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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica Da determinação simbólica ao encontro com o real: como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de uma análise? Cecília Moraes de Castro Leal Rio de Janeiro 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Psicologia

Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

Da determinação simbólica ao encontro com o real:

como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de

uma análise?

Cecília Moraes de Castro Leal

Rio de Janeiro

2011

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Da determinação simbólica ao encontro com o real:

como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de

uma análise?

Cecília Moraes de Castro Leal

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-graduação em Teoria

Psicanalítica da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª. Drª. Simone Perelson

Rio de Janeiro

2011

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Da determinação simbólica ao encontro com o real:

como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de

uma análise?

Cecília Moraes de Castro Leal

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-graduação em Teoria

Psicanalítica da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre.

Aprovada por:

___________________________________________

Profª. Drª. Simone Perelson - Orientadora

___________________________________________

Profª. Drª. Ana Lucia Lutterbach Holk

___________________________________________

Prof. Dr. Joel Birman

Rio de Janeiro

2011

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Leal, Cecília Moraes de Castro

Da determinação simbólica ao encontro com o real: como se produz a diferença a partir

da repetição na experiência de uma análise?

Cecília Moraes de Castro Leal. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011

xi, 107f. ; 29,7 cm

Orientadora: Simone Perelson

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em

Teoria Psicanalítica, 2011.

Referências Bibliográficas: f. 105-107.

1. Psicanálise 2. Repetição 3. Diferença 4. Simbólico 5. Real 6. Transferência

I. Perelson, Simone. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de

Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Da

determinação simbólica ao encontro com o real: como se produz a diferença

a partir da repetição na experiência de uma análise?

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pelo apoio financeiro provido para a realização desta pesquisa.

À Simone Perelson, por me orientar neste percurso, dando-me, ainda assim, espaço para

escolher os trajetos a seguir.

À Ana Lucia Lutterbach Holk e a Joel Birman, por aceitarem, tão solicitamente,

participar da banca de defesa desta dissertação de mestrado.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. E,

em especial, à Fernanda Costa Moura e à Isabel Fortes pela presença no exame de

qualificação.

À Bárbara, minha mãe, pelos inúmeros cafezinhos adoçados com amor, nas madrugadas

(quase) solitárias de trabalho. E, por tentar me ajudar no que fosse possível, ao longo

desta jornada.

Ao meu pai, Milton, pelos almoços e lanches compartilhados entre um parágrafo e

outro, que me ajudaram a recobrar as energias para continuar seguindo.

À minha irmã, Celina, por seu carinho e pela confiança.

À Dora, tia querida, pelos intervalos, algumas vezes inesperados, mas sempre oportunos

e muito bem vindos.

À querida amiga Joana, pelas conversas (teóricas ou não), pela companhia nas longas

horas de biblioteca e, sobretudo, por suas infinitas palavras de incentivo, que não me

deixaram esmorecer.

À Júlia, por seu apoio temperado com aquela dose de pragmatismo, que por vezes tanto

me falta.

Aos de todas as horas: Adriana, João, Gabriel, Flávia Nahon, Tatiana Restrepo e

Rodrigo. Pela amizade, pelo incentivo, pelos momentos de distração. Vocês, Júlia e

Joana foram simplesmente fundamentais.

Aos amigos e companheiros de mestrado, Fábio e Tatiana Holanda, por dividirem as

dores e as delícias de ser um mestrando em teoria psicanalítica.

À Elisabet, amiga querida, que mesmo em outro continente, permanece contida em meu

coração.

À Rodrigo Lyra Carvalho, por sua escuta que faz a diferença.

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RESUMO

A presente dissertação tem como proposta investigar a possibilidade de engendramento

da diferença na experiência de uma análise, a partir da repetição em que se encontra

capturado o sujeito. Com este objetivo, examina-se o conceito de repetição a partir das

duas dimensões nele implicadas: a simbólica e a real. Inicialmente, privilegia-se a

investigação da face simbólica da repetição. Observa-se que a presença de alguns

trajetos aos quais o sujeito é insistentemente reconduzido em suas narrativas, e que

marcam sua história, é inerente a própria estruturação do simbólico e está relacionada

com a determinação do sujeito pelo discurso do Outro. A seguir, aborda-se a causa real

da repetição, recorrendo-se a três noções que fazem a ela alusão: o conceito de pulsão

de morte, de das Ding e de tiquê. Constata-se que a força motriz da repetição se refere a

um excedente pulsional que resiste a qualquer esforço de significantização, e que se

presentifica no simbólico como um cavo. Um cavo que, ao mesmo tempo, faz limite e

incita à remissão significante. Através deste exame, evidencia-se que quando do

encontro com o real é com a diferença radical que o sujeito se depara. E, a seguir,

demonstra-se que o confronto com a falta no Outro é condição de possibilidade para

este fugaz (re)encontro com a causa perdida do inconsciente. Por fim, trabalha-se a

repetição em relação à experiência analítica. Para tanto, investiga-se as junções e

disjunções entre este conceito e o de transferência – desde o início, fortemente

articulados na obra freudiana –, recorrendo-se às contribuições de Lacan para desfazer o

nó entre eles. Conclui-se que a transferência tem por efeito velar a castração do Outro e

que, neste sentido, ela é um recurso contra a tiquê. Contudo, infere-se que é por meio da

circularidade da demanda do analisante, isto é, dos significantes que retornam nela, que

o analista pode ter acesso ao objeto em torno do qual eles gravitam. Deduz-se, então,

que através das suas intervenções, o analista deve visar este resto de non-sense que

assedia, nas entrelinhas, o discurso do paciente e que é, assim, que o sujeito poderá ser

conduzido a se deparar com o inesperado, com o novo.

Palavras-chave: psicanálise, repetição, diferença, simbólico, real, transferência

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RESUMÉ

Cette dissertation se propose d‟étudier la possibilité d‟engendrement de la différence

dans l‟expérience d‟une analyse, en partant de la répetition dans laquelle le sujet est

capturé. Avec cet objectif, le concept de répétition est examiné sur les deux dimensions

qui y participent: la symbolique et la réelle. Initialement, la recherche met en relief le

visage symbolique de la répétition. On observe que la présence de certains chemins

auxquels le sujet est régulièrement réconduit dans ses récits, et qui marquent son

histoire, est inhérent à la structuration même du symbolique et est liée à la

détermination de l'objet par le discours de l'Autre. À suivre, on aborde la cause réelle de

la répétition, avec l‟aide de trois notions qui lui font allusion: les concepts de pulsion de

mort, de das Ding et de tiquê. On constate que la force motrice de la répétition se réfère

à un excédent pulsionel qui résiste à tout effort de significantisation, et qui se présentifie

dans le symbolique comme un trou. Un trou qui, en même temps, fait limite et incite à

la rémission significative. Grâce à cet examen, il devient évident qu‟au moment de la

rencontre avec la réalité, le sujet est confronté avec la différence radicale. Et puis, on

démontre que la confrontation avec le manque dans l'Autre est la condition de

possibilité de cette rencontre fugace avec la cause perdue de l'inconscient. Bref, on

analyse la répetion par rapport à l'expérience analytique. Dans ce but, on étudie les

jonctions et les disjonctions entre ce concept et le transfert - dès le début, fortement

articulés dans l'œuvre de Freud – avec l‟aide des contribuitions de Lacan pour défaire le

nœud entre eux. On conclu que le transfert a un effet de voile sur la castration de l'Autre

et, dans ce sens, il est un recours contre la tiquê. Toutefois, on infère que par la

circularité de la demande de l'analysant, c'est à dire, des signifiants qui retournent sur

elle, l'analyste peut avoir accès à l'objet autour duquel ils gravitent. On en déduit, alors,

que par ses interventions, l'analyste doit viser ce reste de non-sens qui assiége, entre les

lignes, le discours du patient et c‟est, ainsi, que le sujet pourra être amené à rencontrer

l'inattendu, le nouveau.

Mots-clés: psychanalyse, répétition, transfert de différence, symbolique et réel

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11

1.1 Na trilha das facilitações do Projeto............................................................................... 16

Algumas considerações sobre o artigo ............................................................................. 16

O aparelho psíquico no Projeto ........................................................................................ 18

Bahnung: memória e repetição ......................................................................................... 19

A experiência de satisfação e as primeiras facilitações .................................................... 21

1.2 O inconsciente estruturado como linguagem.................................................................. 25

O retorno à Freud a partir da lingüística ........................................................................... 25

A subversão do signo saussuriano e suas conseqüências ................................................. 25

Metáfora e metonímia ....................................................................................................... 29

1.3 O automatismo da cadeia significante ............................................................................ 34

A carta roubada ................................................................................................................ 34

Anterioridade e determinação significante ....................................................................... 36

“Par ou ímpar?” – a emergência da lei a partir do acaso .................................................. 40

CAPÍTULO 2: A FACE REAL DA REPETIÇÃO .............................................................. 47

2.1 Além do Princípio do Prazer: a repetição é própria à pulsão ......................................... 47

O primado do prazer em xeque......................................................................................... 47

Fort-Da ............................................................................................................................. 49

Trauma: excesso e falta .................................................................................................... 50

Redefinindo a pulsão e estabelecendo uma nova dualidade pulsional ............................. 52

2.2 Das Ding ......................................................................................................................... 55

Revendo o Projeto à luz do Além: breve introdução à Coisa ........................................... 55

Juízo, pensamento e fabricação da realidade .................................................................... 58

Essa estranha Coisa tão íntima ......................................................................................... 61

2.3 Tiquê: a causa acidental da repetição ............................................................................. 65

Automatôn e Tiquê ............................................................................................................ 65

O encontro traumático com o desejo do Outro ................................................................. 70

CAPÍTULO 3 – REPETIÇÃO E EXPERIÊNCIA ANALÍTICA ........................................ 76

3.1 Repetição e transferência na obra freudiana ................................................................... 76

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Sobre a dinâmica da transferência .................................................................................... 77

Agieren ............................................................................................................................. 80

A regra da abstinência ...................................................................................................... 83

3.2 Considerações sobre o conceito de transferência em Lacan........................................... 85

Sujeito-suposto-saber ....................................................................................................... 85

Agalma .............................................................................................................................. 90

Reflexões sobre a intervenção analítica............................................................................ 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 105

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Repetir, repetir – até ficar diferente.

Manoel de Barros

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INTRODUÇÃO

Na experiência clínica, não é raro que analisantes venham constatar

queixosamente que “não conseguem fazer diferente” ante alguma situação (nova,

porém, de certa forma, familiar) que se lhes apresenta. O conteúdo dessas queixas, é

bem verdade, diverge de uma a outra. Em todas, porém, é possível apontar um problema

em comum, a saber: a repetição em que se encontra capturado o sujeito e da qual este

não consegue escapar, a despeito de seus esforços. Tem-se a impressão, aí, que é como

se um roteiro ou um caminho já tivesse sido previamente traçado, e o sujeito não

pudesse evitar segui-lo; ou ainda, como se ele fosse obrigado, impelido,

necessariamente, a percorrê-lo, mesmo que por vezes já esteja advertido e ciente de que

o desfecho para o qual estas vias tão familiares irão lhe conduzir pode vir a ser bastante

doloroso.

A força desta compulsão a repetição, que constrange o sujeito a passar pelas

mesmas situações, com os mesmos desenlaces, é tão intensa e, ao mesmo tempo, parece

tão alheia àquele que a experimenta que, não é à toa, muitos tendem a ver nela a ação do

destino. É, aliás, o que o próprio Freud nos aponta em 1920, no texto Além do Princípio

do Prazer, onde se dedica justamente a abordar esta problemática da compulsão a

repetição. Ali, ele afirma a respeito das pessoas que encontram sempre o mesmo

resultado em suas relações humanas que “a impressão que [elas] dão é o de serem

perseguidas por um destino maligno” (p.35). Freud, entretanto, faz questão de sublinhar

que a psicanálise discorda deste tipo de explicação: “a psicanálise [...] sempre foi da

opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado

por influências primitivas” (idem).

Contudo, a despeito de não deixar de reconhecer a implicação do sujeito nessa

estranha repetição, Freud também desde a primeira vez que tratou deste conceito, em

1914, no artigo técnico Recordar, repetir e elaborar, sempre nos indicou claramente que

o sujeito está fadado a repetir a sua revelia. Nessa época, vale dizer, ele ainda não

concebia a repetição como o princípio mais fundamental do aparelho psíquico e índice

de uma força que se mantém para além do princípio do prazer – o que só viria a

acontecer em 1920.

Ainda assim, o que ele já nos apontava no referido artigo técnico, e que se

manteria mesmo depois de suas elaborações ulteriores sobre este tema, é que no decurso

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do tratamento, o paciente não pode se furtar de repetir, na sua relação com o analista,

“suas inibições, suas atitudes inúteis [...], [bem como] todos os seus sintomas”

(FREUD, 1914, p.198), pois – como haveremos de demonstrar em nosso último

capítulo – o próprio dispositivo analítico provoca-o para tal. Quer dizer, se aqui ele

ainda não admitia a repetição como algo inerente ao funcionamento psíquico e,

portanto, à constituição do sujeito, o que Freud já nos deixava entrever, ainda que se

referindo à repetição apenas enquanto um fenômeno clínico, é que o sujeito não tem

qualquer domínio sobre ela. Longe de se manter numa posição de maestria com relação

à repetição, o sujeito se encontra a ela submetido.

Foi a partir dessas considerações que vimos esboçar-se um interessante

paradoxo, pois se por um lado há que se admitir que “enquanto o paciente se acha em

tratamento, [ele] não pode fugir desta compulsão a repetição” (FREUD, 1914, p.198),

por outro, acreditamos que seja indubitável também que a experiência de uma análise

propicia – ainda que este não seja o objetivo primordial desta – o engendramento de

importantes modificações subjetivas. Afinal, se afirmamos logo de saída que é freqüente

que pacientes em análise se queixem das repetições nas quais se vêem capturados,

também – devemos admitir – não é nada incomum que, depois de um certo tempo de

trabalho analítico, alguns deles consigam deslocar-se dessas rotas já conhecidas, vindo a

construir desenlaces alternativos para algumas de suas histórias.

Ora, como isso é possível? Se o sujeito está condenado a repetir não apenas fora

da cena analítica, mas também nela; se o próprio dispositivo psicanalítico incita-o

especialmente a repetir, e ele não possui qualquer controle sobre isso, como é possível o

advento do novo a partir desta experiência?

Com efeito, o que Manoel de Barros parece nos sugerir no sucinto verso que nos

serve de epígrafe na abertura desta dissertação, “Repetir, repetir – até ficar diferente”, é

que não é sem a repetição que se chega a uma nova configuração das coisas. Mas, o que

propicia essa passagem da repetição à diferença? E, sobretudo, como ela se dá em

análise?

Fruto dessas interrogações, a presente dissertação tem como proposta central

debruçar-se sobre este conceito fundamental da psicanálise: a repetição, a fim de

investigar como, a partir dela, algo de inesperado pode ser produzido dentro do processo

analítico. Para tanto, entendemos que será preciso esclarecer no que consistem esses

caminhos familiares que na sua história o sujeito se vê cegamente levado a percorrer

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repetidas vezes, bem como o que jaz para além desta repetição automática, motivando-a

compulsivamente como uma força estranha.

Nesse sentido, acreditamos que as contribuições lacanianas para este tema nos

serão de grande relevância. Pois, grosso modo, o que elas nos permitem vislumbrar é

que a repetição apresenta duas faces: uma delas é a simbólica, que se refere ao aspecto

da repetição que, de alguma maneira, se dá a ver. Onde? Na própria fala do sujeito, nos

enunciados através dos quais sua vida e sua história são narradas. Ou seja, ela se refere

justamente à repetição de certos enredos à que fizemos referência, aos quais o sujeito

parece não poder escapar.

É à investigação desta face simbólica que nos deteremos em nosso primeiro

capítulo. A fim de compreendê-la, julgamos interessante, antes de tudo, nos debruçar

sobre as considerações freudianas encontradas no Projeto para uma Psicologia

Científica (1950[1895]), e mais especificamente sobre a noção de Bahnung que nos é ali

apresentada. Pois, acreditamos que a partir delas já nos será possível entrever parte do

que Lacan pretende nos indicar ao afirmar que o inconsciente é estruturado como uma

linguagem.

Em seguida, nos ocuparemos precisamente das contribuições feitas por Lacan à

psicanálise a partir da lingüística estrutural. Nosso objetivo com isto será traçarmos um

panorama que nos permita compreender como se estrutura a ordem simbólica, a fim de

podermos, então, logo depois, apontarmos como o psicanalista francês explica a

insistência de determinadas articulações significantes no desdobramento automático da

cadeia simbólica e a posição do sujeito em relação a ela. Para tanto, recorreremos

principalmente aos escritos lacanianos A instância da letra no inconsciente ou a razão

desde Freud (1957) e O seminário sobre „A carta roubada‟ (1956) em articulação com

O Seminário – livro 2 (1954-1955).

Já em nosso segundo capítulo, é a outra face da repetição que nos interessará: a

sua face real, que se refere justamente à dimensão que não se dá a ver na repetição, que

permanece inassimilável à fala, para além de qualquer narrativa que o sujeito possa

construir sobre si, sobre sua vida, e sobre o mundo que o cerca. Ou seja, nos

dedicaremos a trabalhar aquilo que não cessa de não se escrever, retornando sempre ao

mesmo lugar: aquele no qual o pensamento ao pensar nunca o encontra.

Para abordarmos aquilo que de real insiste na repetição, e deslindarmos como

isto se articula ao automatismo da cadeia simbólica, planejamos começar utilizando o

artigo freudiano Além do Princípio do Prazer (1920), para depois nos debruçarmos

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sobre a noção de das Ding desenvolvida no Projeto para uma Psicologia Científica

(1950[1895]) e retomada por Lacan em O Seminário – livro 7 (1959-1960). E, ao final

deste capítulo, recorreremos ainda às formulações lacanianas encontradas em seu

seminário destinado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), onde ele

nos apresenta, servindo-se de duas noções aristotélicas, Automatôn e Tiquê, esses dois

níveis da repetição, reconhecendo nesta última a causa real da repetição.

Acreditamos que por meio desse estudo o que se evidenciará é que tanto as

noções de pulsão de morte, quanto à de das Ding e de tiquê são maneiras distintas de

tentar dar conta desta estranha força que incita imperativamente à repetição dos mesmos

enredos que marcam de maneira singular a história de vida de cada um.

Por fim, reservaremos o terceiro e último capítulo desta dissertação para

refletirmos sobre as incidências da repetição na experiência de uma análise, a partir das

possíveis junções e disjunções deste conceito com o de transferência. Isso porque, como

haveremos de mostrar, na obra freudiana estas duas noções aparecem sempre de tal

forma atreladas uma a outra, que muitas vezes pode parecer que a transferência se

resume a um tipo especial de repetição: aquela que se dá especificamente dentro do

dispositivo clínico, na relação com o analista. O que, com efeito, nos traz embaraços,

pois temos como hipótese de base que é por meio da transferência, já que esta constitui

o motor do tratamento analítico, que se torna possível passar da repetição do mesmo à

diferença.

Assim, na primeira parte deste capítulo, nos dedicaremos a investigar a

aproximação que realiza Freud entre essas duas noções, com o objetivo de esclarecer a

seguinte questão: se Freud supõe que a transferência é repetição, então, o que ele admite

que se repete nela? Tentaremos responder a esta pergunta utilizando as suas

considerações encontradas nos artigos técnicos A dinâmica da transferência (1912),

Recordar, repetir e elaborar (1914), e Observações sobre o amor de transferência

(1915), articulando-as às elaborações tecidas acerca deste tema em Além do Princípio

do Prazer (1920).

A seguir, na segunda metade de nosso terceiro capítulo, julgamos relevante nos

ocuparmos somente do conceito de transferência, pensando-a, desta vez, a partir de duas

noções lacanianas, quais sejam: a de sujeito-suposto-saber e a de agalma, desenvolvidas

para nos indicar o que está no cerne do estabelecimento e da sustentação da

transferência. Com isso, pretendemos ter uma visão da transferência que não seja

subsumindo-a ao conceito de repetição, para que depois, tendo-os compreendido

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melhor, possamos novamente rearticular esses dois conceitos, já com vistas de preparar

o caminho para esboçarmos uma resposta para a principal interrogação que nos põe a

trabalhar.

Vale dizer, ainda, que não temos a pretensão de examinarmos a fundo as noções

de sujeito-suposto-saber e de agalma. Nosso interesse, aqui, é apenas o de circunscrevê-

las de forma geral, a partir principalmente da Proposição de 09 de outubro de 1967 e

das formulações tecidas em O Seminário – livro 8 (1961-1962), a fim de tentarmos

encontrar uma possível solução para o nosso impasse.

.

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CAPÍTULO 1.

A VERTENTE SIMBÓLICA DA REPETIÇÃO

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra

(...).

Carlos Drummond de Andrade

1.1.

Na trilha das facilitações do Projeto

Algumas considerações sobre o artigo

Em 1895, no artigo intitulado Projeto para uma psicologia científica, Freud se

deu a tarefa de tentar escrever o funcionamento psíquico a partir de uma abordagem

quantitativa, utilizando-se de noções retiradas da fisiologia e da anatomia cerebral.

Acabou desistindo da empreitada e abandonando o texto, que nunca divulgou. Foi

apenas postumamente, em 1950, que este chegou até as mãos do público, oferecendo-

nos elaborações riquíssimas e controversas. Controversas, justamente porque ao

empregar uma linguagem neurológica para falar do aparato psíquico, o pai da

psicanálise teria dado margem para que alguns entendessem que ele se esforçava por

situar as bases do funcionamento deste aparato na fisiologia do cérebro.

Todavia, como nos aponta Garcia-Roza (1991), o que uma crítica como esta

desconsidera é que, mesmo que Freud estabeleça no Projeto um certo isomorfismo entre

o sistema nervoso e o psiquismo, ele ainda assim não parecia admitir uma

correspondência exata entre ambos. Afinal, “os neurônios aos quais ele se refere como

constituindo a base material do aparelho psíquico não correspondem às descobertas da

histologia do século XIX” (GARCIA-ROZA, 1991, p.80), de onde precisamente teria

tomado de empréstimo esta noção. Logo, se é inegável que Freud concebe ali o

psiquismo tal como uma rede neuronal, suas formulações não nos levam a acreditar que

ele buscasse fundamentar os processos psíquicos na anatomia cerebral, porquanto elas

implicam “uma recusa da anatomia e da neurologia da época” (GARCIA-ROZA, 1991,

p.81).

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Deste modo, como nos aponta tão bem Lacan (1959-1960), “o que constitui o

interesse ardente que podemos ter lendo o Entwurf não é a pobre contribuiçãozinha a

uma fisiologia fantasista que ela comporta” (LACAN, 1959-1960, p.50), mas sim,

acreditamos, o fato de que neste artigo já é possível encontrarmos, em estado germinal e

sob a terminologia pretensamente científica, muitas das idéias que serão posteriormente

desenvolvidas por Freud – dentre elas, por exemplo, a noção de desejo – e outras tantas

que serão retomadas pelo próprio Jacques Lacan – tais como a idéia de trilhamento

(Bahung) e a noção de das Ding. Com efeito, como pretendemos demonstrar, a estrutura

do aparelho psíquico construído no Projeto se encontra em fina consonância com as

elaborações que Lacan traçará a partir da lingüística estrutural. O que torna esses

renegados rascunhos um documento preciosíssimo para a psicanálise.

Mas, vejamos como as elaborações do Projeto poderiam contribuir

especialmente para o nosso debate; em que medida elas nos ajudam a pensar a repetição

na qual se encontra capturado o sujeito.

Na ocasião da redação deste artigo, é bem verdade, a noção de repetição ainda

não havia sido elaborada enquanto um conceito pelo pai da psicanálise. Tal feito, aliás,

como abordaremos em nosso terceiro capítulo, só ocorreria quase vinte anos depois, no

artigo técnico Recordar, repetir e elaborar (1914). E, mesmo assim, a repetição

apareceria ali muito mais como um fenômeno peculiar à clínica (intimamente

relacionado à transferência e à resistência) do que como um princípio inerente ao

funcionamento psíquico – o que somente seria admitido expressamente em 1920, em

Além do Princípio do Prazer, e não sem graves conseqüências para a teoria

psicanalítica.

Não obstante, acreditamos que já é possível vislumbrarmos no Projeto para uma

Psicologia Científica o esboço dessa idéia que virá a ser concebida em 1920. No

referido artigo, a concepção de que há algo da ordem do repetitivo na origem e

estruturação do psiquismo fica evidente através da noção de Bahnung (essencial para

pensarmos a memória em Freud e interessante para entendermos a ordem simbólica em

Lacan) e se encontra intrinsecamente articulada com a experiência que, segundo as

observações freudianas, estaria na raiz do desejo: a experiência de satisfação.

Investigaremos essas articulações com mais calma a seguir, mas antes julgamos

imprescindível explicarmos rapidamente os moldes nos quais é concebido o psiquismo

nesses rascunhos.

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O aparelho psíquico no Projeto

Nesse artigo, nos é apresentado um aparato psíquico composto como que por

circuitos neuronais divididos em três sistemas – memória (ψ), percepção (φ) e

consciência (ω) –, através dos quais circula, menos ou mais livremente, dependendo do

sistema em questão, uma certa quantidade (Q) de energia, provinda tanto de fontes

exógenas quanto endógenas de estimulação.

De acordo com as hipóteses freudianas, o funcionamento psíquico seria regido,

de início, pelo princípio da inércia neurônica, segundo o qual os elementos materiais

que compõem o aparelho – isto é, os neurônios – tendem a desenvestir-se

completamente de Q mediante uma descarga motora, privilegiando neste processo,

dentre todas as possíveis vias de descargas, aquelas que acarretassem a cessação do

estímulo. Assim, no caso das excitações advindas do mundo externo, esta quantidade de

energia seria empregada numa ação reflexa de fuga.

Contudo, como Freud reconhece que para aplacar as estimulações de origem

interna a fuga do estímulo não é eficaz, fazendo-se aqui necessária a realização de uma

ação específica – processo energeticamente mais dispendioso –, ele admite que o

aparelho psíquico logo relativiza esta propensão primordial de reduzir Q a zero, através

da atuação do princípio da constância, que o obriga a reter e tolerar um acúmulo

mínimo de Q – sua função secundária.

Aqui, cabe uma ressalva: no Projeto, apesar de não se referir expressamente ao

princípio do prazer, Freud praticamente o assimila ao princípio da inércia neurônica, ao

afirmar que, com efeito, sentia-se tentado a identificar a tendência já conhecida da vida

psíquica de evitar o desprazer com a tendência primária à inércia, colocando esta última,

portanto, em oposição à função secundária do aparelho. Posteriormente, no entanto, em

1920, no artigo que marca a sua grande virada teórica, intitulado Além do Princípio do

Prazer, Freud irá rever esta posição ao admitir ali a existência de uma tendência mais

primordial do aparelho psíquico do que a disposição de evitar o desprazer, qual seja: a

tendência de zerar por completo todas as excitações e conduzir-se, assim, ao próprio

aniquilamento. Neste texto, ele associará este impulso à pulsão de morte e ao princípio

de funcionamento por ela imposto ao psiquismo, denominado então de princípio do

Nirvana.

Quanto a essas reformulações, não é de nosso interesse nos aprofundar nelas

agora, até mesmo porque pretendemos debatê-las detidamente no capítulo seguinte.

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Porém, o que acreditamos que seja importante sublinharmos neste momento é que, de

certa maneira, parte dessas suas teorizações ulteriores já podia ser encontrada nesses

rascunhos, uma vez que – como é possível notar – o imperativo que é prescrito pelo

princípio do Nirvana não é senão o mesmo que Freud reconhecia em 1895 como sendo

próprio ao princípio da inércia. Todavia, a diferença – a grande diferença, aliás – é que

em 1920 ele promove uma espécie de torção em relação àquilo que proclamava sua

elaboração anterior, pois a partir daí o princípio do prazer ficará associado ao que ele

denomina no Projeto de função secundária, respondendo pela manutenção de uma certa

homeostase no aparelho, e não mais ao princípio da inércia, como aqui.

Feita esta ressalva, voltemos aos rascunhos de 1895.

A fim de explicar como a função secundária – qual seja, a de conservar um certo

nível basal de Q – pôde ser garantida, Freud supõe, então, a presença de barreiras de

contato entre os neurônios, que dificultam a descarga imediata e total da quantidade de

excitação.

Ao postular a existência de tais barreiras, ele também tentava explicar o quê

diferencia o sistema mnêmico do perceptivo sem apelar para uma diferença na

constituição dos neurônios que compõem cada sistema. Assim, concebe que aquilo que

distingue os dois sistemas é precisamente a forma como se comportam as barreiras de

contato num e noutro. Enquanto que no perceptivo essas não se fazem sentir entre os

neurônios; no sistema ψ, as barreiras de contato opõem resistência à livre passagem de

Q.

Contudo, Freud admite que o nível de resistência apresentado por essas barreiras

não é imutável, nem idêntico em todo sistema mnêmico. De acordo com suas

conjecturas, ao abrir caminho (trilhar) por entre determinados neurônios, a passagem da

quantidade de excitação acarreta a diminuição da resistência oferecida pelas barreiras de

contato, tornando o caminho atravessado mais permeável à próxima condução de Q.

Bahnung: memória e repetição

A noção de Bahnung se refere justamente a essa espécie de trilhamento que, por

proporcionar o aumento de permeabilidade das barreiras de um determinado percurso,

garante que este se torne doravante um caminho privilegiado no sistema ψ para escoar a

excitação. É nesse sentido que eles poderiam ser considerados mais “facilitados” do que

os demais. E, segundo Freud, quanto maior a intensidade e a freqüência das correntes de

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excitação que atravessaram anteriormente o mesmo circuito neuronal, maior será o grau

de facilitação deste.

Como afirmamos antes, essa característica do sistema ψ de ter suas barreiras de

contato modificadas pela passagem de Q é precisamente o que nas considerações do

Projeto oferece uma explicação para a memória, ali concebida como a “a capacidade de

ser permanentemente alterado por simples ocorrências” (FREUD, 1950[1895], p. 408).

Entretanto, é preciso dizer que a possibilidade de permanência de uma marca no

tecido nervoso só pode ser assegurada porquanto essas marcas se inserem, articuladas

umas às outras, em um sistema de diferenças. Isto é, porque as alterações deixadas e as

facilitações promovidas a partir da passagem de excitação não são idênticas em todas as

direções. Se fossem, os traços ou as trilhas preferenciais se apagariam enquanto tais,

indistinguíveis entre si. O caminho tomado pela excitação seria, portanto, totalmente

fortuito e não haveria memória. E, afinal, o que seria a memória senão uma tal

preferência, que direciona a passagem de excitação por caminhos já trilhados?

É por isso que Freud afirmará que o que garante a memória são as diferenças de

facilitações (Bahnung) entre os neurônios ψ. Mas, com efeito, se pensarmos bem, tal

afirmação talvez comporte uma certa redundância, pois a própria noção de Bahnung já

parece implicar necessariamente esta idéia de um sistema organizado a partir de

relações diferenciais, ou opositivas. Pois, afirmar que uma via é mais “facilitada” à

condução de energia é pressupor que ela o é sempre em oposição a outros percursos que

apresentam um grau de facilitação menor (ou zero) e, logo, distinta desta; não havendo

nunca uma facilitação pura e simples.

Assim, podemos concluir que “é a Bahnung a responsável pela origem da

memória e do próprio aparato psíquico” (GARCIA-ROZA, 1991, p.136). Quer dizer,

estes não preexistem aos trilhamentos que vão sendo traçados e que formam uma trama

diferencial de cadeias mais ou menos favoráveis ao escoamento de energia.

Ademais, evidencia-se também – e isso é de extrema relevância para a nossa

pesquisa – que este sistema de diferenças instaurado com as facilitações é o que

possibilita a repetição de caminhos já conhecidos, familiares.

Contudo, Lacan (1959-1960) nos adverte para não tomarmos esta repetição de

caminhos familiares que é a própria função da memória, isto é, a rememoração, como

um mero efeito mecânico do hábito ou de reforçamento. Entendemos que com esta

assertiva Lacan buscava enfatizar que a concepção de memória que Freud desenvolve,

não só no Projeto, mas em toda sua obra não é o de uma memória biológica que se

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presta à adaptação do organismo ao meio, e sim uma memória organizada e acionada

pelo desejo. Assim, diz-nos, ele:

O recurso ao trilhamento de Freud não tem nada a ver com a função

do hábito tal como é definida no pensamento de uma aprendizagem...

[mas, com o] prazer engendrado pelo funcionamento desses

trilhamentos (LACAN, 1959-1960, p. 266).

Afinal, é preciso lembrar que, justamente por facilitarem a condução de energia,

essas vias já percorridas favorecem a descarga de excitação, reduzindo a tensão no

interior do aparelho psíquico e levando, conseqüentemente, à obtenção de prazer. E que,

ademais, não foi senão por este motivo – o de terem possibilitado a satisfação – que elas

foram conservadas, tornando-se percursos privilegiados.

A experiência de satisfação e as primeiras facilitações

A fim de compreendermos melhor a relação intrínseca, para a qual Lacan nos

chama a atenção na passagem destacada anteriormente, entre o recurso aos trilhamentos

(isto é, a preferência por repetir vias já trilhadas) e a satisfação engendrada nessa

repetição, acreditamos que seja importante tratarmos da vivência que Freud afirma estar

na raiz das mais primitivas Bahnungen e a qual ele nomeia de experiência primária de

satisfação.

Sobre tal experiência algumas considerações merecem destaque: cabe sublinhar

que esta se refere especificamente à estimulação endógena, ou seja, à excitação de

origem somática, que se Freud não denominava, aqui, de “pulsão” é tão somente porque

ainda não dispunha deste conceito. Pois é inegável que já podemos ver aí, na noção

mesma de “excitação endógena”, tal como ela é concebida nesses rascunhos – ou seja,

como uma força constante (constant Kraft) –, a precursora daquele. Ademais, outro

aspecto digno de nota é que Freud reconhecerá, não apenas que esta vivência jaz na

origem do estabelecimento dos primeiros trilhamentos – e assim, portanto, da

estruturação da memória –, como também da irrupção do desejo. Contudo, como

veremos a seguir, afirmar uma coisa é necessariamente afirmar a segunda também. Ou

seja, dizer que esta experiência se encontra na raiz dos primeiros trilhamentos é dizer

também que ela marca o ponto zero do desejo.

Assim, antes mesmo de explicarmos como Freud a descreve para nós,

entendemos que é importante ressaltar que esta experiência articula embrionariamente

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pulsão, memória (ou, melhor dizendo: a estruturação do aparato psíquico enquanto um

aparelho de memória – quer dizer, enquanto um sistema organizado a partir da inscrição

de marcas diferenciais que orientam o fluxo de excitações por determinados caminhos),

irrupção (e insistência) do desejo, repetição e objeto1. E, não só, na verdade. Mas, estas

são, com certeza, as noções que mais nos interessam devido ao tema de nossa pesquisa.

Dito isto, vamos à experiência de satisfação.

Freud estabelece no Projeto que a excitação endógena atua através de um

processo de somação. Ela é ininterrupta e, acumulando-se, eleva o nível de tensão no

interior do aparelho psíquico. Este aumento, tal como aquele desencadeado por uma

estimulação externa, é sentido como desprazer e gera uma propensão à descarga pela via

motora. Entretanto, a situação neste caso específico é bem mais delicada, na medida em

que é impossível para o organismo empregar esse quantum de energia para fugir do

estímulo, que, originado no seu interior, representa as grandes “urgências da vida”

(como a fome, por exemplo).

Dessa forma, a fim de promover uma descarga que restabeleça o nível mínimo

de Q, acionam-se, então, as vias motoras que conduzem a uma alteração interna (choro,

gritos). Contudo, nenhuma descarga assim efetuada é capaz de produzir alívio, pois o

estímulo interno continua a ser recebido e, segundo Freud, só poderá ser aplacado

através de uma ação específica, a qual pressupõe uma intervenção no mundo externo. O

problema é que o pequeno sujeito ao nascer, e nos primeiros anos que se seguem, é

incapaz de promovê-la sozinho. Ele se encontra num completo estado de desamparo

(Hilflösigkeit) e, portanto, totalmente dependente da ajuda alheia para poder realizá-la.

Não obstante, de acordo com as proposições do Projeto, esse auxílio é obtido graças

justamente às alterações internas que, atraindo a atenção do adulto, são interpretadas por

ele e adquirem, a partir de então, a função secundária de comunicação.

1 Sobre esta última noção e, mais precisamente, sobre a relação que podemos traçar entre objeto e

repetição, deixaremos para abordá-las no segundo capítulo, onde voltaremos a falar da experiência de

satisfação, mas desta vez mantendo-a apenas como pano de fundo para discutirmos o conceito de das

Ding. Neste momento de nosso percurso, nos contentaremos apenas em mencionar o objeto de satisfação

sem maiores problematizações quanto ao seu estatuto, pois nosso intuito aqui é privilegiar a investigação

da relação da repetição com o desejo e com a memória. Sabemos que fazer uma tal divisão é arriscado,

uma vez que todas essas noções encontram-se tão fortemente imbricadas que não se pode conceber uma

sem a outra. Mas se assim procedemos é apenas com o objetivo de já podermos ir vislumbrando a

distinção que Lacan realiza em O seminário, livro 11 (1964), ao dissecar o conceito de repetição, entre

Automatôn e Tiquê. Distinção, esta, que – vale à pena enfatizar – não acreditamos servir para apontar-nos

a existência de duas sortes de repetição, mas sim para lembrar-nos que a repetição, na medida em que é

um conceito que articula, privilegiadamente, os registros simbólico e real, pode ser apreciada tanto de um

prisma quanto de outro: ou a partir de seus efeitos no simbólico – o automatismo da cadeia significante,

que privilegia as mesmas articulações significantes ou os mesmos trilhamentos –, ou a partir de sua causa

real – sobre a qual nos absteremos de fazer qualquer comentário, por ora.

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Somente depois de obtida a provisão externa e de realizada a ação específica é

que o sujeito pode enfim abolir temporariamente os estímulos endógenos dos quais é

alvo, sendo levado a experimentar, pela primeira vez, o prazer. Como conseqüência,

esta vivência primária de satisfação deixa marcas indeléveis no aparelho psíquico:

facilitações que, doravante, passam a orientar o fluxo de energia na direção da imagem

do objeto de satisfação, sempre que houver um acréscimo no nível de excitação

endógena.

Segundo Freud, estas primeiras facilitações resultam do investimento

simultâneo, produzido nessa experiência, de três grupos de neurônios: (1) dos neurônios

nucleares investidos constantemente pelos estímulos internos; (2) daqueles que, situados

no pallium2, foram catexizados pela percepção do objeto de satisfação (e passaram a

guardar a imagem perceptiva deste); e (3) dos neurônios do pallium nos quais chegam

às informações sobre a descarga efetuada pelo movimento da ação específica (os quais

registram a imagem motora correspondente).

Assim, graças ao vínculo que se estabelece aí, entre esses diferentes grupos de

neurônios, elevando-se novamente o nível de tensão no aparelho psíquico (devido ao

processo de acúmulo de estimulação endógena), o que ocorrerá é que os neurônios

nucleares, trabalhando a favor da função primária e, portanto, em obediência ao

princípio da inércia, tenderão sempre a escoar a energia em direção aos caminhos

facilitados que conduzem aos dois grupos do sistema ψ pallium, propiciando a

reativação da lembrança do objeto que viabilizou a satisfação do sujeito.

É a esta tendência de reinvestir a imagem do objeto que Freud chama, então, de

desejo. E, segundo suas anotações, a conseqüência imediata da irrupção deste impulso é

justamente a alucinação do objeto de satisfação. Sem dúvida, esta é a via mais rápida

que o sujeito poderia dispor para „reencontrá-lo‟ durante o estado de desejo, mas nem

por isso a mais conveniente, uma vez que, não estando diante do objeto material, ele não

pode de fato satisfazer e aplacar as exigências pulsionais que o acossam, sendo levado a

um inevitável desapontamento.

Como resultado dessa frustração, segundo encontramos no Projeto, forma-se o

ego: uma organização psíquica, composta por neurônios constantemente investidos que

tem como função atrair para si parte dos investimentos, impedindo assim a

2 Freud admite no Projeto uma divisão do sistema ψ em núcleo e pallium. Enquanto a excitação endógena

atinge ψ nos neurônios nucleares; os neurônios do pallium, que compõe a parte mais externa desse

sistema, são investidos com energias de fontes exógenas, a partir de φ.

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hipercatexização da imagem mnêmica do objeto (que culminaria na alucinação), e inibir

a descarga motora até que se confirme a presença deste através de uma “indicação de

realidade”, dada pelo sistema ômega a partir do estabelecimento de uma identidade

entre percepção externa e lembrança. Esta identidade, vale dizer, só poderá ser obtida

através do desencadeamento de uma atividade judicante, mas, de qualquer modo, como

nos lembra Freud (1900), “toda esta atividade constitui apenas um caminho indireto

para a realização de desejo [...]. O pensamento afinal não passa de o substituto do desejo

alucinatório” (p.517).

Com isso, torna-se compreensível em que medida se pode afirmar que “nada

senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação” (idem), pois o que se

evidencia é que todos os processos psíquicos se constituirão tendo como escopo

reencontrar esse objeto primordial e repetir a vivência de satisfação, seja de forma direta

ou indireta. E é nesse sentido que entendemos porque Freud postula também que o

desejo, o resíduo dessa experiência, produz „motivações do tipo compulsivo‟ no

psiquismo.

Para a nossa pesquisa, esses últimos apontamentos parecem especialmente

relevantes pois através deles acreditamos que é possível vislumbrarmos a relação entre

desejo, memória e repetição. Afinal, o que Freud está a nos apontar aqui é que esse

impulso a reinvestir a imagem do objeto irrompe precisamente como produto (ou como

resto) da articulação das marcas deixadas pela vivência de satisfação, através do

estabelecimento dessas primeiras facilitações. O que nos leva a inferir, portanto, que o

desejo surge concomitantemente à estruturação da memória, a qual – como vimos – não

é senão a própria articulação das inscrições psíquicas num sistema de diferenças.

Ademais, ao admitir que isso que resta da experiência de satisfação dá ensejo a

motivações compulsivas, pensamos que Freud deixa-nos entrever ainda a relação

intrínseca entre desejo e repetição, porquanto se evidencia aí que é a irrupção do mesmo

(e a sua indestrutibilidade) aquilo que imprime o caráter repetitivo que marcará o

funcionamento psíquico desde sua origem.

Todavia, como havemos de estudar no próximo capítulo, se é a insistência do

desejo aquilo que enseja a repetição de caminhos já trilhados, tal insistência só é

possível na medida em que esse objeto nunca é alcançado, e nunca é alcançado

porquanto nunca foi tido. Pois é desde sempre que o objeto de satisfação se constitui

como perdido.

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1.2.

O inconsciente estruturado como uma linguagem

O retorno à Freud a partir da lingüística

Vimos anteriormente como a memória freudiana é constituída pelas Bahnungen

que sugerem um sistema de diferenças no qual as marcas deixadas pela passagem de

excitação se articulam em contraposição umas as outras, formando uma rede complexa.

Esta idéia, com efeito, se mostra em profunda consonância com as elaborações

propostas por Lacan em seu retorno à Freud a partir da lingüística estrutural. E, já que

acreditamos que essas elaborações serão essenciais para a compreensão de um de seus

escritos, O seminário sobre “A carta roubada” (1956), onde Lacan teoriza sobre a

repetição, propomos, a seguir, investigá-las mais a fundo.

Mas, primeiramente, cabe perguntarmo-nos: por que partir da lingüística?

Uma resposta possível é que se Freud percebeu, desde cedo, que os sintomas

neuróticos recrudesciam por meio da palavra do analisante, chegando mesmo a erigir a

associação-livre como a regra de ouro da psicanálise, Lacan deu um passo adiante e

inferiu que “é justamente porque alguma coisa foi atada a alguma coisa semelhante à

fala que o discurso pode desatá-la” (LACAN, 1957-1958, p.13). Isto é, ele compreendeu

que se o discurso podia desfazer os nós dos sintomas é somente na medida em que estes

– e todas as demais formações do inconsciente – são estruturados como uma linguagem.

E foi nesse sentido, objetivando demonstrar este axioma e, assim, trazer “a psicanálise

de volta para o seu campo específico – o da linguagem” (COUTINHO JORGE, 2000,

p.65), que ele se apropriou de algumas noções da lingüística de Ferdinand de Saussure e

de Roman Jacobson para aplicá-las à psicanálise.

É importante salientar, contudo, que nessa apropriação ele não apenas importou

tais noções, mas as subverteu. Investiguemos rapidamente de que maneira ele o faz e o

que visava com isso.

A subversão do signo saussuriano e suas conseqüências

Uma das idéias centrais desenvolvidas por Saussure em seu Curso de Lingüística

Geral (s/d) é que a língua é formada por signos, os quais se referem a unidades

compostas de duas partes: o significado (ou conceito) e o significante (imagem

acústica), representados por ele da seguinte forma:

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Signo = Significado

significante

Segundo o lingüista, a união dessas duas partes seria arbitrária. Entretanto, como

observa Saussure,

a palavra arbitrário [...] não deve dar a idéia de que o significado

depende da livre escolha do que fala [...] não está ao alcance do

indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez esteja estabelecido

ele num grupo lingüístico); queremos dizer que o significante é

imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não

tem nenhum laço natural na realidade (SAUSSURE, [s/d], p.83).

Contudo, uma vez constituída, esta unidade não mais poderia ser desfeita; isto é,

ela se caracteriza pela indissociabilidade de seus componentes, que remeteriam um ao

outro reciprocamente. Dito de outro modo, dentro do pensamento saussuriano,

determinado significante sempre reclamaria um certo significado e vive-versa.

Além dessas duas características atribuídas ao signo lingüístico – a

arbitrariedade e reciprocidade biunívoca, respectivamente –, Saussure também

reconhece mais uma: a linearidade do significante. Quer dizer, ele entende que os

significantes se dispõem numa linha temporal, se apresentando um após o outro e

formando uma cadeia. E, tal como nos lembra Dör, a fala “não é outra coisa senão o ato

mesmo que presentifica este desenrolar temporal significante” (DÖR, 1989, p. 33).

Como conseqüência, dependendo do lugar onde se situa um significante – com quais

outros elementos ele se articula em cadeia –, a significação produzida por este mesmo

significante poderá ser alterada. Isso é o que Saussure denomina de valor lingüístico: “o

valor de qualquer termo que seja está determinado por aquele que o rodeia”

(SAUSSURE, [s/d], p.135).

Interessante notar, acerca desta noção, que ela implica que se o valor de cada

termo nos é dado pelo lugar que eles ocupam numa cadeia é somente na medida em que

esses valores “são puramente diferenciais”, definidos “negativamente por suas relações

com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não

são” (SAUSSURE, [s/d], p.136). Dessa forma, conclui ele que “o que importa na

palavra não é o som em si, mas diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra

de todas as outras, pois são elas que levam a significação” (SAUSSURE, [s/d], p.137).

Mas, ora, poderíamos nos perguntar: Saussure não afirmara que um determinado

significante vai sempre remeter a um mesmo significado ao qual se encontra unido no

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signo? Sim, certamente. Para o lingüista, a significação, de maneira primordial, é dada

por esta relação significado/significante, mas – como percebemos através de suas

considerações acima – ele também reconhece que a posição (ou, o valor) do signo no

interior de um sistema de linguagem também constitui um elemento da significação.

Sobre isso, Garcia-Roza (1994) nos esclarece que:

ao introduzir a noção de valor, Saussure não faz dela o elemento

central da significação, nem tampouco elimina a relação isolada entre

o significado e o significante. Em sua opinião, apesar de a significação

local de um elemento numa frase ser dada pela sua relação com os

outros elementos da frase, a relação significado/significante continua a

gozar de relativa autonomia, tal como é indicada (...) [no] algoritmo

inicial (GARCIA-ROZA, 1994, p.186).

E o que faz Lacan diante dessas considerações? Ele se utiliza da concepção de

signo desenvolvida pelo lingüista para aproveitar o que lhe interessa e a partir dela

desenvolver uma lógica do significante, que, como entende, é a lógica própria ao

inconsciente. Assim, em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a razão

desde Freud (1957), ele nos apresenta um outro algoritmo inspirado naquele oferecido

por Saussure, qual seja:

S (Significante)

s (significado)

Contudo, como podemos perceber, ele inverte as notações originais: o

significante que antes ficava abaixo da barra é colocado acima desta, e o significado que

era localizado na parte superior do algoritmo é situado em baixo. Entendemos que com

esta inversão, Lacan almejava demarcar sua tese de que há, na ordem simbólica, uma

primazia3 do significante sobre o significado. Isto é, que na linguagem o significante

tem predomínio e autonomia sobre este último.

Sobre esta subversão, Nancy e Lacoue-Labarthe (1991) nos dizem:

Consiste isto em trabalhar o signo até destruir nele toda a função

representativa, isto é, a própria relação de significação. Aí esta

precisamente o papel e a função do algoritmo. O algoritmo não é o

signo. Ou melhor: o algoritmo é o signo enquanto não significa (sobre

o modo de uma representação do significado pelo significante). Poder-

se-ia, talvez arriscar-se a escrever: o algoritmo é o signo (cancelado).

3 Uma outra maneira também de se ler este algoritmo é dizer que ele nos aponta a primazia do significante

em relação ao sujeito. Pois, Lacan entende que o significante não só é anterior, mas é condição de

possibilidade para o advento do sujeito do inconsciente.

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Signo sob canceladura de preferência a signo destruído. Não

funcionando (NANCY & LABARTHE, 1991, p.47).

Assim, podemos notar que se Saussure apresenta o seu algoritmo para sublinhar

a indissociabiliade de seus componentes, Lacan inverte (e perverte) a notação do signo

justamente para negar esta unidade e nos livrar de qualquer “ilusão de que o significante

atende à função de representar o significado” (LACAN, 1957, p.501). Sua intenção

também fica evidente no acento que ele dá à barra que se interpõe entre essas duas

ordens distintas presentes no algoritmo. Ele indica-nos que ela representa a barreira que

separa (e não aquilo que ata) significante e significado ao afirmar que esta se trata de

“uma barreira resistente à significação” (LACAN, 1957, p.500).

Isto quer dizer que o psicanalista francês descarta a possibilidade de veiculação

de sentido? Não. Mas ao afirmar que há uma barreira que resiste a significação ele nos

aponta que o significado não está colado ao significante, quer dizer, que esse não nos é

dado diretamente por um único significante, e sim que ele é um efeito, um produto

mesmo, da remissão significante. “Se pode dizer que na cadeia significante o sentido

insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é

capaz nesse mesmo momento” (LACAN, 1957, p.506).

Ou seja, Lacan admite, portanto, que um significante não representa nada em si

mesmo. É por este motivo, aliás, que ele afirmará que “o significante é unidade por ser

único, não sendo senão símbolo de uma ausência” (LACAN, 1957, p.27). Sozinho, ele é

puro non-sense. É somente na sua articulação com outros que algum sentido pode ser

produzido (e sempre a posteriori). Isto é, o sentido depende das relações que estabelece

um significante dentro da rede na qual está inserido.

Assim, podemos perceber que o sistema ψ apresentado no Projeto (1950[1895])

não é senão o predecessor do inconsciente, e mais: do inconsciente estruturado como

uma linguagem. Afinal, o que seriam as marcas mnêmicas que se organizam através das

Bahnungen senão a própria articulação significante em cadeias?

Lacan, ele mesmo, nos aponta esta idéia de forma clara e inequívoca em O

Seminário – livro 7 (1959-1960), ao dizer-nos:

Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma

cadeia, e penso até que isso pode ser aproximado da cadeia

significante, uma vez que Freud diz que a evolução do aparelho ψ

substitui a quantidade simples pela quantidade mais a Bahnung, ou

seja, sua articulação (LACAN, 1959-1960, p.53).

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Sendo assim, estamos em condições de inferir agora que a repetição de caminhos

familiares – regida, tal como vimos no Projeto, pelo princípio do prazer – diz respeito

justamente a insistência de determinados significantes na cadeia associativa. Esta

insistência, aliás, pode ser muito bem observada na prática clínica através da fala do

paciente, que ao adotar a regra de ouro da psicanálise de dizer tudo que lhe vem à

cabeça, sem censura e restrições, é reconduzido por seu discurso a passar pelos mesmos

lugares; a esbarrar nas mesmas lembranças.

Isso demonstra que por mais que se dê toda a liberdade ao analisante de falar

qualquer coisa, suas associações não são tão livres quanto se poderia crer. Pois, apesar

de não serem construídas deliberadamente, elas tampouco se estabelecem de forma

arbitrária, nem se dão ao sabor do acaso. Ao contrário, o que se evidencia por meio

dessa repetição de significantes é a presença de uma certa lógica que, a despeito de

permanecer completamente desconhecida pelo sujeito, faz funcionar autonomamente as

articulações simbólicas, favorecendo ou dificultando algumas vias associativas, e

impossibilitando outras.

Metáfora e metonímia

Antes de nos lançarmos na aventura de investigar como Lacan justifica a

emergência da ordem simbólica em seu funcionamento autárquico e explorarmos mais a

fundo de que maneira ele o articula à repetição, acreditamos que seja importante

abordarmos rapidamente as duas formas de articulação significante admitidas por ele,

quais sejam: a metonímia e a metáfora.

É também no escrito A instância da letra (1957) que Lacan nos apresenta esta

proposta de que o inconsciente, como uma linguagem, também se estrutura por meio

dessas duas operações significantes. E para chegar a formular tal idéia foi, uma vez

mais, às elaborações de um lingüista que ele recorreu: mais especificamente, àquelas

desenvolvidas por Roman Jakobson em seu artigo Dois aspectos da linguagem e dois

tipos de afasia (1954).

Ali, Jakobson formula, grosso modo, que a linguagem se organiza de maneira

bipolar, isto é, em dois pólos – o pólo metafórico e o pólo metonímico –, que se

relacionam, cada um, a uma atividade linguageira distinta. Enquanto que o primeiro

compreende o processo de seleção das unidades da língua, implicando o arrolamento de

palavras equivalentes e a possibilidade de substituição de um termo por outro, o

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segundo envolve a operação por ele denominada de combinação. Esta, por seu turno,

pressupõe uma relação de contigüidade entre dois signos, sendo através dela que os

agrupamentos de unidades lingüísticas são ligados numa unidade superior – ou seja, em

frases e proposições.

Foi a partir do seu estudo sobre as afasias de ordem motora e de ordem sensorial

que Jakobson pôde fazer uma tal inferência. Através desse estudo, ele concluiu que nos

dois tipos de distúrbio da fala há um comprometimento específico de uma dessas duas

atividades. Segundo suas observações, no caso da afasia de origem sensorial, existe

perda na capacidade de substituição; o sujeito apresenta dificuldades em encontrar

palavras, e o processo de seleção fica então prejudicado. Já nas afasias motoras é a

atividade combinatória que se encontra comprometida; o sujeito consegue nomear, mas

fracassa nas tentativas de compor frases, apresentando, assim, uma fala quase

telegráfica.

A idéia mais interessante desenvolvida no referido artigo, contudo, pode ser

encontrada já ao final deste. Depois de identificar a operação de seleção à metáfora e a

de combinação à metonímia, e de tecer outras considerações, o lingüista pós-

saussuriano associa os dois principais mecanismos envolvidos no processo de

elaboração onírica descritos por Freud em A interpretação dos sonhos (1900) – quais

sejam: o deslocamento e a condensação – à atividade metonímica.

Lacan se apropria desta concepção. Porém, como de costume, não sem promover

algumas alterações. Diferentemente de Jakobson, ele não irá relacionar ambos os

processos empregados no trabalho dos sonhos à operação combinatória que caracteriza

a metonímia, mas somente o processo de deslocamento. Quanto ao mecanismo de

condensação, Lacan equivalerá este à atividade metafórica.

A fim de compreendermos melhor de onde ele se apóia para fazer esta afirmação

é preciso retornarmos às teorizações freudianas. No referido artigo, publicado no ano de

1900, o pai da psicanálise se propõe a investigar as forças e os processos implicados na

formação dos sonhos. Dessa investigação, infere que toda e qualquer produção onírica

tem como causa pensamentos e desejos inconscientes que se esforçam por driblar a

censura e, assim, ganhar acesso à consciência. Durante o estado de sono, tais

pensamentos, fortalecidos por sua associação com os desejos inconscientes, logram se

realizar na consciência graças, principalmente, a ação de mecanismos de deformação

que possibilitam a expressão disfarçada do material recalcado.

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Dentre esses mecanismos que asseguram a transcrição dos pensamentos latentes

no conteúdo manifesto do sonho, Freud dá especial enfoque a dois, aos quais nomeia de

condensação e de deslocamento. Com relação ao primeiro, ele nos esclarece que este é o

principal responsável pelo caráter lacônico e sintético dos sonhos. Segundo suas

elaborações, ainda que o sujeito realmente se esqueça de parte daquilo que foi sonhado

– e tal esquecimento também seja conseqüência da censura –, não é isso que explica a

concisão do conteúdo manifesto. O que a justifica é mesmo o processo de condensação

em larga escala ao qual foram submetidos os pensamentos oníricos. Para corroborar esta

tese, ele nos aponta que durante o trabalho de interpretação, através do qual é solicitado

ao analisante que trace associações a partir do relato do sonho, é possível observar o

imenso número de representações que se relacionam com cada um dos parcos elementos

evocados e que simplesmente não figuram na produção onírica.

Mas se apenas alguns elementos dos pensamentos do sonho conseguem penetrar

no conteúdo do sonho, quais são as condições que determinam sua seleção? – se indaga

Freud. A reposta vem logo a seguir:

[esses] elementos penetraram no conteúdo do sonho porque possuíam

inúmeros contatos com a maioria dos pensamentos [latentes] do

sonho, ou seja, porque constituíam “pontos nodais” para os quais

convergia um grande número de pensamentos do sonho [...] (FREUD,

1900, p.276).

É nesse sentido, portanto, que esses elementos possibilitariam um trabalho de

condensação, pois estariam associados não apenas a um único pensamento inconsciente,

mas a vários. E, vale dizer, é por este motivo que Freud concluirá que as representações

que ganham expressão no sonho são sobredeterminadas.

Já o trabalho de deslocamento funciona de forma diferente, mas não

separadamente. Ele se caracteriza pela transferência de intensidade psíquica entre duas

sortes de representações: daquelas que possuem elevado valor psíquico (e, nisso, leia-se:

altamente investidas de desejo) para outras, anódinas. Um exemplo destas últimas são

os restos diurnos; recordações do dia anterior que muitas vezes aparecem no sonho.

Sobre eles, Miller (1987) afirmará que os restos diurnos ilustram “os disfarces do desejo

que, permanecendo inconsciente, se exprime [...] ao se deslocar do recalcado para uma

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representação, cuja própria banalidade a torna aceitável para a consciência4” (MILLER,

1987, p. 59).

Como afirmamos anteriormente, Lacan retomará essas noções freudianas a partir

da sua teoria sobre o significante e em articulação com as idéias desenvolvidas por

Roman Jakobson. Disso resultará a concepção de que os sonhos, como qualquer outra

formação do inconsciente, derivam de um processo metaforonímico5, o qual só é

possível, por sua vez, na medida em que significante e significado constituem duas

ordens distintas e separadas por uma barra que resiste à significação.

Com relação à metonímia – isto é, a atividade discursiva que Jakobson admite

envolver a concatenação de entidades sucessivas e a contextura das relações in

praesentia –, Lacan irá afirmar que ela é análoga ao trabalho de deslocamento descrito

por Freud porquanto ele reconhecerá, nesse tipo de conexão significante caracterizada

pelo encadeamento de palavras contíguas, a mesma operação através da qual o desejo

inconsciente desliza de um significante para outro. E uma tal equivalência só é possível

na medida em que ele compreende que aquilo que viabiliza, ou antes, que solicita este

processo combinatório é justamente a propriedade do significante de não representar

nada, de não ser mais do que a insígnia de uma ausência: ausência do referente ou do

objeto. Pois, é esta falta estrutural (e estruturante) da linguagem que garante que o

sentido reste sempre inacabado, exigindo, em conseqüência, o remetimento da

significação de palavra em palavra.

E, uma vez que levamos em conta que o desejo não é senão propriamente essa

falta colocada pela impossibilidade de se dizer o objeto, de se dar acabamento ao

significado, compreendemos que é a precariedade do sentido que dá ensejo ao desejo

em seu deslocamento metonímico, remissivo. Por isso, Lacan nos dirá que:

A metonímia [...] é esse efeito tornado possível pelo fato de não existir

significação alguma que não remeta a uma outra significação e no

qual produz-se o denominador mais comum das duas, isto é, o pouco

sentido, [...] que se revela no fundamento do desejo. (LACAN, 1957,

p.622)

4 A partir dessa citação, acreditamos que se evidencia, portanto, que o processo de deslocamento é um

efeito direto do recalque. Pois, é somente na medida em que a representação que supostamente

representaria originalmente o objeto de desejo foi recalcada que o impulso que a investia, impossível de

ser extirpado da psique, desviou-se para uma outra representação. Se quiséssemos colocar essa mesma

idéia a partir das formulações lacanianas, diríamos que a operação metonímica pressupõe a elisão de um

significante, ou a presença de um “significante impossível”. 5A criação deste neologismo serve justamente para sublinhar que na concepção lacaniana não pode haver

metáfora sem metonímia e vice-versa.

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A partir dessas considerações, acreditamos que se esclarece ainda porque, em A

instância da letra, Lacan irá escrever o efeito da função metonímica da seguinte

maneira: f (S....S‟) S S (-) s , ou seja, com um menos (-) de significado, afirmando

quanto à utilização deste sinal que ele manifesta justamente a manutenção da barra que

indica no algoritmo (S/s) a resistência da significação – isto é, a barra do recalque. Pois,

o que se evidencia é que esse movimento remissivo que caracteriza a metonímia, longe

de contribuir para uma acumulação de sentido, faz tão somente recolocar esta falta que

opera na sua própria origem ao garantir que o sentido se estilhace, se divida, entre um e

outro significante, e depois em mais outro e mais outro..., e assim por diante,

indefinidamente. A indestrutibilidade do desejo, aliás, se refere – entendemos – a essa

re-afirmação contínua da falta do sentido, ou da falta a ser, que subsiste e insiste pelo

encadeamento significante que caracteriza o processo metonímico.

Assim, Nancy e Lacoue-Labarthe concluirão que “a metonímia não é, pois, uma

figura que [...] que manteria salvo o sentido. É o sintagma como eixo ou como rodeio

segundo o qual o sentido se empobrece ou se esgota na letra do discurso” (NANCY &

LABARTHE, 1991, p.82).

Já a metáfora, por sua vez, tal como Jakobson a concebe, caracteriza-se –

lembremos – por ser um processo de substituição que implica a concorrência de

entidades simultâneas e o estabelecimento, entre elas, de relações in absentia. Afinal, a

palavra escolhida ficará no lugar de outras tantas que não se farão presentes

explicitamente no discurso, ainda que estas permaneçam tacitamente relacionadas

àquela.

Ora, o que Lacan notará é que uma operação como essa, que pressupõe a

substituição de uma palavra por outra em muito se assemelha àquilo que Freud nos diz

a respeito do trabalho de condensação, através do qual, como vimos, uma determinada

representação é selecionada para participar da trama onírica em detrimento de outras

justamente por se constituir enquanto um “ponto nodal” para onde convergem inúmeros

pensamentos latentes. E é por isso, então, que ele equivalerá ambas as noções.

Entretanto, seu trabalho não se resumirá em apontar-nos uma tal equivalência.

Além disso, Lacan nos dirá também que é a partir da operação metafórica que algum

sentido pode ser produzido no discurso. Ou melhor, ele nos apontará que é através dessa

superposição de significantes que poderá se dar o advento da significação. E, para tanto,

ele escreve a função da metáfora por meio do seguinte matema: f (S‟/ S) S S (+) s, a

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respeito do qual ele nos esclarece que o sinal de (+) ilustra a transposição da barra e o

efeito de significação promovido por esta transposição.

Interessante reproduzir, aqui, ainda com relação a este matema o comentário de

Quinet (2000) no qual ele pontua que “a barra entre S‟ e S corresponde ao recalque,

sendo que o significante (S‟) substitui o significante recalcado (S)” (QUINET, 2000,

p.32). Pois, através dele, acreditamos que se torna mais fácil compreendermos que o que

está em jogo na metáfora é a supressão de um significante (e o aparecimento de outro

em seu lugar). E esta idéia é muito importante porque, se a articularmos com as

considerações lacanianas que vimos acima, somos levados a inferir desde já que é

graças precisamente a esta supressão que algum sentido pode ser produzido. Ou seja,

julgamos que ela nos deixa entrever que é somente na medida em que um significante

resta terminantemente excluído da cadeia, deixando-a, assim, incompleta, que se torna

possível a emergência da significação. O que esclarece, pelo menos em parte, a

afirmação lacaniana de que “a metáfora posiciona-se no ponto exato em que o sentido se

produz no não-sentido” (LACAN, 1957, p.512).

Voltaremos a tratar deste ponto cego da cadeia significante ainda mais algumas

vezes quando abordarmos as noções de caput mortuum e de das Ding.

1.3.

O automatismo da cadeia significante

“A carta roubada”

Em 1956, Lacan se servirá de um conto policial do escritor anglo-americano

Edgar Allan Poe, intitulado A carta roubada, precisamente para demonstrar-nos que a

articulação significante não se dá de maneira aleatória, mas obedecendo – como

dissemos antes – a uma determinada lógica. E mais especificamente, a uma lógica

autônoma, uma vez que independe das intenções e da deliberação do sujeito.

De forma bastante resumida, o conto narra o furto de uma carta e os esforços

empreendidos na tentativa de recuperá-la, e é composto por duas grandes cenas. A

primeira transcorre na alcova real, tendo como personagens: a rainha, o rei e o ministro.

Esta cena, que é propriamente a do roubo, se inicia com a entrada do rei no aposento

pouco depois da rainha ter recebido uma carta. Segundo Lacan, Poe não nos revela o

remetente, nem mesmo o conteúdo da correspondência, mas não nos deixa qualquer

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dúvida de que se trata de uma missiva que em muito poderia comprometer a rainha. E

isso, o autor evidencia através das ações da sua personagem – não só aquela que ela

mantém diante de seu cônjuge, como também perante o ministro, que surge em cena

logo a seguir.

Mas, o que faz a rainha? À chegada do rei, ela se esmera para disfarçar seu

embaraço e, tal como nos diz Lacan, não tendo mais nada a fazer a não ser jogar com a

desatenção deste, repousa calma e displicentemente a carta sobre a mesa. Isto é, ao

invés de tentar encobri-la ou guardá-la às pressas, a rainha a deixa completamente

exposta aos olhos do rei, o qual, no entanto, nada vê. É o terceiro personagem, o

ministro, quem percebe com clareza tudo o que se passa aí. Maliciosamente, então, este

saca uma outra carta que por acaso guardava em seu bolso, e, distraindo o monarca, a

substitui por aquela que jaz em cima da mesa. A rainha observa a manobra do ministro,

mas não se manifesta sobre o furto, nem faz nada para impedi-lo – o que denuncia ao

leitor a conduta escusa da mesma.

Já na segunda cena, o drama gira em torno da recuperação da carta por Dupin,

um investigador particular cuja astúcia e inteligência nos faz lembrar Sherlock Holmes

ou Hercule Poirot. Dupin é acionado pela própria polícia depois desta realizar inúmeras

buscas minuciosas no gabinete do ministro à procura da tal carta, sempre sem qualquer

êxito. Dupin faz então uma primeira visita ao ministro e enquanto trava uma conversa

com o mesmo, inspeciona a sala por trás de seus óculos escuros. Não demora muito para

que seu olhar repouse sobre um bilhete amassado dentro de um porta-cartas, acima da

lareira. Neste instante, o investigador já tem a certeza de estar diante daquilo que

buscava, ainda que a aparência do bilhete em tudo contrarie a descrição que lhe fora

dada da carta furtada. Sendo assim, ele se apressa em se despedir do ministro para

retornar no dia seguinte (com o pretexto de recuperar sua tabaqueira oportunamente

„esquecida‟ no gabinete) trazendo consigo outro papel que simule a aparência atual da

correspondência. Neste dia, do lado de fora do gabinete, a polícia se encarrega de

chamar a atenção do ministro com o disparo de uma arma, a fim de que Dupin possa ter

um momento favorável para trocar uma pela outra.

O resultado de tal operação, nos lembra Lacan, é que o investigador particular

consegue finalmente reaver a carta roubada sem que o larápio sequer desconfie que já

não a tem mais em seu poder. De forma que se algum dia este vier a fazer uso dela, sua

surpresa só não será maior do que sua derrocada, a qual, no entanto, ele poderá

vislumbrar no átimo mesmo em que, desdobrando o bilhete falso deixado por Dupin, se

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deparar com o verso oracular ali lhe dirigido pelo investigador: “Um desígnio tão

funesto / Se não é digno de Atreu, é digno de Tiestes”6.

Anterioridade e determinação significante

A fim de entendermos porque Lacan escolheu justamente este conto para ilustrar

o automatismo da ordem simbólica que caracteriza a repetição em sua vertente

significante, é preciso antes de tudo atentarmos para o fato de que a segunda cena não

faz senão, mais ou menos, repetir a situação descrita na primeira. É claro que os

personagens são diferentes, assim como o ambiente em que tudo se passa. Não se trata

de uma reprodução. Todavia, não se pode deixar de reconhecer entre elas uma certa

similaridade. Em ambas é possível notar a presença de três elementos que, situados em

três posições distintas, equivalem a três olhares. O primeiro corresponde ao lugar da

cegueira, isto é, ele nos diz de um olhar que nada vê. Na cena primitiva este olhar é

encarnado pelo rei, enquanto que na outra este papel é desempenhado pela polícia. O

segundo se refere a um olhar que vê que o primeiro não percebe nada, mas que se

equivoca por ver encoberto aquilo que ele esconde. No conto, é respectivamente a

rainha e o ministro. Já o terceiro olhar é aquele que, observando esses outros dois

olhares, percebe que eles deixam exposto o que supostamente estaria ocultado: trata-se,

primeiro, do ministro e, depois, de Dupin.

Sobre isso, o que Lacan irá nos apontar é que muito mais do que as

particularidades de cada indivíduo que, numa ou noutra cena, vem desempenhar um

desses três papéis, sua função na história é definida justamente pelo lugar que eles

ocupam em relação à carta. E, com efeito, o fato de ser, aqui, uma carta desaparecida7

àquilo em torno do que esses três termos da trama se organizam não poderia ser mais

conveniente para servir aos propósitos do psicanalista. Afinal, em francês, carta se

traduz por lettre, palavra que comporta um duplo sentido: ela designa não apenas uma

epístola, mas também significa letra. E letra é como Lacan se reporta, nesse momento

de seu ensino8, ao “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da

linguagem” (LACAN, 1957, p. 498). Trata-se, portanto, de uma noção que fazia então

6 “Un dessein si funeste / S‟il n‟est digne d‟Atrée, est digne de Thyeste” (LACAN, 1956, p. 16).

7 Como veremos ao final deste capítulo, através da noção caput mortuum é justamente a exclusão de um

significante que possibilita a organização da estrutura. 8 Posteriormente, vale dizer, Lacan retoma essa noção (qual seja: a de letra) dando-lhe um sentido

diferente deste aqui apresentado. Contudo, diante das limitações que se impõe a esta pesquisa, preferimos

não abordá-lo aqui.

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uma clara referência ao significante, não só enquanto elemento material mínimo com o

qual se estrutura a linguagem, mas, sobretudo, ao significante em movimento, articulado

em rede com outros significantes; isto é, inserido numa trama discursiva, de falas.

Dessa forma, levando-se em conta esse trocadilho que a língua francesa permite

e do qual Lacan habilmente se serve, torna-se mais fácil compreender o que este

almejava ao afirmar que é a posição em relação à carta/letra (roubada) o que define o

papel desempenhado no conto pelos personagens. Ele pretendia indicar-nos que o

sujeito não é uma substância, nem possui uma essência, e sim que este é determinado

pelo lugar estrutural que assume dentro de um discurso, ou de um universo simbólico,

que o precede:

o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu

destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não

obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o

caráter ou o sexo [...] (LACAN, 1956, p.33-34).

E não é senão esta mesma idéia que o vemos defender numa outra passagem,

retirada de O Seminário – livro 2, quando admite que:

O jogo do símbolo representa e organiza, (...) independentemente das

particularidades de seu suporte humano, este algo que se chama um

sujeito. O sujeito humano não fomenta este jogo, ele toma [aí] seu

lugar [...] (LACAN, 1954-1955, p.243).

Ou seja, o sujeito humano não fomenta o jogo simbólico – poderíamos

complementar – porquanto ele não lhe é anterior; posto que não preexiste à linguagem.

Podemos ver, aí, o quanto há de subversivo nesta idéia. Subversivo na medida

em que inverte a noção corrente e facilmente aceita de que há um sujeito prévio à

palavra, a coordenar suas falas e a dominar os símbolos. O que nos é apontado nos

trechos acima destacados, e ao longo de toda obra lacaniana, é que o que se dá é

precisamente o contrário: o sujeito tal como o concebe a psicanálise – sujeito do desejo,

sujeito cindido – depende do significante para poder ex-sistir. E, nesse sentido, “a

ordem do símbolo já não pode ser concebida como constituída pelo homem, mas

constituindo-o” (LACAN, 1956, p.50).

Assim, entendemos que é a anterioridade (e, portanto, a autonomia) da ordem

simbólica em relação ao sujeito e a constituição deste último como efeito do

encadeamento significante, aquilo que Lacan se esforça por demonstra-nos através deste

apólogo. E por isso ele afirmará, neste escrito contemporâneo, que se o sujeito “pode

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parecer servo da linguagem, o é mais ainda de um discurso em cujo movimento

universal seu lugar já está inscrito ao nascer, mesmo que [...] sob a forma de seu nome

próprio” (LACAN, 1956, p.27).

Sobre o processo de constituição do sujeito a partir de sua localização num

discurso que o antecede, isto é, no discurso do Outro – ou, ousaríamos dizer, em relação

à letra9 –, Colette Soler (1997) nos esclarece que:

O Outro como lugar da linguagem – o Outro que fala – precede o

sujeito e fala sobre o sujeito antes mesmo de seu nascimento. Assim, o

Outro é a primeira causa do sujeito. O sujeito não é uma substância: é

um efeito do significante. O sujeito é representado por um

significante, e antes do surgimento do significante não existe sujeito.

Mas o fato de não existir sujeito não quer dizer que não exista nada,

porque pode existir um ser vivo, mas este ser vivo se torna um sujeito

somente quando um significante o representa. (SOLER, 1997, p. 56)

Nesse sentido, compreendemos que o Outro, tal como referido acima, diz

respeito a “um espaço aberto de significantes que o sujeito encontra desde seu ingresso

no mundo” (KAUFMANN, 1996, p.835). Trata-se justamente do lugar –

convencionalmente chamado de o tesouro dos significantes – em relação ao qual o

sujeito será localizado a partir de um primeiro significante que passará, então, a

representá-lo (para outro significante).

Esse Outro, vale ressaltar, apesar de ser um lugar simbólico, pode ser encarnado

pelas figuras parentais, que falam sobre seus filhos antes mesmo de seu nascimento e

que, ao procederem de tal maneira, nada mais estão fazendo do que, paulatinamente,

situando a criança na família e no mundo. É o que Lacan chamou de “falas fundadoras”

em O Seminário, livro 2:

As falas fundadoras que envolvem o sujeito são tudo aquilo que o

constitui, os pais, os vizinhos, a estrutura inteira da comunidade, e que

o constituiu não só como símbolo, mas o constituiu em seu ser

(LACAN, 1954-1955, p. 31).

Dez anos depois de proferir estas palavras – no seminário dedicado aos quatro

conceitos fundamentais da psicanálise, em 1964 –, Lacan voltaria uma vez mais a

lembrar-nos de que o sujeito, sendo efeito do significante, só pode advir enquanto tal

9 Essa equivalência entre a letra e o discurso do Outro, aliás, nos é dada pelo próprio Lacan. Afinal, em O

Seminário, livro 2 (1954-1955), ele afirma que “a carta [a letra] é, para cada um [dos sujeitos] seu

inconsciente” e em 1964, ele nos aponta que “o inconsciente é o discurso do Outro” (p. 130), porquanto

“o inconsciente, são os efeitos da fala sobre o sujeito, é a dimensão em que o sujeito se determina no

desenvolvimento dos efeitos da fala...” (LACAN, 1964, p. 147).

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assujeitado ao campo do Outro. E denomina esse primeiro momento que consiste

precisamente no processo de instituição da ordem simbólica e de atribuição de um lugar

ao sujeito nessa ordem, de alienação10

.

Mas, voltemos ao escrito sobre A carta roubada. Ali, bem como em seu segundo

seminário (1954-1955), acreditamos que Lacan insistia em alertar-nos quanto à primazia

do significante na determinação do sujeito principalmente com o intuito de sublinhar o

quão equivocado é assimilar o sujeito ao eu; ou seja, à função egóica. Confusão que

certamente parecia ser bastante comum no campo psicanalítico de então, dentre aqueles

que pareciam se esquecer que “com Freud irrompe uma nova perspectiva que

revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se

confunde com o indivíduo” (LACAN, 1954-1955, p.16).

É a excentricidade do sujeito do inconsciente que está em relevo, aqui.

Excentricidade que já nos era apontada por Freud em suas teorizações, e que fica

especialmente evidente em sua frase célebre: “o ego não é o senhor da sua própria casa”

(FREUD, 1917 p.178). Por isso, Lacan faz questão de lembrar-nos que é “Freud [quem]

nos diz – o sujeito (...) é excêntrico. O sujeito está descentrado com relação ao

indivíduo” (LACAN, 1954-1955, p.16).

E, ousamos inferir que o sujeito é excêntrico não apenas com relação ao eu (ou,

ao indivíduo), unidade imaginária, mas também em referência à própria cadeia

significante, ainda que – como já apontamos algumas vezes – este seja efeito da

remissão significante e se encontre “preso em redes que se entrecruzam” (LACAN,

1954-1955, p. 243). Pois, é sempre como ausência, ou como hiância, entre um e outro

significante que o sujeito se faz presente na tecitura da cadeia.

Quanto a isso, Lacan afirmará que “o sujeito literalmente, em sua origem, é,

como tal, a elisão de um significante, o significante saltado na cadeia” (LACAN, 1959-

1960, p.273). E, como veremos mais adiante, quando voltarmos a trabalhar a repetição

no Projeto a partir de um outro prisma, não é senão porque a cadeia permanece sempre

aberta e inacabada, graças a esta elisão, que pode continuar a haver o deslocamento

significante. É nesse sentido, aliás, que o psicanalista francês irá inferir que a insistência

10

Talvez seja interessante recordar que nesse seminário de 1964, Lacan formulará que o processo de

causação do sujeito é composto por dois momentos lógicos: o primeiro, como dissemos, trata-se da

alienação, momento de inserção do sujeito na linguagem, sendo assim inscrito no discurso do Outro. E o

segundo momento é justamente aquele definido como separação. Voltaremos a falar sobre este processo

de constituição subjetiva ao final de nosso segundo capítulo.

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da cadeia simbólica é “correlata da ex-sistência (isto é, do lugar excêntrico) em que

convém situar o sujeito do inconsciente” (LACAN, 1956, p.13).

Assim, podemos compreender, agora, em que medida Lacan admite que os

desdobramentos da cadeia simbólica funcionam autonomamente. Afinal, diante do que

expomos acima, torna-se claro que o sujeito não está em posição de maestria em relação

ao simbólico, mas se encontra muito mais próximo de uma posição de submissão ao

mesmo.

Contudo, falta-nos ainda explorar como Lacan faz uso do conto de Edgar Allan

Poe para demonstrar que esses desdobramentos, ainda que se movimentem sozinhos,

não se constituem de maneira aleatória – nem mesmo na associação-livre. Mas, sim,

regidos por uma lei, uma sintaxe, que estabelece os caminhos possíveis e impossíveis de

serem traçados na história de um sujeito.

Segundo Miller (2005), a principal preocupação de Lacan no referido escrito não

seria outra senão apresentar-nos esta tese. Diz-nos ele:

O sentido mesmo do comentário de Lacan de “A carta roubada” de

Edgar Allan Poe é demonstrar que existem leis do simbólico que se

estabelecem por si mesmas. Por esse caminho, liga memória e lei,

dando à memória inconsciente o valor de uma lei invariável

(MILLER, 2005, p.176).

Para tanto, Lacan se utiliza de uma parte do conto em que Dupin, ao avaliar o

método (pouco eficiente) da polícia na procura pela carta, fala ao seu amigo interlocutor

sobre um menino que conhecera e que astuciosamente ganhava todos os seus oponentes

no jogo do “par ou ímpar”.

Não pretendemos entrar em detalhes quanto à hipótese lançada ali pelo

investigador para justificar o êxito do menino em contraposição ao fracasso da polícia

na tentativa de desvendar aquilo que seus respectivos rivais escondiam. Nem tampouco

nos deteremos na análise que Lacan empreende a respeito desta hipótese. O que nos

interessa particularmente é como a partir dessa brincadeira tão simples e tão comum,

evocada no conto de Poe, o psicanalista francês poderá tratar de questões relevantes,

como a emergência da lei simbólica e sua relação com o automatismo de repetição –

tema de nosso interesse.

“Par ou ímpar?” – a emergência da lei a partir do acaso

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Neste jogo, vale lembrar, cada um dos dois participantes possui um certa

quantidade de bolas de gude das quais pode se servir. A brincadeira consiste em

escolher um número de bolinhas, dentre aquelas que se possui, e mantê-las escondidas

da vista de seu oponente, guardando-as em sua mão. A seguir, deve-se, então, tentar

adivinhar se a quantidade total de bolas ocultadas (somando-se as suas e as de seu

adversário) consiste num número par ou ímpar. Se um dos jogadores apostar “par”, ao

outro resta arriscar “ímpar”. Ganha aquele que acertar o palpite e, a cada partida, nova

aposta deve ser feita.

A respeito desta brincadeira, o que se pode perceber logo é que, não obstante os

jogadores saberem o número de bolinhas que têm nas mãos, a quantidade que guarda o

rival é por eles sempre desconhecida, o que torna impossível prever logicamente o

resultado. Assim, se um deles ganha ou perde, a princípio, não é por outra razão senão

por mero acaso. Dizemos „a princípio‟, porque o que nos aponta Lacan é que depois de

sucessivas rodadas e a partir da introdução de um símbolo, uma lei pode ser construída

com base nos resultados anteriores. E, então, o que antes era da ordem do contingencial,

deixa de sê-lo.

Acompanhemos um pouco mais de perto qual foi o raciocínio11

que o levou a

fazer tal afirmação. Para tanto, adotemos a convenção utilizada por Lacan segundo a

qual as rodadas cujo saldo final foi “par” devem ser representadas pelo signo (+),

enquanto que àquelas cujo saldo foi “ímpar” se deve atribuir o signo (-). E, suponhamos

uma série hipotética de dez partidas sucessivas – que chamaremos arbitrariamente de

série A – onde se obtenha a seguinte seqüência de resultados:

+ - - - + + - + - + ... série A

Esta primeira seqüência – como afirmamos – nos é dada de modo inteiramente

fortuito. Jogam-se dez partidas, e a cada uma delas o resultado obtido pode ser qualquer

um dos dois: tanto par, quanto ímpar. Ademais, a rodada anterior em nada serve para

ajudar a antever qual será o desfecho daquela que sobrevirá. Tomadas separadamente,

cada partida é um evento independente e imprevisível.

11

Uma ressalva: não temos a pretensão de expor o raciocínio que desenvolve Lacan em O seminário

sobre “A carta roubada” em toda a sua complexidade. Simplificaremo-no o máximo possível, apenas

para explicitar a idéia geral nele expressa. Acreditamos que para os fins propostos pela presente pesquisa,

não há necessidade de irmos mais a fundo do que isto.

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Todavia, o que nos diz Lacan é que se agruparmos em três os resultados que

podem se apresentar – isto é, todas as combinações possíveis de serem feitas com três

resultados consecutivos – e estabelecermos notações distintas de acordo com o tipo de

seqüência que temos, então, esta simples transformação já será o suficiente para fazer

surgir leis bastante precisas (LACAN, 1954-1955, p. 243).

A fim de que compreendermos melhor esta inferência, eis todas as combinações

possíveis de serem obtidas neste caso; os tipos de grupos nos quais Lacan as separa; e a

notação12

conferida a cada um deles:

Combinações Tipos de Grupos Notação

(+ + +), (- - -) "simetria da constância" (1)

(+ + -), (- - +) "dissimetria" (2)

(- + +), (+ - -)

(+ - +), (- + -) "simetria da alternância" (3)

Através desta operação de cifração, uma nova série poderá ser construída a partir

daquela primeira. Esta segunda série – que chamaremos de série B – se estruturaria,

então, da seguinte maneira:

2 1 2 2 2 3 3 3 ... série B

Mas, qual seria a diferença entre uma e outra? – se poderia perguntar. A grande

diferença é que se a série A se constitui – tal como vimos – de forma completamente

aleatória, desordenadamente, a série B, por seu turno, já deverá obedecer algumas regras

em sua composição. Os elementos que a compõe não poderão se seguir de modo

inteiramente livre e sem restrições. Ao contrário, na série B, a emergência de uma

determinada unidade significativa (dentro da relação que ela estabelece com as demais

unidades que a antecederam na cadeia) necessariamente restringe o leque de

possibilidades de sua sucessão. Por exemplo, se torna impossível que após um (1) se

12

Essas notações – cabe salientar – foram tão arbitrariamente estabelecidas quanto a seqüência da série A.

Lacan elege os números (1), (2) e (3), mas poderiam ter sido utilizados quaisquer outros símbolos. Não

obstante, o que podemos observar é que é precisamente do cruzamento da série aleatória dos “+” e dos “-“

com as notações (indiferentes em sua natureza) que se produzirá uma segunda série que, distinguindo-se

da anterior, deverá seguir uma sintaxe que estabelece escritas possíveis e impossíveis. Veremos isto a

seguir.

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siga diretamente um (3). Quer dizer, passa a haver uma limitação nas possibilidades de

encadeamento da seqüência, a partir de então.

Assim, o que podemos observar é que esta operação de cifração, que dará

origem a série B, envolve justamente os dois processos que caracterizam a linguagem:

metonímia e metáfora. A metonímia se faz presente aí no encadeamento linear dos “+” e

dos “-”, agrupados em trios, enquanto que a metáfora se dá precisamente na substituição

desses agrupamentos por um símbolo. Assim, evidencia-se que sem a produção de uma

metáfora, não existe a possibilidade do advento da lei e, conseqüentemente, da

estruturação da ordem simbólica. E, nesse sentido, aliás, vale sublinhar que a sucessão

dos “+” e dos “-” somente pode ser pensada como uma articulação metonímica só-

depois do advento da metáfora, pois antes não há, com efeito, qualquer articulação entre

os termos da série A.

Sobre essa transcrição de uma série composta ao acaso por outra determinada

por uma lei, Lacan afirma que:

Qualquer coisa de real sempre pode sair. Porém, uma vez constituída a

cadeia simbólica, a partir do momento em que vocês introduzem, sob

a forma de unidades de sucessão, determinada unidade significativa,

não pode mais sair qualquer coisa (LACAN, 1954-1955, p. 243).

Carvalho e Kubrusly (2008) nos resumem bastante bem quais são as leis que

deverão ser respeitadas na escrita da série B. A primeira delas pode ser sintetizada

assim: os elementos (1), (2) e (3) podem repetir a si mesmos indefinidamente. Já a

segunda lei preconiza que: partindo-se de um elemento (1), só se pode chegar a (3),

passando-se antes por uma seqüência de (2) em número ímpar; do contrário, deve se

retornar ao (1). E, por fim, a terceira e última lei a ser obedecida impõe que: partindo-se

do elemento (3), só é possível chegar a um elemento (1), passando-se por uma

seqüência de (2) em número ímpar; do contrário, deve retornar-se ao (3).

Dessa forma, a série B, ainda que possa ser arranjada de diferentes maneiras

(afinal ela dependerá da série A, que nos será dada sempre contingencialmente), deve,

em todo caso, obedecer impreterivelmente a estas três regras, as quais – vale lembrar –

seriam outras, se se agrupassem, digamos, quatro resultados consecutivos ao invés de

três.

De qualquer maneira, o menos importante aqui são o quê estabelecem essas

regras, mas sim precisamente aquilo que ilustra este exemplo, a saber: o advento da lei a

partir de uma série primitiva composta ao acaso. Quanto a isso, aliás, Lacan nos

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esclarece que tal advento não se dá por outra razão senão pela própria irrupção do

significante (no real). Diz-nos ele:

(...) desde o surgimento mais elementar do significante, surge a

lei, independentemente de todo elemento real. Isso não quer

dizer em absoluto que o acaso seja comandado, mas que a lei

surge com o significante, de maneira interna,

independentemente de toda a experiência (LACAN, 1956-1957,

p.243).

É nesse sentido, portanto, que ele afirmará ainda que “desde que há grafia, há

ortografia” (idem, p.242), pois com o aparecimento do significante emergem também

escritas possíveis e impossíveis graças à lei que, concomitantemente a ele, se instaura. E

são essas escritas possíveis e impossíveis que “definem os trajetos por onde passa a

rememoração e que fazem retornar os significantes” (BASTOS, 1998, p.53).

No exemplo que trabalhamos acima, podemos vislumbrar de maneira

simplificada as escritas possíveis para a construção da série B, através do grafo abaixo:

E, acreditamos que esse grafo evidencia também que é o estabelecimento desta

sintaxe aquilo mesmo que determinará a insistência13

de certas articulações

significantes, em detrimento de outras, na narrativa singular mediante a qual a realidade

se constrói para cada sujeito. Não é por outro motivo, aliás, que Miller nos dirá em O

osso de uma análise (1998) a respeito deste que “ele representa a repetição, isto é, a

manifestação dos elementos que se repetem” num discurso, e ainda, mais

especificamente, que ele “representa a repetição, sob a forma de um saber [...] que

prescreve o que um sujeito pode ou não dizer” (MILLER, 1998, p.65).

Contudo, como este autor nos adverte não é apenas isso que este grafo ilustra.

Além da insistência de determinados termos no encadeamento simbólico (isto é, na

rememoração), o referido grafo também nos deixa ver que há algo mais envolvido na

13

É a essa insistência de determinados significantes no desdobramento automático da cadeia simbólica,

propiciado pelo advento da lei, que Lacan chama nesse momento de seu ensino de “automatismo de

repetição” e que, posteriormente, ele denominará de “autômaton”.

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repetição: “ele [o grafo] representa a evitação, isto é, que em todos os casos há

elementos que não aparecem, elementos cuja evitação se repete” (MILLER, 1998, p.65).

Ou seja, ele nos permite compreender que a repetição não se refere apenas ao

movimento de retorno dos significantes regido por uma lógica inconsciente, mas que ela

também comporta a esquiva, o contorno, de algo que permanece terminantemente

excluído da articulação significante, algo impossível de ser escrito, que resiste, pois, a

qualquer tentativa de significantização14

, como sem-sentido.

Esse “algo” a que fazemos referência aqui, esse elemento sempre evitado, que

resta excluído da trama significante, e o qual – acreditamos – pode ser aproximado do

recalcado original de Freud porquanto este também se refere àquilo que faz obstáculo à

rememoração, Lacan aludirá a ele de diferentes formas ao longo de seu ensino –

algumas das quais nós veremos mais detalhadamente no capítulo seguinte. Mas, em O

seminário sobre “A carta roubada”, especificamente, ele no-lo apresenta sob a

denominação de caput mortuum – “o significante impossível”. E, a partir do que

trabalhamos anteriormente, julgamos que algumas inferências importantes podem ser

feitas com relação a ele e em articulação com a repetição.

Primeiramente, podemos perceber que a exclusão desse elemento é inerente à

própria incidência do significante. Afinal, como vimos, é com ele que surge a lei

sintática por meio da qual se traça, não apenas aquilo que é possível de se escrever ou

de se rememorar, como também o impossível.

A fim de compreendermos melhor a afirmação de Lacan na qual postula que

concomitantemente com o aparecimento do significante emerge também a lei, é preciso

lembrarmos que o que caracteriza o significante é precisamente o fato dele estar

conectado a outros significantes. Ou, nas palavras de Lacan que: “a estrutura do

significante está em ele ser articulado” (LACAN, 1957, p.504). E, tal articulação, como

vimos, só pode se dar mediante o advento da lei a partir da produção de uma metáfora.

Isso fica claro quando tomamos os exemplos da série A e da série B. Na série A,

os elementos que a compõe não possuem nenhuma ligação entre si – isto é, são

completamente independentes – até que se os agrupem em trios e se substitua esses

agrupamentos por uma notação específica (1, 2 ou 3). Somente depois dessa

substituição, isto é, dessa metaforização, é que terá lugar uma outra série (a série B),

esta sim, composta de elementos articulados. E o que nos dá notícias de que há mesmo

14

Nesse sentido, insistência e evitação são dois lados da mesma moeda, isto é, dois lados de uma só

repetição.

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uma articulação aí? Ora, precisamente o fato de que, na série B, o aparecimento de

determinada unidade significante restringe as suas possibilidades de sucessão na cadeia

por outros elementos. É isso que nos demonstra que mais do que um termo seguindo-se

a outro, trata-se aqui de termos articulados uns com os outros; quer dizer, de elementos

inseridos dentro de uma estrutura, e, por isso mesmo, de significantes.

Assim, podemos inferir que é justamente essa operação de nomeação que produz

um limite que não existia até então, instituindo a ordem simbólica. O que nos leva a

compreender que: 1. o caput mortuum, esse ponto impossível de ser incorporado à

estrutura, é produto desta operação significante; 2. a estrutura, enquanto tal, pressupõe

esse ponto opaco para poder se organizar. Não é por outro motivo que se pode afirmar

que este se trata de um limite interno à cadeia significante.

Ademais, Bastos (1998) nos indica muito claramente a sua relação com a

repetição quando nos diz que:

O significante impossível responde, em certa medida, pela repetição

dos símbolos ao longo da cadeia. A série reproduz certos arranjos à

medida que contorna os excluídos, pode-se dizer, à medida que

margeia o impossível de ser dito. O caput mortuum do significante

figura uma dimensão de perda, introduzida com a própria

simbolização: uma não subsiste sem a outra. O significante impossível

é algo, um furo que a série deve necessariamente contornar. Mas esse

contorno não é um mero desvio: não se passa ao largo do caput

mortuum sem ser afetado por ele. Todo o percurso subjetivo sofre a

determinação causal dessa perda residual (BASTOS, 1998, p.95).

Diante disso, acreditamos que o que começa a se descortinar é que no cerne

mesmo da insistência simbólica jaz um vazio, um cavo, ineliminável que não é senão

aquilo que a motiva. No capítulo seguinte é precisamente sobre ele que nos

debruçaremos, na tentativa de apreender qual o seu estatuto.

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CAPÍTULO 2.

A FACE REAL DA REPETIÇÃO

_ _ _ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.

Tentando dar alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar

com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa

desorganização profunda. (...)

Só por um inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na

continuidade ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo

experimentei a vivificadora morte.

Clarice Lispector

2.1.

Além do Princípio do Prazer: a repetição é própria à pulsão

Até o presente momento nos detivemos em investigar a repetição pensando-a

quase que tão somente em relação ao retorno dos significantes ao longo do

desdobramento automático da cadeia associativa. Nesse sentido, podemos dizer que a

examinamos privilegiando o efeito por ela suscitado dentro dos limites da linguagem –

isto é, dentro dos alcances do princípio do prazer. Contudo, o que haveremos de notar

através do artigo de 1920, Além do Princípio do Prazer, aquele que marca a grande

virada teórica de Freud, é que a causa mesma da repetição escapa a esses limites,

fugindo, portanto, a regulação deste princípio.

Vejamos do que se trata.

O primado do prazer em xeque

Vinte anos após a publicação do texto que serve de marco inicial da psicanálise e

no qual Freud estabelece as bases teóricas que regem a sua primeira tópica, este se vê

confrontado por algumas questões que pareciam colocar em xeque a hegemonia do

princípio do prazer.

Até então, o que a teoria psicanalítica postulava era que, de uma forma ou de

outra, os processos psíquicos obedeciam primordialmente a esse princípio. Os

desprazeres experimentados pelos sujeitos, portanto, não eram compreendidos como

uma refutação desta premissa, mas antes eram explicados em conformidade com ela.

Isto fica bastante claro logo no capítulo primeiro do referido artigo de 1920, no qual

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Freud indaga-se se o desprazer neurótico e o desprazer resultante da vigência do

princípio de realidade não contrariavam a noção de que o aparato psíquico é

invariavelmente colocado em movimento por um aumento de tensão e que o curso de

seus processos se dão sempre no sentido de reduzir essa tensão, e assim possibilitar a

obtenção de prazer.

Ali, uma vez mais, chega à resposta que nem uma nem outra destas duas

modalidades de desprazer se opunha verdadeiramente a tal pressuposto. No primeiro

caso, que se refere ao sintoma neurótico, Freud relembra-nos que o desprazer, por ele,

suscitado é apenas tópico. Pois, se conscientemente este traz grande sofrimento ao

sujeito, ainda assim é através dele que a pulsão sexual pode se satisfazer,

inconscientemente. Ou seja, há no sintoma uma satisfação (substitutiva), mas que não

pode ser sentida como tal.

Já no segundo exemplo em exame, Freud também não encontra nada que

pudesse colocar em risco a tese defendida, porquanto o desprazer causado pelo princípio

de realidade, resultante do adiamento de uma satisfação pulsional, com efeito, apenas

assegura que o sujeito não padeça com um desprazer ainda maior ao tentar realizar a

ação específica sem que o objeto de satisfação esteja diante dele.

Contudo, se até o presente momento essas respostas bastavam para explicar em

consonância com o princípio do prazer grande parte das experiências desagradáveis, a

partir do final da Primeira Guerra Mundial tornou-se evidente que elas não davam conta

de esclarecer o desprazer recorrente experimentado pelos inúmeros veteranos de guerra

acometidos pela neurose traumática. No caso deles, o seu sofrimento relacionava-se

com os sonhos que produziam, através dos quais eram devolvidos repetidamente aos

campos de batalha e aos horrores que lá testemunharam.

O enigma da compulsão a repetir experiências aflitivas, ainda que em sonhos,

definitivamente causava grande embaraço para a psicanálise. Afinal, esses sonhos

traumáticos pareciam contrariar os ditames do princípio de prazer e configurar uma

exceção à regra de que toda produção onírica é a realização de um desejo. Mas, se assim

o fosse – e este era o impasse que precisava ser solucionado –, seriam eles índice de que

este princípio, até então supostamente soberano, não regia o curso de todos os nossos

processos psíquicos?

Uma vez que as análises sobre o desprazer neurótico e o desprazer causado pelo

princípio de realidade não ajudavam a esclarecer essa indagação, Freud se propõe

examinar uma brincadeira infantil, por ele nomeada de Fort-Da, na qual também notara

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a presença dessa imperiosa compulsão a repetir. O que ele buscava com isso? Ora,

compreender o que estava no cerne da repetição observada na neurose de guerra; se se

tratava de uma tendência mais elementar e independente ao princípio de prazer, ou não.

“Fort-Da”

Freud toma conhecimento dessa brincadeira, bastante comum entre crianças da

mais tenra idade, ao observar que um dos entretenimentos preferidos de seu netinho,

que na época contava com aproximadamente um ano e meio de idade, era arremessar

repetidas vezes um carretel para fora do berço, emitindo um arrastado “o-o-o-ó”, para

logo em seguida puxá-lo de volta para perto de si, saudando o seu reaparecimento com

um “da”.

Levando em conta a circunstância em que era proferido e, provavelmente,

também o fato de que “da” significa em alemão “ali”, Freud infere que o “o-o-o-ó”, por

sua vez, não consistia apenas numa mera interjeição sem sentido, mas que este som

representava a palavra “fort” – que pode ser traduzida em português por “embora”,

como se utiliza na expressão “ir embora”. E daí conclui, portanto, que toda esta

atividade constituía, com efeito, “um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus

brinquedos era brincar de „ir embora‟ com eles” (FREUD, 1920, p.26).

O súbito interesse de Freud por essa brincadeira infantil justifica-se pela

constatação de que ela também comporta a repetição de algo desagradável, na medida

em que ao fazer desaparecer o objeto, a criança está encenando – e por meio dessa

encenação, revivendo – a partida da mãe. Isto é, uma situação que de forma alguma

pode ter sido experimentada como prazerosa, já que – como vimos no Projeto

(1950[1895]) – o sujeito, ao nascer, necessita da provisão alheia para amenizar as

exigências pulsionais que o acossam, ficando, assim, em ocasião da ausência materna,

desamparado e a mercê dessas exigências que ele não pode satisfazer.

Entretanto, o que o pai da psicanálise percebe através da análise do jogo do Fort-

Da é que este não pode ajudá-lo a esclarecer se há, ou não, uma tendência mais

primitiva do que o princípio do prazer. Pois, a despeito dessa brincadeira repetir uma

experiência dolorosa, ainda assim, como observa, ela é acompanhada de prazer.

A fim de compreendermos de que maneira a repetição compulsiva de tal

encenação poderia suscitar prazer – o que, a princípio, poderia parecer um contra-senso

–, acreditamos que se faz necessário atentarmos para a conclusão a que chega Freud a

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respeito do Fort-Da:

A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ela se relacionava à

grande realização cultural da criança, a renúncia pulsional (isto é, a

renúncia à satisfação pulsional) que efetuara ao deixar a mãe ir

embora [...] (FREUD, 1920, p, 27).

Através desta afirmação, o que se revela é que, se por um lado, essa brincadeira

encena uma perda, por outro, ela promove um ganho. E, este, como nos aponta Freud

não se trata de um ganho qualquer, mas antes constitui “a grande realização cultural da

criança”. O que nos leva a inferir que este concerne, nada menos, que à própria

aquisição da linguagem, uma vez que entendemos que não poderia haver realização

cultural maior do que ela.

Desta forma, articulando tal inferência às considerações lacanianas trabalhadas

no capítulo anterior, se torna claro que este jogo ilustra precisamente aquilo que se

convencionou chamar de “simbolização primordial”, através da qual o pequeno sujeito,

já imerso na dimensão simbólica desde antes de seu nascimento, se constitui

propriamente enquanto tal – isto é, enquanto sujeito do desejo, dividido entre dois

significantes, aqui representados pelo Fort e pelo Da. Afinal, lembremos que, segundo

Lacan (1960), o sujeito é o que um significante (S1) representa para outro significante

(S2), só podendo ex-sistir nesse hiato entre um e outro. E é nesse sentido, aliás, que o

psicanalista francês irá dizer que aquilo que a repetição do jogo representa é a “saída da

mãe como causa de uma Spaltung [divisão] no sujeito” (Lacan, 1964, p.67).

Veremos a seguir, ao tratar das considerações freudianas acerca do trauma, de

que maneira este processo de simbolização permite a produção de prazer.

Trauma: excesso e falta

A hipótese que Freud que nos apresenta em 1920 para explicar o traumático

pode ser resumida, tal como indicamos no título deste sub-tópico, em duas palavras:

excesso e falta. Excesso, porquanto o trauma passa a ser compreendido, então, como um

aumento abrupto de energia livre que, ao inundar o aparelho psíquico, faz-lhe uma

exigência de trabalho maciça no sentido de vincular o excedente energético a

representações para, assim, viabilizar a descarga e restaurar um certo equilíbrio

tensional.

Contudo, o que Freud nos aponta ainda é que uma tal elevação de energia

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(característica às situações de perigo) somente se constitui propriamente enquanto

traumática na medida em que há também, por outro lado, uma falta de preparação do

aparelho para receber esta soma excessiva de excitação. É para esta carência que ele nos

chama atenção quando nos diz da particular importância do fator “susto” (Schreck) para

o desencadeamento de uma neurose de acidente.

Uma situação de susto – nos explica ele –, diferente daquelas de medo ou de

angústia, se caracteriza pela exposição do sujeito a uma experiência de perigo

imprevista, para a qual este não se encontrava psiquicamente predisposto, o que,

segundo as considerações traçadas nesse artigo, deveria se dar através do

estabelecimento de um estado de angústia preparatória, que levaria, por sua vez, a

subseqüente promoção de contra-investimentos psíquicos.

A relevância da realização prévia de contra-investimentos para a prevenção do

trauma pode ser vislumbrada quando levamos em conta que é através deles que o

psiquismo pode mobilizar a energia interna necessária para criar uma espécie de barreira

que dificulte ou limite o afluxo excessivo de excitação em estado livre.

Mas, como funcionaria esta barreira? Se recorrermos às considerações

freudianas traçadas no Projeto a respeito da experiência primária de dor e

aproximarmos essa noção de contra-investimento à noção de investimento colateral, ali

desenvolvida para explicar o mecanismo implicado na defesa primária, inferiremos que

o poder desta barreira reside no fato de que, graças a uma tal mobilização, diferentes

representações vizinhas são investidas simultaneamente. E, disto resulta uma ligação

(Bindung) entre elas que cria algo análogo a um campo de forças unificado, capaz de

atrair para si este excedente e os direcionar a favor dos trilhamentos, promovendo novas

ligações, até o ponto em que “as resistências seguintes sejam maiores do que a fração de

Q disponível para a corrente” (Freud, 1950[1895], p.495), quando, então, finalmente “a

totalidade da massa catexizada entra em equilíbrio” (idem).

Nesse sentido, é possível concluir que quanto maior a captação prévia da energia

interna, mais fácil será para o aparelho restituir o equilíbrio e evitar o trauma, pois,

como Freud afirmará em 1920, “quanto mais alta a própria catexia quiescente do

sistema, maior parece ser a sua força vinculadora; [enquanto que] inversamente [...]

quanto mais baixa a catexia, menos capacidade terá para receber o influxo de energia, e

mais violentas serão as conseqüências [...]” (FREUD, 1920, p.46).

Dentro dessa hipótese, os sonhos traumáticos seriam, grosso modo, uma

tentativa do aparelho de realizar retroativamente aquilo que não teria conseguido no

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momento do acidente: produzir o sinal de angústia e, assim, controlar o excesso de

excitações livres, promovendo ligações. Contudo, o fracasso aí é evidente, pois neles a

cena do acidente é reproduzida quase sem alterações, recolocando o sujeito na mesma

situação de desconhecimento quanto ao perigo que está prestes a enfrentar. Assim, ele

continua tendo o mesmo sonho repetidas vezes, e despertando de cada um deles

abismado diante de um novo susto, que não é senão o mesmo susto de antes.

A constatação de que a compulsão à repetição nesses sonhos aponta para um

esforço premente (e mal-sucedido) no sentido de agenciar a ligação da energia por meio

da associação de representações compelirá Freud a rever algumas de suas principais

concepções acerca do funcionamento psíquico. Primeiramente, ele terá que admitir que

uma das funções mais antigas deste, que, aliás, precede e possibilita a instauração do

princípio do prazer, é precisamente a função de sujeitar à representação15

as excitações

que com ele se chocam e assim converter as catexias livres em quiescentes. Ou seja:

O princípio do prazer não estará mais ligado, como antes, ao processo

primário. O que Freud descobre são as condições mediante as quais o

prazer se põe como princípio. O prazer, que anteriormente se

relacionava ao processo primário, não é o mesmo que agora se

inscreve como princípio. A transformação do processo primário em

secundário, ou a ligação da energia que circula livremente, é a

condição necessária à instalação do princípio do prazer (SANTOS,

2002, p. 114).

Ademais, Freud reconhecerá também que esta função expressa uma tendência

mais primitiva do psiquismo do que a de obter prazer, qual seja: a tendência de se

libertar totalmente das excitações, vinculando-as e descarregando-as por completo. E ele

a atribuirá nada menos que ao caráter fundamentalmente conservador das pulsões cujo

desígnio último – nos diz – é zerar a tensão própria à matéria viva e retornar ao estado

inanimado original, quando precisamente a vida não existia.

Redefinindo a pulsão e estabelecendo uma nova dualidade pulsional

É claro que se Freud passa a imputar às pulsões esta tendência mais primordial

do aparelho psíquico é somente porquanto ele é conduzido, a partir dessas elaborações

recentes, a um novo entendimento com relação a elas.

15

Assim, o que se evidencia, aqui, é que a condição de possibilidade para o estabelecimento do princípio

do prazer é justamente a aquisição da linguagem, que promove estas associações significantes.

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Para compreendermos como ele chega aí, faz-se necessário lembrarmos que

Freud conclui em referência ao trauma que este diz respeito a uma invasão de energia

livre circulante que o aparelho psíquico fracassa em seu esforço de simbolizar. Ou seja,

ainda que aparato trabalhe incansavelmente sujeitando as excitações livres às

representações, o traumático implica justamente a presença de um resto não-ligado que

insiste compulsivamente. Ora, já em A pulsão e suas vicissitudes (1915b), Freud já

reconhecia que a pulsão não é mais do que um certo acúmulo de excitações oriundas do

corpo fazendo exigência de trabalho contínuo ao psiquismo. O que leva inevitavelmente

à inferência de que esse resto – que, como vemos, nos é apresentado aqui como sendo a

causa da repetição –, não pode ser senão a própria pulsão.

É nesse sentido que entendemos que o pai da psicanálise postulará que a

repetição é aquilo que há de mais propriamente pulsional. Pois, afinal, se a pulsão

responde por um excedente ineliminável que não pode ser totalmente ligado, ela só pode

fazer repetir seu imperativo de inscrever-se psiquicamente. Ela repete porque não pode

ser completamente simbolizada; porque dela sobra algo de não-representado que sempre

persevera. Quer dizer, como coloca Garcia-Roza (1986), “a repetição insiste porque a

pulsão persiste” (p.59). Persiste como o resíduo inassimilável que se, por um lado,

coloca a estrutura psíquica em movimento, por outro, o faz justamente com o derradeiro

propósito de fazer-se assimilar por ela e conduzi-la, assim, ao seu próprio

aniquilamento.

Por isso mesmo a pulsão passará a ser concebida como “um impulso, inerente à

vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, (…) ou, para dizê-lo de outro

modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica” (FREUD, 1920, p.54). O que

levará Freud ao momento teórico mais decisivo de sua obra, aquele no qual ele postula a

pulsão de morte, enquanto pulsão primeira, em oposição às pulsões de vida, concebendo

um novo dualismo pulsional.

Resumidamente, dentro dessa nova dualidade, ele admitirá que se as pulsões de

morte operam no sentido de encaminhar o organismo para o seu fim, as pulsões de vida

– que englobam tanto as pulsões sexuais narcísicas quanto objetais – trabalham visando

o prolongamento desta jornada ao garantir, pelo investimento libidinal egóico, a

retenção de uma certa reserva energética “para sua posterior e momentosa atividade

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construtiva16

” (FREUD, 1920, p.70). Mas que atividade construtiva seria esta? A

promoção de uniões, coalescências, através das catexias de objeto, por meio das quais

Freud nos diz que novas tensões são introduzidas no aparelho.

Contudo, na medida em que tais uniões levam à descarga, o que se evidencia é

que, se por um lado, as pulsões de vida propiciam desvios que retardam o fim, por

outro, elas ainda assim servem ao objetivo maior colocado pela pulsão de morte. Quer

dizer, se Eros e Thanatos dizem respeito – tal como Freud nos sugere – a duas forças

que trabalham em sentidos diferentes, todavia não se pode dizer que os processos que

elas desencadeiam correm separadamente e em franca oposição, mas que eles se fundem

e até certo ponto se confundem17

. O que fica evidente com a noção de “fusão pulsional”

elaborada neste artigo.

Para nossa pesquisa, acreditamos que seja mais interessante pensarmos esta

distinção que nos apresenta Freud a partir da dicotomia “energia livre x energia ligada”.

Isso porque entendemos que, deste modo, não caímos no equívoco de conceber a

existência de uma diferença qualitativa entre essas duas ordens pulsionais – idéia que o

próprio Freud (1923) parecia já rechaçar – e destacamos que a principal diferença entre

elas é tópica. Enquanto Eros diz respeito às moções pulsionais já submetidas ao espaço

da representação, ligadas a representantes, Thanatos se refere à força pulsional em

estado bruto, livre, que se mantém para além do campo da linguagem. Assim,

concordamos com Garcia-Roza (1986) quando ele infere que:

ao colocar a questão de um além do princípio do prazer, Freud não

está retomando o ponto de vista naturalista com o qual a psicanálise

rompe desde os seus começos. Dizer que a vida aponta para a morte

não significa abrir mão da dimensão simbólica que caracteriza

essencialmente a psicanálise, mas sim admitir a possibilidade de um

limite da palavra [...] (GARCIA-ROZA, 1986, p.92).

Nesse sentido, aliás, se torna compreensível a asserção freudiana de que “as

pulsões de morte são, por sua natureza, mudas” (FREUD, 1920, p.62). E, com isso, é

possível concluir que, se a causa da repetição – tal como vimos anteriormente – consiste

em um resto pulsional não-ligado que sempre persevera, então, esta causa muda recebe,

no artigo Além do Princípio do Prazer, o nome de pulsão de morte. Mas, como veremos

16

Essa, aliás, seria uma outra forma de se pensar a oposição entre Thanatos e Eros: o primeiro enquanto

uma força disruptiva e o segundo como uma força assimilatória. Lacan, em seu seminário sobre a ética da

psicanálise (1959-1960), privilegia precisamente este modo de conceber a pulsão de morte. 17

Sobre isso, nos diz Lacan (1954-1955): “a tendência à união (...) nunca é apreendida a não ser em sua

relação à tendência contrária, que leva à divisão, à ruptura, à redisposição [...]. Estas duas tendências são

estritamente inseparáveis. Não há noção que seja menos unitária” (p.106).

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ao longo deste capítulo, este não é o único.

2.2.

Das Ding

Revendo o “Projeto” à luz do “Além”: breve introdução à Coisa

Como aparece no Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]) esse

“para além da linguagem” que funciona como força motriz do automatismo de

repetição? O que este texto e as considerações lacanianas a respeito dele – traçadas

principalmente no seminário sobre a ética da psicanálise (1959-1960) – podem nos

ensinar sobre ele e sobre sua relação com o simbólico (isto é, com a linguagem)? E,

ainda, como podemos articular as formulações ali encontradas com o que vimos

anteriormente no artigo Além do Princípio do Prazer (1920)?

Para respondermos as indagações acima, acreditamos que se faz necessário

retornarmos, rapidamente, às elaborações freudianas acerca da primeira vivência de

satisfação – experiência que tenta explicar a origem e o modo particular de

funcionamento de nosso aparelho psíquico, e que, como veremos agora, não pode ser

senão uma experiência mítica.

Lembremos que, segundo Freud (1950[1895]), essa vivência se dá logo nos

primeiros momentos de vida, quando o bebê consegue, mediante o auxílio alheio,

promover a ação específica e, assim, supostamente, eliminar a estimulação endógena

que lhe bombardeia sem tréguas, sendo levado, pela primeira vez, à satisfação. E não a

uma satisfação qualquer – diga-se de passagem –, mas à satisfação absoluta, que desde

então o sujeito viveria na vã expectativa de repetir.

Até o presente momento, não havíamos feito qualquer ressalva quanto a esta

pressuposição freudiana, indispensável para se justificar os efeitos estruturantes dessa

experiência tal como eles nos são apresentados no Projeto. Todavia, agora que já

debatemos as considerações traçadas no artigo Além do Princípio do Prazer,

acreditamos que se torna manifesto o quão insustentável – para dizer, no mínimo – é

admitir que em algum momento tenha sido possível suprimir, ainda que

provisoriamente, a descarga de Q no interior do corpo. Afinal, através das formulações

de 1920, se esclarece que uma tal remoção da estimulação endógena, por meio do que

resultaria a neutralização da tensão no interior do aparato psíquico, não poderia senão

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conduzir ao próprio aniquilamento do aparelho. Ou seja, consentir que isso tenha

ocorrido é consentir que a pulsão de morte, em algum momento, por mais breve que

seja, tenha conseguido alcançar o seu desígnio. O que é inconcebível.

Dessa forma, entendemos que o que se evidencia quando lemos o primeiro

desses textos à luz do segundo, e que certamente não ficava claro antes, é que sob

hipótese nenhuma esta vivência pode ter ocorrido de fato. Pois, do contrário, caso,

algum dia, se tivesse conseguido eliminar completamente a tensão interna, jamais se

teria sobrevivido a essa experiência, nem para gozar da suposta satisfação plena que

extrairia dela tampouco para continuar tentando repeti-la.

Assim, somos inevitavelmente conduzidos a inferir que a experiência primária

de satisfação é, com efeito, mítica. E que, portanto, a tão perseguida e almejada

satisfação absoluta, bem como o objeto que a teria proporcionado, não deixam de ser

apenas uma miragem. Esta miragem, contudo, é estrutural, porquanto ela é inerente à

constituição do sujeito, sendo, tal como ele, efeito da linguagem.

Explicamos este salto. Como afirmamos anteriormente, o bebê quando vem ao

mundo não tem condições de aplacar, sozinho, as excitações endógenas, requerendo o

auxílio externo para isso. E de que forma Freud nos diz que ele consegue a atenção de

um adulto? Através de manifestações de choros e gritos. Essas manifestações por elas

mesmas não dizem nada. Entretanto, conforme sublinhamos no primeiro capítulo, elas

adquirem a função secundária de comunicação. Como? Ora, justamente porque aquele

que vem ao seu socorro, longe de tratá-las como simples descargas motoras, as entende

como o signo de um apelo, fornecendo-lhes uma interpretação e provendo a criança de

acordo com esta. E o resultado de tal intervenção é que esse grito é elevado

retroativamente à potência de uma demanda (DREYFUSS, 1982), e o bebê mais do que

ter uma exigência biológica atendida, é introduzido na ordem simbólica.

Diante disso, é possível compreendermos que aquilo que a experiência primária

de satisfação ilustra não é senão o começo da inserção do sujeito (que ainda é um

sujeito-por-vir) nessa ordem que o precede, que já está lá desde antes do seu

nascimento. Ou seja, trata-se, nesta situação emblemática, do primeiro encontro com a

linguagem. Por isso, Dreyfuss (1982) afirmará que diante desse primeiro „chamado‟ não

é o outro especular que vem em auxílio do bebê, mas sim, antes de tudo, o grande Outro

(A) – isto é, a linguagem enquanto alteridade radical – que vem acolher e nomear o seu

choro, conferindo-lhe um sentido.

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Esse sentido conferido ao grito, portanto, não está dado a priori. Mas é

produzido somente quando atravessa o lugar do código e é articulado em significantes

no Outro, ganhando o estatuto de fala. Todavia, ainda assim, o grito „fala‟, mas não diz.

Se dissesse, se tivesse um significado a ele inerente, intrínseco, diante do choro de um

bebê, a pergunta “o que será que ele quer?” não se colocaria. Não haveria espaço para a

dúvida (e nos falantes, mesmo quando aparentemente não há dúvidas, há sempre

margem para ela). O objeto, então, estaria já pré-determinado e seria perfeitamente

adequado. Neste caso, sim, se poderia pensar em objeto absoluto, em necessidade (não

em demanda), e em instinto. Mas, o que observamos, é que para o humano, por ele

nascer imerso na linguagem, o referente, o real, a coisa mesma que se quer dizer na fala

está desde e para sempre perdida. E é por isso que nos seres falantes afirmamos que as

exigências do corpo não são da ordem do instinto, mas da pulsão, porquanto esta se

caracteriza justamente pela ausência de um objeto específico. O objeto da pulsão – nos

diz Freud (1915b) – é indiferente; ele é o que há de mais variável.

Assim, podemos afirmar também que esta experiência primária de satisfação é

mítica na medida em que pressupõe que em algum tempo imemorial se teve acesso ao

objeto absoluto, à Coisa mesma – ou, como veremos a seguir, à das Ding. O que seria

equivalente a admitir que se possa ter tido acesso, um dia, a um objeto original sem

qualquer mediação da linguagem, quando entendemos que isto simplesmente não é

possível. Aliás, acreditamos que o estado de desamparo sobre o qual nos fala Freud no

Projeto, não consiste, portanto, no fato do homem nascer completamente dependente do

outro, mas do Outro; da linguagem. E é apenas por meio dela que este poderá aceder a

alguma satisfação. Mas nunca a toda satisfação. Nunca ao gozo pleno – este que

corresponderia à perfeita adequação e complementaridade entre “sujeito” e “objeto”.

Todavia, como é possível notar através das considerações acima, a despeito do

referente estar desde sempre perdido, a fala necessariamente o pressupõe. Afinal, a

própria pergunta pelo sentido parece colocar em seu horizonte um significado

derradeiro, real, sempre visado, mas nunca alcançado. E, assim, julgamos que se

esclarece nossa afirmação anterior de que tanto a satisfação absoluta quanto o objeto

que poderia tê-la proporcionado não passam de um engodo que, no entanto, é efeito da

própria linguagem, sendo impossível prescindi-lo ou erradicá-lo. A palavra coloca esse

mais-além.

Diante disso, aspectos importantes para nossa pesquisa se evidenciam.

Perguntamos, logo de início, como é que aparecia esse “para-além” da linguagem no

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Projeto, e a partir do que expomos já é possível esboçarmos uma resposta: ele aparece

como esse objeto absoluto, das Ding, que, segundo nos aponta Braunstein (2007), é “a

Coisa como um real puro, anterior a qualquer simbolização, exterior a qualquer tentativa

de apreensão, apagada para sempre por qualquer palavra (...) e o mais inacessível ao

sujeito” (p.78).

Lacan se dedicou a trabalhar esse conceito freudiano detidamente em O

Seminário, livro 7 (1959-1960). Ali, ele examina as considerações sobre das Ding

encontradas no Projeto quando Freud discorre a respeito da atividade de pensamento e

sobre o complexo do próximo (Nebenmensch). A fim de melhor poder apreciá-las,

julgamos indispensável recorrermos, uma vez mais, a esses renegados rascunhos.

Juízo, pensamento e fabricação da realidade

Quando tratamos da experiência de satisfação no capítulo anterior, vimos que

Freud reconhece que esta deixa atrás de si facilitações que levariam, em princípio, ao re-

investimento da imagem mnêmica do objeto que teria possibilitado, supostamente, a

cessação do estímulo, e que disto resultaria a sua alucinação e a subseqüente frustração

do sujeito.

Ademais, afirmarmos também que, de acordo com as teorizações freudianas, é a

partir do desprazer suscitado por esse desapontamento que se dará a organização do ego

enquanto uma organização psíquica composta por neurônios constantemente investidos

e interligados, com a função específica de inibir o livre fluxo de Q, atraindo para si os

investimentos que se dirigem à imagem mnêmica do objeto, e transferindo-os a favor

dos trilhamentos para os neurônios adjacentes a ele.

Diante disso, torna-se compreensível, portanto, que é esse escoamento da

energia promovido pelo ego através das facilitações – e em obediência ao princípio do

prazer –, que garante que, mesmo diante de um súbito acréscimo de tensão, a catexia da

imagem do objeto permaneça sempre moderada e não ultrapasse um certo limite, acima

do qual o sistema ω (responsável pela consciência) seria incitado a produzir uma „falsa‟

indicação de realidade, desencadeando justamente a alucinação.

Mas até quando a inibição egóica deve acontecer? – poderíamos perguntar.

Segundo Freud, o ego deve suspender a descarga motora até que se reencontre no

exterior um objeto idêntico àquele primeiro. Para isso, durante o estado de desejo, os

neurônios que compõe essa organização dirigirão seus investimentos para qualquer

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percepção que se faça presente, a fim de procurar um objeto que corresponda ao

desejado.

Caso apareça diante do sujeito, um objeto cuja percepção coincida totalmente

com o investimento do desejo (isto é, com a imagem-lembrança do objeto de

satisfação), a descarga é imediata. Contudo, como se pode inferir, tal situação específica

é, de fato, impossível de acontecer. E se o próprio Freud, não admite isso abertamente

no Projeto, ele ao menos reconhece ali que as chances de ocorrer uma identidade

completa entre as duas imagens são muito pequenas, uma vez que ambas as catexias,

tanto a perceptiva quanto a mnêmica, nunca se referem a um único neurônio, mas a um

complexo.

Deste modo, Freud passa a analisar outro caso que supõe mais comum, qual seja,

aquele em que, no estado de desejo, o investimento moderado do complexo-lembrança –

representado pelo exemplo (neurônio a + neurônio b) –, se dá simultaneamente com

uma percepção que não corresponde inteiramente a ele – ilustrada pelo conjunto

(neurônio a + neurônio c). De acordo com suas anotações, é nesse momento que surge,

então, o ímpeto para a atividade do pensamento, que tem como propósito último

verificar se o objeto percebido corresponde, ou não, ao objeto da ação específica

Esta atividade é suscitada, assim, a partir de uma análise (ou juízo) das imagens

mnêmica e perceptiva, mediante a qual se evidencia, por um lado, a semelhança

existente entre elas graças à presença de um elemento comum a ambas (neurônio a), e,

por outro lado, aquilo que há de dessemelhante entre as duas – seus componentes

variáveis (os neurônios b e c). É a este elemento constante, presente nos dois

investimentos, que Freud nomeará de das Ding, ou a Coisa, enquanto que aos

componentes divergentes ele chamará de atributos.

Com essa coincidência parcial, Freud nos diz que a inibição da descarga

continuará até que a identidade de todo o complexo seja confirmada pela atividade do

pensamento. Nesta, o ego direciona a corrente de Q para o elemento perceptivo

desconhecido (neurônio c), a fim de que, a partir dele, emirjam no pallium novas

associações até que se alcance, por meio delas, o componente que deveria estar presente

na percepção do objeto (neurônio b) para que houvesse uma completa adequação com

investimento do desejo. De acordo com Freud, uma vez tendo-a alcançado, é que se

produziria, então, um „estado de identidade‟ que desencadearia a indicação de realidade,

colocando termo à atividade de pensar e promovendo o início da descarga motora.

Aqui, cabe tecermos algumas considerações em relação ao que vimos até agora.

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Primeiramente, julgamos pertinente apontar que o processo que Freud nos

descreve como sendo próprio à atividade do pensamento – qual seja: o deslocamento de

investimentos através de uma cadeia associativa (neste caso, neuronal) – é análogo ao

que Lacan reconhece como característico ao funcionamento simbólico, isto é, da

linguagem. E, mais especialmente ainda, à função metonímica nela presente.

Ademais, é interessante notar que, curiosamente, o que ocorre no

estabelecimento da identidade perceptiva não é senão, com efeito, uma operação de

retificação da realidade. Afinal, como podemos constatar pelas considerações acima,

aquilo que supostamente se apresentaria aos olhos do sujeito (o complexo neurônio a +

neurônio c) deve ser corrigido através do pensamento em favor da lembrança investida

pelo desejo, para que assim possa se dar essa identidade. E, nesse sentido, somos

levados a inferir que a realidade tal como nós a percebemos já é, de certa forma,

fantasística, porquanto ela é, desde sempre, construída em conformidade às expectativas

do desejo.

Tais considerações, a princípio, poderiam nos conduzir a imaginar, então, que

existiria um real puro, em estado bruto, anterior a qualquer atividade do pensamento,

mas inacessível enquanto tal ao sujeito, já que este só pode vir a conhecer a realidade

através da mediação do pensamento – o que é o mesmo que dizer: através da mediação

do desejo –, que „distorceria‟ este real primeiro. Contudo, o que as considerações de

Lacan nos permitem compreender é que não há um real prévio ao processo de

simbolização, e sim que o real (como isso que nos daria a essência, o ser mesmo das

coisas) é justamente um produto, um efeito, desse processo. Aliás, foi precisamente para

esta idéia que atentamos quando abordamos a questão de que é a própria linguagem que

coloca em seu horizonte esse “mais-além” interditado a ela mesma: esse referente

último, sempre visado e nunca alcançado, que não passa, com efeito, de uma quimera.

Agora, porém, acreditamos que seja conveniente tentar buscar nesse símile

freudiano para explicar a atividade de reconhecimento, isto que constitui o real. Ora,

como afirmamos acima, o real pode ser pensado como aquilo que, supostamente, nos dá

a essência de um objeto e que, sendo assim, se refere ao que, a despeito das infinitas

propriedades contingenciais (e, portanto, variáveis) que esse objeto pode apresentar, se

mantém necessariamente constante nele, uma vez que sem isso, o mesmo deixaria de ser

o que é. E, no exemplo dado, o que é que se mantém invariável nos dois complexos

envolvidos no estabelecimento da identidade de percepção? Das Ding.

Vejamos, a seguir, um pouco mais a respeito desta curiosa Coisa, a fim de

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melhor compreendermos a sua importância para a estruturação da ordem simbólica e

também a sua relação com a repetição.

Essa estranha Coisa tão íntima

Tal como vimos a pouco, Freud introduz a noção de das Ding precisamente para

designar o elemento constante cujo „reconhecimento‟ imediato, a partir do juízo, incita a

atividade de pensar. Este elemento comum, o neurônio a, é, pois, encontrado tanto no

ego (núcleo de ψ), permanentemente investido pelo desejo, quanto na imagem-

perceptiva (situada no pallium), sem ser, entretanto, redutível a um ou a outra. Dessa

forma, somos levados a inferir que ele está numa e noutra região, mas, com efeito, não

pode ser localizado especificamente em nenhuma delas. É tal particularidade, aliás, que

nos aponta Dreyfuss (1982) no seguinte trecho:

das Ding, como estrutura comum a esses dois investimentos distintos,

não pertence propriamente nem ao pallium, nem à zona nuclear e não

é também localizável dentro do aparelho psíquico do Projeto. “A

coisa” é antes assimilável a interseção vazia desses dois conjuntos

disjuntos (DREYFUSS, 1982, p. 58).

Em outras palavras, das Ding é algo que resta da lembrança da primeira vivência

de satisfação e que retorna na percepção, sem que se possa precisar exatamente onde ele

está, já que não se encontra nos traços mnêmicos deixados por essa experiência e

tampouco na imagem do objeto „re-achado‟, ao mesmo tempo em que se presentifica em

ambos os sistemas (perceptivo e mnêmico) como ausência.

Então, cabe perguntarmos: Qual seria o estatuto desse estranho elemento? E,

ainda, que lugar é este que ele ocupa?

Uma primeira resposta que podemos esboçar, a partir do que já foi visto, é que

das Ding é precisamente aquilo que, no processo de verificação do pensamento em sua

busca por estabelecer a identidade do complexo percebido em relação à catexia do

desejo, é excluído das cadeias associativas. Afinal, Freud nos aponta que essas vias

serão traçadas do neurônio c ao b, enquanto que o neurônio a permanece, aí, isolado,

ainda que, curiosamente, seja apenas por meio da semelhança parcial que ele introduz

que essa atividade do pensamento seja suscitada.

A fim de complementar essa resposta, parece-nos importante considerar ainda o

Freud menciona acerca de das Ding ao tratar do complexo do próximo (Nebenmensch) e

da importância deste para o surgimento da atividade judicante no sujeito.

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De forma resumida, ele nos diz que é justamente a partir dos complexos

perceptivos que emanam do próximo que “o ser humano aprende a conhecer” (FREUD,

1950[1895], p.447), distinguindo-os em duas partes: uma que se refere aos traços novos

e incomparáveis, e outra que diz respeito aos conjuntos perceptivos passíveis de serem

reconhecidos através das lembranças que o sujeito mantém de suas próprias vivências

(como a percepção visual dos movimentos das mãos, por exemplo). Ainda sobre este

processo, Freud afirma que:

O complexo do próximo se divide em dois componentes, dos quais um

produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido

como uma coisa (Ding), enquanto o outro pode ser compreendido por

meio da atividade da memória – isto é, rastreado até as informações

sobre o próprio corpo [do sujeito] (FREUD, 1950[1895], p.448)

Mas, que „próximo‟ seria este ao qual Freud se refere? Mediante as

considerações já traçadas, somos levados a inferir que o Nebenmensch diz respeito à

primeira alteridade com a qual se depara o recém-nascido. Nesse sentido, Dreyfuss

(1982) faz questão de sublinhar que nada permitiria identificar, no Projeto, essa

alteridade como a unidade imaginária na qual o sujeito reconhece seu semelhante.

Podemos dizer, ao contrário, que ao se deparar no complexo do próximo com das Ding,

elemento que sobra de radicalmente estranho (Fremde) e escapa a qualquer tentativa de

compreensão, é com o Outro absoluto que o pequeno desamparado se confronta.

A respeito desse encontro com o Outro, Lacan (1959-1960) sublinha que é em

torno da Coisa, como primeiro exterior, alteridade radical, que se traçará todo o

encaminhamento do sujeito no mundo. Este se dirigirá e se reportará aos objetos tendo

como referência a suposta satisfação daí extraída, colocando-a sempre em seu horizonte,

e buscando revivê-la. É nesse sentido, pois, que se pode afirmar que o modo do sujeito

abordar a realidade será marcada , inexoravelmente, por essa experiência primordial.

Contudo, como nos alerta Lacan, a tentativa de repetir essa experiência de

reencontrar das Ding enquanto Outro absoluto está fadada ao fracasso. Diz-nos ele,

taxativamente: “Reencontramo-lo no máximo como saudade” (LACAN, 1959-1960, p.

68). Isso porque aquilo que se busca reencontrar, esse objeto primordial, não pode ser

encontrado. Ele é desde e para sempre perdido, uma vez que nunca existiu como tal.

Já desenvolvemos rapidamente esta idéia quando explicamos em que medida se

podíamos dizer, com base nas considerações freudianas de 1920, que a experiência de

satisfação é mítica. Mas, uma outra maneira de entendermos esta impossibilidade

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estrutural de se reencontrar este objeto é se levarmos em conta que essa vivência

precede qualquer distinção entre sujeito e objeto, interior e exterior. Pois, é somente

quando a mãe se ausenta e que, portanto, o objeto de satisfação se constitui enquanto

faltoso, que o bebê pode concebê-lo como algo externo, fora de seu corpo; quer dizer,

como um objeto, propriamente. E, sendo assim, não é senão nesse momento mesmo que

a fronteira entre interior e exterior começará a se estabelecer, e sujeito e objeto poderão

se constituir enquanto tais.

Agora, acreditamos que se torna mais claro em que medida o encontro com o

primeiro objeto marca, a posteriori, a experiência de realidade para o sujeito. Pois,

como dito acima, é apenas na ocasião em que esse objeto se constitui como ausente, que

um exterior pode ser diferenciado de um interior, e que o mundo, enquanto realidade

material, pode se abrir para o sujeito. E, se ela se abre – como vimos – é já, desde então,

como fonte de investigação, não como um dado; e já, desde sempre também, mediada

pelo desejo. Afinal, se o pequeno sujeito se dirigirá ao mundo externo para conhecê-lo,

o faz justamente porque deseja reencontrar nele o objeto perdido. Quanto a isso, Lacan

(1959-1960) nos aponta que:

No final das contas, sem algo que o alucine [isto é, a este objeto, das

Ding] enquanto sistema de referência, nenhum mundo da percepção

chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de maneira

humana. O mundo da percepção nos é dado por Freud como

dependendo dessa alucinação fundamental (LACAN, 1959-1960,

p.68).

Esse movimento que se estabelece em busca do objeto, e do qual depende a

organização do mundo da percepção – lembremos –, nada mais é do que o próprio ato

de pensar. E talvez não seja excessivo sublinhar novamente que se no Projeto, Freud

coloca que ele se daria através do deslizamento dos investimentos nas cadeias

associativas dos neurônios, enquanto a Coisa ficaria à parte do mesmo, permanecendo

isolada dessas cadeias, Lacan, em sua releitura do texto freudiano, retoma esta idéia,

porém colocando-a em outros termos. Ele substitui a trama neuronal à articulação

significante (ou à cadeia de representações); identifica o objeto perdido da satisfação à

das Ding; e ao invés de falar em atividade do pensamento, se refere a processo

simbólico. Nesse sentido, ele afirmará que das Ding é aquilo que permanece estranho à

rede de representações, é o não-representável, em torno do qual se organizam as

Vorstellungen, concluindo: “ao nível da Vorstellungen, a Coisa não é nada, porém,

literalmente não é – ela se distingue como ausente, alheia” (LACAN, 1959-1960, p.80)

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Assim, podemos compreender melhor, então, do que se trata a Coisa e qual lugar

peculiar que ela ocupa em relação à ordem simbólica. Das Ding é uma das

denominações para aquilo que o sujeito teve que perder, quando ainda não era sujeito

(quer dizer, que nunca perdeu, então), para poder se constituir enquanto um sujeito

(ainda que divido); é a parte de si mesmo que nunca foi sua; algo de interior que se

tornou exterior ao mesmo tempo em que tornado excluído no interior. Ele diz respeito

ao vazio central ao redor do qual gira a cadeia de representações, radicalmente estranho

e integrado a ela; sendo aquilo mesmo que, por um lado, a possibilita e, por outro, a

fura. Ele é “originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado” (LACAN, 1959-

1960, p.70) que permite que o mundo do sentido possa ser construído, mesmo que de

forma precária, uma vez que é justamente esse ponto opaco na cadeia aquilo que

inviabiliza o acabamento do sentido.

Como índice de uma exterioridade irredutível à cadeia de representações, a

Coisa se mantém fora, para além, daquilo que é regulado pelo princípio de prazer, não

obstante o fato de que seja através da dimensão simbólica, pelas vias do significante,

que sua procura incansável se dê e que se possa, de alguma maneira, apontá-la. Afinal,

ainda que das Ding não pertença ao espaço da representação, nem por isso ele deixa se

fazer presente, ali, em sua ausência. Pode-se dizer, ainda, sobre a Coisa enquanto esse

exterior radical, que ela é “o que do real (…) padece de significante” (LACAN, 1959-

1960, p.144), quer dizer, das Ding é aquilo que escapa ao processo de simbolização;

que resta insistentemente como inominável, fazendo limite ao simbólico: o real.

Ademais, resta-nos articular o que trabalhamos até aqui a respeito de das Ding

com a repetição. Para tanto, começaremos evocando o que vimos no artigo Além do

Princípio do Prazer (1920). A partir desse texto, foi-nos possível constatar que Freud

concebe, ali, que o traumático implica justamente o fracasso do esforço de dominar o

excedente pulsional, e, portanto, a persistência de um resto não-ligado que insiste

compulsivamente em se fazer representar.

Sendo assim, se torna claro como estas formulações se aproximam do que vimos

anteriormente a respeito de das Ding enquanto Outro absoluto do sujeito (seu primeiro

exterior) e como seu primeiro objeto de satisfação. Se o trauma é aquilo que produz um

resíduo não assimilável pelo processo simbólico, esse encontro primordial com o Outro,

a partir do qual se introduz no pequeno sujeito uma alteridade radical, inassimilável, no

seio de sua subjetividade, ele então não só é satisfatório, como falamos até o momento,

mas também traumático. E, deste modo, podemos afirmar ainda que aquilo que desta

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experiência sobra de não articulável à cadeia significante – a Coisa, como objeto

perdido – não é senão a causa primordial da compulsão à repetição.

E, se torna possível compreendermos especificamente a sua relação com a face

simbólica da repetição (isto é, com o retorno automático dos mesmos signos à cadeia

associativa) quando levamos em conta a afirmação lacaniana que nessa busca por

reencontrar das Ding, o que achamos são suas coordenadas de prazer (LACAN, 1959-

1960, p. 68); quer dizer, as marcas significantes deixadas por este encontro primeiro

com a alteridade, que precisamente orientarão toda a rede em torno desse vazio central.

2.3.

Tiquê: A causa acidental da repetição

Automatôn e Tiquê

Em 1964, Lacan se debruçará novamente sobre o tema da repetição no seminário

dedicado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Ali, o que ele nos apresenta

de maneira inequívoca é que este conceito articula, privilegiadamente, dois registros: o

simbólico e o real. Não que isso não se fizesse já entrever em sua obra. Muito pelo

contrário, acreditamos que mesmo em seu seminário sobre a ética (1959-1960) já era

possível notar que não se pode conceber a repetição senão em referência a essas duas

dimensões. E, com efeito, nas reflexões que traçamos acima, grande parte de nosso

esforço se deu no sentido de sublinhar de que modo as considerações lacanianas a

respeito de das Ding permitiriam vislumbrar tal articulação.

Porém, ainda assim, entendemos que é apenas em O Seminário – livro 11 (1964)

que ele formaliza de maneira mais acurada que, precisamente pelo fato de articular esses

registros heterogêneos, a repetição apresenta duas faces, as quais, apesar de distintas, se

encontram inexoravelmente imbricadas, de tal forma que não podem ser amplamente

compreendidas senão remetidas uma à outra.

A fim de assinalar estes dois lados da repetição, Lacan se utiliza de duas

concepções aristotélicas, autômaton e tiquê, desenvolvidas no livro Física.

Nesta obra – vale lembrar –, partindo do pressuposto que tudo que existe e/ou

acontece (isto é, tudo o que se realiza) no mundo possui uma causa, o filosofo grego

distingue quatro princípios genéticos das coisas. Dentre elas, está a de causa eficiente ou

motora (kinoun), que se refere especificamente àquilo que responde por colocar em

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movimento (ou engendrar a mudança de) alguma coisa. É nesta categoria que

Aristóteles inclui a noção de causa acidental (symbebekos), que subdivide em dois tipos:

autômaton e tiquê.

Segundo Garcia-Roza (1986), essas duas causas acidentais se distinguem das

outras causas eficientes por se referirem a acontecimentos excepcionais, que eram em

geral associados ao acaso justamente por se tratarem de eventos para os quais a razão

humana não consegue atribuir uma inteligibilidade. Não obstante, como nos aponta

Echandía – tradutor e comentador da edição à qual recorremos –, para muitos

pensadores que precederam a Aristóteles, tiquê e automatôn eram considerados como a

verdadeira razão de tudo acontecer, estando em íntima conexão com a idéia de

necessidade; sendo, este, aliás, o principal motivo que teria levado o filósofo a inseri-las

em seu esquema causal.

Contudo, é importante sublinhar que essas duas noções não eram utilizadas num

mesmo sentido, nem sequer antes das formulações aristotélicas. No uso corrente em que

geralmente eram empregadas na Grécia antiga, tiquê servia para designar “uma

divindade desconhecida – porém nomeada – responsável pela sorte ou pelo infortúnio

dos homens” (GARCIA-ROZA, 1986, p.40). Assim, podemos pensar que ela se

aproximaria ainda mais da idéia de necessidade do que o autômaton, porquanto, se

referia a uma força externa – “algo de divino e tão demoníaco que se faz inescrutável ao

pensamento humano” (ARISTÓTELES, 1995, p.61) – que sela o destino inescapável de

cada sujeito.

Já, automatôn, por sua vez, tinha um emprego mais profano, mas nem por isso

menos inquietante, como nos aponta a nota do tradutor. Entre os gregos, este termo era

usado, corriqueiramente, para indicar algo que se produz espontaneamente ou que se

move por si mesmo. Isto é, independente de qualquer deliberação humana ou mesmo

divina. Aristóteles irá, grosso modo, manter essa acepção, acrescentando que “como

indica seu nome (automatôn), [esta causa] tem lugar quando ocorre algo „em vão‟

(maten18

)” (ARISTÓTELES, 1995, p. 66).

Todavia, com relação à tiquê, o filósofo retira o sentido teológico que antes a

impregnava, destituindo-lhe de seu caráter místico, ao fazer questão de sublinhar que

aquilo à que se denomina “sorte” ou “fortuna” se refere a acontecimentos que, apesar de

se darem por acidente, implicam necessariamente à atividade humana, pois – como nos

18

Sobre este termo, o tradutor nos esclarece em nota que ele pode apresentar dois sentidos: a) em vão,

uma finalidade malograda; b) sem razão, gratuitamente.

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indica – para aqueles que não têm capacidade de eleger, não se pode falar em “boa

sorte” ou em “má sorte”. Dentro dessa hipótese, Aristóteles explicava a tiquê, portanto,

não a partir dos caprichos de algum deus, mas concebendo-a como o “encontro de duas

séries causais, cada uma perfeitamente determinada, ficando o caráter de

excepcionalidade referido ao encontro de uma com a outra” (GARCIA-ROZA, 1986,

p.41)19

.

Feita esta breve explanação acerca dessas duas noções, vejamos a seguir de que

modo Lacan se apropria delas, e o que podemos supor que pretendia sinalizar-nos ao

utilizá-las para tratar do conceito de repetição em psicanálise.

Quanto ao automatôn, Lacan se servirá desta noção para se referir ao retorno, à

volta, dos signos comandados pelo princípio do prazer. Ou seja, ele emprega este termo

para fazer alusão à faceta simbólica da repetição, caracterizada pela insistência de

determinadas articulações significantes no desdobramento da cadeia simbólica, que se

cruza sempre do mesmo modo.

Com efeito, foi precisamente à investigação desta insistência que nos ocupamos

primordialmente em nosso primeiro capítulo. E, acreditamos que o que se revelou a

partir das considerações ali traçadas é que Lacan, num primeiro momento de sua

démarche, a explica como sendo resultante da própria incidência do significante,

porquanto simultaneamente ao surgimento deste dá-se também a emergência de uma lei,

ou de uma sintaxe inconsciente, que estabelece, a despeito das intenções do indivíduo

ou do sujeito, os caminhos pelos quais deve passar necessariamente suas rememorações,

a sua história. Aliás, nesse sentido, vimos também que Lacan faz questão de sublinhar,

não só que os desdobramentos da cadeia simbólica independem de qualquer deliberação

do sujeito, como este não é anterior à concatenação significante, mas sim, um produto

desta. De tal forma, que seus atos e seu destino seriam sobredeterminados pelo modo

idiossincrático que se entrecruzam essas redes e, portanto, pelo lugar singular que lhe é

designado dentro desta estrutura.

Diante disso, poderíamos ser levados a pensar que Lacan utiliza-se desta

categoria aristotélica de causa acidental, não só para designar a face simbólica da

repetição, como também para indicar-nos com isso que uma das causas da repetição é o

19

Um exemplo dado por Aristóteles, que ilustra o acaso como fruto do choque de duas séries causais

independentes, é o de uma pessoa que, indo a uma praça com um determinado propósito específico –

como o de comprar ou vender qualquer coisa –, acaba por esbarrar fortuitamente com alguém que lhe

devia dinheiro e que vem, então, a lhe pagar. Sendo que, quitar a dívida também não fora o motivo que

levara esta outra pessoa a se dirigir a mesma praça. Ou seja, cada um desses indivíduos escolheu ir à

praça, mas o encontro dos dois e a quitação da dívida, que desse encontro resultou, se deu por “sorte”.

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próprio encadeamento significante (que podemos equivaler às Bahnungen freudianas,

ou, ainda, representar pela bateria mínima S1-S2), porquanto este, uma vez

estabelecido, funciona automaticamente, promovendo o retorno dos mesmos signos.

Porém, fazer uma tal inferência – parece-nos – seria desconsiderar as formulações que

Lacan nos apresenta neste mesmo seminário com relação à causalidade, nas quais ele

faz questão de sublinhar que:

Ela [a causa] se distingue do que há de determinante numa cadeia,

dizendo melhor, da lei. Para exemplificar, pensem no que se figura na

lei de ação e reação. Só existe aqui, se quiserem, apenas um titular.

Um não anda sem o outro. (...) Ao contrário, cada vez que falamos da

causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido. As fases da lua

são a causa das marés (...). Ou ainda, os miasmas são a causa da febre

– isto, também, não quer dizer nada, há um buraco, e algo que vem

oscilar no intervalo. Em suma, só existe causa para o que manca.

(LACAN, 1964, p.29)

Ou seja, o que ele nos aponta é que a causa diz respeito sempre a uma fenda, ou

a uma hiância. Assim, somos levados a concluir que aquilo que jaz na origem da

repetição, motivando-a, não pode ser senão algo desta ordem. Mas do que se trataria?

Acreditamos que, para responder a esta indagação, temos que nos debruçar sobre as

considerações lacanianas a respeito da tiquê.

Com relação a esta outra antiga noção grega, Lacan se serve dela para designar o

encontro do real, que, segundo ele, é precisamente “o que vige sempre por trás do

automatôn” (LACAN, 1964, p.59) – isto é, o que se mantém sempre mais-além das

articulações significantes. Explicamos a pouco esta idéia quando tratamos da noção de

das Ding, que – como vimos – é uma das formas possíveis de se falar do real. E, a partir

das considerações que traçamos a respeito dela esperamos ter conseguido esclarecer a

posição peculiar que o real ocupa em relação ao simbólico, e a qual Lacan nomeia de

extima.

Todavia, talvez fosse bom enfatizá-la, lembrando que o real é, não só o que

permanece excluído da cadeia significante, mas também em torno do quê esta mesma

cadeia gira. Ele se refere àquilo que escapa ao pensamento, ou seja, ao processo de

simbolização, na medida em que é justamente um resto da operação significante. E,

deste modo, por mais que se ponha a tentar dizê-lo, o real resiste implacavelmente na

estrutura como um ponto opaco, impedindo o seu fechamento e, por isso mesmo,

sustentando a remissão significante.

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No referido seminário, Lacan aponta-nos esse lugar de forma bastante

interessante. Diz-nos, ele:

A repetição (Wiederholen) tem relação com a rememoração

(Erinnerung). O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia,

tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real. (...) Um

pensamento adequado enquanto pensamento, no nível em que

estamos, evita sempre a mesma coisa. O real é aqui o que retorna

sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em

que ele cogita (...), não o encontra (LACAN, 1964, p.55).

Mas se o real é o que permanece para além do princípio do prazer, esse resíduo

inapreensível, impossível de ser articulado em significantes, sempre contornado pela

cadeia simbólica, do que se trata a tiquê, isto é, o encontro com o real? Lacan nos dá

algumas pistas. Ele nos diz que se trata aí de um encontro essencialmente faltoso: “um

encontro marcado ao qual sempre somos chamados com um real que escapole”

(LACAN, 1964, p.59).

Ora, isso significa que a tiquê se refere, então, a um encontro impossível?

Acreditamos que não. Pois, se assim o fosse, como explicar uma situação

traumática onde o sujeito é surpreendido, como que por acaso, por um acidente, algo

que lhe escapa à compreensão e que lhe toma de angústia subitamente? E, vale lembrar

que Lacan nos aponta que a função da tiquê, do real como encontro, se apresenta

primeiro na história da psicanálise justamente sob a forma do traumatismo (LACAN,

1964, p.60).

Sendo assim, somos levados a inferir que a tiquê talvez não se refira a um

encontro impossível, mas a um encontro com o impossível, com o sem sentido que

insiste e subsiste no coração da dimensão simbólica.

Destacamos anteriormente que esse ponto ineliminável de non-sense é sempre

evitado pela rememoração, pelo desdobramento automático da cadeia (S1-S2). Todavia,

isso não implica que não se possa vir a se deparar com ele. Tal suposição, aliás, parece-

nos de acordo com o que Lacan nos diz no trecho a seguir:

Com efeito, o trauma é concebido como devendo ser tamponado pela

homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido

pelo princípio do prazer. Nossa experiência nos põe então um

problema, que se atém a que, no seio mesmo dos processos primários,

vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a nós. O

trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto

desvelado (LACAN, 1964, p.60).

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Para ilustrar essa experiência de irrupção do real de uma maneira bastante

simplória, tomemos como exemplo o poema de Drummond que nos serviu de epígrafe

no capítulo anterior. Se através da rememoração somos conduzidos a percorrer o mesmo

caminho e a desviar-nos da pedra que jaz no meio deste, ainda assim ocasionalmente,

como que por acidente, tropeçaremos nela – mesmo que logo depois retomemos o

passo. A pedra sempre esteve ali, no meio e à margem da trilha. A via que se traça,

aliás, a pressupõe, já que pressupõe o seu desvio. Contudo, no instante em que se

tropeça, em que se vacila, resvalando-se no real, o que se experimenta é a surpresa

diante de alguma coisa que se apresenta como totalmente imprevista. E, a cada vez em

que se tropeça ali, é sempre a mesma surpresa, como se estivesse sempre diante de algo

radicalmente novo.

Assim, é como essa experiência de tropeço, de ruptura, que podemos vislumbrar

o encontro do real. E é precisamente nestes termos que Lacan nos fala da tiquê no

seguinte trecho:

Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita,

alguma coisa se estatela. [...] O que se produz nessa hiância, no

sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado.

[...] Um achado que é [...] – a surpresa – aquilo pelo que o sujeito se

sente ultrapassado, pelo que ele acaba achando ao mesmo tempo mais

e menos do que esperava [...]. Ora, esse achado, uma vez que ele se

apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre prestes a escapar de

novo, instaurando a dimensão de perda (LACAN, 1964, p.32).

Mas, como se produz este evanescente achado? Como se vem a tropeçar na

pedra? Para esboçarmos uma resposta para estas indagações, julgamos interessante

voltarmos ao trauma.

O encontro traumático com o desejo do Outro

Se o encontro com o real pode aparecer sob a forma do traumatismo, parece-nos

que se faz preciso compreendermos melhor o que está em causa aí para assim também

melhor entendermos a tiquê. Já abordamos o trauma de diferentes perspectivas ao longo

deste capítulo. Vimos, por exemplo, com o Além que ele diz respeito a um excesso

pulsional que não pode ser completamente assimilado ao simbólico. Agora, vamos tratá-

lo a partir do processo de constituição do sujeito – que não é senão a experiência

traumática por excelência.

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Com relação a este processo já fizemos alguns apontamentos. Falamos da

anterioridade do significante com relação ao sujeito e da importância daquilo que Lacan

chama em O Seminário – livro 2 (1954-1955) de “falas fundadoras” que vão

paulatinamente situando o sujeito no campo do Outro, antes mesmo dele chegar ao

mundo. É precisamente nesta operação, nomeada por Lacan de alienação, de inscrição

do sujeito num universo simbólico que o precede, que se inicia o processo de causação

do sujeito. Trata-se aí, com efeito, do nascimento do sujeito no lugar do Outro,

identificado ao significante unário (S1), que assinala uma posição singular que lhe foi

designada dentro da estrutura simbólica.

No instante em que o sujeito desponta, identificando-se, aderindo, a um

significante do Outro, Lacan afirma que ele se petrifica; ele se reduz a não ser mais do

que um significante. O que implica em dois efeitos concomitantes a este. O primeiro é

que nesse mesmo movimento em que se coagula em significante, ele é convocado a

funcionar como sujeito. E o segundo é o seu desaparecimento sob a ação do significante

– efeito que Lacan (1964) denominou de fading ou afânise.

Como podemos entender isso? Quando o vivo deixa-se capturar pelo significante

unário (também denominado de significante-mestre), isso implica uma perda: ele perde

o seu ser, uma vez que o significante não é senão a insígnia de uma ausência. Por isso,

aliás, entendemos que Lacan afirma que o sujeito se resume, então, a não ser mais que

um significante. Por outro lado, é justamente graças a esta falta-a-ser aí instaurada que o

significante unário pode representá-lo para outro significante, e o sujeito passar a

funcionar como tal, isto é, como sujeito de linguagem, dividido entre S1 e S2. E, como

nos aponta Lacan, é nesse momento mesmo no qual ele é representado no Outro, pelo

remetimento ao significante binário (S2), que se dá a sua afânise. Em suas palavras:

nesse primeiro acasalamento significante (...) o sujeito aparece

primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante

unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito,

para um outro significante, o qual (...) tem por efeito a afânise do

sujeito. Donde, divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em

algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como

fading, como desaparecimento (LACAN, 1964, p.213).

Diante disso, podemos compreender que há uma impossibilidade do sujeito se

representar por completo na linguagem pela própria estrutura do significante. O sujeito

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só poderá aparecer no campo do sentido, como efeito de significação, apagando-se20

.

Isso implica que a cada vez que o sujeito tentar se encontrar no Outro, ele só conseguirá

fazê-lo parcialmente. Pois algo sempre lhe escapará. E este „algo‟, como colocamos, não

é senão seu próprio ser, que, pela ação mesma da função significante, cai no non-sense.

Esta impossibilidade de se apreender totalmente no discurso do Outro tem como

conseqüência imediata lançar o sujeito num deslocamento infinito da cadeia

significante. Assim, é que Lacan nos dirá que:

pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já

não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu

desejo sempre mais dividido, pulverizável, na destacável metonímia

da fala. (...) É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, e no

„tirar-se disso‟, no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto

ele, que se tirar disso, que se safar disso (LACAN, 1964, p.184).

A operação pela qual o sujeito deve “tirar-se disso”, isto é, através da qual ele

deve se desprender do Outro, é denominada por Lacan de separação, e constitui o

segundo tempo do processo de causação do sujeito. É a partir desta operação que será

possível ao sujeito se fazer existir como ser fora do Outro – idéia evocada pela escansão

do termo latino “separare” promovida por Lacan: “separare, separar, conclui-se aqui em

se parere, gerar a si mesmo” (LACAN, 1964b, p. 857)

Mas, a questão que se coloca é: como o sujeito se tira disso? O que o motiva a

sair, a se desprender da cadeia significante na qual ele se encontra alienado?

Curiosamente, o que tem o potencial de motivá-lo a sair desse “círculo infernal

da demanda do Outro” (EIDELSZTEIN, 1995, p.71), característico da alienação, não é

senão à própria demanda naquilo que ela aponta um mais além do Outro (A), isto é, para

uma carência no Outro.

Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma

que lhe faz o Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do

Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente

destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele quer? Nesse intervalo

cortando os significantes, que faz parte da estrutura mesma do

significante, está a morada do que, em outros registros de meu

desenvolvimento, chamei de metonímia. É de lá que foge como o

furão, o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo

sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos

os por quês? da criança testemunham […] um por que será que você

20

Nesse sentido, podemos inferir que para que haja alienação, não basta que o significante venha do

Outro. É preciso também uma concatenação. É a articulação produtora de sentido que gera a alienação, o

sujeito capturado na teia significante e apagado no processo de representação que teve lugar no campo do

Outro.

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me diz isso? […], que é o enigma do desejo do adulto (LACAN, 1964,

p. 209).

Assim, podemos compreender que o sujeito encontra o desejo do Outro ao

experimentar que algo falta em sua fala. Isto é, que há alguma coisa por trás (ou para

além) do seu discurso que não pode ser expressa em palavras, pois nem tudo é dito no

Outro21

. “É por isso que Lacan diz que o desejo é metonímia, algo que desliza na fala,

mas que é impossível de se capturar” (SOLER, 1997, p. 63). Esta impossibilidade de se

capturar, de se apreender, o que seria o desejo do Outro é justamente o que lhe dá esse

caráter de enigma (apontado na passagem acima), porquanto ele permanece sempre

como indecifrável para o sujeito.

E como este encontro faz com que o sujeito se desprenda (momentaneamente)

da cadeia significante na qual permanece enredado entre as remissões de sentido? É que

ao se defrontar com essa questão o sujeito experimenta que existe algo nele que não se

resume a significantes. Afinal, se suponho que o Outro quer alguma coisa para além do

que me pede é porque há algo em mim mais do que eu, que não corresponde a nenhum

dos significantes através dos quais eu me represento no Outro. E é isso que ele

(supostamente) deseja.

Já havíamos dito que no processo de representação do sujeito no Outro algo do

sujeito fica de fora, e que ele visa recuperar através da remissão significante: o seu ser

em falta. E, agora, se torna possível compreender que, quando da separação, ao se

confrontar que existe algo nele mais do que ele, é justamente com seu ser que o sujeito

se confronta. Neste átimo, portanto, não é como efeito de significação que o sujeito se

apreende, mas justamente como este furo no Outro. Quer dizer, ao se defrontar com o

enigma do desejo do Outro, com aquilo que há de intervalar em sua demanda e que

permanece velado pelo deslocamento automático da cadeia, é com o resto que escapa a

rede de significações do Outro que o sujeito se identifica. É naquilo que há no Outro de

inassimilável, de sem-sentido, de opaco que ele se reconhece de relance. É importante

reter esta idéia, pois ela será indispensável para entendermos o encontro com real.

21

Aqui, podemos notar, portanto, que o Outro presente na separação não é o mesmo daquele que se trata

na alienação. Afinal, nesse segundo tempo, o sujeito não se depara com um Outro cheio, repleto, de

significantes, mas sim com um Outro incompleto, furado: um Outro a quem falta algo. Ou seja, se através

da alienação teremos um sujeito barrado como produto da incidência do significante, na separação, como

vemos, é no Outro que deverá ser colocada a barra. Sem um indício de sua insuficiência, a separação não

poderá se concretizar.

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Antes, contudo, de fazermos esta articulação, julgamos ser digno de nota apontar

em que medida este encontro, este primeiro encontro com o desejo do Outro, é

necessariamente estruturante.

Dissemos anteriormente que diante deste enigma o sujeito se reconhece de

relance neste ponto opaco no Outro, mas esta posição é insustentável. E a palavra

“relance”, aqui, vem a calhar justamente porque ela evoca uma olhadela muito rápida –

num abrir e fechar de olhos –, mas porque também nos remete a idéia de ser relançado.

E, neste caso, é precisamente o que acontece: o sujeito é logo relançado no deslizamento

metonímico da cadeia, na tentativa de compreender, de dar um sentido a este enigma,

apropriando-se, para isso, dos significantes que nele se depositaram a partir das

demandas, do discurso do Outro. O que se passa aí é que o sujeito começa a construir

sua a fantasia fundamental, a fantasia do lugar que ele teria ocupado enquanto objeto no

desejo do Outro. Ou seja, é, pois, com os significantes da demanda do Outro, que lhe

servem então de coordenadas, que ele circunscreverá esse lugar, mas sem nunca

conseguir dizê-lo.

Ao começar a circunscrevê-lo com esses significantes, o que o sujeito está

fazendo é dando um contorno ao seu ser: aquilo que ele supõe que o Outro deseja dele

como objeto para se completar. Interessante notar com relação a isto, que é

precisamente neste movimento de cerzir uma resposta para esta questão impossível que

o sujeito se constitui enquanto ser desejante – o que é o mesmo que dizer enquanto

objeto desejante. Por quê? Porque aquilo que instiga o sujeito neste movimento que dará

contorno ao seu ser não é senão o desejo de ser este objeto desejado pelo Outro. É

assim, portanto, nesse esforço de fazer coincidir as duas faltas, a do Outro e a sua, que o

desejo do Outro começa a funcionar como causa do desejo do sujeito. E, por isso é que

se pode dizer que é como Outro que se deseja. Pois é a partir desse lugar de objeto que o

sujeito, em sua fantasia, imagina ter ocupado no desejo do Outro que ele começa a

desejar.

Nesse sentido é que se pode afirmar, então, que este encontro traumático

primeiro com o desejo do Outro é estruturante, pois é a partir dele que a causa acidental

do sujeito é nele introduzida através da construção da fantasia que dará suporte ao seu

desejo, e enquadre a realidade.

Acreditamos que era importante tecermos estas considerações porquanto

suspeitamos que elas poder-nos-ão ser de grande ajuda em nosso terceiro capítulo. Mas,

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cabe, agora, voltarmos à questão que havíamos deixado em suspenso com relação ao

encontro com o real.

Ora, se vimos anteriormente que o encontro com o real se refere precisamente ao

encontro com isso que resta de radicalmente sem-sentido na cadeia significante, mas

que a parasita em seus intervalos, agora acreditamos estar em condições de inferir que o

encontro com o real não diz senão do encontro com esse enigma do desejo do Outro,

quando o sujeito perde a possibilidade de se representar como sentido e confronta-se,

num abrir e fechar de olhos, com a opacidade de seu ser.

Diante disto, pensamos que podemos responder a questão que nos colocamos

antes a respeito de como se tropeça no real: a cada vez que – parafraseando Clarice

Lispector –, por um tremor de linhas, por uma pequena vacilação na continuidade

ininterrupta da cadeia significante, abre-se uma brecha no Outro e eu perco a

possibilidade de me representar como sentido, é o real que aparece. Toda vez que eu

cometo um ato falho, por exemplo – se ele se apresenta como tal, quer dizer, se ele me

faz algum enigma –, eu tenho um encontro com real. Mas, no momento seguinte em que

já lhe confiro um sentido, isto é, que eu retomo o passo e volto a me alienar no Outro, o

real escapole novamente.

Sobre a tiquê, acreditamos que falta-nos ainda sublinhar um aspecto que talvez

não tenha ficado tão claro. Todo o tempo em que tratamos deste encontro, o tratamos

sempre como um encontro da ordem da negatividade, sempre nos referindo a ele como

encontro com uma falta de sentido, ou com um furo do Outro. Contudo, esse encontro

não é apenas da ordem do negativo. Há algo de positivo nele e que não ficou claro

nessas considerações porque privilegiamos pensá-lo a partir do simbólico, da estrutura,

onde, com efeito, o real não passa de um lugar vazio. Porém, se voltarmos, uma vez

mais, ao Além do Princípio do Prazer, veremos que este encontro também comporta

algo de positivo, algo da ordem de um a mais, de um excedente pulsional. No encontro

com real, não é apenas o furo no simbólico que se apresenta, mas também por trás dele

insinua-se uma estranha presença, que até então permanecia velada. É para isto, aliás,

que parece nos lembrar Lacan ao afirmar com relação à tiquê que:

O real pode ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-

realidade, que testemunha que não estamos sonhando. Mas, por outro

lado, essa realidade não é pouca, pois o que nos desperta é a outra

realidade escondida por trás da falta de representação – é o Trieb

(LACAN, 1964, p.64).

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CAPÍTULO 3

REPETIÇÃO E EXPERIÊNCIA ANALÍTICA

Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo

que, no coração da experiência, é o núcleo do real.

J. Lacan22

3.1

Repetição e transferência na obra freudiana

Nos primeiros dois primeiros capítulos de nossa pesquisa nos detivemos em

examinar o conceito de repetição, buscando elucidar o que leva o sujeito a reviver em

sua história os mesmos enredos e, muitas vezes, a partir deles, os mesmos desencontros.

Através dessa investigação inicial, privilegiamos, portanto, compreender o que estaria

em jogo de um modo geral na repetição – ou seja, como e porque se é conduzido a

repetir, de maneira aparentemente inescrutável, um determinado destino.

Pouco falamos, no entanto, da repetição em relação a experiência de uma

análise, que é precisamente onde reside a questão que nos incita a trabalhar. A seguir, é

a esta tarefa que vamos nos dedicar. Para tanto, começaremos com os artigos

freudianos, onde podemos notar – como veremos – uma articulação tão forte entre os

conceitos de repetição e de transferência, que se pode ter a impressão que o pai da

psicanálise subsume o segundo ao primeiro, como se a transferência nada mais fosse

senão uma forma bastante particular de manifestação da repetição.

Aliás, em um de seus artigos técnicos, Recordar, Repetir e Elaborar (1914),

onde se dedica pela primeira vez a teorizar sobre a repetição, é isto mesmo que ele

parece nos sugerir, ao afirmar categoricamente ali que: “a transferência é, ela própria,

apenas um fragmento da repetição” (FREUD, 1914, p.197).

Mas será que ela se resume a isso? Afinal, como problematiza Bernardes (2003):

Se a transferência só repete, como conceber que a experiência

[analítica] conduza a uma saída diferente da neurótica? Como obter

uma mudança na posição subjetiva se a repetição se impõe? O

22

Lacan, 1964, p.58.

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trabalho de transferência deve promover algo de novo [...]

(BERNARDES, 2003, p.52).

Esta é, com efeito, nossa suposição também. Contudo, entendemos que, antes de

nos aventurarmos a tentar desvendar o que há na transferência que a difere da repetição,

é importante perquirirmos justamente o que Freud reconhece que existe de repetição na

transferência. Quer dizer, se este conclui que ela é repetição, então, o que ele pressupõe

que ela repete?

Analisando alguns de seus escritos técnicos, ousamos dizer que Freud nos oferta

duas explicações distintas para a pergunta que nos colocamos acima. Distintas, vale

ressaltar, mas não contraditórias ou excludentes. E que, ademais, podem ser muito bem

articuladas com suas teorizações ulteriores acerca deste tema, encontradas em Além do

Princípio do Prazer (1920). Vejamos quais são elas e como é possível pensá-las à luz

das considerações deste texto.

Sobre a dinâmica da transferência

A primeira vez que a palavra Ubertrangung (transferência) aparece na obra

freudiana foi no texto A Interpretação dos Sonhos (1900), mais precisamente no

capítulo VII. Ali, Freud emprega este termo para se referir, a propósito da elaboração

onírica, ao processo de deslocamento por meio do qual um desejo inconsciente,

originalmente ligado a uma representação recalcada, poderia se exprimir e se disfarçar,

apropriando-se de conteúdos recentes fornecidos pelo pré-consciente, em especial

daqueles provindos do dia anterior. Segundo Freud (1900), esses restos diurnos

utilizados no sonho se caracterizam por serem representações anódinas, esvaziadas de

sentido, das quais se apodera o desejo para carregar e dotar de uma nova significação.

Ora, neste momento o que se apresenta, então, é uma concepção ainda muito

geral de transferência, já que esse trabalho de apropriação e revestimento de um

significante anódino pelo desejo (condição de possibilidade para sua aceitação na

consciência) é aquilo mesmo que caracteriza o processo geral das formações do

inconsciente.

É possível observar que será somente após o caso Dora, relatado e debatido no

artigo Fragmentos de Análise de um Caso de Histeria (1905), que este termo começará

a ganhar alguma especificidade, se aproximando daquilo que conhecemos no meio

psicanalítico sob o conceito de transferência. No pós-escrito desse texto, aliás,

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encontramos um primeiro esboço de definição, que em muito se assemelha àquela que

nos será dada nos artigos sobre a técnica. Diz-nos Freud:

O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e

fantasias que, durante o avanço da análise, soam despertar-se e tornar-

se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de

substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. (FREUD, 1905,

p.107)

Ou seja, é a partir daqui que este termo passará a ser utilizado para designar o

momento em que o desejo do paciente se aferra não a qualquer significante, mas a um

bastante particular: o significante do analista. Miller (1987) ressalta a importância dessa

nova acepção freudiana de transferência ao apontar-nos que ela “já implica […]

precisamente que não há exterioridade do analista em relação ao inconsciente” (p.60),

ou, nas palavras de Lacan (1964), que “a presença do analista é ela própria uma

manifestação do inconsciente” (p.125).

A despeito do contorno um pouco mais preciso dado em 1905, será no artigo A

Dinâmica da Transferência (1912) que esta noção receberá toda relevância teórica que

atribuímos a ela hoje, e se estabelecerá formalmente enquanto um conceito. Não como

um conceito qualquer, diga-se de passagem, mas como àquele que define “o modus

operandi da psicanálise, a mola mestre da cura, seu motor terapêutico e o próprio

princípio de seu poder” (MILLER, 1987, p.56).

Ademais, é nesse artigo também que podemos começar a vislumbrar em que

medida o conceito de transferência em Freud permanece indissociavelmente imbricado

ao de repetição. Vejamos como ele nos deixa entrever esta imbricação, aqui.

Freud abre este texto nos dizendo que cada pessoa apresenta um modo

específico próprio de conduzir-se na vida erótica, determinado pelas condições que

regem seu enamoramento, por quais pulsões visa satisfazer e pelos alvos que estabelece.

E, mais importante: que esta maneira singular de portar-se nas relações amorosas

produziria, então, clichês estereotípicos que seriam constantemente repetidos pelo

sujeito ao longo de sua vida.

Para a construção desses estereótipos, que levam o indivíduo a se aproximar de

cada nova pessoa com expectativas libidinais antecipadas, faz-se necessário – supõe

Freud – que parte dos impulsos sexuais do sujeito direcionados para objetos reais tenha

sido frustrada. Como resultado, esta cota libidinal insatisfeita sofre um processo de

introversão, através do qual o sujeito retira o investimento erótico dos objetos da

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realidade, passando a destiná-los aos objetos na fantasia (inconsciente), onde

permanecerá então retida. Podemos, então, pensar que as fantasias são os próprios

clichês, formas fixas de o sujeito obter satisfação na relação com os objetos.

Quanto a este processo de introversão, Freud nos adverte que ele é precondição

indispensável para o desencadeamento de toda neurose, e que a parcela da libido que se

encontra fixada e disponível no inconsciente, em conseqüência do mesmo, é

precisamente o que explica a irrupção da transferência. Afinal, como pontua, “é

perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha

parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se

também para a figura do médico” (FREUD, 1912, p.134).

Nesse sentido, a transferência pode ser definida aqui como o momento em que o

analista é capturado por um desses clichês, sendo introduzido numa das séries psíquicas

já formadas pelo analisante e tornando-se alvo de seu investimento erótico. Isto é, ela se

refere à ocasião na qual o paciente repete com o analista suas formas singulares de se

relacionar com seus objetos de amor e de gozar com eles.

Esta seria, então, a primeira explicação que Freud nos oferta como resposta à

questão “o que a transferência repete?”.

Mas, o que mais nos diz ele a respeito da transferência, aqui? Como Freud

explica a irrupção desta? Bem, já sabemos que há uma predisposição do neurótico para

transferir, graças ao processo de frustração e de introversão da libido, mas de que

maneira e em que momento do tratamento, se daria a sua eclosão? Além disso, quais as

conseqüências da re-atualização desses protótipos amorosos para o progresso do

tratamento? Quer dizer, qual seria o papel desempenhado pela transferência no processo

de cura?

O que Freud faz questão de sublinhar neste artigo é que “a transferência surge

como a resistência mais poderosa ao tratamento” (FREUD, 1912, p.135). Contudo,

ainda assim, inevitável. Nem médico, nem paciente podem impedir a sua eclosão, pois

ela é provocada pelo próprio dispositivo analítico.

Mais precisamente, Freud admite que o investimento libidinal no analista se dá

como conseqüência imediata do próprio método psicanalítico: a associação-livre. Isso

porque através dela, nada mais se requisita do paciente senão que ele produza derivados

do recalcado, que, em conseqüência de sua distância ou de sua distorção em relação ao

núcleo patológico, logrem driblar a censura da consciência (FREUD, 1915a). Assim, no

desfiar associativo, o que acontece é que se torna possível rastrear, partindo de uma

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representação consciente do complexo patogênico (sob a forma de sintoma, por

exemplo), a libido que, pelo processo de introversão, entrou em curso regressivo.

Porém, nesse trabalho investigativo inevitavelmente chega-se a uma região muito

próxima ao esconderijo onde a libido permanece retida. E é, então, nesse momento que

“todas as forças que fizeram a libido regredir erguer-se-ão como resistências ao trabalho

de análise” (FREUD, 1912, p.137), e que a transferência entra em cena: “Quando algo

no material complexivo serve para ser transferido para a figura do médico, essa

transferência é realizada; [...] e se anuncia por sinais de resistência – por uma

interrupção, por exemplo” (FREUD, 1912, p.138).

Todavia, convém ressaltar que se por um lado Freud admite que a transferência

serve muito bem aos propósitos da resistência, ainda assim isto não a impede de ser o

instrumento mais poderoso de que dispõe o analista em favor do progresso do

tratamento. Pois, são precisamente os fenômenos transferenciais que “prestam o

inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e

esquecidos do paciente; porque, no fim das contas, ninguém pode ser executado in

absentia ou in effigie” (FREUD, 1912, p.143).

Disso podemos concluir que repetir sua forma singular de amar em análise é

condição sine qua non para o tratamento porquanto é por meio dessa repetição que se

evidencia a satisfação, o gozo daí retirado, mas que permanece completamente

ignorado, estranho ao sujeito. E, mais, torna-se possível inferirmos que se é

indispensável que esta satisfação se faça presente é somente na medida em que deve ser

precisamente neste nível, isto é, no nível da pulsão que devem incidir as intervenções do

analista.

Agieren

Passemos, agora, a investigar a segunda resposta que podemos encontrar nos

artigos técnicos freudianos acerca da repetição na transferência. Para isso, voltemo-nos

ao texto em que Freud nos introduz pela primeira vez o conceito de repetição, qual seja,

o artigo Recordar, repetir e elaborar (1914).

Freud inicia o texto promovendo uma breve recapitulação das diferentes

abordagens metodológicas que marcaram a história do movimento psicanalítico, e

ratificando, uma vez mais, o desígnio comum a todas elas, qual seja: "descritivamente

falando, trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar

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resistências devidas ao recalque" (FREUD, 1914, p.193). Contudo, linhas adiante, ele

surpreende seu leitor, adicionando uma assertiva acerca da impossibilidade de se reaver

a totalidade das lembranças recalcadas. De modo mais específico, ele admite que

haveria uma sorte especial de experiências que teriam ocorrido na infância remota do

sujeito sobre as quais recordação alguma, via-de-regra, poderia ser recuperada. E, a

respeito de tais experiências, constata:

podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que

esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it

out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação, repete-o,

sem, naturalmente, saber que o está repetindo (FREUD, 1914, p.197).

Sobre este ímpeto a repetir determinados conteúdos inconscientes pela via da

atuação, Freud nos diz também que ele é inerente ao tratamento analítico. Nem o

analista, nem mesmo sequer o paciente poderiam impedir a sua manifestação. E, assim,

conclui ele, “compreendemos que esta é a sua maneira de recordar" (idem).

Quer dizer, a repetição é concebida aqui, justamente, como uma alternativa à

recordação de tais experiências; uma outra maneira do paciente reproduzir certos

conteúdos recalcados, que não através da lembrança, mas, sim, revivendo-os em ação,

atuando-os sob a forma de conflitos atuais. O paciente repete-os ao invés de recordá-los

– ao contrário do que preferiria ver o médico.

Segundo Freud, isso ocorre diversas vezes no decorrer da análise, a cada

momento em que esta progride e aproxima-se do conteúdo recalcado. É nessas ocasiões,

pois, que a resistência incide com toda a sua força e passa a determinar o material que

não deve ser recordado pelo paciente, e sim repetido. Quanto maior a resistência, mais a

atuação (repetição) substituirá a recordação verbal e, logo, “aprendemos que o paciente

repete [..] sob as condições da resistência” (FREUD, 1914, p.198).

Dessa forma, podemos compreender que, em seu primeiro esforço de

conceituação da repetição, Freud a apreende como mais um dos diversos obstáculos

que, a serviço da resistência, podem se opor ao progresso da análise e ao alcance do

objetivo final desta, qual seja, a rememoração. No entanto, convém ressaltar, ele não vê

nessa impossibilidade de atingir o “recordar ideal” (FREUD, 1914, p.197) um entrave

intransponível à cura. Pois, se por um lado, reconhece que o uso da repetição pelas

resistências pode dificultar esse processo, por outro, admite também que é somente por

meio da transferência – a qual não é senão “um fragmento da repetição” (idem) – que a

cura poderia advir.

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Sendo assim, torna-se possível inferir agora que a outra forma de responder, a

partir dos artigos técnicos, à questão que nos fizemos no início deste capítulo é esta: que

na transferência o analisante repete em ato (Agieren) determinadas experiências que não

podem ser evocadas pela rememoração.

No referido artigo, contudo, Freud não tece maiores considerações sobre que

sorte de experiência seria esta. Porém, se recorrermos às elaborações anteriores, é

possível vislumbrar que ela só pode dizer respeito a uma experiência de cunho

amoroso/sexual.

E, com efeito, é exatamente isso que ele parece inferir em 1920, em Além do

Princípio do Prazer, quando retorna a investigar essa questão. Desta vez, como vimos, à

luz de novos problemas envolvendo a compulsão à repetição. Neste texto, ele nos

aponta que aquilo que é repetido pelo analisante na transferência ao invés de ser

recordado através de associações diz respeito mesmo a uma experiência amorosa. Mas

também traumática – sendo justamente por isso que ela escapa a qualquer tentativa de

simbolização.

Aqui, se evidencia, portanto, uma diferença essencial entre essa formulação da

década de 20 e a anterior. Se em 1914, Freud entendia que aquilo que se repete na

transferência é da ordem do recalcado (uma lembrança recalcada), em Além do

Princípio do Prazer ele nos deixa entrever que isso que se atualiza na transferência é

independente da ação do recalque propriamente dito porquanto não chegou nem mesmo

a ser simbolizado.

Trata-se, segundo Freud, da situação na qual o laço afetivo que liga a criança à

mãe sucumbe ao desapontamento. Sucumbe – poderíamos completar –, a partir da

intromissão de um terceiro termo: a figura paterna, que, colocando uma barra sobre o

desejo da mãe, marca o fim da completude imaginária, na qual mãe e bebê estariam

supostamente unidos, resultando na chamada “fratura narcísica”. Dizemos

„supostamente‟ porque, com efeito, esta completude imaginária só pode ser pensada a

posteriori, após a incidência da castração.

Com isso, podemos entender que aquilo que se atualiza na relação transferencial

é a impossibilidade de satisfação chancelada pelo interdito paterno – ou, dito de outra

forma, pela incidência da lei – que caracteriza o declínio do complexo de Édipo. Quer

dizer, repete-se na transferência, portanto, o fracasso, o desencontro.

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A regra da abstinência

Nesse momento de nossa investigação, acreditamos que seja interessante

fazermos uma breve reflexão a respeito da novidade que Freud introduz em 1920 acerca

da repetição que se dá sob transferência, relacionando-a com as considerações que ele

faz sobre a maneira que o analista deve se posicionar diante do amor transferencial no

artigo Observações sobre o amor de transferência (1915[1914]).

Neste texto, vale lembrar, Freud faz questão de sublinhar que ainda que o amor

de transferência seja suscitado pelo dispositivo analítico e definitivamente não se deva

aos encantos pessoais do analista, este amor é tão genuíno quanto qualquer outro. Diz-

nos, ele:

É verdade que o amor [de transferência] consiste em novas edições de

antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o

caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo

que não reproduza protótipos infantis. [...] O amor transferencial

possui talvez um grau menor de liberdade que o amor que aparece na

vida comum e é chamado de normal [...] (FREUD, 1915[1914], p.218)

Menor grau de liberdade, justamente porque a resistência intensifica este amor e

agrava suas manifestações, “a fim de justificar ainda mais enfaticamente o

funcionamento do recalque” (FREUD, 1915[1914], p.212), e assim estorvar a

continuidade do tratamento.

Freud nos diz, ainda, que este acirramento do estado amoroso pela resistência

leva a irrupção na transferência de uma apaixonada exigência de amor que visa destituir

o analista da sua posição de autoridade e rebaixá-lo à condição de amante23

. Isto, porém,

caso viesse a acontecer, destruiria toda e qualquer suscetibilidade do analisante às

intervenções do analista.

É nesse sentido, portanto, que Freud infere que a delicada postura que o analista

deve manter frente à eclosão dessas demandas de amor é a de não satisfazê-las, mas

tampouco suprimi-las. Constata, ele:

Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar suas pulsões [...]

seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira

insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos

infernos, [...] devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver

feito nenhuma pergunta. (FREUD, 1915[1914], p.213).

23

Essa idéia, como veremos, está em profunda consonância com o que Lacan irá teorizar a respeito da

transferência em O Seminário – livro 8 (1960-1961), a partir do diálogo platônico O Banquete.

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Por outro lado, o pai da psicanálise insiste que o analista não deve atender às

demandas de amor do analisante. É preciso que ele “negue à paciente que anseia por

amor a satisfação que ele exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência”

(FREUD, 1915[1914], p.214).

Aqui, é onde queríamos chegar. Pois acreditamos que é somente na medida em

que o analista se recusa a atender essas exigências de amor que lhe são endereçadas pelo

paciente que este último pode atualizar em transferência a impossibilidade atestada pela

incidência da castração. Ou seja, entendemos que é precisamente porque o tratamento é

conduzido na abstinência que pode haver sob transferência a repetição do desencontro,

do traumático. Do contrário, como em qualquer outra relação amorosa, o paciente

velaria este impossível através da ilusão imaginária de completude que a reciprocidade

lhe permite alimentar.

Assim, o que tentamos apontar, aqui, é que, apesar de Freud nos sugerir em 1920

que na transferência se repete este desencontro, somos levados a inferir a partir de suas

considerações mesmas que, com efeito, seria mais preciso se afirmássemos que a

transferência pode levar à esta repetição, mediante o manejo do analista. Afinal, se

pensarmos em sua face de resistência, qual seja: a do amor de transferência, esta, pelo

contrário, não faz senão justamente tentar evitá-lo.

E por que nos parece interessante fazer a articulação entre essas idéias? Porque

Freud nos aponta, neste artigo técnico, que é precisamente a sustentação deste estado de

desejo decorrente da recusa do analista em atender as demandas do paciente aquilo

mesmo que possibilita em análise o engendramento de algo novo. Em suas palavras: “se

deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem

servir de forças que incitem a trabalhar e efetuar mudanças” (FREUD, 1915[1914],

p.214).

Através dessas considerações, acreditamos que algumas questões se esclarecem.

Primeiro, revela-se que o amor de transferência, como qualquer outro amor, traz em seu

bojo a cicatriz de um desencontro originário, qual seja, a cicatriz narcísica. E que foi

justamente este primeiro desencontro o que fixou as precondições para amar e gozar

próprias a cada sujeito, repetidas não apenas na experiência analítica, mas como vida a

fora por ele. Assim, as demandas que este endereça ao seu analista, por mais diversas

que sejam, são as mesmas que ele endereçaria a qualquer outro parceiro sexual. E, nesse

sentido, podemos compreender também que é por meio delas que o analista poderá ter

acesso à fantasia do sujeito que rege seu modo singular de enamoramento. O que, como

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nos aponta Freud, é indispensável ao tratamento, uma vez que “o trabalho [de análise]

visa [...] desvendar a escolha objetal da paciente e as fantasias tecidas ao redor dela”

(FREUD, 1915[1914], p.217).

Em segundo lugar, podemos inferir ainda que a diferença entre este amor e os

demais não reside, portanto, na postura do amante frente ao seu novo objeto de amor,

mas sim daquele que foi eleito para ocupar esta posição, ou seja, o analista, que não

deverá responder nem positiva nem negativamente às exigências amorosas do sujeito. E

isto, como vimos, parece ser precisamente o que possibilita que a transferência conduza

não apenas ao retorno circular dessas demandas, mas também, mais além delas, à

repetição deste encontro faltoso, a partir do qual, como Freud parece nos sugerir, seria

possível então aceder ao novo.

3.2.

Considerações sobre o conceito de transferência em Lacan

No tópico anterior nos debruçamos sobre a transferência em Freud a partir de

sua articulação com o conceito de repetição. A seguir, nos deteremos em algumas

formalizações lacanianas a respeito do conceito de transferência. Para tanto,

privilegiamos abordá-la através das noções de sujeito-suposto-saber e agalma.

Entendemos que elas não esgotam, nem de longe, o debate sobre esta noção. Mas,

acreditamos que, ainda assim, elas podem nos ajudar a pensar a transferência sem

reduzi-la à repetição.

Através do exame dessas noções, buscamos entender o que está em jogo na

transferência a fim de pensarmos qual deverá ser a posição do analista de modo a

possibilitar a emergência do novo a partir da repetição.

Sujeito-suposto-saber

Uma das primeiras referências que Lacan faz à noção de sujeito-suposto-saber

pode ser encontrada numa nota de rodapé, acrescentada em 1966 ao escrito Função e

campo da fala e da linguagem (1953), em relação a uma frase na qual afirma que a

entrada em análise é correlata a um erro subjetivo: “o sujeito crê que sua verdade está

dada em nós [analistas], que a conhecemos de antemão” (LACAN, 1953, p.309).

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Em ocasião desse escrito, Lacan postula ainda que é neste equívoco que

podemos encontrar a razão dos efeitos que constituem a transferência. E, se ele não o

associa no corpo do texto à noção de sujeito-suposto-saber, porquanto ainda não a havia

formulado, a nota adicionada mais de dez anos depois vem para fazê-lo. Nela, ele

admite que a passagem acima citada define justamente aquilo que “designamos como o

suporte da transferência: nomeadamente, o sujeito suposto saber” (idem).

Diante dessa formulação inicial, poderíamos ser levados apressadamente a

inferir que Lacan concebe o sujeito-suposto-saber como um fenômeno ilusório apenas,

mediante o qual o paciente imputa a pessoa do analista um saber que ele não detém.

Contudo, entendemos que a despeito deste fenômeno se fazer (quase sempre) presente

na relação transferencial, essa ilusão não constitui o cerne da função do sujeito-suposto-

saber. Aliás, parece-nos que é precisamente para nos livrar deste engodo que Lacan faz

questão de sublinhar que:

O sujeito suposto saber, fundando os fenômenos de transferência, não

traz nenhuma certeza ao analisante de que o analista saiba muito –

longe disso! O sujeito suposto saber é perfeitamente compatível com o

fato de ser concebível pelo analisante que o saber do analista seja bem

duvidoso (LACAN apud QUINET, 1991, p.28).

Ora, no que consiste então essa suposição imanente ao estabelecimento da

transferência, se o sujeito-suposto-saber pode operar ainda que o paciente duvide do

saber do analista? E de que maneira se dá essa operação?

Tentaremos, inicialmente, responder a esta primeira pergunta. Sobre isso, Miller

nos diz que esta suposição não se refere a um sentimento alimentado pelo sujeito: “trata-

se de uma suposição de estrutura [...]. Isso é difícil de entender [...] porque existe a

tendência a confundir, a que se superponha a dimensão fenomênica e a dimensão

estrutural” (MILLER, 1987, p.75).

Todavia, é importante que não as confundamos. E, para tanto, julgamos

necessário recordar que a estrutura se refere à ordem simbólica, isto é, ao campo da

linguagem e à função da fala. O que já nos leva a inferir que essa suposição não se

relaciona ao outro especular – no caso, à pessoa do analista –, mas sim ao Outro (A),

lugar significante a partir do qual o sujeito se constitui e para onde sua fala se endereça

a fim de receber sua significação.

Assim, podemos deduzir que se há uma suposição de estrutura presente na

instauração do sujeito-suposto-saber, ela se relaciona com a crença colocada de antemão

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por todo ser falante, em seu próprio ato de fala, simplesmente por falar, de que isso que

se enuncia vai encontrar um sentido, uma interpretação alhures. Quer dizer, a suposição

de que a minha fala receberá seu significado [s(A)] através do Outro (A). O que, aliás,

nos deixa entrever que toda fala não é senão também demanda: demanda de sentido ao

Outro.

Diante disso, se evidencia que ainda que esta suposição, com efeito, esteja

presente na função do sujeito-suposto-saber, ela não a explica por completo. O sujeito-

suposto-saber não pode se reduzir à crença no Outro. Pois, afinal, se o próprio ato de

fala já pressupõe o endereçamento ao Outro, logo, esta crença se faz presente sempre,

ainda que nem se desconfie disto. Aliás, acreditamos que é por isso que Lacan irá fazer

questão de sublinhar que:

O Outro, latente ou não, está desde antes, presente na revelação

subjetiva. (...) A interpretação do analista não faz mais do que recobrir

o fato de que o inconsciente – se ele é o que eu digo, isto é, jogo de

significante – em suas formações – sonho, lapso, chiste ou sintoma –

já procedeu por interpretação. O Outro, o grande Outro (A) já está lá,

em toda abertura por mais fugidia que ela seja, do inconsciente

(LACAN, 1964, p.129).

Mas, sendo assim, como entender a função do sujeito-suposto-saber, própria ao

dispositivo analítico? A fim de esclarecermos esta questão é preciso lembrar que apesar

da experiência de análise ser uma experiência de fala, ela tem uma particularidade. Não

se trata apenas de falar, mas de falar seguindo a regra da associação-livre, que exige que

se diga tudo aquilo que vier a cabeça, sem se preocupar com a ordem ou com a

coerência de seu discurso; sem reter nada, nem censurar-se. Ora, o que traz de implícito

esse convite do analista ao paciente para associar livremente, senão que este pode dizer

qualquer coisa que isso sempre vai querer dizer algo? Ou seja, este modo discursivo

peculiar ao dispositivo analítico sugere que essas associações não se dão de forma

aleatória (ainda que ostensivamente assim o pareça), mas antes que elas seguem uma

lógica inconsciente, desconhecida pelo sujeito. O analista, portanto, ao propor o pacto

analítico garante tacitamente ao paciente que ele não fala à toa, pois por mais que não o

saiba, há um sentido naquilo que diz.

Sobre isso, nos resume Bernardes (2003):

Falar, seguindo a regra fundamental, supõe um saber latente aos ditos.

A entrada em análise é a própria instauração dessa modalidade de

discurso que supõe uma significação que me escapa. Essa significação

é dada a partir de um lugar Outro. A posição enunciativa do

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analisante, mesmo que ele não se dê conta, é a assunção, na fala, da

alteridade que lhe constitui (BERNARDES, 2003, p.130).

Dessa forma, é possível notar que a função do sujeito-suposto-saber, inerente ao

estabelecimento da transferência, mais do que implicar o endereçamento ao Outro, se

refere à admissão pelo paciente, em sua própria fala, desta alteridade que lhe constitui

enquanto sujeito cindido. Ao fazer isso, nas entrelinhas, mediante o consentimento de

associar livremente, o analisante não só atualiza esta divisão, como também anui com a

colocação do analista no lugar do Outro, para onde sua fala/demanda se dirige. Afinal, é

dele que o paciente supõe que receberá o sentido que lhe foge.

Quanto à instituição desta relação dissimétrica, como fundamento da relação

transferencial, suscitada por esse dispositivo artificial no qual um é convidado a

entregar a sua fala enquanto que o outro assume a função estrutural de recebê-la e

pontualmente interpretá-la, Lacan nos diz:

É claro que essa relação se instaura num plano que não é de modo

algum recíproco, de modo algum simétrico. (...) nessa relação de um a

outro, institui-se uma procura da verdade em que um é suposto saber

mais que o outro (LACAN, 1964, p. 136).

Através dessas considerações, alguns aspectos relativos à função do sujeito-

suposto-saber enquanto suporte da transferência começam a ser deslindados. Contudo,

para dar-lhes uma amarração é indispensável recorrermos à Proposição de 09 de

outubro de 1967, onde Lacan nos mostra que o sujeito-suposto-saber é, antes de tudo,

uma operação: uma operação significante que tem por efeito produzir um sujeito

(suposto) ao saber inconsciente.

Nesta Proposição, Lacan enfatizará novamente a distinção entre esta função e a

pessoa do analista, desta vez, formalizando o referido conceito a partir da lógica

significante. Isto é, aquela segundo a qual: (1) um significante em si mesmo não

significa nada; (2) “um significante é aquilo que representa um sujeito para outro

significante” (LACAN, 1960, p.833).

Seguindo essa lógica, o que nos diz Lacan ali é que de modo algum um sujeito

poderia ser suposto por outro sujeito. Ele é taxativo quanto a isso: “um sujeito não

supõe nada, ele é suposto. Suposto, (...) pelo significante que o representa para um outro

significante” (LACAN, 1967). Com isso ele nos aponta uma vez mais que se há

articulação significante – e se há saber, portanto –, deverá haver também supostamente

um sujeito. E que este sujeito não se identifica, com efeito, nem com o analisante, nem

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com o analista. Mas, consiste, sim, no sujeito do inconsciente, feito emergir em sua ex-

sistência, como vimos, pela modalidade discursiva inerente ao tratamento psicanalítico.

Feito essa importante ressalva, Lacan, para nos explicar a irrupção do sujeito-

suposto-saber como condição da experiência analítica, apresenta-nos o algoritmo da

transferência; um matema através do qual ele tenta formalizar o que ocorre na entrada

do paciente em análise. Quanto a isso, Quinet (1991), nos lembrará que esta tentativa de

formalização está completamente de acordo com as considerações de Freud encontradas

no artigo técnico O início do tratamento (1913), onde, comparando a psicanálise com

um jogo de xadrez, ele afirma que apenas as aberturas e os finais das partidas permitem

uma generalização. “Esse algoritmo da transferência é o que responde, num esforço de

formalização, independente das particularidades de cada um, à própria estrutura da

entrada em análise” – observa (QUINET, 1991, p.27). Vejamos, a seguir, a fórmula

proposta:

______S______ Sq

s (S1, S2..., Sn)

Do lado esquerdo da fórmula, encontramos como numerador, “S”, ao qual Lacan

denomina de significante da transferência. Trata-se de um significante do analisante

que vai se dirigir a um significante qualquer, “Sq”, referente ao analista – que pode ser,

por exemplo, algum traço particular do mesmo, pinçado pelo analisante, ou um nome

próprio. É, aliás, este significante qualquer, porém não indiferente à história do

paciente, aquilo que fará com que determinado analista seja escolhido em detrimento de

outro. Já a articulação entre esses dois significantes será, então, precisamente o que

representa o estabelecimento da transferência; o enlace do analisante com o analista.

Quanto a esta parte superior da fórmula, vale à pena ressaltar o quanto ela se

assemelha ao que Freud nos fala em A dinâmica da transferência (1912) ao afirmar que

a transferência se estabelece quando, no desfiar associativo, a representação do analista

é investida pelo desejo e inserida numa das séries psíquicas já formadas pelo paciente.

Abaixo da barra, sob o “S”, representado na fórmula por “s”, localiza-se o

sujeito produzido por esta operação significante (S Sq), “implicando dentro do

parêntese o saber, supostamente presente, dos significantes no inconsciente” (LACAN,

1967); saber que daria uma significação a s.

Bernardes (2003) nos sugere ler esse saber inconsciente entre parênteses (S1,

S2,..., Sn), como aposto ao sujeito, entendendo esse aposto como aposto gramatical:

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“isto é, aquilo que adjunto a um substantivo, lhe dá sentido” (BERNARDES, 2003,

p.131).

Deste modo, podemos compreender que a função do sujeito-suposto-saber

corresponde à instauração de uma relação dissimétrica, onde o analista é alçado à

posição de grande Outro, a partir de um significante nele pinçado (Sq) para o qual um

outro significante (S) virá representar o sujeito do inconsciente. Ou seja, ela se refere à

operação de precipitação do sujeito do desejo (sujeito barrado) através do engajamento

do paciente numa busca: a busca pela verdade, pelo sentido último, da sua fala (mas

também do seu sintoma), que lhe faz enigma então. Como efeito dessa busca, um saber

começará a ser construído em análise. Em Freud, podemos pensar essa construção como

equivalente ao processo de elaboração a partir do trabalho de rememoração. Os

significantes que de alguma maneira marcaram a história do sujeito vão sendo trazidos à

tona e através deles um saber, antes desconhecido, mas que operava desde sempre no

inconsciente, vai tomando forma.

Agalma

Trabalhamos a pouco a operação significante que Lacan reconhece como sendo

aquela que marca a entrada em análise e que fundamenta os efeitos de transferência. O

que nos foi possível perceber através desta exposição é que esta entrada pressupõe o

reconhecimento, ainda que tácito, por parte do paciente de que há um saber latente em

sua fala, um saber que, no entanto, ele ignora: um saber inconsciente.

Vimos também que a conseqüência da assunção dessa ignorância com relação ao

sentido do que se diz é o fato do analisante se lançar numa busca por desvendar isso que

permanece incógnito em seus próprios enunciados. Ele se lança numa busca por sabê-lo

e supõe que é no analista que ele encontrará esse saber.

A seguir, pretendemos mostrar como esta suposição não pode ser pensada

dissociada do principal efeito imaginário suscitado pela irrupção da transferência: o

amor. E, para tanto, recorreremos às elaborações lacanianas encontradas em O

Seminário – livro 8 (1960-1961), dedicado inteiramente à investigação deste conceito.

No referido seminário, Lacan elege abordar a relação transferencial através da

sua dimensão amorosa. E, com este desígnio, portanto, ele empreende uma análise do

diálogo de Platão, O Banquete, que gira todo em torno do amor.

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Neste diálogo, vale lembrar, Sócrates se encontra reunido com alguns jovens na

casa de Agatão para algo que se assemelha a uma festa, quando Erixímaco sugere um

jogo no qual os presentes fizessem discursos para louvar o amor, tentando, através

deles, defini-lo. No meio da brincadeira, irrompe Alcebíades propondo uma mudança:

ao invés de enaltecerem o amor, cada um dos convidados deveria, a partir daquele

momento, elogiar aquele à sua direita. Ou seja, eles deveriam, pois, manifestar o amor

em ato, na relação de um com o outro (Lacan, 1960-1961, p.140). Assim, Alcebíades

inicia seu elogio a Sócrates, seu amado, que pode ser resumido da seguinte forma: ele

afirma que tal como um sileno24

, Sócrates serve de envoltório para um objeto precioso,

divino. Diz ele:

Que esta atitude não é conforme à dos silenos? E muito mesmo. Pois é

aquela com que por fora ele se reveste, como o sileno esculpido; mas

lá dentro, uma vez aberto, de quanta sabedoria imaginais,

companheiros de bebida, estar ele cheio?

Uma vez que [...] se abre, não sei se alguém já viu as estatuetas lá

dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas,

com tanto ouro, com uma beleza tão extraordinária que eu [...]

julgando porém que ele estava interessado em minha beleza,

considerei um achado e um maravilhoso lance de fortuna, como se me

estivesse ao alcance... (PLATÃO, 1972, p.53).

Este objeto precioso aos olhos de Alcebíades e que ele julga Sócrates guardar em

seu interior, é denominado de agalma, palavra que significa ornamento ou enfeite, em

grego. Eidelsztein (1994) nos elucida, com relação a este termo, que ele designa a noção

de „valor‟ em seu emprego mais antigo, anterior mesmo ao surgimento da moeda legal,

que também se deu na Grécia.

Este autor também nos diz que tais objetos de valor pré-monetário possuiriam,

de acordo com a mitologia grega, algumas determinadas particularidades, que é o que os

tornavam tão estimados. Dentre elas, uma característica dos objetos agalmáticos é que

estes seriam dotados de um poder misterioso próprio, intrínseco, que aos olhos da

sociedade tornava mais digno aquele que o possuísse. Tais objetos, contudo, não

poderiam ser adquiridos por meio de jogos ou como recompensa, senão através de um

24

Os silenos eram estatuetas esculpidas a imagem das divindades campestres que faziam parte do séquito

de Dionísio, e as quais levavam essa mesma denominação (isto é, eram chamadas também de silenos).

Esses deuses “eram figurados com cauda e cascos de boi ou bode e rosto humano, singularmente feio”

(Os pensadores III, N.T.160, p.52). Importante também dizer que os seguidores de Dionísio receberam

esta alcunha devido a um deles que tinha este nome: “Sileno era descrito como o mais velho, o mais sábio

e o mais beberrão dos seguidores de Dionísio. (...) Quando estava sob o efeito do álcool, sileno adquiria

conhecimentos especiais e o poder da profecia” (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sileno).

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ato nobre de renúncia por parte daquele que o detém. Isto é, eles se configurariam

enquanto objetos de dom; concedidos, pois, por amor.

Todas essas idéias, aliás, ficam bastante em evidência no diálogo platônico

quando Alcebíades afirma que ninguém senão seu amado Sócrates teria o poder de

tornar-lo uma pessoa melhor, na medida em que crê que é, justamente, dentro dele que

se esconde este valioso objeto. Sócrates, no entanto, retruca-lhe que não possui este

poder. “Ditoso amigo, examina melhor; não te passe despercebido que nada sou” – lhe

diz, ele.

Lacan utiliza-se desta cena, comparando, de certa forma, esta situação do

Banquete com o que ocorre na experiência analítica, para mostrar-nos aquilo que está no

cerne mesmo do amor de transferência, a saber: o agalma, que ele identifica neste

seminário como sendo o objeto do desejo. Ele nos aponta que a relação transferencial é

marcada, justamente, pelo fato do analisando imputar ao analista – tal como Alcebíades

a Sócrates – o agalma; ou seja, ela é caracterizada pelo fato deste último ser colocado,

pelo paciente, no lugar daquele que contém o objeto do seu desejo.

Quanto a esta situação, Lacan irá, ademais, analisar as condutas de ambas as

personagens do diálogo para nos ajudar a pensar como analisando e analista se portam

dentro da transferência. Em relação a Alcebíades, ele nos diz que este, com seu elogio,

nada mais faz do que demandar um sinal do desejo de Sócrates (por ele), quer dizer, ele

requer que seu amado transforme-se em amante; enquanto que Sócrates, por seu turno,

permanece indiferente ao rogo do primeiro, se recusando em se mostrar amante.

De acordo com suas observações, Sócrates rechaça a metáfora de amor, que

consiste justamente na substituição do amado (érôménos) pelo amante (érastès), pois

ele sabe que “se recusa a ter sido, sob qualquer título, justificado ou justificável,

érôménos, o desejável, aquele que é digno de ser amado (...) porque, para ele nada há

que seja amável nele. Sua essência é este ouden, esse vazio, esse oco” (LACAN, 1960-

1961, p.157).

Ora, na transferência, o que faz o paciente diante do analista não é algo similar?

E, segundo a regra de abstinência, a posição que o analista deve adotar perante a

demanda deste também não se assemelha em muito a de Sócrates? Vejamos, mais

detalhadamente, de que maneira elas se aproximam e como nós podemos articular o

agalma (o objeto de desejo) e o sujeito-suposto-saber dentro desta situação.

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Para tanto, talvez seja necessário realizarmos uma pequena digressão e

voltarmos a alguns pontos já trabalhados, a fim de resumirmos o que se passa na relação

entre analista e analisante.

Vimos anteriormente que a transferência na experiência analítica se sustenta a

partir de uma suposição de saber evocada pela própria instauração da associação-livre: a

suposição de que há em minha fala um saber inconsciente e que encontrará seu sentido

alhures. A partir disso, apontamos ainda como o paciente situa o analista nessa posição

de grande Outro, pelo fato mesmo de lhe endereçar o seu discurso e esperar dele receber

o sentido do que diz. E, assim, tornou-se claro que, na medida em que o faz, tudo o que

o analisante diz em análise toma a forma de uma demanda de sentido ao analista. A fala

do analisante é, em si mesmo, um apelo ao Outro pelo significado de seus ditos.

Percebemos, contudo, que o analista através de sua resposta enquanto não

resposta a demanda de sentido (calando-se ou equivocando a fala do paciente), propicia

o surgimento da dimensão do desejo, o qual, vale lembrar, apesar de presente na

articulação da demanda na cadeia significante, não é, ele próprio, articulável nesta.

Afinal, como nos diz Lacan (1958):

O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda

aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia

significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu

complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar

dessa falta (LACAN, 1958, p.633).

Assim, entendemos que o sujeito, pelo próprio fato de demandar ao analista,

atualiza sua falta-a-ser em análise, apresentando-se como incompleto, faltoso. Pois, ao

dirigir sua demanda articulada em significantes em direção ao analista, também ali se

faz presente nas entrelinhas, no inter-dito, o desejo. E é porquanto este não atende ao

seu apelo, quer dizer, que o paciente não recebe seu suplemento do Outro (o qual então

também aparecerá como barrado), que ele será levado a confrontar-se com esta falta que

assedia seu próprio enunciado; essa falta que a princípio ele demandava que o Outro

suturasse com algum sentido.

Ou seja, o analisante será impelido a se deparar com a opacidade de seu próprio

desejo, que retorna do Outro para ele (uma vez que é próprio à estrutura de toda

demanda retornar ao sujeito de forma invertida) sob a forma da pergunta: “Que

queres?”. E, dado que, como Lacan nos aponta, “o desejo do homem é o desejo do

Outro” (LACAN, 1960, p.829) – isto é, dado que é como Outro que se deseja –, quando

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o sujeito se depara com esta questão sobre o seu desejo, é, com efeito, com o enigma do

desejo do Outro que ele se vê as voltas.

Diante disso, acreditamos que começa a se esclarecer a articulação entre agalma

e sujeito-suposto-saber. Pois, se, como vimos, pela própria estrutura do dispositivo

analítico, o analista é situado nesse lugar Outro, ao aparecer então como desejante – isto

é, ao fazer cair a barra sobre o Outro, mediante a sua não resposta à demanda do sujeito

– ele será suposto saber responder a este enigma. Ou seja, ele será suposto saber a

significação do desejo inconsciente, saber dizer o objeto deste desejo (agalma). Ele é

suposto deter a verdade com relação ao desejo do sujeito; suposto saber o que desejar25

.

Por isso, Lacan (1964) nos dirá que: “enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto

saber também partir ao encontro do desejo inconsciente” (LACAN, 1964, p.229).

Certamente que esta suposição de que o Outro possui aquilo que nos falta – e

que aqui, neste caso, trata-se do saber sobre o desejo – não deixa de ser uma miragem,

uma ilusão. Uma ilusão que é própria ao amor, vale dizer; e que não passa de um astuto

artifício para velar a castração (a castração do Outro, sobretudo, mas também a sua

própria). É nesse sentido que Lacan irá afirmar que “o efeito de transferência é esse

efeito de tapeação” (LACAN, 1964, p.246), que se configura ainda como uma

armadilha. Afinal, se amar é essencialmente querer ser amado, o amor de transferência

não é senão um esforço do sujeito, enquanto assujeitado ao desejo do analista, de

enganá-lo dessa sujeição, fazendo-se amar por ele, isto é, tentando fazer com que o

analista passe de objeto amado (érôménos) a sujeito amante (érastès), a fim de assim

obter aquilo que ele acredita que o analista detém.

Sobre isso, Lacan nos adverte que o psicanalista não deve cair no engodo de

acreditar que tem aquilo que falta ao sujeito. Mas, assim como Freud, ele também

sublinha a importância deste efeito na experiência analítica: “precisamos fazer surgir o

domínio da tapeação possível” (LACAN, 1964, p.132), pois é apenas por meio desta

ficção que podemos ter acesso ao real26

, isto é, à causa perdida do inconsciente, que

escapa sempre à cadeia significante e faz limite à rememoração.

25

Desta forma, podemos compreender também que as demandas de sentido que o paciente dirige para o

analista nada mais são, em sua essência, do que demanda de amor. E o que subjaz nas entrelinhas dessas

demandas não é senão um desejo de saber; um desejo de saber o que se deve desejar. Como se o sujeito

assim supusesse ao analista: “o que eu desejo lá dentro, você é quem deve saber” (LACAN, 1964, p.?). 26

“esse indeterminado de puro ser que não tem qualquer acesso à determinação [...] é a isto que a

transferência nos dá acesso, de maneira enigmática” (LACAN, 1964, p.128).

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Mas, como podemos pensar que esse efeito de tapeação, que justamente é um

artifício para encobrir o real pode nos dar acesso a ele? E o que deveria fazer o analista

diante disso a fim de promover o engendramento do novo?

Estas são as questões que tentaremos responder a seguir.

Reflexões sobre a intervenção analítica

No último sub-tópico sublinhamos que para que a função do sujeito suposto

saber se instaure efetivamente, e a transferência se estabeleça, faz-se necessário que o

analista apareça enquanto desejante. O que conduz o analisante a se confrontar com o

enigma do desejo do Outro. E vimos, ainda, que é justamente neste instante que se dá a

irrupção do amor de transferência como forma de se escamotear a castração do Outro,

atribuindo-se ao analista a chave deste enigma, isto é, o saber sobre o objeto do desejo

inconsciente.

Como podemos articular isto com a repetição?

Quando trabalhamos a tiquê, ao final de nosso segundo capítulo, o que nos foi

possível perceber é que uma das maneiras de se pensar o encontro com o real – a causa

acidental da repetição – é justamente abordando-o em referência ao encontro com o

desejo do Outro. Nesse sentido, então, ousamos dizer que a transferência se desencadeia

a partir de uma tiquê. Contudo, entendemos que aqui não se trata de um mau-encontro,

de um encontro traumático, porque diante dele o analisante não admite o furo no Outro,

mas, pelo contrário, tampona-o, ao atribuir ao analista a significação que lhe escapa.

Isto é, por ocasião deste encontro com o sem-sentido a barra recai sobre o sujeito, mas

não sobre o Outro. Ou, melhor dizendo, ela recai sobre o Outro, porque somente a quem

falta algo é possível desejar, mas paradoxalmente – como vimos – é justamente porque

ele deseja que ele é suposto saber a significação do desejo. O que é o mesmo que

afirmar que ele é suposto saber o objeto que o Outro deseja para se completar.

Assim, parece-nos que a transferência enquanto amor dirigido ao saber é mesmo

um recurso para não se haver com o real, para continuar a ignorá-lo solenemente.

Todavia, como Lacan nos aponta, trata-se aí de um efeito de tapeação indispensável ao

tratamento. Sendo por isso que o analista deve sustentar esta posição que lhe é conferida

pela transferência, qual seja, a de suposto saber, mantendo-a, no entanto, vazia.

Qual a relevância deste engano para o tratamento?

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Vimos anteriormente que o sujeito se constitui enquanto ser desejante

justamente a partir de um encontro primeiro com a insondável pergunta sobre o desejo

do Outro, diante da qual ele acaba por fabricar uma resposta a partir dos significantes

incorporados através da demanda do Outro. Sublinhamos também que é aí que ele

constrói uma fantasia sobre o lugar que teria ocupado como objeto no desejo do Outro.

A fantasia, com efeito, é uma maneira singular do sujeito se haver com este impossível,

de dar um contorno a isso que resiste a qualquer esforço de representação: ao seu ser de

objeto. E, como dissemos, é a partir desta ficção que o sujeito poderá sustentar o seu

desejo e a realidade.

Vimos ainda que o que acontece quando o paciente entra em análise é que por

meio do desejo do analista ele é levado a se confrontar com esta questão. E supondo que

ele detém esta resposta, que ele possui a significação de seu ser, o paciente se enamora,

e se esmera em se fazer amado pelo analista por acreditar que assim conseguirá obtê-la.

Ora, o sujeito só pode tentar se fazer amado a partir das coordenadas da sua

fantasia, isto é, tentando encarnar aquilo que supõe que o Outro deseja. E é assim,

graças a este efeito de tapeação, que o analista poderá vir a ter acesso a ela. Mas, com

efeito, a princípio, ele nada sabe sobre esta. Nem tampouco o analisante. É preciso que

este saber seja construído, então, em análise. O que só é possível mantendo insatisfeitas

as demandas de sentido do paciente. Pois, somente assim ele poderá continuar a desejar

e a perseverar na sua busca por saber.

Engajado nessa busca, o analisante prosseguirá o seu trabalho de rememoração e

de elaboração. Enquanto o faz, é bem verdade, o sujeito permanece alienado no sentido

e na dimensão da demanda, e só faz colocar sempre mais adiante o objeto. Contudo, é

através deste trabalho associativo que ele será levado a repetir os significantes que

determinam a sua história, isto é, os significantes da demanda do Outro aos quais ele

permaneceu fixado. E é por meio deles que o analisante começará a cerzir a narrativa

singular que dirá sobre o lugar que ele ocupa no desejo do Outro.

Diante disso, podemos inferir que é através das demandas do paciente que o

analista poderá ter acesso ao objeto em torno do qual elas gravitam. O objeto que jaz

como causa de desejo do sujeito. Por isso entendemos que Lacan nos diz que a

transferência nos dá acesso ao real. E se essas demandas não passam de uma tentativa

de encobrir esse objeto, entendemos que a tarefa do analista é o desvelá-lo. Como? A

partir da interpretação que deve visar justamente isso que assedia o discurso do sujeito,

mas que em si, permanece rebelde ao enunciado. Ela deve apontar essa outra coisa que

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permanece latente nos ditos do analisante, isso que é sempre contornado pela sua fala e

que se apresenta nas rupturas no significante. A interpretação do analista não deve,

então, permanecer na dimensão do sentido, ainda que opere através do significante. Ela

deve apontar para o não-sentido. “A interpretação opera pelo significante, mas incide

sobre o objeto, sobre o real” (SOLER, 1991, p.45).

Ora, se o objetivo do analista em suas intervenções é justamente desvelar o real;

é fazer surgir a presença deste resto de nons-sense que parasita e incita o discurso do

paciente, logo, somos levados a concluir que, por mais que o amor de transferência seja

um recurso do sujeito para não ter que se deparar com o furo no Outro, este apelo ao

saber deverá conduzi-lo, pelo manejo do analista, ao encontro com o real, isto é, com a

causa sem sentido de seu destino.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É chegado o momento de fazermos uma breve retrospectiva e retornarmos Aos

principais pontos trabalhados a fim de tentarmos esboçar uma resposta para a questão

central de nossa dissertação, a saber: como se produz a diferença a partir da repetição na

experiência de uma análise?

Em nosso primeiro capítulo, nos dedicamos especialmente a examinar a face

simbólica da repetição. Buscávamos quando do início de nosso percurso compreender

através deste exame como se constituem os roteiros que são insistentemente repetidos

por um sujeito. Para tanto, partimos da noção de trilhamento (Bahnung), apresentada no

Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). Através dela o que começou a se

evidenciar é que a predileção por repetir caminhos já conhecidos está associada à

memória tal como ela é desenvolvida na obra freudiana – isto é, não como uma função

biológica que se presta à adaptação do indivíduo ao meio, mas sim como uma memória

ativada pelo desejo –, estruturada a partir da organização das marcas mnêmicas num

sistema de diferenças.

Vimos, também, neste capítulo, analisando a apropriação e subversão do signo

saussuriano por Lacan, como a idéia acima se coaduna com as contribuições lacanianas

feitas à psicanálise a partir da lingüística estrutural. E esforçamo-nos, então, para

demonstrar em que medida é possível afirmar que o inconsciente é estruturado como

uma linguagem. Para isso, investigamos ainda como o psicanalista francês se serve das

noções de metonímia e metáfora de Roman Jakobson e as aproxima dos processos de

deslocamento e condensação.

A seguir, nos propusemos investigar as considerações de Lacan relativas ao

automatismo da cadeia simbólica, tomando como ponto de partida seu comentário sobre

o conto de Edgar Allan Poe intitulado A carta roubada. Visávamos com esta

investigação esclarecer três aspectos relativos ao deslocamento automático significante,

que nos pareciam de extrema importância para compreendermos a face simbólica da

repetição. Quais sejam: 1. que o sujeito não tem qualquer domínio sobre eles, posto que

é feito dessas articulações; 2. que o desdobramento automático da cadeia não se dá de

forma aleatória, mas seguindo uma sintaxe inconsciente; 3. que o estabelecimento desta

sintaxe, correlata ao advento da lei através de uma metáfora, é precisamente aquilo que

determina os trajetos pelos quais devem passar a rememoração.

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A fim de elucidarmos este primeiro aspecto, apontamos como Lacan ressalta a

anterioridade do significante em relação ao sujeito e como ele faz questão de sublinhar

que o sujeito não se confunde com o indivíduo. A partir dessas considerações, nos foi

possível entender que o sujeito não preexiste à linguagem, mas que ele se constitui

como um efeito da remissão significante que toma lugar no Outro, permanecendo numa

posição de ex-centricidade com relação à cadeia. Vimos, então, que isto implica que o

sujeito não é senhor de sua fala, mas antes, que ele é determinado pelo discurso do

Outro, pelo lugar que lhe foi conferido a partir deste discurso.

Por outro lado, o que tentamos demonstrar também é que apesar do

encadeamento significante não depender do sujeito, isso não significa que ele se dá de

maneira contingente, ao sabor do acaso. Para explicamos este segundo aspecto inerente

ao automatismo simbólico, recorremos à análise que Lacan empreende sobre o jogo do

“par ou ímpar” a fim de apontar-nos que conjuntamente à incidência do significante

surge também uma lei que prescreve os caminhos possíveis de serem traçados na

história de um sujeito, os trajetos pelos quais devem passar a rememoração. E

apontamos como é esta lei sintática, portanto, aquilo que justamente determina a

insistência de certas articulações significantes.

Por fim, ressaltamos que o estabelecimento daquilo que é possível de se escrever

implica necessariamente, em contrapartida, algo que é impossível de se escrever, algo

que é sempre evitado, contornado pela cadeia. E indicamos como este ponto impossível

de ser assimilado pela estrutura, e que recebe no escrito sobre A carta roubada o nome

de caput mortuum – o significante impossível – é de um só tempo resíduo da articulação

significante e condição de possibilidade para a ordenação do simbólico. Sendo por isso

mesmo que se pode dizer que ele é inerente à estrutura, ainda que permaneça dela

excluído.

Nesse sentido foi que chegamos à conclusão, ao final deste capítulo, que no

centro mesmo da insistência simbólica resta, erradicável, um buraco que é precisamente

aquilo que a incita. E, foi aí que começamos a vislumbrar o outro lado da repetição.

Em nosso segundo capítulo nos propusemos investigar mais apuradamente esta

outra face. Para tanto, começamos nos debruçando sobre o artigo Além do Princípio do

Prazer (1920). Através das considerações tecidas ali, esclareceram-se pontos

importantes para a nossa pesquisa. Dentre eles, evidenciou-se que, neste artigo, o

conceito de compulsão à repetição alude justamente à face real da repetição, uma vez

que ele diz da persistência de algo que escapa ao processo de simbolização e que recebe

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ali o nome de pulsão de morte. Sobre este conceito, fizemos questão de sublinhar que

ele se refere à pulsão em estado bruto, livre, não ligada a representantes, que se mantém

para além do campo da linguagem – e, portanto, do domínio do princípio do prazer –,

em oposição às pulsões de vida, que constituem a força pulsional ligada, já submetida

ao espaço das representações.

Assim, nos foi possível compreender que aquilo que incita os deslocamentos

significantes, não diz respeito apenas a um cavo no simbólico, ilustrado em nosso

primeiro capítulo pelo caput mortuum, mas também a um excedente pulsional, um a

mais.

Nesse sentido, esclareceu-se ainda o quanto esta idéia está atrelada ao trauma,

posto que, como vimos através das elaborações freudianas, o traumático implica

precisamente um aumento abrupto de energia livre que o aparelho psíquico não

consegue dar conta de simbolizar. Isto é, ele indica a presença de um resto pulsional

não-ligado que insiste compulsivamente em se fazer representar.

A seguir, passamos ao exame de outra noção que também alude a esta causa

silenciosa que funciona como força motriz do processo simbólico e do automatismo de

repetição a ele inerente, qual seja: a noção de das Ding. Para isso, voltamos ao Projeto

para uma psicologia científica (1950[1895]), mas desta vez, à luz das formulações

encontradas em O Seminário – livro 7 (1959-1960).

Da longa exposição que fizemos sobre esta noção, o que de primordial se

evidenciou foi que das Ding, o objeto perdido da satisfação – perdido desde e para

sempre –, é uma das denominações dadas ao que o sujeito teve que perder, quando

ainda não era sujeito, a fim de poder se constituir enquanto tal. É uma parte de si mesmo

que nunca foi sua, algo de interior tornado exterior, ao mesmo tempo que excluído no

interior. Ela diz de uma alteridade radical, inassimilável ao simbólico, introduzida no

seio mesmo da subjetividade a partir de um primeiro encontro com o Outro.

Além disso, constatamos ainda que no nível simbólico, a Coisa não passa de um

vazio central, ao redor do qual gravita a cadeia de representações; sendo aquilo que ao

mesmo tempo a possibilita e a fura.

Outro aspecto importante que se revelou é a imprescindibilidade desta perda

mítica para a construção da realidade para o sujeito. É este buraco no simbólico que

permite a construção do mundo do sentido e é ele quem servirá de referência para o

sujeito se reportar ao mundo de seus desejos.

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Na última parte de nosso segundo capítulo, nos dedicamos a trabalhar as noções

de automatôn e tiquê, tomadas de empréstimo de Aristóteles por Lacan, para nos indicar

mais claramente estes dois níveis presentes na repetição. Sublinhamos que o automatôn

é empregado para designar o retorno dos signos graças à insistência de determinadas

articulações significantes na cadeia, que, como demonstramos no primeiro capítulo,

segue uma sintaxe idiossincrática.

Com relação à tiquê, reservada para tratar da causa real da repetição, vimos que

ela se refere a um encontro ao qual sempre somos convocados com um real que

escapole. Apontamos, porém, que isto não implica que se trate aí de um encontro

impossível, pois, mesmo que este ponto ineliminável de non-sense seja tenazmente

evitado, ainda assim, vez ou outra, se tropeça nele. Ressaltamos, então, que isso se dá a

cada vez que o sujeito se depara com o enigma do desejo do Outro.

Trabalhamos este encontro tratando rapidamente dos processos de alienação e

separação. Vimos que o primeiro encontro com este enigma se dá neste segundo tempo

de causação do sujeito, a partir dos intervalos daquilo que o Outro lhe demanda.

Quando deste encontro, ressaltamos que não é como sentido que o sujeito se apreende,

mas justamente como este furo no Outro. Dissemos que é aí, nesse instante, que ele se

confronta com a opacidade de seu ser. E, a seguir, demonstramos como é nesta ocasião

que se dá início a construção da fantasia, na qual o sujeito circunscreve o lugar que

imagina ter ocupado como objeto no desejo do Outro por meio dos significantes que

nele se fixaram através da demanda do Outro, dando contorno ao seu ser e despontando

como desejante.

Acreditamos que a partir da investigação que promovemos sobre a tiquê, dois

pontos muito relevantes se evidenciaram. Primeiro, que é quando o sujeito se depara

com o furo no Ouro, perdendo a possibilidade de se representar como sentido, que ele

vem a se confrontar com algo que resta sempre como radicalmente novo, isto é, que ele

se depara com a diferença. Ou seja, evidenciou-se então que o encontro com o real é o

encontro com a diferença, com o novo.

E, ademais, nos foi possível perceber como os significantes que determinam

simbolicamente o sujeito, e que se repetem na rememoração, estão necessariamente

relacionados com este encontro primeiro com o desejo do Outro. Eles aludem –

certamente, uns mais do que outros – ao lugar que o sujeito ocupa, na sua fantasia, em

relação a este desejo.

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Finalmente nosso último capítulo foi dedicado a pensar a repetição em relação à

experiência de uma análise. Assim, começamos com Freud, partindo de seus artigos

técnicos A dinâmica da transferência (1912) e Recordar, repetir e elaborar (1914).

Objetivávamos nesta primeira parte do terceiro capítulo esclarecer duas questões que há

muito nos intrigavam devido à forte articulação entre os conceitos de transferência e

repetição na obra freudiana: a transferência só repete? Se ela repete, o que ela repete?

A partir das formulações traçadas nesses artigos e consideradas em articulação

com as elaborações ulteriores sobre este tema, apresentadas no Além do Princípio do

Prazer (1920), constatamos que Freud admite que na transferência repete-se a

impossibilidade de satisfação atestada pela incidência da lei quando do declínio do

complexo de Édipo. Contudo, em seguida, refletindo sobre os apontamentos

encontrados no artigo Observações sobre o amor de transferência (1915[1914]), nos foi

possível inferir que é somente na medida em que o tratamento é conduzido na

abstinência que pode haver sob transferência a repetição do desencontro, do traumático.

Tal inferência, com efeito, não apenas nos ajudou a afrouxar o nó entre os conceitos de

repetição e transferência, mas também viabilizou que começássemos a vislumbrar uma

resposta para nossa questão central. Afinal, uma das conclusões a que chegamos em

nosso segundo capítulo, como já apontamos, foi precisamente que, neste encontro com

o impossível, aquilo com o que o sujeito se depara não é senão com o que resta sempre

como radicalmente novo, isto é, com a diferença.

Ainda assim, considerávamos importante recorrer às considerações lacanianas a

respeito da transferência a fim de aclarar um pouco mais a distinção entre esses dois

conceitos. Para, depois, voltarmos a articulá-los e corroborar, ou não, a hipótese a que

tínhamos chegado a partir das formulações de Freud.

Para tanto, escolhemos trabalhar este conceito em Lacan por meio de duas

noções, que ele nos aponta estarem no cerne do estabelecimento e da sustentação da

transferência, quais sejam: a noção de sujeito-suposto-saber e a de agalma. Através do

breve estudo que empreendemos, nos foi possível notar de que maneira elas se

encontram profundamente imbricadas: a atribuição ao analista do objeto agalma (objeto

de desejo) pelo analisante, na irrupção do amor de transferência, é correlata ao

estabelecimento do sujeito-suposto-saber.

Mas, julgamos que o mais importante que pudemos extrair ao trabalhar essas

duas noções, foi que a regra da abstinência, ainda que essencial ao tratamento, não basta

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para promover o advento do novo – o que nos pareceu, a princípio, quando abordamos

esta questão a partir dos textos freudianos.

Reconhecemos que não atender as demandas de sentido do paciente é essencial

para que ele possa vir a se confrontar com o enigma do desejo do Outro e, portanto,

imprescindível para que o sujeito-suposto-saber se instaure e para que o amor de

transferência ecloda. O que, como vimos, é indispensável para o tratamento, pois ainda

que este amor, como todos demais, vele a castração do Outro, é graças a ele que o

sujeito continuará na sua busca por saber, trazendo à tona os significantes que o

determinaram.

Contudo, o que nos foi possível perceber é que se a análise se resumir a isto, o

paciente com sua fala/demanda continuará a gravitar ao redor do objeto. Ele prosseguirá

tentando alcançá-lo pela via do sentido, mas por esta via ele só poderá colocá-lo sempre

mais distante.

Desta forma, pudemos entender que não basta ao analista abster-se de dar

sentido, faz-se necessário que ele com sua interpretação aponte para o ser, aponte para o

objeto em torno do qual as rememorações do sujeito se organizam; para este resto opaco

que parasita o seu discurso. É assim, acreditamos, que o analista poderá fazer com que a

partir da repetição em que se encontra capturado o sujeito – ou seja, a partir da repetição

dos enredos que marcam a sua história –, este possa vir a se deparar com a diferença, e

que não é senão, como vimos, a causa do seu destino.

E como é que podemos pensar que este encontro com a diferença radical tem o

potencial de viabilizar que o sujeito se descole um pouco das rotas conhecidas e faça

diferente? Pelo que trabalhamos em nossos primeiro e segundo capítulos, somos

levados a inferir que isso é possível porquanto é ao redor deste ponto opaco que se

estrutura o simbólico e que, assim, a fugaz irrupção do real não pode senão ter um efeito

de desordenação, que conduz (ou tem a potência de conduzir) a uma nova configuração

dessas rotas; a uma forma diferente de narrar, perceber e estar no mundo.

Contudo, não queremos dizer com isso que as lembranças do sujeito se

modificam. “A vida que o analisando teve não se refaz. Ao contrário, o que modifica é a

maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá” (SOLER, 1991, p.56).

Mas, sendo assim, uma nova questão parece se impor: o que vai acontecendo

com a fantasia fundamental de um sujeito, ao longo do processo de análise? Afinal, ela

funciona precisamente como o princípio de inteligibilidade das relações deste sujeito

com o mundo. E ela, como vimos, é estruturante; não podendo, portanto, ser alterada.

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Não estamos ainda em condições de responder a questão acima colocada, que

nos parece essencial para podermos responder de maneira mais satisfatória o problema

que propusemos de início. Fica, aqui, a indicação para uma pesquisa futura. E a certeza

de que a resposta que nos foi possível esboçar a partir desta investigação nem de longe

dá conta de resolver este problema.

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