítica da Razão Prática.

Que verdade é essa?

De acordo com Zizek (1991[1988], p.161-162) a tese de Lacan de 1962 consiste na

afirmação de que a forma pura da lei moral kantiana traz, nela mesma, o gozo. O imperativo

categórico kantiano propõe uma vontade livre de qualquer tendência pessoal, de qualquer

gozo próprio. Lacan, entretanto, a partir de Sade, mostra que essa exigência de agir conforme

a forma pura da lei já é, nela mesma, um modo de gozar. O que Lacan fez foi denunciar o

gozo aonde menos se concebia. “O que há de obsceno nisso? Poderíamos dizer que o obsceno

é precisamente o fato de gozar na própria forma, no que deveria ser apenas a forma neutra,

livre de qualquer gozo” (ZIZEK, 1991[1988], p.162). Sade fornece, pois, a verdade de Kant

porque sua doutrina legisla explicitamente sobre o gozo. Aliás, podemos ainda continuar o

raciocínio e afirmar que, ainda que se oponha radicalmente, Sade goza do mesmo modo de

Kant, através da submissão a um imperativo categórico e não de uma suposta escolha

perversa. Em resumo, Kant e Sade ocupam lados opostos de uma mesma moeda.

O gozo é tema também explorado por Lacan em seu seminário sobre a ética. Juntar

gozo e ética não é sem justificativa, e ela já está em Freud a partir do funcionamento do

supereu. Antes, porém, de adentrarmos nesse assunto, retomemos brevemente a tese de

Lacan, à guisa de um resumo e uma certa organização do que foi exposto até agora.

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A ética da psicanálise está referenciada ao real e não a um ideal. O ideal, modelo

perfeito que orienta a conduta, se situa num horizonte longínquo, tão inalcançável e

impossível que só mesmo nomeando-o como um Bem Supremo, ontológico e divino, para

suportá-lo. Da ética aristotélica, Lacan retira a relação entre o Bem e os bens, onde o Bem

supremo está na origem não só da conduta de cada indivíduo, mas da construção da realidade

social e da regulação de todo bem a consumar. Assim também está das Ding, Bem supremo

do sujeito, ponto de origem do funcionamento psíquico, da realidade externa e da relação

entre os homens. A diferença, porém, entre a ética aristotélica e a psicanalítica diz respeito à

categoria deste bem supremo. Ideal para Aristóteles, real para Lacan. A diferença é tênue,

mas suas conseqüências são monumentais. Enquanto o ideal exige sua realização, engessando

uma única perspectiva como possível e válida, o real apresenta a impossibilidade da

realização desse ideal, o que promove conseqüentemente a abertura de outras novas e

diversas possibilidades. Este é o ponto, inclusive, em que Lacan aproxima a ética da

psicanálise à sublimação, conforme veremos mais adiante.

Essa dimensão real de das Ding estava longe da ética aristotélica, mas próxima da

ética kantiana, apresentada por volta de dois mil anos depois da Aristóteles. À época da Kant,

o mundo era outro, em função do avanço e expansão da matemática pela ciência moderna. A

idéia do Bem supremo foi derrubada e em seu lugar instala-se a lei. Longe de ser apenas uma

substituição, a Lei instaura uma ruptura no campo da ética entre o bem estar e a virtude, quer

dizer, entre o prazer e a ação moral. O objeto da ação moral nada traz de agradável ou

desagradável, ele está além da sensibilidade empírica. Deste modo, Lacan aproxima o objeto

da lei moral kantiana de das Ding, objeto do desejo. Ambos figuram num nível além do

princípio do prazer.

Em Kant, permanece a categoria ideal de das Gute, bem supremo que deve ser

perseguido sob o comando imperativo e categórico da Lei. No entanto, o limite extremo em

que repousa esse objeto torna inteligível a noção de real defendida por Lacan em sua tese

sobre a ética da psicanálise.

Se em Aristóteles a ação ética acompanhava a sensação de prazer, em Kant a virtude

não só está alheia a qualquer sensação agradável de bem-estar como também compreende

uma certa dor. Lacan, a partir da noção de das Ding reconhece que, nem prazer, nem dor,

aquilo que acompanha este campo real é o gozo. Através da obra de Marquês de Sade, Lacan

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demonstrou que independente do que se tome por ideal, seja a virtude moral, seja a conduta

perversa, resta nessa atividade um modo de gozar.

Prosseguiremos agora nesta direção, seguindo os desmembramentos que o campo real

de das Ding descortina. Nesta continuidade, nos deparamos com o gozo e o funcionamento

do supereu, reencontrando a tese freudiana apresentada em “O Mal-Estar na Civilização”

através do mandamento religioso. O campo do gozo circunscreve o horror do desejo,

mantendo o sujeito distante da Coisa, seu objeto privilegiado. Nesse campo, figura a pulsão

de morte e seu paradoxo que inclui destruição e construção ao mesmo tempo. A ética da

psicanálise surge como efeito desse campo, encontrando no desejo seu operador. Vejamos,

portanto, como isso se desenrola.

O paradoxo do gozo

De acordo com Miller (1991a [1989]), podemos dizer que a noção de gozo é a

solução lacaniana para um problema freudiano. Esse problema diz respeito à controversa

dualidade presente na teoria das pulsões. Para Freud, a dualidade pulsional era um dado

clínico que não poderia ser suprimido pela elaboração teórica, ainda que a elaboração teórica

indicasse essa supressão num passo dedutivo. Isso deu origem a uma problemática que

resultou na elaboração de três tempos da teoria pulsional, onde ora o dualismo aparece sólido,

ora vacilante.

Na primeira parte do texto “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” (1914), época em

que a antítese pulsional sofrera um grande abalo em função das novidades introduzidas pelo

narcisismo, vemos como Freud defende a idéia de um dualismo pulsional, mesmo não lhe

restando nada mais do que um argumento poético – a distinção entre a fome e o amor

eternizada nos versos de Schiller –, pois nem na biologia encontrara algum sustento. Anos

depois, em “Além do Princípio do Prazer” (1920), diante de um novo abalo na dualidade

pulsional, agora em função da compulsão à repetição, novamente vemos Freud procurando

justificativas para mantê-lo.

A fragilidade teórica do dualismo pulsional deu margem a algumas interpretações e

soluções. De acordo com o próprio Freud, Jung, para trazer um exemplo, optou pela via da

indiferenciação da energia psíquica, fazendo da libido uma energia única que se desloca entre

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o eu e os objetos (ver FREUD, 1914a, p.85-88). De acordo com Miller (1991a [1989], p.123),

alguns psicanalistas, alunos de Freud, entenderam a pulsão de morte enquanto sinônimo de

agressividade e tentaram resolvê-la a partir do modelo da libido, ou seja, introduzi-la no

modelo libidinal. Podemos dizer que ambas tentativas visaram desfazer o dualismo numa

unificação que Freud tanto insistiu em combater.

Talvez possamos afirmar que a dificuldade para sustentar o dualismo pulsional é

decorrente da própria complexidade da descoberta freudiana, pois o funcionamento pulsional

abriga muito mais um paradoxo – que une os opostos sexualidade e interesse, vida e morte –

do que uma dualidade, ou um suposto monismo. Esse paradoxo foi entrevisto pelo próprio

Freud em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924) quando verificou a possibilidade

de obtenção de prazer num acúmulo, e não escoamento, da energia psíquica.

A novidade introduzida por Lacan, de acordo com Miller, foi justamente ter unificado

pulsão de morte e libido sem fazer disso uma indiferenciação da energia psíquica, mas

acatando seu caráter paradoxal. Essa unificação estranha, que seria, para Miller, o quarto

tempo da teoria da pulsão, Lacan chamou de gozo (MILLER, 1991a [1989], p.124). O gozo,

portanto, une pulsão de morte e libido numa força paradoxal que promove, por isso mesmo,

uma divisão no sujeito. Quando goza, o sujeito não só obtém uma fruição, mas também, e

junto com ela, uma destruição. Isso faz do gozo uma satisfação estranha, tal como no

masoquismo descrito por Freud.

Satisfação estranha, não reconhecida como tal, ou seja, não reconhecida como prazer,

nem como dor. O gozo não está sob domínio do princípio do prazer-desprazer. Não que esteja

sem nenhuma relação com esse princípio, pois sua incidência se faz justamente em seus

pontos de falha, assim como no horizonte de seu excesso. É neste sentido que podemos

afirmar que o gozo está ligado ao campo da Coisa, num plano inexcedível diante do qual o

sujeito recua.

Ao mesmo tempo, o gozo funda uma espécie de campo gravitacional em torno da

Coisa, onde circulam os significantes em cadeia. Sendo a Coisa causa do desejo e o desejo

mobilizador da cadeia, o gozo é aquilo que acompanha o desejo em sua insistência de realizar

o impossível, promovendo uma satisfação nessa atividade irrealizável. Satisfação, portanto,

que não poderia ser senão parcial.

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Esses dois aspectos do gozo são aquilo que constitui seu paradoxo, tema a que Lacan

dedica um segmento em seu seminário sobre a ética. Este paradoxo, Rinaldi nos simplifica:

“de um lado, ele [o gozo] aparece como um núcleo

incandescente, ponto psiquicamente irrespirável, em relação ao qual

o homem recua. (...) Por outro lado, o gozo possível, ao que se tem

acesso por uma transgressão à Lei, é um gozo parcial, assim

determinado pela própria existência da Lei” (RINALDI, 1996, p.91).

A relação entre o gozo e a Lei, na medida de uma transgressão, reedita de certo modo

a relação entre Lei e desejo. Ambos escrevem o paradoxo da interdição de uma

impossibilidade. Esse paradoxo é ponto central para o nosso tema, pois, ao mesmo tempo em

que responde a pergunta ética sobre a felicidade, abre o campo para a orientação ética da

psicanálise. Diante disso, seguiremos agora a via desse paradoxo, cujo balizamento está na

origem e veiculação da lei. Nesta direção, seguimos a indicação lacaniana de que o mito

freudiano sobre a origem da civilização – descrito em “Totem e Tabu” (FREUD, 1913) – tem

muito a nos ensinar.

Em “Totem e Tabu”, diante das lacunas encontradas nos estudos científicos sobre as

organizações humanas mais primitivas, Freud lança mão de uma narrativa fantástica para dar

conta da origem das organizações sociais, tanto em seu aspecto institucional quanto cultural.

Sabemos que para Freud a constituição psíquica derrama seu funcionamento nas

organizações sociais, de modo que fazer uma incursão sobre a antropologia social tem como

efeito não apenas uma hipótese sobre a origem da civilização, mas antes, uma expansão nos

conceitos psicanalíticos.

No mito freudiano (FREUD, 1913, p.144-149), havia na sociedade mais primitiva um

pai violento e ciumento que guardava para si todas as mulheres e expulsava de sua horda seus

filhos na medida em que cresciam. Por terem seu acesso às mulheres interditado pelo pai, os

filhos nutriam por ele um ódio desmedido. Certa vez, os filhos expulsos decidiram retornar

juntos, matar o pai e depois devorá-lo, pondo um fim à caprichosa horda patriarcal. Após

terem cometido o ato, os filhos, porém, foram tomados por um grande remorso, conseqüência

da ambivalência presente nas relações entre pais e filhos. Satisfeito o ódio, toda afeição e

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amor que nutriam pelo pai tomaram relevo, dando origem a um sentimento de culpa em todo

o grupo e tornando o pai morto muito mais forte do que fora enquanto vivo. Assim, os filhos

foram levados a anular o ato cometido erigindo um totem – o substituo do pai – e proibindo a

sua morte. Além disso, renunciaram de suas reivindicações pelas mulheres, agora libertadas,

criando assim os dois tabus fundamentais do totemismo – o parricídio e o incesto.

O parricídio é um ato divisor de águas para o grupo de irmãos. Antes, o gozo pleno

estava inacessível a eles, interditado pela presença real do pai. Depois, em função do

sentimento de culpa, o gozo aparece profundamente proibido por uma lei totêmica. O

assassinato do pai, o que supostamente promoveria a liberação do gozo, não somente não

abre a via para o gozo, como também reforça a sua interdição (LACAN, 1997 [1959-60], p.

216). Esta narrativa freudiana nos permite claramente verificar, portanto, como a lei interdita

o gozo (o tabu do parricídio) que esteve desde sempre interditado (pela presença real do pai).

É este o paradoxo que faz do acesso ao gozo uma via impossível (desde sempre interditado) e

transgressora (seria preciso violar a lei do totem para alcançá-lo), ao mesmo tempo.

Substituindo o gozo pela felicidade, objetivo mais alto tanto dos sujeitos quanto da

civilização, podemos dizer, junto com Lacan (1997 [1959-60], p.235), que o paradoxo que

acabamos de expor está no cerne da questão ética, apresentando-se na problemática da

felicidade. Este tema foi discutido por Freud em “O Mal-Estar da Civilização” (1930[1929])

onde, através da análise do mandamento “amarás ao próximo como a ti mesmo”, entreviu, de

acordo com Lacan, o campo real em que paira das Ding, o campo do gozo.

Em “O Mal-Estar da Civilização”, Freud está ocupado com o objetivo mais valioso da

ética, a felicidade, e afirma logo de saída sua certeza de que este bem supremo à civilização e

a seus indivíduos é realidade impossível, de acordo com o funcionamento malogrado do

programa do princípio do prazer. Impossível em seu sentido absoluto, mas possível,

parcialmente, através da fruição de alguns ‘prazeres baratos’. Mais adiante, sendo levado à

complexidade de sua investigação, Freud situa a felicidade como constituinte do problema da

economia da libido (FREUD, 1930[1929], p.33), onde analisa, no fio da objetividade

racional, a agressividade imanente ao homem como obstáculo à harmonia social. No

momento seguinte, essa sua análise encontra formulação propriamente psicanalítica através

do conceito do supereu e de seu funcionamento. Este último ponto, já abordamos no capítulo

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primeiro. O que veremos agora é a relação entre a felicidade e o problema da economia da

libido, tal como colocado por Freud a partir da análise do mandamento. Neste ponto,

encontraremos novamente o paradoxo do gozo formulado por Lacan, arrematando, assim, a

problemática ética da felicidade.

Retomando algumas de suas colocações em “Totem e Tabu”, Freud continua em 1930

a tecer seu mito sobre a origem da civilização. Com o assassinato do pai totalitário, os filhos

constataram que uma reunião pode ser mais forte do que a ação de um indivíduo isolado.

Deste modo, após a criação do totem, descobriram a vida comunitária, onde o trabalho e o

amor foram alicerces fundamentais. Reeditando a dualidade pulsional da constituição do

sujeito, a fome e o amor, na civilização, Freud afirma que a vida comunitária teve um

fundamento duplo: “a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder

do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher,

em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada – seu filho” (FREUD,

1930[1929], p.55).

Em seguida, vemos o amor tomar proporções cada vez maiores na constituição da

civilização – assim como a libido em relação ao interesse na constituição do sujeito. Isso

porque Freud destaca que o amor sexual (genital), por ter proporcionado ao homem as mais

intensas experiências de satisfação – o gozo sexual –, encarnando o protótipo da felicidade,

levou o homem a buscar permanentemente as relações sexuais. Conseqüentemente, o incitou

a formar famílias, maneira de garantir a freqüência dessas relações.

Essa demanda de gozo sexual gerou, no entanto, efeitos nocivos, tanto para o homem

quanto para a civilização. A busca pelo amor genital submete a felicidade a um objeto

externo, o objeto de amor. Nessa relação de dependência, o sujeito fica à mercê de outro,

onde a rejeição e a traição tornam-se fontes extremas de sofrimento e infelicidade. De outro

modo, o amor genital acaba esbarrando nos objetivos da civilização a partir do momento em

que exige exclusividade e fidelidade entre dois indivíduos, ou entre uma família, impedindo,

dessa maneira, a expansão do vínculo social em laços cada vez maiores, conforme exige a

civilização em função da necessidade de sobrevivência humana. Sendo o trabalho a expressão

dessa necessidade de sobrevivência humana, vemos como o amor impede seu

desenvolvimento. E a recíproca também é verdadeira. Sendo o amor expressão da felicidade

possível, o trabalho, com sua exigência exógena, impede seu livre curso.

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Neste ponto, Freud encontra um desacordo entre os interesses da civilização e a

urgência do amor.

“Por um lado, o amor se coloca em oposição aos

interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com

restrições substanciais. Essa incompatibilidade entre amor e

civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente

reconhecível” (FREUD, 1930[1929], p. 58).

Vemos que Freud chega mais uma vez, e de outra maneira, a idéia de que o homem é

constituído por duas espécies de forças antagônicas, no caso, a sexualidade e as exigências da

civilização. A partir do que foi colocado por Lacan, podemos verificar que neste aparente

antagonismo o que se desenrola é também, e mais uma vez, o paradoxo do gozo, pois para

que o gozo sexual seja alcançado – a sexualidade –, seguindo a lógica do mito da horda

primeva, é preciso que os irmãos se organizem em um grupo – a civilização – , mas esta, por

sua vez, impede a satisfação sexual a partir do momento em que faz dela um tabu, proibindo

o que era impossível.

Ainda que Freud não tenha resolvido o antagonismo nos termos de um paradoxo,

vemos que ele suspeita disso. “Às vezes somos levados a pensar que não se trata apenas da

pressão da civilização, mas de algo da natureza da própria função1 que nos nega satisfação

completa e nos incita a outros caminhos” (FREUD, 1930[1929], p.61).

Dentre esses outros caminhos, Freud destaca a sublimação como uma maneira de

buscar a felicidade na via do amor. O amor sublimado está desviado de seu objetivo sexual,

tem sua finalidade inibida e é expresso pelo amor universal pela humanidade e pelo mundo.

Este amor excelso, Freud (1930[1929], p.57) afirma representar o ponto mais alto que o

homem pode alcançar, de acordo com determinado ponto de vista ético, e cita o mandamento

“amarás a teu próximo como a ti mesmo” como a expressão desse ponto inexcedível, onde

desconfia estar a explicação da incompatibilidade entre amor e civilização. É próprio do

método freudiano, e psicanalítico, buscar a raiz do problema em sua expressão mais nobre e

insuspeitada.

1 Grifo nosso.

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Diante desse mandamento, Freud recua, questionando-o inteiramente e afirmando seu

cumprimento como nada razoável. Primeiro porque, ao ampliar o oferecimento do amor a

todos, o mandamento ignora a exigência de exclusividade própria do amor. Segundo porque o

amor só pode ser direcionado àqueles em que a mim se assemelham, ou ao meu ideal, aquilo

que eu gostaria de ser, de modo que eu possa assim me amar no próximo. Isso torna inviável

amar os inimigos, aqueles diferentes de mim e que muito provavelmente querem o meu mal.

Os inimigos, Freud declara, são merecedores de meu ódio e não de meu amor. Terceiro

porque, e isto resume tudo, há uma maldade constituinte do homem que o leva justamente a

fazer aquilo que o mandamento condena, a agredir o próximo.

“A existência da inclinação para a agressão, que

podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está

presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos

relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um

elevado dispêndio de energia” (FREUD, 1930[1929], p.68).

Este elevado dispêndio de energia são os esforços que a civilização cria para conter a

agressividade, estando entre eles, o mandamento.

Lacan encontra nessa crítica freudiana mais uma via de acesso a sua tese sobre o

gozo. Ele indica que, no mandamento, “é do peso do amor que se trata” (LACAN, 2005

[1960], p.37) e o amor, por sua vez, evoca a temática do narcisismo. Amar é transferir para os

objetos externos a libido que investe o eu, numa balança econômica em que ora um pesa mais

do que o outro, devido a seu investimento. Isso qualifica as escolhas amorosas como

narcísicas. “Nada de surpreendente no fato de ser nada mais que eu mesmo que amo em meu

semelhante” (LACAN, 2005 [1960], p.39), fazendo o amor não passar de um amor-próprio, e

de suas escolhas, sempre aquelas em que o eu se veja refletido como num espelho.

A imagem do amor desconhece, contudo, seu caráter enganoso e ilusório. “Nas

identificações com suas formas imaginárias, o homem julga reconhecer o princípio de sua

unidade sob a aparência de um domínio de si mesmo da qual ele é o tolo necessário, seja ou

não ela ilusória, pois essa imagem de si mesmo não o contém em nada” (LACAN, 2005

[1960], p.40). Essa imagem de si não o contém naquilo que de real ela consta, o outro, pois

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longe de ter se constituído a partir de uma suposta essência própria, de uma individualidade

genuína, essa imagem de si – objeto primordial do investimento da libido – encontra em sua

origem um outro. Não o eu mesmo, mas o outro. Esta alteridade primordial fura o narcisismo

e faz dele uma aparência, uma imagem, uma ilusão.

Dessa forma, o narcisismo compõe um campo que ao invés de se fechar inteiramente

numa identidade particular, abre-se numa alteridade radical, quer dizer, impossível de ser

assimilada completamente. E é justamente nessa fenda narcísica que incide o mandamento. A

partir dessa fenda que devemos amar ao próximo como a nós mesmos, pois é neste lugar em

que está localizado o outro, o próximo.

Assim, vemos como o campo do outro, do próximo, está contido lá mesmo onde o eu,

o mim mesmo, se pensa homogêneo. Do mesmo modo, considerando o eu sinônimo de amor

e o outro, de ódio, podemos ver, com a ambivalência freudiana, o ódio surgir da esfera do

amor. De acordo com Lacan, foi neste ponto em que Freud parou na análise do mandamento.

“Freud tem razão de parar nesse ponto, perturbado com sua invocação, porque a experiência

mostra (...) a ambivalência pela qual o ódio segue como sombra todo o amor por esse

próximo que é, de nós, também o que é mais estrangeiro” (LACAN, 2005 [1960], p.51).

“Amar ao próximo como a ti mesmo” significa, portanto, muito mais do que amar

meus semelhantes ou dessemelhantes, meus vizinhos desconhecidos ou meus inimigos.

Significa ultrapassar meu narcisismo e encontrar aquilo que em mim mesmo me questiona, a

alteridade absoluta que me constitui e que me faz estrangeiro em minha própria casa. Ora,

não é este o ponto ao qual a obediência da lei kantiana nos levou?

Aquilo que o mandamento exige, exigência pesada de um dever, é um amor que

ultrapasse meu narcisismo, minhas escolhas pessoais e meus sentimentos. Logo, o

mandamento é categórico e incondicional. Além disso, o amor que ele exige é universal, quer

dizer, deve ser dirigido a todos e qualquer um, seja homem, mulher, animal e tudo mais que

for animado ou mesmo inanimado. É um amor absoluto, que vai além dele mesmo. Desse

modo, vemos o mandamento abrir no horizonte o campo de alcance impossível descrito

formalmente por Kant, assinalado por Lacan no livro sete como o campo do gozo, campo de

das Ding.

O mandamento, assim como a Lei prática, força o campo de acesso à Coisa, campo do

gozo, diante do qual Freud recuou. Lacan assinala, assim, que o recuo de Freud se refere ao

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gozo, antevisto como um mal, o mal ao próximo que a agressividade promove, mas que, na

verdade, está localizado em mim mesmo, no ponto cego de meu próprio narcisismo. Segue

um parágrafo de onde podemos recolher essas considerações lacanianas:

“Podemo-nos fundamentar nisto, que cada vez que Freud

se detém, como que horrorizado, diante da conseqüência do

mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa

maldade profunda que habita no próximo. Mas, daí, ele habita

também em mim. E o que me é mais próximo do que esse âmago em

mim mesmo que é o de meu gozo, do que eu não ouso me

aproximar? Pois assim que me aproximo – é esse o sentido do Mal-

estar na civilização – surge essa insondável agressividade diante da

qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo

da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impede de transpor uma

certa fronteira no limite da Coisa” (LACAN, 1997 [1959-60], p.

227-228).

Se o mandamento, na qualidade de Lei, força o acesso ao gozo, ele, igualmente,

exerce a função de pôr um obstáculo nessa direção, reproduzindo o paradoxo que lei e gozo

representam. O mandamento exige que o gozo seja extirpado – o fim da alteridade e da

agressividade que a acompanha – através de um amor universal. Ao mesmo tempo, devido a

sua incidência categórica e incondicional, o mandamento indica o caminho ao gozo,

afirmando-o na medida em que o interdita.

Retomando brevemente o percurso que vimos traçando até agora, podemos verificar

que o paradoxo do gozo é o argumento chave para a tese lacaniana sobre a ética da

psicanálise. No seminário que estamos tratando, Lacan situa o gozo ao lado de das Ding,

onde está também situado o desejo, o desejo puro. Nos anos seguintes, esses conceitos serão

reformulados e redefinidos por Lacan. Das Ding, por exemplo, será descartada e substituída

pelo objeto a, enquanto causa do desejo, assim como o gozo deixará de ocupar apenas esse

lugar limite onde figura o desejo puro. Essas alterações não abalam, contudo, a tese lacaniana

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defendida neste seminário, pois na medida em que esses conceitos são trabalhados com o

intuito de delimitar o real, a noção fundamental para a ética da psicanálise se mantém.

O real, ponto radicalmente estranho e impossível de simbolizar, nos foi mostrado em

todos os tópicos perpassados por Lacan sobre o tema da ética. Em Aristóteles com a

formulação de das Ding enquanto Bem supremo do sujeito; em Kant através do extremismo

da Lei prática; em Kant com Sade através do gozo; em Freud através do funcionamento

psíquico (conforme analisamos no capítulo anterior) e da constituição da civilização,

representado na figura do supereu (também descrito no capítulo anterior). Ao fim dessa

análise, podemos dizer que o supereu é o conceito propriamente psicanalítico que encarna,

representa e formula metapsicologicamente, o paradoxo do gozo com a lei. Ao mesmo tempo

em que interdita a realização do desejo – o gozo –, o supereu deve sua existência a ele. Sem

nos deter novamente nos paradoxos do supereu, podemos concluir brevemente, numa

tentativa metafórica, que este paradoxo faz do gozo e da lei irmãos siameses de

personalidades opostas, de modo que a realização de um implica necessariamente na morte

dos dois, ou seja, essa realização é estruturalmente impossível. É esse o real impossível de

que a psicanálise trata.

A ética da psicanálise, ainda que encontre no funcionamento do supereu uma peça-

chave para sua construção, estrutura-se, entretanto, a partir do real e não do ideal

superegóico, relembrando a escolha e distinção de Lacan entre os termos ‘ética’ e ‘moral’. A

diferença entre o real e o ideal é bem sutil. É menos uma mudança na estrutura dos conceitos,

ou na definição dos conceitos, do que uma mudança de perspectiva daquele que vê. O ideal e

o real são uma coisa só, pontos limites. A diferença é que esse ponto pode ser objetivo ideal

para uns e impossível real para outros. Desse modo, nos aproximamos da clínica

psicanalítica. Antes de nos debruçarmos sobre a clínica e sua técnica, é preciso, todavia,

passar ainda por alguns pontos fundamentais.

No seminário sobre a ética, Lacan descreve a experiência descoberta por Freud a

partir do inconsciente como uma experiência que tem no horizonte um ponto limite, ou

melhor, um “ponto de ignorância limite, senão absoluta” (LACAN, 1997 [1959-60], p.260),

onde o sujeito não se sabe, apesar de aí mesmo subsistir. Nesse limite absoluto, real em sua

ignorância, estão situados das Ding e o gozo pleno. Estes mantêm com o princípio do prazer

e seus associados, cadeia significante e lei, uma relação paradoxal. Ainda que localizados no

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âmago desses mecanismos, estão deles excluídos, a um só tempo. O resultado dessa relação

paradoxal é uma estrutura que contém em seu seio um corte, de onde emerge a veemência do

desejo. “Ocorre que é na própria estrutura que encontramos uma certa dificuldade, que não é

nada menos do que a função do desejo” (LACAN, 1997 [1959-60], p.255). O desejo,

portanto, é aquilo que se faz sentir da relação disjunta entre a Coisa e a cadeia significante.

Por esta razão, está associado à transgressão, uma vez que para atingir a Coisa é preciso ir

além da cadeia significante, ou, dito de outro modo, para atingir o gozo pleno é preciso

transgredir a lei (lembrando que Coisa e gozo ocupam o mesmo lugar, assim como cadeia

significante e lei). Em função do corte, a Coisa e o gozo pleno são, entretanto, inalcançáveis.

Para Lacan, esse corte instaurado na estrutura nada mais é do que a própria presença da

linguagem. O aparelho psíquico é dominado pela organização significante que na medida em

que multiplica seus efeitos de sentido, deixa de fora, contornando, a Coisa.

A sublimação

A incidência da linguagem no ser humano o distancia de uma suposta natureza de

suas necessidades. As necessidades, ao invés de serem dadas de maneira instintiva, devem ser

situadas, e assim modeladas, a partir do significante. Esse é o campo pulsional, que faz do

gozo a satisfação da pulsão e não simplesmente a saciação de uma necessidade natural,

aquela que estaria dada de modo programado ao homem.

Nesse aspecto, Lacan evoca a pulsão de morte nos dois sentidos que ela apresenta:

vontade de destruição e vontade de recomeçar, “na medida em que tudo pode ser posto em

causa a partir da função significante” (LACAN, 1997 [1959-60], p.259). Isto significa que,

sendo de significante que o homem é feito, e não de uma natureza que seria realizada

instintivamente, tudo pode ser colocado em questão, pois o significante não traz uma

realidade constatável, mas um real enigmático, o campo da Coisa.

É justamente nesta “vontade de recomeçar” que Lacan situa a sublimação enquanto

vicissitude da pulsão de morte. A sublimação implica numa produção, ou melhor, numa

criação, a partir do nada, ex nihilo, conforme colocado por Lacan, onde ex nihilo remete ao

campo de das Ding. Isto significa que diante deste campo intransponível da Coisa, do ex

nihilo que ela importa, resta a possibilidade de criação, ou seja, a sublimação. Curiosamente,

ao mesmo tempo em que a sublimação é uma vicissitude da pulsão de morte, Lacan apresenta

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a própria pulsão de morte como uma sublimação de Freud, seu criador. Freud lançou mão da

pulsão de morte justamente quando se deparou com o limite de sua investigação, o além do

princípio do prazer.

A noção de sublimação é central para o tema da ética, em seu sentido mais amplo, de

acordo com Lacan – que justificadamente, portanto, dedica uma parte de seu seminário sobre

a ética a esse assunto. Enquanto os sistemas éticos insistem em tomar das Ding por um

significante, se afastando, dessa forma, radicalmente dela, a sublimação permite a

representação de das Ding por um objeto: “Estabeleço isto – um objeto pode preencher essa

função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas representá-la na medida em

que esse objeto é criado” (LACAN, 1997 [1959-60], p.151). Representar a Coisa não

significa apreendê-la e costurar o vazio que ela implica, ao contrário, a sublimação, na

medida em que permite a modelagem dos significantes à imagem da Coisa, numa verve

criativa, representa, ao mesmo tempo, o vazio que ela comporta, da mesma maneira que o

oleiro quando produz um vaso, produz junto com ele um vazio central.

Essa criação a partir do nada que a sublimação promove, assim como a plasticidade

do significante, nos permite extrair duas coisas para o campo da ética. Uma diz respeito ao

determinismo das ações humanas. O campo ex nihilo que das Ding apresenta fixa na origem

da conduta humana um vazio a partir do qual o próprio homem deverá construir sua história.

Isso abole não só a hipótese de que a vontade humana seria um dado instintivo e natural,

como também a suposição de que seria motivada por alguma substância pura fora de nós,

fosse um Bem supremo, a razão pura ou mesmo Deus. E ainda que esta afirmação parecesse

trágica, visto que faz ruir toda e qualquer esperança na possibilidade de alcançar o gozo

pleno, a sublimação, enquanto fonte inventiva do homem, abre justamente uma alternativa de

satisfação possível.

Por ser a criação uma função artística, o campo da ética, tal como formulado por

Lacan, estende-se, assim, numa estética. Não iremos, entretanto, adiante neste tema, nem nos

debruçaremos sobre o conceito de sublimação. O que nos importa disso é a relação que o

sujeito estabelece com esses objetos sublimados que vêm imaginariamente recobrir a Coisa.

Nesta relação, cuja fórmula Lacan denomina de fantasia, o que se apóia e se sustenta é o

desejo.

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O desejo é aquilo que, ainda que se deixe enganar pelos objetos sublimados, elevados

à categoria de das Ding, força o sujeito a ir além, a ultrapassar o campo imaginário da

fantasia, a transgredir a lei, para alcançar o campo da Coisa. Do mesmo modo, por ser o

campo de das Ding um vazio absoluto, um vazio de morte, o sujeito, ao mesmo tempo em

que segue adiante, recua deste campo, com a mesma intensidade. Neste movimento

paradoxal, Lacan afirma que a função do bem e do belo são aquelas que mais fortemente

detém o sujeito diante de seu desejo.

O desejo

O campo da ética diz respeito à ação. Essa ação comporta um juízo, uma medida que

a oriente, que a direcione. É uma ação calculada em função de seu objetivo. Esse objetivo é a

harmonia universal.

Para a filosofia de Aristóteles e Kant, a ação ética é mobilizada por uma vontade

consciente, integrada legitimamente a seu objeto. Essa vontade, por sua vez, não está dada

prontamente ao indivíduo, deve ser desenvolvida. Em Aristóteles, essa vontade é fruto de um

exercício de temperança e do hábito. Em Kant, ela é expressão direta da razão pura. Em

ambas filosofias, as paixões, inclinações pessoais e apetites não pertencem à virtude. A

universalidade do objetivo ético não permite, justificadamente, a presença da particularidade.

Para este campo da ética, a psicanálise freudiana trouxe algumas revelações. Uma, diz

respeito ao objetivo da ética. Antes de ser a harmonia universal, trata-se de uma experiência

de satisfação conseqüente da realização do princípio do prazer. Outra, incide sobre aquilo que

move essa ação. Antes de ser uma vontade consciente, trata-se de um desejo inconsciente.

Desejo fruto da primeira experiência de satisfação que busca reencontrar seu objeto desde

sempre perdido.

A partir dessas revelações freudianas, Lacan só poderia organizar e formular a

psicanálise como uma ética enquanto radicalmente diferente em relação à ética tradicional. A

ética da psicanálise está referenciada ao real da impossibilidade da realização do desejo, ao

invés de seguir a tradição filosófica referida a um encontro ideal da vontade com seu objeto.

Podemos dizer que a tradição filosófica está de acordo com o funcionamento

neurótico. Ambos edificam no horizonte um ideal, inacessível por estrutura, diante do qual se

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regulam e se ordenam, mas também padecem de culpa e incapacidade. Assim nos indica o

funcionamento do supereu. Denegando a impossibilidade da realização deste ideal, filósofos

neuróticos se esforçam para apagar a falta primordial que constitui o humano. “Pode-se dizer

que a questão neurótica nutre a filosofia mesma; que a filosofia, na busca do ser, é um

comentário ao objeto perdido, com a utopia de anular a perda” (MILLER, 1991b [1989], p.

83). Perda decorrente da própria incidência da linguagem, de acordo com Lacan. Perda

decorrente da inatingibilidade da Coisa que comanda o desejo, de acordo com Lacan em seu

seminário de 1959-60.

Vemos, então, que a ética da psicanálise circunscreve seu campo a partir do real e do

desejo, ao invés do ideal e da vontade. Já percorremos através de das Ding e do gozo a

incidência da impossibilidade do real. Resta-nos agora verificar o peso ético do desejo para a

psicanálise.

Se a incidência do real na referência da ação moral derruba a possibilidade da

felicidade, enquanto satisfação plena, a incidência do desejo introduz no campo ético – que se

pretende universal – a singularidade. Isso não é sem conseqüências. Com o objetivo de

verificar a função do desejo para a ética da psicanálise, seguiremos agora com algumas

pontuações sobre o desejo tal como Lacan estabelece no seminário de número sete.

Para tratar especificamente do desejo no campo da ética, Lacan nos apresenta a

tragédia Antígona. O que está em jogo é o desejo enquanto uma escolha inexorável que,

como toda escolha, implica em perdas e, devido a sua inabalável retidão, em morte. O acento

dado por Lacan é o peso de morte que o desejo implica. Vejamos, resumidamente, a trama de

Sófocles2.

Antígona e Ismene, filhas de Édipo, retornam a Tebas após a morte seu pai. Tebas

estava em guerra contra Argos, cidade vizinha a qual Polinices havia se aliado devido a sua

franca disputa com o irmão, Etéocles, pelo poder. Polinices e Etéocles eram também filhos de

Édipo. Numa batalha decisiva, os irmãos se matam reciprocamente. Com o trono vazio,

Creonte assume legitimamente o poder. Seu primeiro édito é punir Polinices, não dando a seu

cadáver nenhum abrigo, deixando-o apodrecer à vista de todos e servir de pasto para aves e

cães. Nenhum castigo mais sensato para um inimigo da Pátria.

2 O resumo a seguir foi retirado de Antígona de Sófocles, tradução de Millôr Fernandes, editora Paz e Terra.

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Antígona, indignada, insubordina-se à autoridade do rei. Era inconcebível deixar

abandonado o corpo de um irmão. Assim, desprezando os conselhos temerários de sua irmã,

no meio da noite, sem ser vista, conseguiu prestar homenagens a Polinices, fazendo libações

e jogando um pouquinho de terra sobre seus restos. Quando os guardas noticiam sobre o

desrespeito de sua ordem, Creonte manda retirar a terra sobre o cadáver e mantê-lo à

exposição ao sol. Isso fez com que Antígona retornasse no dia seguinte e novamente fizesse

homenagens ao irmão. Porém, dessa vez foi detida e conduzida ao rei.

Diante de Creonte, Antígona não se desculpa. Ao contrário, diz-lhe que a lei

caprichosa de um homem não poderia impedi-la de obedecer às leis não escritas dos

costumes e dos deuses, como dar sepultura a seus parentes e, resoluta, não faz nenhum apelo

de perdão ou compaixão. Furioso, Creonte ordena que ela seja emparedada viva.

Devido à intransigência de Creonte, Hémon, seu filho e noivo de Antígona, acusa o

pai de tirania e rompe com ele. A partir daí uma série de infortúnios abalam fortemente a

cidade de Tebas, conforme Tirésias, o cego vidente, havia previsto e alertado. Amedrontado,

Creonte decide dar ouvido a Tirésias e manda libertar Antígona. Porém, já era tarde. Quando

a desemparedaram, encontrara-na morta. Antígona havia se enforcado.

Para Lacan, “Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o

desejo” (LACAN, 1997 [1959-60], p.300). Que ponto de vista é esse? É a transgressão da lei,

a ultrapassagem de uma fronteira, de um limite. A perspectiva que enquadra o desejo é aquela

que o faz ser um impulso para a morte na medida em que se situa no corte instaurado entre

das Ding e a cadeia significante.

Em Antígona isso se passa através da Até. Até, palavra grega recolhida do texto de

Antígona por Lacan, significa o limite humano, “o limite que a vida humana não poderia

transpor por muito tempo. (...) Para além dessa Até, só se pode passar um tempo muito curto,

e é lá que Antígona quer ir” (LACAN, 1997 [1959-60], p.318). O desejo de Antígona a

empurra para além desse limite, violando Até.

O que Lacan nos apresenta é que essa ultrapassagem que o desejo implica não

significa um erro ou uma falta, não significa fazer uma besteira, mas, conforme já dissemos, é

um efeito do próprio corte instaurado pela linguagem. Para Antígona, não importa o que

Polinices fez de certo ou errado, de bom ou mal, pois sua determinação em enterrar o irmão

não segue as leis da cidade, de acordo com a qual Polinices é legitimamente considerado um

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inimigo. O que move Antígona também está além da defesa dos direitos sagrados dos mortos

e de sua família. “Antígona é levada por uma paixão” (LACAN, 1997 [1959-60], p.308).

Essa paixão, paradoxalmente, figura uma motivação impassível, ou seja, isenta de temor,

piedade ou qualquer sentimento que provocaria dúvida ou hesitação.

Podemos aproximar essa paixão de Antígona com a vontade do sujeito kantiano.

Ambas descrevem uma determinação asséptica, livre de sentimento e inflexível em sua

pureza. Enquanto o sujeito kantiano ainda resta detido na barreira do bem e do belo,

Antígona, entretanto, vai além e descortina o que está no fim da linha, a morte. É exatamente

isso o que faz dela uma heroína dentro dos moldes da tragédia e também, de acordo com

Lacan, é isso, o desejo de Antígona, que manifesta o corte instaurado pela linguagem.

“Essa pureza, essa separação do ser de todas as

características do drama histórico que ele [Polinices] atravessou, é

justamente esse o limite, o ex nihilo em torno do qual Antígona se

mantém. Nada mais é do que o corte que a própria presença da

linguagem instaura na vida do homem. Esse corte é manifesto a todo

instante pelo seguinte, a linguagem escande tudo o que ocorre no

movimento da vida” (LACAN, 1997 [1959-60], p.338).

Dizendo de outro modo, essa paixão humana que move Antígona apresenta a função

do desejo como tal, em sua insistência mortífera de ir além da cadeia significante para

encontrar das Ding, num movimento estruturalmente impossível próprio da linguagem. Dessa

maneira, o desejo de Antígona, asséptico, livre de qualquer particularidade, representa, para

Lacan, o desejo puro, equivalente ao desejo de morte. “Antígona leva até o limite a

efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal.

Esse desejo, ela o encarna” (LACAN, 1997 [1959-60], p.342).

Aquilo que a tragédia de Antígona mostra e traz para a ética da psicanálise, conforme

já indicamos, é a radicalidade do desejo, denunciando a falta absoluta sobre a qual está

suspenso. Essa falta absoluta é indicada pela própria morte, no que ela representa o vazio da

existência, a ausência de sentido, o ponto aonde o significante não consegue ir.

A estrutura do funcionamento psíquico, tal como a psicanálise de Freud e Lacan nos

revelou, é constituída por um corte, uma divisão entre a cadeia significante e o objeto perdido

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desde sempre, circunscrito como das Ding. Desse corte emerge o desejo e seu impulso em

costurar essa divisão. A origem e o objetivo do desejo dão a seu funcionamento, portanto,

uma estrutura paradoxal.

O paradoxo que o desejo mobiliza afirma ainda mais a falta que ele representa. Pois

se sua origem está no hiato da estrutura, sua realização, que seria a costura dessa fenda,

promovendo uma estrutura plenamente acabada, implica no contrário, no fim absoluto, fim

dele mesmo e fim da cadeia significante. No lugar de sua realização, o que seria o ponto

máximo da vida, o que se encontra é a morte. Logo, podemos dizer que sua realização é

impossível, impossibilidade lógica em função de seu paradoxo.

O resultado dessa dinâmica paradoxal é a abertura de uma via plena de construções e

produções com o intuito de realizar o desejo. Este, porém, a cada construção e produção, ao

invés de ser suprimido, é passado adiante, mantendo, nessa via, a falta. Desse modo, o desejo

está sempre apontando para outro lugar, um passado ou um futuro, instalando no presente sua

insígnia da insatisfação.

O dinamismo do desejo é exatamente conseqüência dessa invasão da morte na vida,

conforme afirma Lacan, que faz com tudo o que exista não viva senão na falta a ser.

Firmando sua tese de que é própria da linguagem essa falta inerradicável, Lacan anuncia que

é através do uso do significante mesmo, em sua articulação com outro significante, que o

sujeito “sente de perto que ele pode faltar à cadeia do que ele é” (LACAN, 1997 [1959-60],

p.354), pois, podemos completar, a articulação significante resguarda o real, vazio de

atributos e referências, através de das Ding.

A ética da psicanálise

O desejo, na medida em que figura o hiato na constituição psíquica, de onde assume o

limite, o fim da linha, a morte, é peça central na experiência da psicanálise. O que Lacan nos

expõe no seminário em questão é a experiência analítica enquanto via a esse limite, onde a

problemática do desejo se coloca. Essa experiência, por conseguinte, não se faz sem um

ultrapassamento e esse ato diz respeito à transposição daquilo que Lacan formulou de

“serviço dos bens”.

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Os bens – sejam eles familiares, econômicos, políticos, etc. – encarnam, na atual

sociedade liberal burguesa, a promessa de felicidade. Enquanto na antiguidade, época de

Aristóteles, a felicidade era conseqüência de um agir virtuoso, conquistado pelo exercício da

mediania, atualmente, de acordo com Rinaldi, “a felicidade é vista como acesso a bens, sejam

eles de conforto pessoal, culturais ou políticos, esses últimos relacionados ao exercício do

poder” (RINALDI, 1996, p.99). Ainda que diferentes, Lacan aproxima o “serviço dos bens” à

ética de Aristóteles, pois ambos estão referenciados a uma ordem ideal, correspondente à

estrutura da cidade, além de rejeitarem a dimensão do desejo, passando-o adiante na espera

de um bem melhor ou maior.

Para a psicanálise, a função do serviço dos bens, ainda que legítima e necessária, não

responde absolutamente à demanda de felicidade, visto que o bem, seja ele o Bem supremo

de Aristóteles, seja ele um bem de consumo da sociedade burguesa que garanta o bem estar,

não existe. Desse modo, a ética da psicanálise se afasta do serviço dos bens e da ética

tradicional. Logo, à demanda ética de felicidade – o que eu faço para ser feliz? – o analista

não irá responder oferecendo um bem qualquer para o sujeito. Sendo o desejo a verdade

subjacente à demanda de felicidade, resta ao psicanalista, portanto, uma única oferta: a

própria experiência do desejo enquanto tal, aquela que impele o sujeito a um limite. No

capítulo seguinte nos deteremos mais demoradamente neste ponto.

“A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação

do que chamo de serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se

expressa no que se chama de experiência trágica da vida” (LACAN, 1997 [1959-60], p.376).

Ao invés de disponibilizar um bem, a psicanálise leva o sujeito além do serviço dos bens, na

via de seu desejo. Eis o movimento que implica a experiência trágica da vida, mas por que

trágica?

Apesar de ter fisgado na trama de Antígona a experimentação exemplar do desejo, é

na própria narrativa trágica que se encontram o cenário e os meios propícios a essa

experiência. Na tragédia, o que está em jogo é a relação do homem com sua ação, no que diz

respeito a um questionamento. Esse questionamento implica em redimensionar o sentido da

ação, conferindo nela sua porção de determinismo e responsabilidade. O herói da tragédia é

aquele que não se furta a esse questionamento, pelo contrário, através de seu ato, ele não só

investiga suas condições, como também, e a partir disso, penetra fundamente em si mesmo.

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Tão profundamente é esse rumo que não por acaso esse herói chega ao fim da linha, quando

seu rumo transforma-se em travessia. Nesse fim, no salto de um ultrapassamento, ele

encontra o vazio absoluto que o determina e morre. Essa morte, não se trata simplesmente da

morte real, mas de uma segunda morte, aquela própria da experiência do desejo.

Vemos na tragédia grega, portanto, tempos antes da formalização de uma Ética, uma

bela encenação da reflexão ética propriamente dita, aquela que relaciona o homem com sua

ação a partir de um questionamento e uma escolha.

“No que nos concerne, tento mostrar-lhes que numa

época que procede a elaboração ética de Sócrates, Platão e

Aristóteles, Sófocles nos apresenta o homem e o interroga nas vias

da solidão, e nos situa o herói numa zona em que a morte invade a

vida, em sua relação com o que aqui chamei de segunda

morte” (Lacan, 1997 [1959-60], p.344).

Essa segunda morte a qual Lacan se refere diz respeito à morte simbólica (RINALDI,

1996, p.104). Antígona, antes mesmo de se enforcar em sua tumba, quer dizer, antes de sua

morte real, já estava morta, excluída da comunidade simbólica da cidade. Esta segunda

morte, à qual o herói da tragédia é levado através do percurso de seu desejo, o homem

comum recusa, conforme anuncia Lacan:

“em toda experiência humana, essa zona [a zona limite

da relação com o desejo] é sempre repelida para além da morte, já

que o ser humano comum regula sua conduta a partir do que é

preciso fazer para não arriscar a outra morte, a que consiste

simplesmente em abotoar o paletó. Primum vivere, as questões do

ser são sempre rejeitadas para mais tarde, o que não quer dizer que

não estejam sempre no horizonte” (LACAN, 1997 [1959-60], p.

367).

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Justamente por isso, por acarretar numa segunda morte, é que a realização do desejo

tem a expressão de um Juízo Final, quando a morte invade a vida. Devemos considerar aqui

que a ética, à medida que acareia o sujeito com sua ação, emite juízos sobre o agir humano. A

psicanálise, enquanto uma ética, não poderia se distanciar disso. Seguindo essa lógica, Lacan

localiza o desejo como a medida ética da ação na psicanálise. Assim, formula a questão

“Agiste conforme o desejo que te habita?”, que recebe o peso de um Juízo Final. Longe de

ser uma prescrição ética que sairia da boca oracular de um analista, essa questão se desdobra

da seguinte maneira.

A disposição neurótica, conforme descrevemos através do funcionamento do supereu,

inclui na constituição do sujeito uma renúncia em relação ao desejo. O sujeito cede de seu

desejo, ou seja, abre mão dele, em função de sua sobrevivência – primum vivere. Essa

renúncia, todavia, não se passa sem culpa. E a culpa, por sua vez, exige uma punição.

Para o homem comum, diferente do herói da tragédia, o serviço dos bens serve a sua

culpabilidade na medida em que o mantém afastado de seu desejo e que o pune com

insatisfação. Em outros termos, o serviço dos bens mantém a culpa ao mesmo tempo em que

oferece uma punição. Antes viver culpado do que ter experimentado as questões do ser, eis a

via do homem comum. Já o herói trágico é aquele que pode impunemente ser traído, ou seja,

aquele que escapou à punição simplesmente porque não tem culpa, já que não abriu mão de

seu desejo. Escapar à punição significa que mesmo tendo sofrido as penalidades das leis da

cidade, para o herói, essa penalidade é inócua, quer dizer, não sentida como tal em função da

ausência de culpabilidade. O herói não traiu a via de seu desejo, como fez o homem comum,

e isso o levou a abrir mão e ir além das leis da cidade e do serviço dos bens.

Neste sentido, podemos comparar a posição de Antígona com a de sua irmã Ismene.

Ismene aceita passivamente a ordem de Creonte. Ela vê em sua condição de mulher, de

subserviente a um rei e, ainda, de alvo da maldição que perseguia sua família, bons motivos

para acatar o édito sem hesitação. Ismene segue o caminho do homem comum. Antígona, por

outro lado, colocou o respeito ao irmão morto acima de tudo, mesmo sabendo que isto a

levaria à morte, e morre admirada pelo povo como heroína. Ao final da peça, a única que

permanece viva é Ismene. Viva, culpada e invejando a morte gloriosa da irmã.

Assim, a questão “agiste conforme ao desejo que te habita?” convoca o sujeito a

pensar sua ação a partir de seu desejo. O acento da questão recai sobre o desejo, ele é a

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medida. Isso não só autoriza o sujeito a vivenciar a sina do herói trágico como também o

situa na via da experiência analítica.

É importante dizer que a narrativa trágica, de acordo com Aristóteles, se caracteriza

justamente por contar a história de um homem comum. O herói da tragédia é um homem

comum, um semelhante. Não é nenhum homem excepcionalmente bom ou mal ao qual

assistiríamos tranqüilamente sua esperada trajetória romântica de um final feliz ou

devidamente desgraçado. A tragédia trata de um caso intermediário: “é aquele de um homem

que mesmo sem atingir nenhum grau de excelência no que toca à virtude e à justiça, cai em

desgraça não devido a vício ou maldade, mas por alguma falta qualquer” (ARISTÓTELES,

“A Poética” in: Letra Freudiana, p.10), o que desperta no expectador horror e piedade,

efeitos típicos da tragédia. Aproximar o herói da tragédia com o sujeito da análise significa

que aquele que perpassa por uma experiência de análise não o fez porque recebeu algum

atributo sublime ou dote excepcional, mas simplesmente porque colocou uma lupa em sua

condição de humano. Assim como na tragédia, a alcunha heróica da trajetória desse sujeito

deve-se mais ao fato de ter dado ouvidos à sua condição humana do que ter possuído

qualidades divinas.

O que a psicanálise lacaniana revela sobre a condição humana é que ela é cingida pela

linguagem e a linguagem, por sua vez, faz existir, a um só tempo, a cadeia significante e das

Ding, separados necessária e radicalmente. Disso resulta o desejo.

O desejo é aquilo que mobiliza o sujeito. Se há uma ação qualquer, ela é fruto do

desejo, esteja ele mascarado pelo serviço dos bens ou explicitamente anunciado no ato

trágico. Por essa razão, a psicanálise coloca o desejo como medida da ação, fundando assim

uma ética, visto que a ética é o campo que coloca em questão o agir humano – seus fins e

suas razões.

A ética da psicanálise coloca o desejo como parâmetro da ação. Diante disso, são

imprescindíveis algumas questões. Em primeiro lugar, sendo o desejo um elemento

particular, como pode servir de medida, quer dizer, de regra universal? Em segundo lugar, de

que maneira uma ética pautada no desejo responde a demanda de felicidade, visto que sua

realização é impossível? Essas perguntas dizem respeito ao estatuto da ética da psicanálise.

Vejamos a primeira questão. Por estar apensa ao desejo, a psicanálise coloca no

centro de sua ética, a singularidade. A ética, entretanto, tem caráter universal, suas

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prerrogativas estendem-se no “para todos”, conforme verificamos com Kant. O imperativo

categórico exige uma ação de amplitude universal, sabendo que para tal é necessário a

ultrapassagem de toda particularidade. Diante disso, o desejo recebe um caráter ético

estranho na psicanálise. Ao mesmo tempo em que é particular é também regra geral,

apresentando-se necessariamente, portanto, como paradoxal. Deste modo, encontramos mais

uma vez o paradoxo, figura lógica característica de todos os conceitos traçados até agora por

nosso percurso. Por isso mesmo, não poderia deixar de compor a própria ética da psicanálise.

Assim, a ética da psicanálise tem sua especificidade. A pergunta lacaniana “agiste

conforme ao desejo que te habita?” nos representa formalmente isso. Essa pergunta pode ser

posta para qualquer um, para todos, podemos dizer, com o peso de seu caráter legislador, pois

é uma questão que chama o sujeito à sua verdade, o desejo. Mesmo calibrando a ação em

relação à verdade, esta pergunta, entretanto, não normatiza nada, quer dizer, não prescreve de

antemão a verdade a ser seguida.

Isso nos permite concluir que a ética da psicanálise não é uma ética como as outras

porque não indica a priori a ação correta a ser seguida pelo sujeito para que seja alcançada a

felicidade. O desejo a priori é uma medida formal e vazia que só recebe o conteúdo de sua

orientação depois de ter sido experimentado por um sujeito. Neste ponto, é pertinente retomar

a tese lacaniana de que a ética da psicanálise não sustenta um bem ideal cujo alcance é

sinônimo de felicidade, sua orientação está alicerçada no real. De acordo com Marcus André

(2001):

“a novidade da psicanálise é que seu elemento

axiomático não é nem um conjunto de preceitos preexistentes e

implícitos, nem tampouco um novo quadro de valores, mais ou

menos em ruptura com os princípios do campo do qual se destaca.

Ao contrário, a psicanálise propõe como elemento incondicionado a

inconsistência da falta no lugar da consistência de significados

fundamentais” (ANDRÉ, 2001, p.119).

ou seja, propõe o desejo no lugar de um soberano bem, com todo paradoxo que essa

substituição contém.

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Justamente por ser uma ética especial, aquela que não dispõe de preceitos

preexistentes, mas que autoriza a singularidade no seio da universalidade, a psicanálise

constitui uma clínica. Seu estatuto não permite se desdobrar numa outra filosofia. Retomando

a distinção que apresentamos no início do capítulo entre os termos ‘ética’ e ‘moral’, vemos

que a psicanálise sustenta a posição propriamente ética ao propor o desejo como medida da

ação. Isto significa que a psicanálise não cai numa moral, quer dizer, não fundamenta um

novo código a ser seguido. Conseqüentemente, seu transmissor, o psicanalista, não pode

encarnar uma posição de mestre ou educador, como na moral de Aristóteles.

Deste modo, chegamos à segunda pergunta que apresentamos mais acima. Como

então a ética da psicanálise responde à demanda de felicidade? Trocando em miúdos, como

responde o psicanalista ao pedido de ajuda de um sujeito se ele não dispõe de um modelo pré-

fabricado onde possa simplesmente encaixá-lo? Essa pergunta nos descortina a dimensão da

clínica e a posição específica do psicanalista no tratamento analítico. Pontos a serem tratados

no capítulo seguinte.

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Capítulo 3 – sobre a técnica

Neste capítulo, nos dirigimos para o terreno da técnica, com o intuito de verificar

como o psicanalista realiza sua ética, quer dizer, como faz para sustentar em sua prática, o

tratamento analítico, a dimensão impossível do real.

Já entendemos que a ética da psicanálise orienta o psicanalista a responder de maneira

muito particular à demanda de cura daqueles que lhe vêm em busca de auxílio. Sem dispor de

um Bem, o analista não irá ofertar aquilo que, devido à cultura vigente, seria o mais esperado

pelo sujeito, a saber, um bem qualquer, fosse um modelo de conduta, um exercício

psicológico, uma regra a cumprir ou mesmo um conselho a ser ponderado. Aquilo que o

analista tem para ofertar, por sua vez, é nada menos do que o desejo.

Essa oferta tem dois lados. Do lado do sujeito, é seu desejo encoberto por ilusões,

disfarçado no serviço dos bens e insistindo em realizar-se que deve ser perseguido no

tratamento analítico. Do lado do analista, é seu desejo “prevenido” (LACAN, 1997

[1959-60], p.360), quer dizer, descoberto de ilusões e sem mais desejar o impossível de sua

realização, que dá marcha a uma análise. Se o real é aquilo que sustenta a ética da

psicanálise, esse desejo do analista é aquilo que sustenta a clínica psicanalítica.

O desejo do analista é apontado por Lacan no seminário sobre a ética em algumas

poucas passagens. Não será neste seminário onde irá desenvolver o assunto, porém, diante da

questão ética sobre a felicidade e da posição específica da psicanálise, foi praticamente

imprescindível para Lacan fazer ecoar a questão sobre a clínica e perguntar o que move uma

analista em sua escuta. Sendo a clínica, tradicionalmente, sinônimo de cura e o médico,

aquele que quer fazer o bem do sujeito, Lacan assinala a importância de “saber qual deve ser

a nossa relação efetiva com o desejo de fazer o bem, o desejo de curar” (LACAN, 1997

[1959-60], p.267).

Fazer o bem implica na sustentação de um ideal de vida e de sujeito que a psicanálise

denunciou como impossível, logo é incoerente afirmar que um psicanalista deseja fazer o

bem do sujeito. Por outro lado, quando situamos a clínica na perspectiva do real, ao invés do

ideal, um campo de cura descortina-se a partir do momento em que a liberação do desejo

promove efeitos terapêuticos. Neste sentido, podemos dizer que o analista deseja fazer o bem,

na medida em que oferta uma cura.

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Falar em cura na psicanálise é assunto muito delicado e pleno de questões. No

seminário sete, Lacan aponta que a cura implica em liberar o desejo das ilusões que o retém

em sua via, mas logo percebe que essa definição é frágil em função de seu limite. Afinal, até

onde poderia ir o sujeito nessa via de liberação? Até onde seu limite é fim, até onde é

resistência? O limite seria simplesmente individual? (LACAN, 1997 [1959-60], p.267). Essas

questões que estão potencialmente em toda análise são na verdade corolário do que significa

o fim da análise que, levando adiante a definição lacaniana, consistiria na total liberação do

desejo, numa purificação absoluta que a própria psicanálise reconhece como impossível. Isso

faz da cura, em seu sentido absoluto, uma impossibilidade. Essa fragilidade da concepção de

cura em psicanálise faz recair sobre o desejo do analista um paradoxo: ao mesmo tempo em

que oferta a cura com a liberação do desejo, sabe que, em sentido último, ela é impossível.

Isso levou Lacan a designar esse desejo como um “não-desejo” de curar (LACAN, 1997

[1959-60], p.267), certificando o paradoxo que ele contém.

Façamos um recuo. “É o desejo do analista que, em última instância, opera na

psicanálise” (LACAN, 1998 [1964], p.868), porém, não é exatamente ao conceito ‘desejo do

analista’, tal como foi desenvolvido por Lacan no seminário onze, que nos dedicaremos neste

capítulo que se inicia. Traçaremos um percurso sobre a posição do analista e sua técnica,

tomando como referência os escritos sobre a técnica em Freud, assimilados a partir do texto

lacaniano “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder” (1998[1958]). Podemos

dizer que este é um percurso preliminar e necessário aos desdobramentos teóricos sobre o

desejo do analista, mas, por outro lado, finaliza, ao mesmo tempo em que realiza, no sentido

de verificar a aplicação de uma teoria, aquilo que nos propomos a desenvolver nesta

dissertação, a ética da psicanálise.

A situação analítica

Em “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”, texto de 1958, um ano

antes do seminário sobre a ética, Lacan se debruça sobre a clínica psicanalítica a partir da

retomada de textos de Freud sobre o tema. O texto coteja, em todo momento, teorias de

psicanalistas da época, em seus avanços sobre elementos da técnica, com textos freudianos, o

que convocou os analistas à discussão e promoveu verdadeiros embates. Este feito resultou

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numa profunda renovação da clínica (ampliando-a para além da neurose e estendendo-a para

a interlocução com outras áreas) e num revigoramento da técnica sob o crivo da letra

freudiana. Para Eric Laurent (1995, p.10), essa empresa de Lacan teve dupla natureza: ao

mesmo tempo em que apontou para seu fundador, libertou uma observação clínica

entorpecida pela escolástica das escolas de psicanálise.

Esse movimento dá ao texto lacaniano uma atualidade indiscutível, ainda que tenha

motivos para ser considerado um texto datado – primeiro porque dialoga com concepções de

psicanalistas da época e, segundo, porque foi ultrapassado pelo próprio pensamento lacaniano

anos depois, principalmente com a introdução do objeto a a partir dos anos 1963-64. Retomar

o fundador para levantar critérios de julgamento das criações posteriores e com isso separar o

joio do trigo e fazer avançar a psicanálise, talvez seja o grande legado lacaniano de seus

primeiros ensinos.

Logo no início do texto, Lacan vai contra a idéia, em voga na época, de que a

psicanálise visaria uma reeducação emocional do paciente. A crítica já nos é conhecida.

Reeducar coloca o psicanalista numa posição senhora cujo objetivo seria moldar a

consciência de seu paciente-dicípulo baseado num código qualquer. Essa posição de mestre

serve para produzir e manter uma certa ordem social e realiza, assim, o exercício de um poder

(o poder do Estado), entretanto, ela nada serve para promover uma psicanálise. O título do

texto já nos dá mostras dessa crítica lacaniana. O poder da análise é decorrente de seus

princípios e não de um exercício (entendido aqui como uma espécie de treinamento,

adestramento). Essa crítica é a mesma que nós encontramos no seminário sete a partir da

exposição da ética aristotélica.

Terminantemente, o analista não dirige o paciente, dirige o tratamento. A direção do

tratamento, nas palavras de Lacan, “consiste, em primeiro lugar, em fazer com que o sujeito

aplique a regra analítica, isto é, as diretrizes cuja presença não se pode desconhecer como

princípio do que é chamado ‘a situação analítica’” (LACAN, 1998[1958], p.592).

Situação analítica é a denominação de Freud àquilo que se estabelece entre analista e

paciente num tratamento. Considerando seu arranjo específico, a situação analítica encarna

uma espécie de artifício, quer dizer, um dispositivo simbólico que permite ao sujeito encenar

seu enredo neurótico. Isso provoca uma certa estranheza àquele que encontra um analista pela

primeira vez e faz dessa situação, e da própria análise, uma experiência fora do comum.

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Atualmente, a expressão ‘situação analítica’ é pouco usada e em seu lugar emprega-se

com mais freqüência o termo ‘dispositivo analítico’. O termo ‘dispositivo’ evoca mais

explicitamente o caráter cênico que a situação analítica contém em função de seu objetivo.

Para Graciela Brodsky (2004), é totalmente legítimo falar de dispositivo, em função da

artificialidade que a análise contém. “(...) não há nada de natural na análise. A análise é um

artefato. Quando se atravessa o umbral do consultório do analista, entra-se efetivamente em

um artefato simbólico. Não é o que se passa na vida cotidiana” (BRODSKY, 2004, p.44)3.

O dispositivo analítico é instalado a partir do momento em que se aplica sua regra

fundamental, a associação livre, acompanhada necessariamente da escuta particular do

analista. Esse é o pacto estabelecido entre analisando e analista no início do tratamento: a fala

livre de um lado e, seu correlato, a ‘atenção uniformemente suspensa’, do outro.

A associação livre não tem melhor definição do que a máxima freudiana “fale o que

lhe vier à cabeça”, independente do conteúdo, do sentido ou da importância. Trata-se de uma

fala submetida ao inconsciente, afinal falar o que vier à cabeça não é o mesmo que falar o que

quiser. Enquanto falar o que quiser implica na escolha de um assunto, falar o que vier implica

em ser escolhido por ele. Por esta razão, a associação livre é no mínimo uma tarefa difícil e

penosa ao sujeito e, no máximo, uma tarefa impossível, já que significaria, em absoluto, uma

fala pura do inconsciente. Justamente por ser uma tarefa de realização impossível, a fala livre

torna-se o meio propício para que essa impossibilidade apareça, o inconsciente, elemento a

ser capturado pela escuta do analista.

Por se ocupar em escutar o inconsciente, a atenção do analista é menos um exercício

de memória e de varredura por conteúdos supostamente privilegiados, do que uma suspensão

de qualquer critério seletivo. É uma escuta livre também, livre de critérios, críticas e

expectativas sobre aquilo que se vai ouvir. O termo usado por Freud mostra bem a

imparcialidade dessa escuta, sua atenção é ‘uniformemente suspensa’, ou seja, ainda que

esteja presente, está ao mesmo tempo ausente, suspensa. Digamos que esta atenção está

ausente em relação ao sentido e à narrativa das histórias contadas pelo sujeito, mas presente

em relação às manifestações do inconsciente. O peso do ‘uniformemente’ não deve ser

negligenciado, pois quando essa atenção vacila, deixa de ser livre e o analista acaba por ouvir

3 A autora também menciona outros três modos diferentes de nos referirmos àquilo que se passa no consultório do analista: ‘experiência analítica’, ‘trabalho analítico’ e ‘processo analítico’, os quais também mencionaremos ao longo do capítulo.

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aquilo que ele próprio espera, seguindo suas expectativas e inclinações. Para Freud, a regra

dessa escuta se diz assim: “ele [o analista] deve conter todas as influências conscientes da sua

capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à ‘memória

inconsciente’” (FREUD, 1912b, p.126). Essa atenção destituída de consciência, de modo

correlato, mas não análogo, à associação livre, faz também da escuta do analista uma tarefa

bastante penosa e mesmo impossível em seu sentido cabal, entretanto, é a condição de

possibilidade de um tratamento analítico propriamente dito, ou seja, submetido a sua política

(noção que veremos mais adiante).

Continuando com aquilo que caracteriza a situação analítica, nos deteremos agora

sobre a condição sine qua non de uma análise, em torno da qual gira o processo analítico, a

saber, a transferência.

A transferência não é condição da situação analítica, entretanto, a situação analítica é

condição para o surgimento da transferência. Uma vez enunciada a regra fundamental ao

sujeito, permanece como o primeiro objetivo do tratamento ligar o paciente a ele (ao

tratamento) e à pessoa do analista e “para assegurar isto, nada precisa ser feito, exceto

conceder-lhe tempo” (FREUD, 1913, p.154). Isso porque a transferência surge (ou não)

espontaneamente, ou seja, sem decorrer de nenhuma regra ou técnica. Sendo assim, ao

analista só resta esperar.

A transferência implica em atar um laço emocional com a pessoa do analista, de

modo que o analista seja integrado às escolhas afetivas do sujeito. Só depois de estabelecido

esse vínculo é que de fato se inicia um processo de análise, quando as intervenções do

analista se farão valer. Ocorre que uma análise não é uma aventura intelectual, como bem

colocou Miller (1991a[1989], p.112), não é uma prática que se desenvolve pelo exercício das

idéias, mas uma experiência em que se desbrava através do afeto, por isso a necessária

ligação afetiva com o analista.

Freud fez menção a isto em vários textos. Em “A questão da análise leiga” (1926)

afirma que o teor intelectual das explicações do analista de nada serve para tornar fluido um

tratamento, creditando à transferência esse ganho. “O neurótico põe-se a trabalhar porque tem

fé no analista e neste crê porque adquire uma atitude emocional especial para com a figura do

analista”, afirma Freud (1926, p.217), acrescentando, em tom de justificativa, que também as

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crianças só acreditam nas pessoas às quais estão ligadas. Além do mais, o paciente neurótico

não sofre em função de uma ignorância intelectual a respeito de seu sintoma, à qual bastariam

algumas palavras sábias do analista para que ele desaparecesse e a cura se fizesse. A

ignorância neurótica é efeito de uma resistência, de um não-querer saber e, sendo assim,

quaisquer explicações e esclarecimentos do analista têm validade nenhuma para uma cura

efetiva.

O dispositivo analítico possibilita o surgimento da transferência, o que dá início ao

processo analítico. Para Brodsky (2004), fazer referência à análise como um processo implica

dizer que há algo que se processa ali, algo que se cozinha, tritura, condensa. “Há uma

matéria-prima que se põe a trabalhar e que resulta em um produto, diferente da matéria-prima

da qual se partiu”, diz a autora, notificando que aquilo que é processado na análise é a própria

transferência: “é claro que também se processa o sintoma, porém é mais correto dizer que é a

transferência o que é processado” (BRODSKY, 2004, p.44). Vejamos por quê.

A ligação afetiva com a figura do analista torna propício ao paciente transferir para a

situação analítica seu conflito neurótico. Quando isso acontece está instalada a ‘neurose de

transferência’, acessível às intervenções do analista. Isso ocorre porque na transferência o

sujeito repete seus comportamentos, traços de caráter e sintomas vividos em sua vida

cotidiana. Essa repetição será o material a ser trabalhado no tratamento. O objetivo é trazê-la

para o campo da fala, ou seja, dirigir para a ‘esfera psíquica’ aquilo que tende a se manifestar

pela ‘esfera motora’, tal como Freud escreve em “Recordar, Repetir e Elaborar” (FREUD,

1914b, p.200).

Este trabalho, entretanto, não é simples. Se, por um lado, a transferência torna

possível o tratamento, por outro, ela é o maior obstáculo a ele. Isso se deve ao fato de que a

transferência implica no paradoxo da relação pulsional que o sujeito estabelece com aquele a

quem se liga emocionalmente. Vimos no primeiro capítulo como a constituição do sujeito é

decorrente da necessidade de se fazer amar e que esta necessidade modela comportamento e

ideais, ao mesmo tempo em que gera sentimento de culpa e insatisfação. A transferência

reproduz esse tipo de ligação com a pessoa do analista, ou seja, faz surgir o amor e seus

fenômenos, instalando a figura do analista no mesmo lugar da autoridade parental, quer dizer,

no supereu. Assim, o sujeito não só passa a amar seu analista, depositando nele crédito e

confiança, como também deseja ser amado por ele, depositando nele censura e autoridade

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crítica. É assim que a transferência acaba sendo a fonte das mais fortes resistências à

associação livre.

Freud esteve bastante atento a esse fenômeno e sua dinâmica e reconheceu que a

técnica psicanalítica não poderia passar sem aquilo que seria o mais trabalhoso para o analista

e a direção do tratamento, a saber, o ‘manejo da transferência’. Entendendo que a

transferência é menos uma criação da situação analítica do que uma característica da própria

neurose (FREUD, 1912c, 136), Freud assinalou que se a psicanálise pretende tratar da

neurose, conseqüentemente terá que tratar da transferência.

Isso nos leva a afirmar que a transferência ocupa lugar central num tratamento

analítico. Em função dela está tanto o seu início (a transferência é a condição da análise), seu

desenvolvimento (o fluxo do tratamento é a ultrapassagem das resistências, que existem em

função da transferência) e seu fim (quando se constata um desaparecimento da transferência).

Vemos, portanto, como é correto dizer que é a transferência o que se processa na análise.

Dissemos que o manejo da transferência dá trabalho ao analista, assim como a

superação das resistências dá muito trabalho ao analisando. ‘Trabalho analítico’ é uma

expressão que Brodsky também destaca dentre as designações encontradas sobre aquilo que

se passa numa análise. Para a autora, a expressão é também bastante adequada,

principalmente porque se deve levar em conta que na análise há algo que se gasta, algo que se

perde e, certamente, algo que se recupera, numa balança que deve ser pensada a partir da

física, de um lado, e de Marx, de outro (BRODSKY, 2004, p.44).

Em “A Direção do Tratamento”, Lacan marca que a transferência é muito mais do

que “a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente volta a seu

analista” (LACAN, 1998[1958], p.608), tal como comumente abordavam os psicanalistas da

época, e destaca algumas páginas de seu escrito com uma revista crítica às teorias sobre a

transferência do período: o geneticismo de Anna Freud – uma tentativa de aproximar a pulsão

da fisiologia –, a relação de objeto de Abraham – que colocava a relação genital como

protótipo da felicidade – e a introjeção intersubjetiva presente em Ferenczi, Strachey e Balint

– que reduzia a uma relação imaginária o vínculo entre sujeito e objeto, analista e analisando,

cujo único recurso possível a uma mediação era a distância espacial. A partir dessa última

concepção, Lacan assinala a precariedade de uma teorização que desconhece a função

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simbólica. Para Laurent (1995, p.33), “A Direção do Tratamento”, inclusive, é um texto

especialmente precioso por indicar e questionar o papel do falo – medida simbólica – na

relação do sujeito com seu desejo e como o analista deve manejá-lo.

Após sua revista, Lacan (1998[1958], p.618) conclui sua crítica denunciando que é na

medida em que os pesquisadores (analistas) experimentam impasses no âmbito de sua ação,

que eles acabam por forçá-la, no sentido do exercício de um poder, e retifica, dizendo mais

uma vez, que esse poder não deve estar remetido a um exercício, mas à relação com o ser em

que se dá essa ação, ou seja, o ser do analista.

O poder da análise recai sobre o ser do analista. O que é o ser do analista? Certamente

não é sua pessoa. Vejamos a partir de agora qual a posição do analista na transferência, o que

e como ele faz para dirigir um tratamento. Seguiremos com as recomendações técnicas de

Freud e, em seguida, algumas amarrações de Lacan.

A posição do analista

Conforme dissemos, a transferência é condição e empecilho ao tratamento. Ao

mesmo tempo em que deposita crédito e confiança no analista, permitindo o fluxo de uma

análise, faz surgir a resistência à associação livre, impedindo o curso da análise. Esse

movimento paradoxal da transferência exige do analista uma posição muito específica no

tratamento.

Freud tratou aberta e detalhadamente desse assunto. Em todos os seus textos sobre a

técnica, ele inclui algumas passagens sobre a conduta do analista na transferência e, de um

modo geral, podemos reuni-las sob os conceitos de neutralidade e abstinência. Ambos

exprimem uma certa reserva e recusa do analista àquilo que lhe é ofertado e solicitado pelo

sujeito, em função da transferência. Vejamos com mais detalhes.

A transferência concede ao analista o poder de uma autoridade e a sabedoria de um

mestre, guia ou professor, tornando-o capaz de exercer grande influência sobre o sujeito. Esse

lugar cedido, entretanto, deve ser recusado. “Por mais que o analista possa ficar tentado a

transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua

própria imagem, não deve esquecer que esta não é sua tarefa no relacionamento

analítico” (FREUD, 1940, p.202).

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A ética da análise está referenciada ao real, lembremos, e não a um ideal ou bem

supremo. Aceitar a posição de mestre, guia ou educador implica na sustentação de um bem

ideal a ser alcançado por todos, afastando-se dos princípios da análise. Nesse caso, facilmente

o tratamento cai numa espécie de adestramento de efeito sugestivo.

Freud se refere a essa “ambição educativa” como uma “tentação” a ser evitada pelo

analista. Os termos usados por Freud dão uma noção da dificuldade que esta recusa implica.

No texto “Linhas de Progresso da Terapia Analítica” (1918-19), onde Freud apresenta

algumas ramificações que a psicanálise via abrir no horizonte, tanto em função de novas

abordagens técnicas, quanto das possíveis mudanças reservadas pelo futuro, vemos como

muitos psicanalistas da época sucumbiam a essa tentação: Ferenczi com a ‘atividade do

analista’, técnica que defendia o auxílio do analista à solução do conflito do sujeito; a escola

suíça, sustentando abertamente uma atividade educativa por parte do analista; e J.J.Putnam,

que defendia que a psicanálise deveria ser colocada sob perspectiva de uma determinada

filosofia. Freud em todo momento condena esses tipos de atividades afirmando que elas não

apenas são inócuas ao tratamento, quer dizer, nada necessárias aos objetivos terapêuticos,

como também distanciam a psicanálise de seus princípios, de sua ética.

Essa recusa em se fazer de mestre alinha-se a uma outra recusa a ser realizada pelo

analista na transferência, a saber, aquela que incide em projetar para a situação analítica a sua

personalidade. Freud insistiu em afirmar que a “discrição médica” é um requisito

indispensável à direção do tratamento. Essa discrição não significa apenas a manutenção

sigilosa dos assuntos tratados numa análise, mas também uma boa dose de prudência e

reserva da personalidade do analista. Ao invés de responder às declarações penosas dos

sujeitos em pé de igualdade, quer dizer, deixar-se falar abertamente sobre seus próprios

conflitos e idéias, o analista deve retirar da situação analítica a sua pessoa. A posição de

Freud é bastante clara a respeito disso: “o médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como

um espelho, não lhes mostrar nada, exceto o que lhe é mostrado” (FREUD, 1912b, p.131).

Essa neutralidade é justificadamente sustentada, não se trata de um preciosismo

clínico. Freud afirma que essa frieza emocional do analista cria condições mais vantajosas

para ambas as partes: “para o médico, uma proteção desejável para sua própria vida

emocional, e, para o paciente, o maior auxílio que lhe podemos hoje dar” (FREUD, 1912b, p.

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129). A personalidade do analista, além de não ser operatória no tratamento e ainda engatar o

sujeito numa terapia sugestiva, só faz reforçar o laço afetivo com o paciente, reiterando seu

conflito neurótico. A neutralidade é, pois, uma condição da cura.

No texto “Observações sobre o amor transferencial” (1915), Freud discorre sobre a

posição do analista na transferência a partir dos casos em que a paciente declara ao analista

seu estado de enamoramento por ele. Esse estado é legítimo da transferência e o fato de ser

abertamente anunciado pela paciente somente explicita, em moldes caricaturais, aquilo que se

passa em toda análise, portanto, a resposta do analista a essa situação não é nada menos do

que sua maneira corrente de manejar a transferência. Nestes casos, Freud diz que a solução

mais comum, aquela dada por um leigo, é ou a interrupção do tratamento, ou a efetivação da

relação amorosa entre analista e paciente (o que também acarreta na interrupção do

tratamento). O que se segue no texto, entretanto, é a afirmação freudiana de que o analista, de

acordo com os princípios da análise, responderá de uma terceira maneira.

Primeiramente, Freud lembra que o estado de enamoramento é decorrência da

transferência e não dos encantos pessoais do analista. Esse amor declarado, portanto, deve ser

entendido como uma forte manifestação da resistência, uma legítima maneira da paciente se

negar à experiência do inconsciente. Sabendo disso, não é o caso de interromper o

tratamento, nem mesmo de reprimir qualquer manifestação afetiva da paciente, porém o

analista deve, ao mesmo tempo, recusar esse amor, e isso implica em não exprimir quaisquer

retribuições. O analista “tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial,

repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto,

recusar-lhe qualquer retribuição” (FREUD, 1915c, p.183). Essa recusa do analista, Freud

denominou de abstinência.

A abstinência significa muito mais do que uma continência física ou uma rígida

recusa em prestar ao sujeito toda e qualquer retribuição afetiva. Implica em manter um estado

de privação na análise que está de acordo com a dinâmica da doença e sua recuperação.

Levando em conta que aquilo que sustenta a doença é também o que sustenta o investimento

em sua recuperação, Freud assinala que um certo estado de sofrimento deve ser mantido na

análise, para que se possa dar continuidade ao tratamento. Nas palavras de Freud: “Fixarei

como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela

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persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar

mudanças” (FREUD, 1915c, p.182).

Em “Linhas de Progresso da Terapia Analítica” (1918-19), Freud aponta que a

abstinência é recurso indispensável para levar até o fim um tratamento analítico. Por esta

razão, mesmo quando o paciente apresentar uma melhora em sua condição, ou mesmo

quando seu sintoma perder o valor, e seu sofrimento atenuar, o analista deve restabelecê-lo

alhures, sob a forma de alguma privação apreciável. Caso contrário, afirma Freud, “corremos

o perigo de jamais conseguir senão melhoras insignificantes e transitórias” (FREUD,

1918-19, p.176).

Freud aponta que esse perigo ameaça de duas direções. De um lado, quando os

sintomas desaparecem, o paciente trata de arranjar novas satisfações substitutivas, algumas

inofensivas, que carecem de sofrimento, mas que abrem, assim, caminho para a interrupção

do tratamento, e outras não tão inofensivas, como um casamento infeliz ou uma doença

física, às quais o paciente meio recuperado se agarra avidamente em função de dar vazão ao

sentimento inconsciente de culpa. Nesses casos, cabe ao analista não oferecer nenhum tipo de

aval ou estímulo a essas substituições. É mais fácil ao analista, porém, intervir nas satisfações

substitutivas que surgem na própria relação transferencial. Essa é a segunda direção de onde

ameaça o perigo ao tratamento. Nesses casos, Freud marca a importância de não responder a

todos os pedidos e necessidades dos pacientes: “no que diz respeito às suas relações com o

médico, o paciente deve ser deixado com desejos insatisfeitos em abundância” (FREUD,

1918-19, p.178).

É importante assinalar que tanto a abstinência quanto a neutralidade, por incluírem

uma recusa e privação aos elementos da transferência, instalam uma assimetria e

heterogeneidade na relação entre analista e analisando. Isso impede que se estabeleça nessa

relação um ideal de complementaridade, o que tornaria a cura impraticável.

Vemos então que manejo da transferência é composto pela neutralidade e abstinência,

elementos tratados por Freud como constituintes da técnica psicanalítica. Aqui, faz-se

necessário ressaltar uma notificação. Por mais que esses elementos façam parte da técnica, se

eles não forem apreendidos a partir da ética, não serão apropriadamente realizados no

tratamento. A ética, por sua vez, não é apreendida somente pelo conhecimento da teoria

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psicanalítica, mas pela própria experiência de análise. Por experiência de análise entende-se

não apenas o tempo de prática do analista em seu consultório, mas, acima disso, sua própria

análise pessoal.

Freud mencionou a necessidade da análise pessoal como fundamental, e mesmo

obrigatória, para o domínio apropriado da psicanálise, tanto da teoria quanto da técnica.

Reiterou esta necessidade em todos os seus artigos sobre a técnica, afirmando que os livros e

textos não são suficientes para formar um analista. Chegou, inclusive, a sugerir que todo

analista devesse periodicamente, em intervalos de aproximadamente cinco anos, voltar a

fazer análise (FREUD, 1937, p.283-284). Além disso, Freud marcou a necessidade da

supervisão dos atendimentos de jovens analistas, conduzidas por analistas mais experientes,

certificando a importância da formação do analista e avalizando, assim, as instituições

psicanalíticas.

A importância da formação do analista em escolas de psicanálise é duplamente

justificada: protege o paciente e a causa psicanalítica, ao mesmo tempo. De acordo com as

observações de Freud em “Psicanálise Silvestre” (1910, p.212-213), uma intervenção

imprudente do analista pode causar muito mais dano a ele e à doutrina da psicanálise do que

ao paciente, daí a justificativa para o necessário controle das supervisões e das instituições.

Com isso, podemos afirmar que a maior fonte de entendimento e apropriação – e

transmissão, poderíamos acrescentar – da psicanálise é a experiência analítica, naquilo que

ela inclui tanto a análise pessoal quanto a supervisão. Para Brodsky (2004), a expressão

‘experiência analítica’ é adequada se a tomamos não no sentido de uma vivência inefável,

mas no sentido empregado pela ciência, enquanto experimento, onde algo se põe à prova e se

espera seus resultados. Esse algo é a própria doutrina psicanalítica, “o que se põe à prova, a

cada vez, é a própria consistência da doutrina psicanalítica” (BRODSKY, 2004, p.43), assim

como Freud assinalou em 1910.

A necessária análise pessoal como condição do uso apropriado da técnica já nos dá

um indício de que essa técnica significa mais do que um simples conjunto de regras a serem

aplicadas. Sobre isso, trataremos no tópico seguinte. Seguiremos agora, porém, com as

colocações de Lacan a respeito da posição do analista, tal como foram apresentadas em 1958.

É importante fazer uma observação. Alguns psicanalistas contemporâneos de Freud,

conforme indicamos mais acima, parecem ter entendido que a neutralidade implicava numa

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passividade, indiferença, insensibilidade ou mesmo falta de paixão por parte da pessoa do

analista, assim como a abstinência indicava uma privação negativa, uma conduta

supostamente cruel. Esses psicanalistas foram levados, portanto, a formular aquilo que

pensaram ser uma verdadeira ‘atividade’ do analista, inserindo no tratamento seus

sentimentos, suas idéias, seus juízos, e fazendo disso um critério para a condução do caso,

dando, assim, à contratransferência um valor operatório na análise, a despeito das críticas

freudianas.

Em “A Direção do Tratamento”, Lacan retoma a linha de Freud e faz uma crítica

rigorosa aos partidários da contratransferência, afirmando que numa análise, o analista, não

só o paciente, tem também um preço a pagar. Sua cota, porém, é outra, e ela recai justamente

sobre a contratransferência. De acordo com Lacan (1998[1958], p.593), o analista tem que

pagar com palavras – levando em conta o mal-entendido aberto pelo significante –, com sua

pessoa – na medida em que deve servir de suporte da fantasia – e com seus juízos – pois sua

ação está comprometida com seu ser. A neutralidade e a abstinência, Lacan radicaliza,

afirmando, ainda, que os sentimentos do analista só tem um lugar, o do morto, a partir de

uma metáfora com o jogo de bridge.

Há muita atividade nessa conduta aparentemente passiva, disso dá mostras o próprio

esforço necessário em realizá-la e não sucumbir às ardentes tentações oferecidas na demanda

do paciente. Esse esforço, porém, não é um exercício moral, tal como na ética aristotélica,

onde o indivíduo, através do hábito, robustecia-se na prática da mediania. Trata-se mais de

uma implicação ética, onde a resistência do analista é uma conseqüência de seu estado de ser.

Resistência no sentido de fazer frente, não sucumbir, aos pedidos e às súplicas neuróticas.

Na linha desse significante, tomemos a afirmação lacaniana de que “não há outra

resistência à análise senão a do próprio analista” (LACAN, 1998[1958], p.601). Esta

afirmação, Lacan anuncia a propósito da interpretação. De acordo com Lacan, os

psicanalistas da época legitimavam a interpretação a partir do consentimento do sujeito, de

seu “sim” às falas do analista – ainda que soubessem que o efeito de uma interpretação só se

apercebia num tempo depois, através de seus efeitos. Nessa mesma concepção da

interpretação, o “não” do paciente era tomado como uma resistência, uma recusa em ir

adiante no tratamento.

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Lacan critica essa posição, lembrando que uma denegação vale muito e assinalando

que o efeito da interpretação se sustenta na função do significante, onde figura o mal-

entendido e o equívoco, e não o sentido. Esperar um assentimento do sujeito é supor a

existência de um sentido unívoco e verdadeiro de uma interpretação, o que contradiz o

próprio termo. Diante disso, Lacan denuncia que se há aí alguma resistência à psicanálise,

essa está do lado do analista. Interpretar é equivocar, fazer surgir o significante em sua

insignificância, e não imprimir um significado.

Freud comentou sobre o assunto em 1937, no texto “Construções em Análise”. O

artigo é uma resposta à crítica de que a psicanálise tratava suas interpretações a partir do

princípio “heads I win, tails you lose”, ou seja, se o paciente concorda com a interpretação, o

analista está certo; se o paciente discorda, ele está resistindo e, novamente, o analista está

certo. Essa maneira de conceber a interpretação coloca todo o poder nas mãos do analista,

perigosamente selado pela transferência. No texto, Freud afirma como um “sim” e um “não”

são ambíguos e abertos à significação, “um ‘não’ provindo de uma pessoa em análise é tão

ambíguo quanto um ‘sim’”(FREUD, 1937b, p.297), e indica que seu enunciado só terá

sentido a partir de seus efeitos, “o ‘sim’ não possui valor, a menos que seja seguido por

confirmações indiretas, a menos que o paciente, imediatamente após o ‘sim’, produza novas

lembranças que completem e ampliem a construção” (FREUD, 1937b, p.297). Novamente,

vemos como Lacan dá continuidade ao pensamento freudiano.

A resistência é do analista na medida em que age com suas paixões e introduz na

análise suas inclinações pessoais, sua pessoa, suas palavras e seus juízos. Nesse sentido,

contar com o “sim” do paciente invoca mais uma necessidade de aprovação pessoal do

analista, do que um avanço no tratamento. Diante disso, seguiremos a indicação lacaniana de

que o analista “é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu

ser” (LACAN, 1998[1958], p.594).

A psicanálise desconhece a possibilidade da realização do ser, devido ao fato de ter

encontrado cravada em seu seio uma falta fundamental. Há uma falta-a-ser no lugar do ser e

isso é o que permite uma ética, a ética da psicanálise, ao invés de uma ontologia. Para a

filosofia, o ser ontológico é ou não é, se seguimos a metafísica de Parmênides, em que atribui

ao ser o princípio lógico da razão, o princípio da identidade. Para a psicanálise, trata-se não

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de ser ou não ser, mas de uma falta-a-ser, cuja expressão metonímica é o desejo. Um analista

interessado em seu ser, portanto, estaria no caminho da ontologia, longe da psicanálise e,

conseqüentemente, só poderia estar muito pouco seguro de sua ação.

O desejo é a metonímia da falta-a-ser (LACAN, 1998[1958], p.629), isso nos indica

que o desejo faz incidir na linguagem a falta fundamental, através de significantes aos quais o

sujeito se vê aprisionado. Essa falta-a-ser constituinte do sujeito neurótico é o que o faz sofrer

e, portanto, aquilo que o leva à análise. Conforme aponta Laurent (1995), “o neurótico

chegaria, assim, a endossar para o analista sua falta-a-ser, e o tratamento consistiria em o

analista aceitar essa transferência” (LAURENT, 1995, p.34).

Esse endossamento chega ao analista através de uma demanda, a demanda de análise,

por exemplo. A demanda encobre a falta-a-ser, apesar de ser sua própria denúncia. O

neurótico, porém, não sabe disso, quer dizer, recalca. De acordo com Jacques-Alain Miller

(1997[1993], p.445), toda demanda se sustenta numa falta do sujeito, que pede testemunha de

que lhe falta algo. Na análise, o sujeito, portanto, testemunha sua falta-a-ser, ao mesmo

tempo em que solicita seu preenchimento.

Desse modo, na análise o sujeito demanda ao Outro aquilo que lhe falta, sendo o

analista o depositário desse pedido. Diante da impossibilidade subjacente a este pedido, resta

ao analista uma única possibilidade, não respondê-lo. Podemos ver que não responder a

demanda, tal como Lacan escreve em 1958, está em continuidade com a afirmação freudiana

de que na análise devemos deixar os pacientes com desejos insatisfeitos em abundância. No

vocabulário lacaniano, porém, o desejo é o próprio nome da insatisfação, sendo a demanda

aquilo que deve ser deixado em suspenso na análise.

Não responder à demanda não significa ignorá-la ou recusá-la, numa atitude

frustradora para com o paciente. É preciso sustentá-la, pois através dela é que se chega ao

desejo. “Assim, o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como se costuma dizer, para

frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes em que sua frustração está retida”

(LACAN, 1998[1958], p.624). Estando essa conduta do analista diretamente relacionada com

a verdade do ser, aquele marcado por uma falta fundamental, impossível de ser suturada, não

responder à demanda, ainda que numa vertente técnica, é, portanto, uma conduta ética.

Dissemos que não responder à demanda abre caminho para o desejo. A demanda é um

pedido vazio, um enunciado, cuja variabilidade é inumerável. Muitas são as demandas com

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as quais o analista terá que lidar, principalmente no início do tratamento. Esse pedido, porém,

encontra em sua origem, aquém dele mesmo, a sua verdade, única, o desejo. De acordo com

Lacan,

“o desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado

pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito,

articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo

de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é

também o lugar dessa falta” (LACAN, 1998[1958], p.633).

Com nossas palavras, e conforme escrevemos no capítulo anterior, a incidência da

linguagem cava uma falta erradicável no coração do ser, cuja conseqüência é a expressão do

desejo. Se falta algo, deseja-se. Para o neurótico, essa falta é possível de ser preenchida e

supõe estar no Outro, lugar da própria linguagem, seu objeto faltante, dirigindo a ele, através

da demanda, seu pedido de restabelecimento. Se o analista responder à demanda, além de

multiplicá-la, não possibilita abrir caminho para a verdade do sujeito, o desejo e sua

estrutura: aquilo que lhe falta, e que ele pede, é impossível de ser preenchido. No Outro, o ser

também falta.

Desse modo o analista dirige o tratamento. Abre caminho para o desejo, liberando-o

da demanda, permitindo ao sujeito a experiência da falta-a-ser. Ao final do percurso, ao

entender que o Outro não comporta o objeto de seu desejo e que essencialmente lhe falta

algo, a demanda desaparece. De acordo com Miller (1997[1993]), “o pedir, a demanda, é

fundamental e, com a desaparição do Outro, a quem pedir, se desvanece a esperança de poder

encontrar alguém que dê o que falta a quem pede. É nesse sentido radical que a conclusão do

tratamento é o desvanecimento da demanda” (MILLER, 1997[1993], p.441).

Essa experiência descrita como própria do final da análise por Miller, promove uma

transformação no sujeito, “ele é modificado no coração de seu ser” (MILLER, 1997[1993], p.

442), cujas conseqüências são irreversíveis. Há uma desaparição da demanda concomitante a

um desaparecimento da transferência, mas não há a morte do desejo. O desejo que sobra,

entretanto, não é o mesmo do início. Se no início do tratamento o desejo seguia em direção a

seu objeto, para ter com ele um encontro derradeiro, no final do tratamento, diante da

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impossibilidade deste feito, o desejo permanece enquanto marca dessa impossibilidade. Esse

desejo de fim de análise, totalmente modificado pelo tratamento, é o desejo do analista,

aquele, como disse Lacan no seminário sete, que não deseja mais o impossível.

Política, estratégia e tática

Em 1958, Lacan reúne o âmbito da ação do psicanalista sob a tríade política,

estratégia e tática, tomando de empréstimo a sistematização feita por Clausewitz sobre o

exercício militar. Essa adaptação lacaniana, entretanto, apresenta uma inversão do sistema

clássico. Vejamos com detalhes.

De acordo com François Leguil (2005, p.68-71), Carl von Clausewitz – estrategista e

militar prussiano, autor do tratado Da Guerra, publicado postumamente em 1832 – define a

guerra como uma realização da política por outros meios que não a paz, e a caracteriza por

uma exploração dos sentimentos hostis, apesar de ser efetuada na exclusão de todo

sentimento hostil. Para Clausewitz, a guerra é uma escolha racional e não uma manifestação

livre das paixões agressivas. Em seu tratado, apresenta três níveis de hierarquia de

intervenção e cálculo da ação: a política, a estratégia e a tática.

A tática é relativa ao uso das forças armadas, dos soldados. Diz respeito às manobras

e condutas realizadas na batalha em si, no corpo a corpo com o inimigo. A tática deve ser

bem calculada e muito precisa e por esta razão depende de um grande levantamento de

informações sobre seu contexto, como as condições geográficas do local de ação,

temperatura, condição e capacidade dos soldados, armamento, etc. É a arte do terreno, e sai

ganhando aquele que obtiver o maior número de informações e souber fazer, com astúcia e

coragem, um bom uso delas. Devido a essa precisão necessária, o nível da tática apresenta

pouco grau de liberdade da ação.

A estratégia implica num uso das forças armadas que, além de incluir informações

táticas, deve visar os objetivos gerais da guerra, ou seja, a política envolvida. Por esta razão,

se ocupa dos possíveis resultados das batalhas, fazendo previsões e jogando com algumas

possibilidades. O nível da estratégia é intermediário entre tática e política, razão pela qual sua

ação deve combinar interesses de ambos os lados. Para Clausewitz, o estrategista tem grande

responsabilidade, pois sua função requer tanto o conhecimento sobre a tática quanto

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conhecimento político, numa balança que deve ser favorável. Podemos verificar que no nível

da estratégia há um grau de liberdade maior do que no nível da tática.

A política, por sua vez, se superpõe à estratégia e a tática e não apenas em hierarquia,

no que diz respeito ao nível de engajamento no conflito, mas também em autonomia e poder

de decisão. É a política que decide uma guerra, assim como a sua oportunidade,

conveniência, objetivos, etc. Há, portanto, no âmbito da política uma liberdade de escolha

muito maior do que no nível da estratégia e da tática. Desse modo, podemos observar no

sistema de Clausewitz uma linha progressiva em relação ao grau de liberdade da ação que

parte da tática em direção à política.

Em “A Direção do Tratamento”, Lacan propõe uma inversão desse sistema ao afirmar

que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática, e ainda menos livre

naquilo que domina as duas, ou seja, em sua política (LACAN, 1998[1958], p.595-596). Esse

grau de liberdade invertido se explica através dos elementos em jogo na tripartição lacaniana,

a saber, a interpretação no nível da tática, a transferência no nível da estratégia e a falta-a-ser

no nível da política.

No fim do tópico anterior dissemos que ultrapassar a experiência da falta-a-ser

implica uma transformação profunda do sujeito, promovendo, inclusive, o final de sua

análise. Essa experiência é para onde o analista guia o analisando. Diante disso, podemos

verificar que a política da análise implica nisso: levar uma análise até o fim. A política da

análise só conhece um objetivo e por isso seu grau de liberdade é extremamente reduzido.

Já no plano da estratégia, o grau de liberdade aumenta. Há variações com as quais o

analista terá que lidar, “variações sempre determinadas pelo que o analisante põe em ato na

transferência” (BASTOS e FREIRE, 2005, p.94). Este nível diz respeito ao manejo da

transferência, ao modo como o analista irá se posicionar aí. Há, portanto, um âmbito maior de

possibilidades de ação. Isso fica bem claro quando consideramos a diferença entre a

transferência na neurose e na psicose. A estratégia em uma é diferente da outra.

O plano da tática, no que concerne à interpretação, é aquele em que o analista está

ainda mais livre em suas escolhas. Não há um planejamento necessário, detalhadamente

calculado, como na tática de Clausewitz. A interpretação não é precisa, a prova disso é a

defasagem entre ela e seu efeito. Aliás, até poderíamos dizer que a interpretação é bastante

precisa, porém ela só o é a posteriori. Enquanto a precisão da tática de Clausewitz diz

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respeito à exatidão de seu cálculo, a precisão da tática lacaniana diz respeito à exatidão de seu

efeito.

Vemos, então, como o grau de liberdade se inverte no sistema lacaniano, seguindo um

rumo regressivo da tática até a política. Isso nos leva a fazer uma consideração. Levando em

conta o grande grau de liberdade que o analista encontra no plano da tática, podemos dizer

que para que ele aí não se perca, ou para que ele aí se sustente, sua adesão política deve estar

bem sólida. Há uma relação direta entre os níveis. Isso significa dizer que quanto mais

aderido a sua política, mais livre está o analista em sua tática. É a experiência da falta-a-ser

que o orienta no manejo da transferência e na interpretação. Do mesmo modo, podemos

afirmar que essa correlação entre política, estratégia e tática é análoga à relação entre ética e

técnica, ou seja, quanto mais afinado está o analista na ética, mais livre está no terreno da

técnica. Vejamos os desdobramentos dessa colocação.

Antes, porém, é preciso fazer uma notificação. Se essa tripartição apresentada por

Lacan afinca e sistematiza a ação do analista em 1958, no ano seguinte, esta receberá uma

perspectiva mais ampla a partir do início do seminário sobre a ética. No próprio texto “A

Direção do Tratamento”, Lacan já nos indica o avançar de seu pensamento, anunciando que

caberia a formulação de “uma ética que integrasse as conquistas freudianas sobre o desejo:

para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista” (LACAN, 1998[1958], p.621). A

nova perspectiva da ação do psicanalista em 1960 é ética, cuja orientação é o real, conforme

descrevemos no capítulo anterior.

Tratemos, então, a ação do psicanalista sob a perspectiva ética. Dissemos que quanto

mais afinado está o analista em sua ética, submetido a ela, mais livre está no terreno da

técnica. Isso nos leva a dizer que em psicanálise o plano da técnica é na verdade uma questão

puramente ética.

De acordo com Miller (1997[1987], p.221), em psicanálise não há um ponto técnico

que não esteja vinculado à questão ética, é apenas comodidade de exposição fazer uma

distinção entre as duas. Na verdade, se pensarmos na técnica enquanto regra fixa de aplicação

de uma teoria com o objetivo de realizar algo – como, por exemplo, a técnica para a

construção de uma máquina é a aplicação da mecânica – podemos afirmar que em psicanálise

não há. A categoria ética do sujeito de que trata a psicanálise, onde o desejo cava a mais

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aguda singularidade, inviabiliza a criação de regras fixas a serem reproduzidas e aplicadas

para todos.

Freud não deixou de fazer menção a esta particularidade da técnica psicanalítica. Em

“Sobre o Início do Tratamento” (1913), texto em que propõe enumerar algumas regras

técnicas para o início de um tratamento psicanalítico, apresenta logo de saída sua prudência

em chamar as regras de ‘recomendações’. Freud justifica apoiando-se na singularidade de

cada caso:

“a extraordinária diversidade das constelações psíquicas

envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza

dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da

técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é

justificado, possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que

habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim

desejado” (FREUD, 1913, p. 139).

Além disso, Freud nunca escondeu que uma certa dose de preferências pessoais

contribuiu para a elaboração dessa técnica, o que o fazia não reivindicar para elas nenhuma

aceitação incondicional por parte dos analistas. Em “Recomendações aos médicos que

exercem a psicanálise” (1912), ele diz precisamente:

“devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando

é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não

me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente

diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a

seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta” (FREUD, 1912b, p.

125).

O fato de não haver uma técnica, no sentido estrito do termo, não significa dizer que

haja uma completa aleatoriedade na prática clínica. A técnica não é um lance de dados, há um

constrangimento ético. Conforme anunciou Miller (1997[1987], p.222), o que não há na

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prática clínica são técnicas padronizadas, standards, mas isso não significa que não haja

princípios.

O modelo técnico quando afastado de seu princípio, e de suas origens, perde sua

orientação e conseqüentemente fica engessado numa prática sem sentido. Em psicanálise,

sabendo que a técnica não tem nenhuma autonomia em relação à ética, isso se torna ainda

mais grave. O que podemos concluir disso é que a técnica analítica não segue nem uma

aleatoriedade, nem uma padronização, mas sustenta-se na ética. Sendo a ética, por sua vez,

apreendida na experiência da falta-a-ser, no ultrapassamento do desejo, vemos que é na

torção de seu ser que o analista encontra a orientação do real.

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Conclusão

Para finalizar, daremos relevo a alguns pontos decantados de nosso percurso,

entendidos como fundamentais em nossa trajetória. O intuito é não apenas enfatizá-los, mas

também rearranjá-los em uma perspectiva mais ampla, mais geral e mais aberta. Em cada

capítulo, nos detemos demoradamente em um aspecto crucial para o tema da ética da

psicanálise, numa espécie de análise investigativa, interessada em verificar como cada

elemento conceitual funciona e se encaixa com outro. A partir de agora, nos lançamos numa

espécie de síntese, vislumbrando hipóteses e possibilidades tanto no interior do campo da

ética da psicanálise quanto nos terrenos que a tangenciam.

Ao final desse percurso, em função da multiplicidade de campos, fatores e conceitos

que o tema da ética em psicanálise reúne, pudemos dimensionar a importância e a amplitude

que a ética da análise contém. Numa espécie de diagrama, situando a ética da psicanálise em

seu centro, podemos agora destacar os diversos campos que a rodeiam: a constituição do

sujeito, através da função da moralidade; o terreno da filosofia, através do questionamento da

moral, do bem e da felicidade; o campo de ação do psicanalista, incluindo aí a prática clínica

e sua técnica, assim como o ato analítico; a formação do analista e a decorrente instituição

psicanalítica; a extensão da psicanálise, suas possíveis aplicações, contextos e sua política.

Diante desse extenso âmbito de incidência, resta-nos deduzir que a reflexão ética

necessariamente se faz presente, em algum ou mesmo em vários momentos, da atividade de

todo psicanalista.

Antecipamo-nos em pedir desculpas ao leitor pela fragilidade com que algumas

questões serão colocadas aqui. Embora alguns pontos conceituais tenham sido alcançados e

amarrados estruturalmente, outros se abriram em forma de questões que, por nos

impulsionarem adiante, para terrenos ainda inexplorados, surgem de maneira um pouco turva,

devendo seu esclarecimento e reformulação para passos posteriores. Além disso, algumas

afirmações levantadas à guisa de resultados e conclusões do que vimos tratando até então,

afora o fato de inevitavelmente soarem repetitivas, seguem uma narração menos preocupada

com o rastreamento de seus elos lógico-dedutivos. Apoiamo-nos para isso nas exposições

traçadas em cada capítulo.

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A psicanálise freudiana pressupõe uma ética a partir do momento em que descreve a

constituição do sujeito e sua consciência moral como resultado de uma escolha inconsciente,

que diz respeito à relação da pulsão com seu objeto, ao invés de supor uma natureza divina

ou instintiva para o ser humano. Na filosofia, a reflexão ética implica uma suspensão sobre a

moral vigente, seus hábitos, códigos e normas, em vista de investigar o sentido último da

ação humana, sua origem e determinação. A psicanálise exerce essa mesma função não a

partir de um levantamento crítico sobre a moral, mas através de sua própria maneira de

conceber a constituição do sujeito e seu funcionamento psíquico. É por esta razão que

entendemos ser a psicanálise, uma reflexão ética por excelência.

Para capturar o essencial dessa ética, foi necessário, portanto, apreender a dinâmica

mental e seus mecanismos. Vimos que esse funcionamento se passa com cortes e falhas que

por mais que tentem ser resolvidos pelo sujeito e pela civilização, resguardam uma

insolubilidade estrutural. Há um movimento paradoxal que mobiliza o psiquismo,

impulsionando-o adiante ao mesmo tempo em que o retém. O resultado é a impossibilidade

de uma completude, de um funcionamento plenamente harmônico, disso dá provas o sintoma.

A felicidade, encarnação dessa plenitude, fica assim retida adiante num ideal fora de alcance.

A psicanálise nos descortina a impossibilidade em jogo, denunciando esse ideal como real.

A partir de Freud, fica constado que o programa do princípio do prazer é irrealizável e

que essa irrealização abre as vias para uma zona além desse princípio, cuja incidência se faz

sentir pela pulsão de morte. Se as doutrinas morais estão submetidas à dominância do

princípio do prazer, em seu intuito de organizar a vida humana, orientar o indivíduo a agir

corretamente e conduzir a sociedade a uma coletividade harmônica, o questionamento ético

fura este domínio e relança o sujeito para uma dimensão em que os códigos morais não

abarcam. É desse domínio além do princípio do prazer que se origina legitimamente a ética

da psicanálise.

Em Freud, a relação disjunta entre o desejo inconsciente e seu objeto de satisfação é

uma das chaves que nos levam à zona limite onde figura das Ding. A leitura lacaniana desse

esquema freudiano reescreve em termos da linguagem o corte cravado no âmago da condição

humana. Das Ding é o ponto onde o significante, ainda que tente insistentemente, não

consegue chegar. Longe de cair num niilismo em vista desse encontro impossível, a

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psicanálise propicia, ao contrário, a abertura para a criação. É desse modo que no seio da

impossibilidade nasce, vigorosa, a abertura a toda a possibilidade.

A figura do paradoxo é aquela capaz de escrever a impossibilidade lógica encontrada

pela psicanálise na constituição psíquica. Dentre todos os paradoxos que encontramos pelo

caminho, destacamos um, o paradoxo do gozo, como uma espécie de estandarte daquilo que

está em jogo na ética da psicanálise. O paradoxo do gozo aperta os nós que compõem o

destino humano em sua busca pela felicidade, impedindo o alcance de algo que originalmente

é impossível de ser alcançado. A posição do sujeito neurótico, nesta trama paradoxal, é

sucumbir de seu desejo, acatando o lugar (in)cômodo da impotência. É assim que ele, esse

sujeito, se conforma ao serviço dos bens e vela com o manto do recalque aquilo que

essencialmente lhe concerne.

De acordo com Lacan, a ética da psicanálise incide sua força quando promove a esses

sujeitos não ceder de seu desejo, autorizando-os a experimentar aquilo que a tragédia nos

mostra lindamente, o salto em direção à zona limite do desejo. O psicanalista, aquele que já

passou por essa experiência até o fim, encontra seu feito nessa autorização.

Assim, recuperamos nossas questões iniciais, motivadoras da pesquisa. Afinal, qual é

o lugar do psicanalista em sua prática? Como ele se orienta? E a partir do quê ele se engaja

em seu ofício? Todas essas questões podem agora, após nosso percurso, encontrar uma

resposta mais ordenada. Entendemos que de um modo geral, o psicanalista autoriza o sujeito

a experimentar seu desejo, liberando-o das ilusões que o retêm em sua via. Sua orientação é o

real e seu engajamento, o desejo do analista. Nisso, uma série de elementos estão envolvidos,

tanto teóricos quanto práticos, conforme desenvolvemos.

O psicanalista não encontra uma deontologia a seguir. Longe de colher sua orientação

prática numa espécie de manual explicativo, sua ética é absorvida no decorrer de sua

formação, a partir, principalmente, de sua análise pessoal. Freud fez questão de frisar isso.

Ocorre que a diferença entre o ideal e o real é muito sutil. Entendemos que se tratam menos

de conceitos diferentes e mais de uma maneira de ver. O real da impossibilidade da plenitude

é uma perspectiva sobre o ideal, perspectiva essa que se obtém a partir de uma experiência

pessoal que se caracteriza pela mobilização dos afetos. É uma experiência que se desbrava

com o “coração”, com as fraquezas do espírito, parafraseando Sade. Por esta razão, livros,

textos, aulas teóricas não conseguem alcançar o entendimento sobre o real – e a conseqüente

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mudança subjetiva – que uma análise promove. Isso nos leva a afirmar que a ética da

psicanálise está indissociada da análise pessoal que, por sua vez, torna-se obrigatória para a

formação do analista. “O lugar do analista só pode vir a ser ocupado se ele se faz a questão

acerca do enigma que anima o seu próprio desejo. Aí se sustenta a nossa ética, a ética da

psicanálise” (TEIXEIRA, 2005, p.53).

Essa ligação fundamental entre a ética e formação do analista faz da técnica da

psicanálise um terreno muito volátil. Freud nunca escondeu que suas “técnicas” estavam

longe de se tornar uma espécie de protocolo ou etiqueta a serem aplicadas ritualmente em

toda sessão e a cada novo paciente. Como protocolizar uma prática que está orientada pelo

real, justamente por aquilo que impede e fura toda sorte de uniformização? Em outros termos,

se a psicanálise é uma clínica que dá lugar ao inconsciente, protocolizá-la numa técnica,

estabelecendo previamente a conduta do clínico, implica justamente em impedi-lo de dar

lugar às manifestações do inconsciente. Isto significa que o modelo padronizado da técnica

converte-se no oposto do que uma análise propõe. Terminantemente, podemos afirmar que

não existe uma técnica standard para a psicanálise, existe uma ética. O plano da técnica está

aberto a infindáveis possibilidades, contanto que esteja, porém, orientado pela precisão da

ética.

Quando Lacan afirma que em psicanálise há mais liberdade no plano da tática do que

na estratégia e na política, não podemos deixar de assinalar que estas variações do grau de

liberdade em cada nível estão inter-relacionadas. Isto significa que para que haja um vasto

campo de possibilidades na tática é preciso que o analista esteja firme em sua política, caso

contrário o efeito não se dá. É fácil entender que quando não há incorporação e entendimento

dos princípios gerais do funcionamento de algo – seja no que for, não apenas na psicanálise –

a prática ficará limitada, restrita ao hábito e à repetição, elementos que levam rapidamente à

degradação.

Finalmente, com o intuito de reunir resumidamente, à guisa de conclusão, os pontos

fundamentais da orientação clínica da psicanálise, a partir daquilo que discutimos ao longo

dos capítulos, apresentamos agora os princípios gerais de nossa prática. Para isso, tomamos

de empréstimo o conteúdo da “Carta para a psicanálise”, trabalho construído coletivamente

por Escolas de psicanálise de diferentes países, ligadas à Associação Mundial de Psicanálise.

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Essa carta, que descreve em oito os princípios fundamentais da psicanálise, foi comunicada

por Eric Laurent, no ano de 2006, cuja publicação recebeu o nome de “Princípios Diretores

do Ato Psicanalítico”.

O primeiro princípio define que a psicanálise é uma prática da fala. Conforme

expomos no terceiro capítulo, a situação analítica é composta pela associação livre, do lado

do analisando, e pela escuta, a “atenção uniformemente suspensa”, do lado do analista. Ainda

que ambos elementos sirvam ao inconsciente, eles não apresentam nenhuma

complementaridade entre si. Analista e analisando “não tem a mesma relação com esse

inconsciente, pois um já efetuou a experiência até o seu termo, o outro não” (LAURENT,

2006).

O segundo princípio diz que “a sessão psicanalítica é um lugar onde se podem

afrouxar as identificações mais estáveis às quais o sujeito é fixado” (LAURENT, 2006). Isso

nos leva diretamente à afirmação de Lacan sobre a via de uma análise: liberar o desejo das

ilusões que o retêm. As identificações narcísicas, conforme apontamos no segundo capítulo,

não passam de ilusões, fantasmas. No texto, Laurent ainda afirma que o psicanalista é aquele

que “autoriza a distância para com os hábitos, as normas, as regras às quais o analisante se

obriga fora da sessão” (LAURENT, 2006), ou seja, é aquele que autoriza o questionamento

da moral, ato puramente ético.

O terceiro princípio diz respeito à transferência e à abstinência, indicando que o

analisando se endereça ao analista enquanto o Outro da suposição de saber. Ciente, portanto,

de que os sentimentos, crenças e valores do analisando não concernem à sua pessoa, o

analista se abstém, assim, de responder em nome do fantasma.

O quarto princípio prescreve a inutilidade de intervenções terceiras na relação

analista-analisando. A justificativa está associada ao princípio anterior: na relação analítica, o

Outro já ocupa o lugar de terceiro.

O quinto princípio determina aquilo que já vimos enfatizando: “não há tratamento

standard, não há protocolo geral que reja o tratamento psicanalítico” (LAURENT, 2006). A

prática analítica tem sua regularidade restringida à originalidade de seu dispositivo, aquele

que permite a cada um produzir sua singularidade, sua exceção.

O sexto princípio é conseqüência de seu anterior. Não havendo uma padronização do

tratamento, é permitida a variação de sua duração, tanto do tratamento como um todo, quanto

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das sessões. Em função da variabilidade dos casos clínicos, a carta define que o tratamento

analítico é “sob medida”. Esta definição nos pareceu bastante precisa.

O sétimo princípio é uma afirmação da descoberta psicanalítica sobre a falta estrutural

que constitui o sujeito, e sua conseqüência ética. A psicanálise não dispõe da peça-chave que

venha a trazer a satisfação plena para todos os sujeitos e, portanto, não pode prescrever uma

maneira ideal de viver bem. Essa impossibilidade, ao invés de significar um fechar de portas

derradeiro, permite justamente o contrário, a abertura de possibilidades para cada um inventar

sua maneira própria de viver com sua falta. “Se não há satisfação plena e se não há norma,

resta a cada um inventar uma solução particular que se apóie em seu sintoma” (LAURENT,

2006).

O oitavo e último princípio versa sobre um aspecto que descobrimos ser o ponto

nevrálgico sobre a ética da psicanálise, a formação do analista. De acordo com as

recomendações freudianas, a formação do psicanalista não deve estar reduzida aos critérios

de uma formação universitária ou às avaliações das aquisições práticas, mas deve estar

apensa à experiência de análise. Para os psicanalistas da AMP, a formação do analista está

assentada em um tripé que consiste em estudos teóricos, análise pessoal (levada até seu ponto

último) e supervisão. Ainda que esse tripé pareça completo e bem estruturado, ele, entretanto,

não é suficiente para conceber uma identidade ao psicanalista. De acordo com Laurent

(2006), a identidade do psicanalista é uma ilusão – como toda identidade, poderíamos

acrescentar – e que inclui uma variação que diz respeito à própria história da psicanálise.

Acreditamos que estes princípios reuniram muito sucintamente os elementos

fundamentais da clínica psicanalítica: a situação analítica, a transferência e a abstinência, o

real e sua conseqüência ética, a variabilidade tática e a formação do analista. Obviamente,

reiterando o estatuto ético da psicanálise, não podemos cair no engodo de que esses

princípios, pure et simpliciter, identifiquem a psicanálise com um todo. Podemos acrescentar

que o conteúdo dessa carta encontra sentido nas arestas do contexto de sua época, a

atualidade, o que nos permite supor que, com as surpresas e mudanças que o futuro reserva,

posteriormente seremos levados a novas interrogações, reflexões e rearranjos.

De todo modo, observamos uma problemática e levantamos uma indagação a respeito

da formação do analista. Se em nome da psicanálise fosse formulada uma formação

completa, que visasse a produção de um analista ideal, cair-se-ia no mesmo erro do

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procedimento standard, quer dizer, uma série de critérios práticos e padronizados seriam

prescritos, deixando de lado justamente o que é propriamente psicanalítico, o real. Isso nos

leva a pensar que também a formação do analista não deve ser padronizada num modelo

específico, ao preço de perder sua legitimidade. Diante disso, podemos questionar até que

ponto não se faz do tripé da formação (estudos teóricos, análise pessoal e supervisão –

conforme descrito no oitavo princípio) um standard, quer dizer, até que ponto a formação do

analista não está restrita ao cumprimento desse tripé. A mesma questão que incide sobre a

prática, incide sobre a formação analítica.

Essa questão toma relevo em função da presença da psicanálise na universidade.

Atualmente, há um consenso sobre o fato de que a universidade não forma psicanalistas.

Parece-nos uma afirmação bastante pertinente, em função das divergências éticas de ambos

os campos. Perguntamo-nos, porém, até que ponto essa afirmação procede, temendo que não

haja aí a sombra do stardard. Sabemos que a universidade, além de formação teórica,

disponibiliza também uma experiência clínica que se transmite em supervisão. Levando em

conta que a análise é pessoal, supostamente é possível verificar a presença do tripé de

formação circunscrito pela universidade. Sem esquecer da questão do passe, será que a

formação na universidade é mesmo absurda?

Encarregado de concluir um congresso sobre a transmissão em psicanálise, em 1978,

Lacan declara que a psicanálise é intransmissível. “Isso é bem desagradável. É desagradável

que cada psicanalista seja forçado – já que é preciso que ele seja forçado a isso – a reinventar

a psicanálise” (LACAN, 1978, p.66). Por intransmissível, entendemos a falta de garantia

patente à transmissão da experiência do real. Isto nos leva a algumas considerações.

Em primeiro lugar, em função desse intransmissível, ou melhor, da falta de garantia,

podemos pensar que também o psicanalista não deve confiar à obediência do tripé uma

suposta garantia de formação, assim como a manutenção dos princípios da análise não estava

garantida no modelo standard. A falta de garantia, em psicanálise, deve ser levada a sério, ao

invés de ser tamponada com prescrições que, mesmo na melhor e mais atenta das intenções,

pode estar direcionada por um ideal. Por outro lado, não podemos cair na ingenuidade de que

há um caminho sustentado no real da falta de garantia, afinal o real é justamente a falta, a

falha. Isso gera um problema para a própria psicanálise: faz com que ela vire-se contra si

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mesma, na medida em que indisponibiliza seus parâmetros de sobrevivência. Esta é uma das

razões que nos faz entender que é bem desagradável o fato da psicanálise ser intransmissível.

No impasse desse nó górdio, Lacan lança mão de uma solução curiosa, uma espécie

de anti-solução: que cada analista reinvente a psicanálise. Por conter em si mesma a

impossibilidade de completude que descobriu, a psicanálise por princípio é uma prática

aberta a reinvenções e criações. Somos remetidos, assim, à diversidade da prática clínica

presente na época atual, conforme apresentamos na introdução deste trabalho. Se a

psicanálise resguarda um espaço aberto para a novidade e para a criação, nada mais legítimo

do que a multiplicidade de contextos clínicos. Além disso, vimos que a ética da psicanálise

não normatiza um contexto previamente estabelecido para sua práxis, o que outorga sua

possibilidade de expansão para contextos imprevisíveis. Acrescentamos, ainda, a idéia de que

havendo um analista, na condição de desejo do analista, submetido a sua ética, e

transferência, há tratamento possível nos mais diversos contextos clínicos.

Concluímos essa dissertação reiterando e enfatizando aquilo que nos restou como

grande lição ética: a criação a partir do vazio do real. Essa criação, que faz a ética da

psicanálise desbravar um campo estético, colocando a sublimação em seu vértice, é lição que

incide tanto na experiência de análise propriamente dita, promovendo uma saída singular a

cada sujeito, quanto na prática clínica, promovendo a multiplicidade de invenções no terreno

da técnica.

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