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8/4/2019 circuitos história frigotto http://slidepdf.com/reader/full/circuitos-historia-frigotto 1/22 235 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 O s circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI 1 * Gaudêncio Frigotto Universidade do Estado do Rio de Janeiro  A história nunca se fecha por si mesma e nunca  se fecha para sempre. São os homens, em grupos  e confrontando-se como classes em conito, que “fecham” ou “abrem” os circuitos da história. Florestan Fernandes, 1977, p. 5 * Conferência de Abertura da 33 a Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Gra du ação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Caxambu-MG, 17 de outubro de 2010. Introdução Tenho a dimensão da responsa- bilidade pela tarefa que assumi, tanto pela abrangência do tema, complexida- de do conteúdo e delicado momento po- lítico que vivemos, quanto pelo desao de ser para quem se destina esta con- ferência. Falar aos próprios pares, sem dúvida, traz a vantagem de debater com interlocutores que se ocupam do tema, mas, exatamente por isso, a exigência torna-se mais aguda e espinhosa. Só posso explicar o lapso de insa- nidade ao aceitar o convite por tê-lo in- terpretado como uma tarefa para quem, ainda como aluno de pós-graduação em

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235Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011

Os circuitos da história e obalanço da educação noBrasil na primeira décadado

século XXI

1

Gaudêncio FrigottoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

 A história nunca se fecha por si mesma e nunca

 se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em conito, que

“fecham” ou “abrem” os circuitos da história.

Florestan Fernandes, 1977, p. 5

* Conferência de Abertura da 33a Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Gra du ação ePesquisa em Educação (ANPEd). Caxambu-MG, 17 de outubro de 2010.

Introdução

Tenho a dimensão da responsa-bilidade pela tarefa que assumi, tantopela abrangência do tema, complexida-de do conteúdo e delicado momento po-lítico que vivemos, quanto pelo desao

de ser para quem se destina esta con-ferência. Falar aos próprios pares, semdúvida, traz a vantagem de debater cominterlocutores que se ocupam do tema,mas, exatamente por isso, a exigênciatorna-se mais aguda e espinhosa.

Só posso explicar o lapso de insa-nidade ao aceitar o convite por tê-lo in-terpretado como uma tarefa para quem,ainda como aluno de pós-graduação em

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1976, esteve no processo de debates quelevaram à criação da ANPEd, fundadaem 1978. Mas neste momento isto nãoé um consolo e nem me retira o com-

promisso e a responsabilidade. E, el aeles, posso adiantar: o que busco nestaexposição não é o consenso balofo, maso dissenso crítico.

Não só pelo fato de estarmos viven-do o momento em que se completam 15anos da morte de Florestan Fernandes,mas pelo que representa sua contri-buição intelectual para entendermos oque somos e o que nos trouxe até aqui,eu o tomo como referência básica paraa leitura que faço da primeira décadado século XXI, quanto à relação entreprojeto societário e educação.

Para Florestan, a “história nuncase fecha por si mesma e nunca se fe-cha para sempre. São os homens, emgrupos e confrontando-se como classesem conito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’

os circuitos da história” (Fernandes,1997, p. 5).Tal compreensão me conduz a

uma exposição que se estrutura em trêspontos: o primeiro trata da indicaçãode alguns pressupostos e das opções eembates em torno do projeto societárioque marcam a conjuntura da década; osegundo, traçado justamente com basenesses pressupostos e opções de projetosocietário, engloba o balanço indicativodaquilo que entendo ser marcante nestadécada com respeito à educação; e, porm, o terceiro ponto, em que levantoalgumas questões que nos afetamcomo ANPEd e nos interpelam comopesquisadores ou jovens em formaçãona pesquisa e pós-graduação na área.

Esses três aspectos não decorrem

de uma eleição arbitrária, mas, sim,daquilo que entendo seja a própria na-tureza de uma entidade que congrega

pesquisadores e discute tanto os pressu-postos e o método quanto os resultadosde um trabalho especíco que busca acienticidade do saber1 e, da mesma for-

ma, o sentido histórico, social, culturale ético-político de sua produção.Pela estrutura de minha fala

que, de saída, apresentei, os colegas já podem perceber que minha opçãopara a elaboração do balanço se referemuito mais a um roteiro indicativo quenos pode permitir uma leitura históricadesta conjuntura do que à aventura defazer supercialmente um outro tipo debalanço, trazendo aqui uma espécie de

 estado da arte do que foi produzido, na suamaior parte justamente pelos que meestão escutando, sobre o que ocorreuna área de educação durante o período.Essa não é tarefa a ser vencida numaconferência, mas por uma pesquisa de vários anos.

De que pressupostos parto e qualopção de projeto societário marcaesta década?

Qualquer que seja o objeto deanálise no campo das ciências huma-nas e sociais que se queira tratar noplano da historicidade, vale dizer, no

campo das contradições, mediaçõese determinações que o constituem,implica necessariamente tomá-lo narelação inseparável entre o estrutural eo conjuntural. Por outra parte, implicatomar o objeto de análise não como umfator, mas como parte de uma totali-dade histórica que o constitui, na qual

1 Ver a esse respeito a discussão “Marx e a

cienticidade do saber” (Moura, 1998, p. 69-148), na qual é feita distinção entre a ciên-cia como força produtiva e a cienticidadedo saber.

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se estabelecem as mediações entre ocampo da particularidade e sua relaçãocom uma determinada universalidade.

 Assim sendo, entendo que a déca-

da de 2001 a 2010 não se interpreta nelamesma e, tampouco, pelo que nela sefez, mas pela natureza desse fazer e dasforças sociais que o materializam paraalém das intenções e do discurso. A esteauditório, mormente à geração a quepertenço, mas não só, caberia, quiçá,enfrentar o mesmo desao intelectual epolítico que Florestan Fernandes (1977)enfrentou ao fazer o balanço de suageração. Assim é que relembro, aqui,para todos nós, que Florestan, ao de-nir a sua geração como  geração perdida, interroga sobre o que pretendiam, porque falharam e quais lições poderiamser tiradas para o futuro.

O que pretendo demarcar é que,como conjuntura, a década começa em janeiro de 2003, com a posse do atual

governo do presidente Luiz Inácio Lulada Silva, já que não é o tempo cronoló-gico que dene uma conjuntura, mas anatureza dos acontecimentos e dos fa-tos, e as forças sociais que os produzem.

O começo, em janeiro de 2003,traduz-se no fato de que, não obstanteas diferenças entre a eleição de 1989 ea de 2002, as forças sociais progressistas

que conduziram ao poder o atual gover-no tinham, em sua origem, a tarefa dealterar a natureza do projeto societário,com consequências para todas as áreas.Francisco de Oliveira sintetiza qual eraa tarefa e o seu sentido:

Na periodização de  longue duré brasileira, a eleição de Luiz InácioLula da Silva para a Presidência da

República, ancorada na excepcionalperformance do Partido dos Traba-lhadores e de uma ampla frente de

esquerda, tem tudo para ser umaespécie  de quarta refundação dahistória nacional, isto é, um mar-co de não retorno a partir do qual

impõem-se novos desdobramentos.[…]. É tarefa das classes domina-das civilizar a dominação, o que aselites brasileiras foram incapazesde fazer. O que se exige do novogoverno é de uma radicalidade queestá muito além de simplesmentefazer um governo desenvolvimen-tista. (Oliveira, 2003, p. 3)

Uma ampla produção crítica,a começar pela do próprio Oliveira,permite-nos sustentar que, por dife-rentes razões e determinações,2 nãoocorreu o caminho do não retorno e aopção esteve centrada na realizaçãode um governo desenvolvimentista. Aradicalidade a que o autor se refere, nocontexto das forças em jogo, seria uma

opção clara de efetivação de medidaspolíticas profundas capazes de viabilizara repartição da riqueza e suas conse-quências em termos de reformas debase na confrontação do latifúndio, dosistema nanceiro e do aparato políticoe jurídico que os sustentam.

Entre os novos desdobramentos,poderia estar aquilo que os clássicos

brasileiros do pensamento crítico de-niram como  revolução nacional, capazde abrir amplo acesso aos bens econô-micos, sociais, educacionais e culturaispor parte da grande massa até hojesubmergida na precária sobrevivênciae com seus direitos elementares muti-lados. Num horizonte mediato, exorci-

2 No espaço deste texto torna-se inviável ex-

por essas razões e determinações. Para essem ver: Oliveira (2004 e 2010), Coutinho(2006 e 2010) Frigotto (2005) e Paulani(2006 e 2008).

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zando o quanto pior melhor, tal revoluçãopoderia propiciar o desenvolvimentodas condições para que a grande massade trabalhadores viesse a se constituir,

ela mesma, em sujeito político, con-dição indispensável, como nos ensinaGramsci, para mudar um determinadopanorama ideológico, construir basespara relações sociais de novo tipo e decaráter socialista.

Na lição principal para a suageração, pensando em nossa realidadehistórica, Florestan qualica esse mo-

 vimento e o papel do intelectual ou da intelligentia crítica, lição que guarda vivaatualidade:

Não foi um erro conar na de-mocracia e lutar pela revoluçãonacional. O erro foi outro – o desupor que se poderiam atingir es-ses ns percorrendo a estrada realdos privilégios na companhia dos

privilegiados. Não há reforma queconcilie uma minoria prepotente auma maioria desvalida. […] A cau-sa principal consiste em car renteà maioria e às suas necessidadeseconômicas, culturais e políticas:pôr o Povo no centro da história,como mola mestra da Nação. Oque devemos fazer não é lutar pelo

Povo. As nossas tarefas são de ou-tro calibre: devemos colocar-nos aserviço do Povo brasileiro para queele adquira, com maior rapidez eprofundidade possíveis a consciên-cia de si próprio e possa desenca-dear, por sua conta, a revolução na-cional que instaure no Brasil umanova ordem social democrática e

um estado fundado na dominaçãoefetiva da maioria. (Fernandes,1977, p. 245-246)

 Ao assentar-se, e cada vez mais,na opção pelo desenvolvimentismo, omarco do não retorno não foi construídona atual conjuntura e, por isso mesmo,

não altera nem o tecido estrutural deuma das sociedades mais desiguais domundo, nem a prepotência das forçasque historicamente o definem e omantêm.

Para Florestan, o que se temchamado de desenvolvimento, em re-alidade, tem sido um processo de mo-dernização e de capitalismo dependente

em que a classe dominante brasileira,minoria prepotente, se associa ao grandecapital abrindo-lhe espaço para suaexpansão, o que resulta na combinaçãode uma altíssima concentração de capi-tal para poucos, com a manutenção degrandes massas na miséria, o alívio dapobreza ou um precário acesso ao con-sumo, sem a justa partilha da riquezasocialmente produzida.3

Diferente, todavia, das análisesque operam no plano antinômico entreuma abstrata equação de continuidadeou descontinuidade, as quais, como bemnos alerta Fredric Jameson (1997), se

3 Diferente da perspectiva da modernização,que concebe o desenvolvimento econômicoe sociocultural de forma linear e, mesmo,das análises da teoria da dependência, que

apresentam a assimetria de poder entre pa-íses, o conceito de capitalismo dependenteexplicita a compreensão da aliança, aindaque subordinada, das classes detentoras docapital dos países periféricos com as classesdetentoras do capital dos centros hegemô-nicos no processo de expansão do capital.Nas sociedades de capitalismo dependente,explicita-se um processo histórico de desen- volvimento desigual e combinado. Vale dizer,nichos de altíssima concentração de capital

e renda e manutenção e ampliação de gran-des massas na miséria ou nos limites da so-brevivência. Ver, a esse respeito, Fernandes(1973).

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inscrevem na ordem das abordagenslógicas e na retórica discursiva, aanálise materialista histórica, terrenoda contradição,4 refere-se a contextos

e permite-nos perceber que a décadaanalisada, no plano social e educacional,é, ao mesmo tempo, continuidade e des-continuidade. E aqui vale a advertênciade Engels:

Sobretudo a palavra “materialis-ta” serve, na Alemanha, a muitosescritores jovens como uma simplesfrase com que se rotula todo e qual-

quer estudo, ou seja, coloca-se orótulo e crê-se ter encerrado entãoo assunto […]. Toda a história pre-cisa ser reestudada, as condições deexistência das diversas formaçõessociais precisam ser examinadasem detalhe, antes de induzir delasas correspondentes concepções po-líticas, jurídicas, estéticas, losó-

cas, religiosas etc. (Engels, 1983, p.456)

 André Singer, porta-voz duranteos quatro primeiros anos do atual gover-no, ao analisar o que denomina Lulismo,dene-o por sua especicidade quantoà opção por um determinado projeto

4 “Na antinomia você sabe onde está pisando.

Ela arma duas proposições que efetiva-mente são radical e absolutamente incom-patíveis, é pegar ou largar. Já a contradiçãoé uma questão de parcialidades e aspectos;apenas uma parte dela é incompatível coma proposição que a acompanha; na verdade,ela pode ter mais a ver com forças ou como estado das coisas do que com palavras eimplicações lógicas. […]. Nossa época ébem mais propícia ao terreno da antinomiado que da contradição. Mesmo no próprio

marxismo, terra natal desta última, tendên-cias mais avançadas reclamam da questãoda contradição e se aborrecem com ela”(Jame son, 1997, p. 17-18).

societário e à natureza das políticas pú-blicas e seu sentido político, dando-nos,ao mesmo tempo, elementos para per-cebermos as diferenças de tais políticas

em relação ao passado, especialmente,a década de 1990. A continuidade da década pre-

sente em relação ao passado incideno erro da geração perdida – a opçãopor conciliar uma minoria prepotente a umamaioria desvalida – mediante o combate àdesigualdade dentro da ordem de umasociedade capitalista onde sua classedominante é das mais violentas e des-póticas do mundo.

Com efeito, como assinala Singer,a conciliação dá-se, por um lado, na con-tinuidade da política macroeconômica,el aos interesses da classe detentorado capital e, por outro, no investimentona melhoria de vida de “uma fraçãode classe (trabalhadora) que, emboramajoritária, não consegue construir

desde baixo as suas próprias formas deorganização” (Singer, 2009, p. 84). Talopção política por “ executar o programa

 de combate à desigualdade dentro da ordem” (grifos do autor) “confeccionou nova viaideológica, com união de bandeiras quepareciam não combinar” ( idem, p. 97).

Continuidade, no entanto, nãosignica que um mesmo projeto estru-tural seja conduzido da mesma forma. As forças que protagonizaram o chama-do ajuste estrutural na década de 1990,particularmente durante os oito anos doGoverno Fernando Henrique Cardoso,representam o núcleo dominante daminoria prepotente, o qual, por seus vín-culos orgânicos com o grande capitale quadros de intelectuais altamentepreparados, definiram o movimento

de pêndulo, a que se refere OtávioIanni (1986), entre a construção deuma nação autônoma e soberana e um

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projeto modernizador e de capitalismodependente.

 As reformas neoliberais, ao longodo Governo Fernando Henrique, apro-

fundaram a opção pela modernizaçãoe dependência mediante um projetoortodoxo de caráter monetarista e -nancista/rentista. Em nome do ajuste,privatizaram a nação, desapropriaramo seu patrimônio (Petras; Veltmeyer,2001), desmontaram a face social doEstado e ampliaram a sua face que seconstituía como garantia do capital. Seufundamento é o liberalismo conservador

redutor da sociedade a um conjunto deconsumidores. Por isso, o indivíduo nãomais está referido à sociedade, mas aomercado. A educação não mais é direi-to social e subjetivo, mas um serviçomercantil.

O que quero sublinhar é que, adespeito da continuidade no essencialda política macroeconômica, a con-

  juntura desta década se diferencia dadécada de 1990 em diversos aspectos,tais como: retomada, ainda que deforma problemática, da agenda do de-senvolvimento; alteração substantiva dapolítica externa e da postura perante asprivatizações; recuperação, mesmo querelativa, do Estado na sua face social;diminuição do desemprego aberto, mes-mo que tanto os dados quanto o concei-to de emprego possam ser questionados;aumento real do salário mínimo (aindaque permaneça mínimo); relação dis-tinta com os movimentos sociais, nãomais demonizados nem tomados comocaso de polícia; e ampliação intensa depolíticas e programas direcionados àgrande massa não organizada que viviaabaixo da linha da pobreza ou num nível

elementar de sobrevivência e consumo.Trata-se, neste último caso, nãoapenas da realização de políticas com-

pensatórias e de parca distribuição derenda, como é o Programa Bolsa Famí-lia, ou das políticas de descriminaçãopositiva, mas do acesso diferenciado e

intenso ao crédito para a casa própriae a bens de consumo, a programas deacesso à energia etc. Vale lembrar aquia aguda observação de Bertolt Brecht:“Para quem tem boa posição social falarde comida é coisa baixa. É compreensí- vel, eles já comeram.”5

O indicador dessas diferenças podeser aquilatado por dois caminhos de ori-gem diametralmente diversa: um furor

da classe dominante e de seus aparelhosde hegemonia6 contra as políticas aquiexemplicadas, por retirarem migalhasda reprodução ampliada do capital ou deseus privilégios; e um comportamento degratidão e de apoio das multidões queobjetivamente sentem a melhora efetivade suas vidas, grande parte passandoda indigência à sobrevivência e outra

parcela subindo um degrau na escala doconsumo. Não por acaso essa massa é agrande responsável pelos índices estáveispróximos de 80% de avaliação do atualgoverno como ótima.

O problema não é a real necessi-dade de um projeto de desenvolvimentoe a adoção de políticas compensatóriasampliadas como travessia. O equívocoestá em que elas não se vinculam à

 radicalidade que está muito além de simples-mente fazer um governo desenvolvimentistasem confrontar as relações sociaisdominantes.

5 Disponível em: <www.kifrases.blogspot.com/2010>.

6 Uma crônica de Luís Fernando Veríssimosobre o comportamento da grande imprensa

nas eleições atuais traça com na ironia estefuror. Ver: Luiz Fernando Veríssimo, “Cor-rida de dez dias”, O Globo, Rio de Janeiro,23/9/2010, p. 7.

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Como sustenta o historiadorEric Hobsbawm, o “desenvolvimentosustentável” não pode operar atravésdo mercado, mas deve operar contra

ele (Hobsbawm, 1992, p. 270). Impli-ca, sobretudo, “uma investida contraas fortalezas centrais da economia demercado e de consumo. Isso exigirá nãoapenas uma sociedade melhor que a dopassado, mas como sempre sustentaramos socialistas, um tipo diferente de so-ciedade” ( idem, p. 270).

 Assim, ao nal dessa década, po-demos armar que no plano estrutural,embora não se tenha a mesma opçãodos que no passado recente venderama nação e haja avanços signicativosno plano social, mormente para ogrande contingente da população atéentão mantido na indigência, o marcode não retorno não se estabeleceu e ocircuito das estruturas que produzem adesigualdade não foi rompido. A lição

principal de que nos fala Florestan,lamentavelmente, no seu conteúdofundamental, não foi aprendida.

Uma leitura da educação brasileirana primeira década do século XXI

O que expus até aqui, penso, mepermite, de forma muito resumida,explicitar a leitura que faço do campoeducacional nesta década, abordandoos processos educativos, institucionali-zados ou não.

O pressuposto basilar da leitura aque me rero incide no fato de que, aonão disputar um projeto societário anta-gônico à modernização e ao capitalismodependente e, portanto, à expansão do

capital em nossa sociedade, centrando--se num projeto desenvolvimentistacom foco no consumo e, ao estabelecer

políticas e programas para a grandemassa de desvalidos, harmonizando-ascom os interesses da classe dominante(a minoria prepotente), o governo

também não disputou um projeto edu-cacional antagônico, no conteúdo, nométodo e na forma.

Isso explica, do meu ponto de vista, por que o acúmulo de debatese de produção teórica produzidos nocombate à ditadura civil-militar, natransição para a “redemocratização”,no processo constituinte e no combateà ditadura do mercado na educação,na década de 1990, não tenha sidoapropriado ou apenas marginalmenteapropriado por alguns setores. Rero--me aqui às Conferências Brasileiras deEducação (CBES), ao Fórum Nacionalem Defesa da Escola Pública (FNDEP)e, posteriormente, às ConferênciasNacionais de Educação (CONEDS) eFóruns Mundiais de Educação (FMES),

espaços cuja atividade deixou de serapropriada,7 especialmente a produçãoteórica de caráter crítico que nelesteve lugar, na década de 1980, e quefoi produzida no seio da pós-graduaçãoda área, particularmente em algunsprogramas.

Também explica a fragmentaçãoe o abandono por parte de grande par-

cela dos setores críticos organizados daárea quanto a disputar a direção das

7 Destaco a década de 1980 porque nela a áreanão tinha caído, como veremos adiante, naarmadilha do produtivismo ou submergidoaos critérios mercantis, construindo um pro-cesso de mercantilização na produção acadê-mica. Por certo, esse seria um tema centralpara uma ampla pesquisa, cuja hipótesemais provável, que poderia vir a ser revela-

da, poderia indicar uma grande indigênciaintelectual e uma produção com pouco sen-tido social e humano efetivamente transfor-mador das atuais relações sociais.

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políticas educacionais, favorecendo adupla deformação política sublinhadapor Karel Kosik (1969): a postura da  bela

 alma e a do comissário. No primeiro caso,

trata-se do encastelamento no plano deuma pureza teórica abstrata e moralistapara a qual tudo é reformismo, o queconduz a uma posição imobilista. Nosegundo caso, está o  comissário centra-do em suas fatias de poder, exercendouma atitude pragmática, utilitaristae oportunista, capaz de subordinar osinteressas da sociedade aos seus.

 A junção da fragmentação ao

abandono do campo crítico na disputapelo projeto educativo e o foco de aten-dimento da grande massa desorganiza-da e despolitizada resultou naquilo quefoi dominante na educação durante adécada – a política da melhoria medianteas parcerias do público e privado.

Desse desfecho resulta que noplano estrutural se reiteram as refor-

mas que mudam aspectos do panoramaeducacional sem alterar nossa herançahistórica que atribui caráter secundárioà educação como direito universal e comigual qualidade. Não só algo secundáriomas desnecessário para o projeto mo-dernizador e de capitalismo dependenteaqui viabilizado.

No plano das políticas educa-cionais, da educação básica à pós--gra du ação, resulta, paradoxalmente,que as concepções e práticas educacio-nais vigentes na década de 1990 denemdominantemente a primeira década doséculo XXI, armando as parcerias dopúblico e privado, ampliando a dualidadeestrutural da educação e penetrando, deforma ampla, mormente nas instituiçõeseducativas públicas, mas não só, e na

educação básica, abrangendo desde oconteúdo do conhecimento até os mé-todos de sua produção ou socialização.

 A não mudança estrutural a queme rero pode ser nitidamente perce-bida pela leitura de balanços-síntesefeitos por três intelectuais represen-

tantes do pensamento crítico, os quaisevidenciam que, tomados os últimosoitenta anos, a prioridade da educaçãose sustenta apenas no discurso retórico.

  Antonio Candido, referindo-seaos ideais educacionais dominantes nadécada de 1930, conclui:

Tratava-se de ampliar e “melho-rar” o recrutamento da massa votan-

te e de enriquecer a composição daelite votada. Portanto, não era umarevolução educacional, mas uma re-forma ampla, pois o que concerne aogrosso da população a situação pou-co se alterou. Nós sabemos que (aocontrário do que pensavam aquelesliberais)8 as reformas da educaçãonão geram mudanças essenciais nasociedade, porque não modicama sua estrutura e o saber continuamais ou menos como privilégio. Sãoas revoluções verdadeiras que pos-sibilitam as reformas de ensino emprofundidade, de maneira a torná--lo acessível a todos, promovendo aigualitarização das oportunidades.Na América Latina, até hoje isto sóocorreu em Cuba a partir de 1959.

(Candido, 1984, p. 28) 

Quatro décadas depois, Flores tanFernandes, batalhador das teses dos

8 Candido, no artigo em questão, refere-seàs reformas propostas por Sampaio Dória,em 1920, Lourenço Filho, no Ceará (1924)e Fernando Azevedo (1928), no Distrito Fe-deral, base para o que se desenvolveria no

Governo Provisório após 1930 com a criaçãodo Ministério de Educação e Saúde, conadoa Francisco Campos, que fora o reformadorda Instrução Pública em Minas Gerais.

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movimentos sociais e organizaçõescientíficas defensoras de um projetoeducacional que desse base a mudançasestruturais, chega a conclusão similar

à de Antonio Candido, referindo-se àConstituição de 1988: “A educação nun-ca foi algo de fundamental no Brasil,e muitos esperavam que isso mudassecom a convocação da Assembleia Nacio-nal Constituinte. Mas a Constituiçãopromulgada em 1988, conrmando quea educação é tida como assunto menor,não alterou a situação” (Fernandes,1992).

O desfecho da aprovação da Lei deDiretrizes e Bases (LDB) e o percurso doPlano Nacional de Educação, agora sub-sumido pelo Plano de Desenvolvimentoda Educação (PDE), vieram conrmarque permanecem inalteradas, até o pre-sente, as análises de Antonio Candido eFlorestan Fernandes.9

Com efeito, duas décadas depois

do balanço feito por Florestan, Der me valSaviani, referindo-se ao PDE, que,secundarizando-o, se superpõe ao PlanoNacional de Educação (PND) e à nume-rologia que o acompanha, sustenta:

Fica-se com a impressão que es-tamos diante, mais uma vez, dosfamosos mecanismos protelatórios.Nós chegamos ao nal do séculoXX sem resolver um problema queos principais países, inclusive nos-sos vizinhos Argentina e Uruguai,resolveram na virada do século XIXpara o XX: a universalização doensino fundamental, com a conse-quente erradicação do analfabetis-mo. (Saviani, 2007, p. 3)

9 Para uma visão crítica sobre a nova Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional e oPlano Nacional de Educação, ver, respectiva-mente, Saviani (1999 e 2008).

E, referindo-se ao conteúdo daspolíticas, conclui:

[…] do ponto de vista da pedagogiahistórico-crítica, o questionamentoao PDE dirige-se à própria lógicaque o embasa. Com efeito, essa lógi-ca poderia ser traduzida como umaespécie de “pedagogia de resulta-dos”. Assim, o governo se equipacom instrumentos de avaliação dosprodutos forçando, com isso, que oprocesso se ajuste a essa demanda.É, pois, uma lógica do mercado que

se guia, nas atuais circunstâncias,pelos mecanismos das chamadas“pedagogia das competências e daqualidade total”. ( idem, p. 3)

 A síntese de Saviani permite-meexplicitar como analiso o fundamentopreponderante que se faz presente naeducação durante a atual década, tan-

to em relação à natureza das políticasquanto – e principalmente – às concep-ções pedagógicas dominantes.

Em relação às políticas educacio-nais da presente década, uma análiseantinômica que trabalhasse com basena continuidade ou descontinuidadenão seria capaz de captar as diferen-ças de contexto e o alcance delas emrelação ao passado, especialmente emrelação à década de 1990. No entanto,numa outra perspectiva, ao examinaras propostas de educação do bloco deforças que apoiavam a candidaturade Fernando Henrique Cardoso e asque apoiavam a de Luiz Inácio Lulada Silva, Luiz Antônio Cunha (1995)apresenta-nos os projetos e concepçõesem disputa: enquanto as primeiras

resultavam de produções de quadrosintelectuais elaboradas pelo alto paraserem aplicadas na sociedade, as segun-

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das buscavam uma construção desde aprópria sociedade. Grande parte dosintegrantes daqueles quadros eram, na verdade, membros de organismos inter-

nacionais, a começar por Paulo RenatoSouza, que por oito anos ocupou o Mi-nistério da Educação (MEC) aplicandoo planejado. Tanto que podemos dizerque a LDB aprovada no Congresso foium ex-post   facto de um ex-ante.

Mesmo sabendo que o contextode 2002 já era outro e as alterações depercurso ao longo do atual governo seforam apartando da sociedade organi-

zada, o discurso da mera continuidadecai no plano antinômico da retóricae não condiz com o compromisso quetenho por revelar o plano contraditóriodo contexto.

Por isso, naquilo que é, espe-cificamente, competência da esferafederal em sua função suplementarhá diferenças no que tange à abran-

gência das políticas, aos grupos sociaisatendidos e ao financiamento postoem prática. Assim, podemos assinalara criação de mais 14 novas universida-des federais, a abertura de concursospúblicos, a ampliação dos recursos decusteio e uma intensa ampliação dosantigos Centros Federais de EducaçãoTecnológica (CEFETs), atualmentetransformados em Institutos Federaisde Ciência e Tecnologia (IFETs). Nesseâmbito, foram criadas 214 novas esco-las a eles vinculados e cerca de 500 milmatrículas.

É preciso também assinalar quehouve ênfase nas políticas voltadas paraa educação de jovens e adultos e paraa educação da população indígena eafrodescendente. Por certo, não se pode

reduzir tais feitos ao debate sobre apolítica de cotas e menos ainda que taldebate se reduza, uma vez mais, ao pen-

samento dicotômico do a favor ou contra.Trata-se de ver quais forças sociais asdemandam, qual sua sinalização sociale política e qual o seu ardil.

O atual governo também se mos-trou diferenciado no apoio dado aoprojeto pedagógico desenvolvido peloMovimento dos Sem Terra (MST) e àssuas iniciativas no importante processode alterar a concepção e as práticas deeducação no campo. A Comissão Par-lamentar de Inquérito (CPI) contra oMST, “olho por olho, dente por dente”,do ponto de vista dos órgãos de sca-

lização, em relação aos convênios doMST e à sua sistemática demonização,quando analisada pela imprensa e pelasforças ligadas ao latifúndio, sinalizaessa diferença.

No plano do financiamento, acriação do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento da Educação Básica ede Valorização dos Prossionais da Edu-

cação (FUNDEB), com todos os limitesda natureza dos recursos ligados aoFundo e não constitucionais, incorporoua educação infantil e o ensino médio,antes não contemplados. Para cobrirtodas as modalidades, na sua funçãosuplementar, esta em tramitação nal,tem lugar a criação do Fundo Nacionalde Desenvolvimento da Educação Pro-ssional e Tecnológica (FUNDEP). Eoutro aspecto diferenciado, ainda que 

em termos muitíssimos baixos, é a xa-ção do piso nacional para o magistérioda educação básica, uma conquistahistórica do magistério nacional.

Reitero aqui, também, que oproblema não está na necessidade deque se reveste a maior parte dessasações e políticas, mas, sim, na forma

de sua gestão e na concepção que asorientam. Com respeito à gestão, o viéscontraditório dá-se por serem tais ações

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e políticas, em grande parte, pautadasna opção pelas parcerias do público como privado e dentro de uma perspectivadaquilo que Saviani denominou  peda-

  gogia dos resultados, sem a disputa pela concepção que as orienta.Com isso, o Estado, em vez de

alargar o fundo público na perspectivado atendimento a políticas públicas decaráter universal, fragmenta as açõesem políticas focais que amenizam osefeitos, sem alterar substancialmenteas suas determinações. E, dentro dessalógica, é dada ênfase aos processos de

avaliação de resultados balizados peloprodutivismo e à sua losoa mercantil,em nome da qual os processos peda-gógicos são desenvolvidos mediante apedagogia das competências.

Nesse contexto, as concepções deeducação centradas na pedagogia histó-rico-crítica – e, portanto, as possibilidadesde uma educação unitária e omnilateral

e as suas exigências em termos das ba-ses materiais que lhes dão viabilidade,disputadas quando da denição do PlanoNacional de Educação (PNE), explicita-das em diferentes Conferências Nacionaise que afetam a educação no conjunto dafederação, mormente a educação básica –cam subvertidas dominantemente pelaconcepção mercantil.

Três aspectos reforçam tal com-preensão: dois já enunciados anterior-mente – a dispersão e fragmentação docampo de esquerda e o fato de o governonão ter assumido o acúmulo teórico críti-co como opção. O terceiro diz respeito aoque bem demonstra Saviani em relaçãoaos debates ocorridos durante a recenteConferência Nacional de Educação (re-alizada de 28 de março a 1° de abril de

2010), a qual, a despeito da importânciados seus temas e discussões, foi simples-mente ignorada pela imprensa.

Essa conferência tratou de doistemas fundamentais: a organizaçãodo Sistema Nacional de Educação ea elaboração do Plano Nacional de

Educação, que deverá substituir oatual. Dos resultados da CONAE de- verão sair projetos de lei a serem en-caminhados ao Congresso Nacionalpara discussão e aprovação. Apesarda grande importância desse acon-tecimento, a mídia falada e escritanada publicou a respeito.10

O movimento dos empresários em

torno do Compromisso Todos pela Educaçãoe sua adesão ao PDE, contrastada com a história de resistência ativa de seusaparelhos de hegemonia e de seus in-telectuais contra as teses da educaçãopública, gratuita, universal, laica eunitária, revela, a um tempo, o carátercínico do movimento e a disputa ativapela hegemonia do pensamento edu-cacional mercantil no seio das escolaspúblicas.

Um exemplo emblemático dabusca por impor a visão financista emercantil na educação básica é a inicia-tiva do mercado de capitais (FederaçãoBrasileira de Bancos - FEBRABAN, Associação Brasileira das Entidadesdos Mercados Financeiro e de Capitais- ANBIMA e gestores, Bolsa de Valores -

BOVESPA, Superintendência Nacionalde Previdência Complementar - PRE- VIC etc.) que, desde agosto de 2010,implantou um projeto-piloto de educação

  nanceira, com supervisão do MEC, em450 escolas do ensino médio, não poracaso, de São Paulo, Rio de Janeiro,Minas Gerais, Ceará, Distrito Federale Tocantins,11 estados dirigidos por seu

10 Dermeval Saviani, Folha de S.Paulo, 5 de abrilde 2010, Painel do Leitor.

11 Tôni Sciarretta , Folha de S.Paulo, 8 de agosto

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partido ou que seguem a losoa doministro Paulo Renato Souza da EraFernando Henrique Cardoso.

Também é uma evidência relevan-

te do interesse crescente que empresasprivadas vêm demonstrando em relaçãoà educação como negócio, a recentecompra, pela Abril Educação, do AngloSistema de Ensino (211 mil alunos em484 escolas da rede privada em 316municípios brasileiros), do Anglo Ves-tibulares e da Siga, empresa focada napreparação para concursos públicos, oque fará “que o faturamento da Abril

Educação supere R$500 milhões dere ais em 2010, tornando a empresa umadas maiores do setor”.12

Pode-se afirmar, assim, que adespeito de algumas intenções emcontrário, a estratégia de fazer refor-mas conciliando e não confrontando osinteresses  da minoria prepotente com asnecessidades  da maioria desvalida acaba 

favorecendo essa minoria, mantendoo dualismo estrutural na educação, ainexistência de um sistema nacionalde educação, uma desigualdade abis-mal de bases materiais e de formação,condições de trabalho e remuneraçãodos professores, redundando numa píaqualidade de educação para a maioriada população.

No plano da educação básica,além de os fundos terem prazo de vali-dade, no caso do FUNDEB, ampliou-se,positivamente, o universo de atendi-mento, sem, contudo, ampliar, propor-cionalmente, os recursos. Atende-semais com menos. O que vigora é umafórmula para atender à cláusula pétrea docapital na sua intenção de contar com

de 2010, Sessão Mercado.12 Disponível em:</http://g1.globo.com/econo-mia-e-negocios/noticia/2010/07/abril-educa-cao-anuncia-compra-do-grupo-anglo.html>.

uma fatia gorda do fundo público comogarantia de seus negócios, ao mesmotempo em que se promove constantepressão para diminuir suas contribui-

ções, quando não o emprego das mais variadas estratégias com a intenção deburlá-las.

No âmbito da educação pros-sional, técnica e tecnológica, centrode grandes disputas na Constituinte,na LDB e no PNE em prol de umaconcepção não adestradora e tecni-cista e de sua vinculação jurídica efinanciamento públicos, esta foi-seconstituindo na grande prioridadeda década, sem alterar, todavia, seucaráter dominantemente privado.Certamente, a opção pela parceria dopúblico com o privado não favorecea reversão da dualidade educacional.Pelo contrário, como demonstra Cunha(2005), a tendência, desde a década de1980, era de ampliá-la para o ensino

superior. A transformação da Rede deEscolas Técnicas Federais em CentrosFederais de Educação Tecnológica (CE-FETS) e, nesta década, em universida-des tecnológicas ou Institutos Federaisde Educação, Ciência e Tecnologia(IFETS), conrma tal tendência. Domesmo modo, não ajuda a reverter ocaráter dominantemente privado e aapropriação privada de recursos pú-blicos na área.

Gabrie l Grabowsky (2010)mos tra-nos que, em 1999, apenas 25%da educação prossional era públicae 75% era composta por cursos decurtíssima duração, de nível básico.O Censo de 2008 revelou que 83% dasmatrículas do nível tecnológico esta- vam na iniciativa privada.

Mas o mais chocante é que oSistema S, em 2010, mobilizou apro-ximadamente 16 bilhões de recursos

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públicos, somando-se os recolhidoscompulsoriamente pelo Estado e a elerepassados, e a venda de serviços aosetor público.

Esses valores, destacamos, sãosuperiores ao que a União estáprevendo investir no FUNDEB, aocusto anual do Bolsa-Família e atodos os investimentos realizadosna expansão da rede federal (2 bi-lhões) ao Brasil Prossionalizado(900 milhões) ao Projovem entre2008-2011 (5,8 bilhões) e a todos

os demais programas no campo daeducação e qualicação prossio-nal. (Gra bo wski, 2010, p. 177)

Em relação à Universidade, obalanço não difere do que foi expostoaté aqui. Se, positivamente, tivemosna década um forte impulso em dire-ção à criação de novas Universidades

públicas, isso não alterou a tendênciahistórica de privatização, e sobretudoem relação ao que Marilena Chaui(2003) expôs na conferência de aber-tura na 26ª Reunião Anual da ANPEd,em 2003, sobre “a nova perspectivada universidade pública”. Foi quandoChaui nos pôde mostrar que, especial-mente a partir década de 1990, houveo deslocamento da Universidade con-cebida como instituição pública ligadaao Estado republicano para o de orga-nização social vinculada ao mercado. UmaUniversidade operacional, avaliadanão mais em razão de sua função sociale cultural de caráter universal, mas daparticularidade das demandas do mer-cado. Ou seja, centrada na pedagogia dos

 resultados e do produtivismo, na análise

de Saviani.O Programa Universidade para

Todos (PROUNI) e o Programa de

  Apoio a Planos de Reestruturação eExpansão das Universidades Federais(REUNI), por caminhos diversos eaparentemente contraditórios, dão

conteúdo à universidade operacional.O PROUNI criou mais de 700 mil va-gas para jovens, e isso seria fantásticose tal inclusão não fosse incorporando,ainda que de forma enviesada, a teseconservadora de Milton Friedmanque, no nal da década de 1950, de-fendia que o Estado desse aos maispobres um voucher ou uma carta decrédito para escolherem onde que-riam estudar.

O REUNI, por sua vez, representauma inversão substantiva de recursos decusteio para projetos e programas, quaseduplicando as vagas e sendo aplaudidafortemente pelo Manifesto dos Reitoresdas Universidades Públicas durante oatual governo. Em contrapartida, es-tabelece a desestruturação da carreira

docente, conquistada duramente, au-menta o trabalho precário e, sobretudo,impõe uma brutal e, em muitos casos,insuportável intensicação da carga detrabalho. Além disso, especialmente pelocrescimento do enclave da educação àdistância, em alguns casos com a defesade sua crescente expansão em substi-tuição ao ensino superior presencial,

produz-se mais uma forma de dualidade.O fetiche da tecnologia opera aqui comoargumento ideológico.

Há um último aspecto de grandeabrangência que me conduz a sustentarque a primeira década do século XXI,dominantemente, foi marcada pelasconcepções e práticas educacionais mer-cantis típicas da década de 1990, seja nocontrole do conteúdo do conhecimento,

seja nos métodos de sua produção ou nasocialização, autonomia e organizaçãodocentes. Três mecanismos articulados

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estão em ampla expansão nas secreta-rias estaduais e municipais de educação.

O primeiro mecanismo chega aochão da escola calcado na ideia de que

a esfera pública é ineficiente e que,portanto, há que serem estabelecidasparcerias entre o público e o privado,mesmo mediante disfarce, quando oprivado permanece encoberto pelo eufe-mismo que engloba organizações sociaisou o chamado terceiro setor. A essesinstitutos privados ou ONGs13 cabe sele-cionar o conhecimento, condensá-lo emapostilas ou manuais, orientar a forma

de ensinar, denir os métodos de ensino,os critérios e processos de avaliação econtrole dos alunos e dos professores.

O segundo mecanismo, decorren-te do anterior, talvez o mais proclamadopela mídia, notadamente pelas revistassemanais, é justamente o de se atacar anatureza da formação docente realizadanas universidades públicas, com o argu-

mento de que os cursos de pedagogia ede licenciatura se ocupam muito com ateoria e com análises econômicas sociaisinúteis e não ensinam o professor astécnicas do “bem ensinar”.

 A revista Época, de 26 de abril de2010, numa reportagem de dez páginas,traz o receituário do “bem ensinar”:“Os segredos dos bons professores.Os mestres que transformam nossascrianças em alunos de sucesso (e o quetodos temos que aprender)”. Os livrostomados como referência para taladestramento docente são Ensinar como

13 Referimo-nos aqui ao Instituto Ayrton Sen-na, Instituto de Qualidade na Educação(IQE), Positivo, Pitágoras, Fundação Rober-to Marinho, Fundação Bradesco, Sistema

COC de ensino e congêneres, que assumema direção pedagógica de muitas secretariasestaduais e, especialmente, municipais, emnome do ensinar eciente.

um líder: o guia do professor supereciente

 para diminuir o décit de aprendizagem, deStiven Farr; e Ensine como um campeão: 49

técnicas que colocam os estudantes no rumo da

universidade, de Doug Lemov.Uma das receitas desses manuais,em letras maiores e destacadas em ne-grito pela reportagem, é de que “avaliaro desempenho individual dos professorespermitiria não só premiá-los de formamais justa, mas também fazer algomais importante: entender como elestrabalham”.

Esse último aspecto dene o ter-

ceiro mecanismo, condição para que os dois primeiros tenham sucesso. Trata-sedas ações de desmontar a carreira e or-ganização docentes mediante políticasde prêmio às escolas que, de acordocom os critérios oficiais, alcançammelhor desempenho, remunerando osprofessores de acordo com sua produ-tividade em termos do quantitativo

de alunos aprovados. Os institutos ouorganizações privadas, para assessorarou atuar diretamente nas escolas, têma incumbência de avaliar professorese alunos de acordo com os conteúdos,métodos e processos prescritos. O quese busca, para uma concepção mercantilde educação, é, pois, utilizar na escolaos métodos do mercado.14

14 Os estados de São Paulo e de Minas Geraissão os grandes artíces dessas políticas, masque se ampliam céleres, especialmente nasregiões Norte e Nordeste. O município doRio de Janeiro, capitaneado pela secretáriaCláudia Costin, é uma espécie de labora-tório avançado dessa losoa. Agora, ela éseguida pelo recém-empossado secretárioestadual de Educação, o economista WilsonRisolina, alçado ao cargo no dia seguinte emque o governador Sérgio Cabral foi eleito,

após uma campanha em que a qualidadeda educação no estado foi bastante ques-tionada. Perguntado sobre o que pensa daeducação e dos professores, o novo secretá-

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O que acabo de armar se expli-cita emblematicamente no fato de queo mesmo membro do Conselho Federalde Educação que havia sido relator do

contestado Decreto n. 2208/9715 foi orelator do atual decreto n. 5.154/0416 e,atualmente, é o relator das DiretrizesCurriculares Nacionais para a EducaçãoProssional Técnica de Nível Médio.Essas diretrizes, por encontrar o cam-po aberto, regrediram de tal forma aodecreto n. 2.208/97 que motivaram umareação por parte de várias instituições,

com grande participação da ANPEd.17

Mas isso não é tudo. Exatamen-te no último ano desta década, quempreside a Câmara de Educação Básicado Conselho Nacional de Educação éo mesmo histórico representante do

rio foi explícito: “penso em educação comoum negócio”. Concebe os professores como“entregadores do saber. A vida é assim, pre-

mia quem é melhor. Vamos fazer avaliaçõesperiódicas, que servirão de base para um sis-tema de bonicação”  (O Globo, 07/10/2010,Primeiro Caderno). O único estado que temuma política de contraponto clara a essastendências é o Paraná.

15 Trata-se do decreto que regulamenta o § 2ºdo art. 36 e os arts. 39 a 42 da lei n. 9.394,de 20 de dezembro de 1996, que estabeleceas diretrizes e bases da educação nacional.Nessa regulamentação reintroduz e acentua

a dualidade no ensino médio e o orienta deacordo com os cânones das políticas neolibe-rais baseadas em critérios mercantis.

16 Esse decreto revoga o decreto n. 2.208/97com o objetivo de restabelecer o caráterintegrado do ensino médio. Sua regulamen-tação pelo Conselho Federal de Educação,tendo como relator o conselheiro liadoaos interesses das federações patronais quemantém o Sistema S, acaba mantendo aorientação mercantil do decreto revogado.

17 Ver: Diretrizes Curriculares Nacionais paraa Educação Prossional e Técnica de NívelMédio. Brasília, site do MEC, setembro de2010. Texto para discussão.

Sistema S,18 sistema gerido pelos órgãosde classe dos empresários. O ideário deensinar “o que serve ao mercado ou defazer pelas mãos a cabeça do trabalha-

dor” (Frigotto, 1993), antes restrito aoadestramento prossional que caracte-riza o Sistema S, tende, então, a impor--se para a educação em seu conjunto.

A título de conclusão ou o que nosinterpela como ANPEd na tarefade manter “fechados” ou “abrir oscircuitos da história”

Creio que esta conferência perde-ria o sentido se eximisse a pós-graduaçãode nossa área deste balanço. O tempo deexposição não me permite avançar emdireção a detalhes importantes, mas, decerto modo, no plano geral, creio queestamos de acordo em que ela não dife-re, no fundamental, do panorama mais

geral. Somos mais de cem programasreconhecidos. Resta indagar: o queisso signica socialmente no embateem torno da abertura dos circuitos denossa história?

Detenho-me, então, no aspectoque julgo central. Trata-se daquiloque dene nossa especicidade comoespaço de formação de pesquisadores edocentes. Reitero aqui o que assinaleilogo no início, que tal especicidade sedene pela busca da cienticidade doconhecimento, construída pelo trabalhosistemático de captar as mediações e

18 Uma observação de duas ordens faz-se ne-cessária. A primeira é de que não se trataaqui de uma referência pessoal ao conse-lheiro, mas de sua representação de classe. A segunda é de que é preciso, sempre, ter-se

presente que os milhares de trabalhadoresque atuam neste sistema vendem a sua forçade trabalho como qualquer outro trabalha-dor.

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determinações que nos permitem apre-ender a explicação mais el possível emrelação ao que investigamos.

Nisso que nos identica, teríamos

conseguido enfrentar a tendência dosditames mercantis presentes no siste-ma educacional brasileiro e herdadosda década de 1990 ou fomos tambémpautados por eles? Essa pergunta não éretórica, pois os temas escolhidos pela ANPEd como referências, no início dadécada, indicam um estado de alerta eum posicionamento crítico em relaçãoao que sucedera nas décadas passadas,mormente a de 1990.

Com efeito, em 2001, o temaabordado por Francisco de Oliveira ver-sou sobre “Intelectuais, conhecimentoe espaço público”.  Ao demonstrar aevolução das especializações, nosso con-ferencista destaca um célere processode transformação do conhecimento emmercadoria e, consequentemente, o en-

curtamento do espaço público e, ao mes-mo tempo, a redução do conhecimento àintoxicação de informações, provocandoa perda de sua radicalidade. “Pareceque dispomos de todas as informaçõespara operarmos a aventura do conheci-mento. Mas esta intoxicação provoca ocontrário. […] Cria um movimento mi-mético que se repete incessantemente”(Oliveira, 2001, p. 127).

O calcanhar de Aquiles, paraquem atua nas ciências sociais e hu-manas, segundo Oliveira, é que “nossasinvestigações passam a ser medidaspelo metro da produtividade. […] É omesmo metro que mede a produção deuma mercadoria. Há pouca diferença,ainda, entre elas. Tratemos de preser- var essa diferença” ( idem, p. 228).

Dois anos depois, o tema de aber-tura da reunião anual, abordado porMarilena Chaui, foi “A universidade

pública sob nova perspectiva”. Comoutro recorte, a análise de Chaui coin-cide com a de Oliveira sobre o processode mercantilização do conhecimento e

do trabalho docente. O ponto centralde sua análise foi o processo que vemtransformando a Universidade pública,instituição vinculada ao Estado republi-cano, em organização social, prestadora deserviços ligada ao mercado. Ao subtrairsua referência da esfera pública, terre-no dos direitos universais, e ser referidaao mercado, a Universidade perde suaautonomia intelectual, institucional enanceira. Por isso, a sua produção pas-sa a ser medida ou avaliada em funçãodos critérios produtivistas do mercado.

Das várias consequências queChaui retira de sua análise, destacoduas que incidem diretamente sobre oque nos interpela como pesquisadores edocentes, e de forma radical. Referindo--se à análise de David Harvey sobre a

acumulação flexível que se expressanum processo produtivo fragmentadoe disperso, no espaço e no tempo, ereunicado no efêmero e fugaz, Chauimostra-nos como isso incide na produ-ção intelectual. “Para participar dessemercado efêmero, a literatura, porexemplo, abandona o romance peloconto, os intelectuais abandonam o livro

pelo paper” (Chaui, 2003, p. 11). A segunda consequência refere-seaos pontos que nos traz como desaosa enfrentar para reverter a lógica mer-cantil da Universidade operacional. Équando Chaui destaca que isso “depen-de de levarmos a sério a ideia de forma-ção” (idem, p. 12) e a “revalorização dadocência, desprestigiada e negligenciadacom a chamada ‘avaliação da produtivida-

de quantitativa’ ( idem, p.14).  Ao contráriodo paper, do efêmero, do fugaz e descar-tável típico da cultura pós-moderna do

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capitalismo tardio,19 como condição paraefetuarmos essa reversão, Chaui destacaa necessidade de conhecimento dos clássi-cos e sua contribuição para entendermos

as mudanças atuais que, diferentes dodiscurso em voga que nos fala de umasociedade de incerteza, signicam que vivemos tempos de insegurança.20 

Por mais incômoda que seja a con-clusão do balanço com respeito ao quenos compete na pós-graduação em nossaárea, ainda que não apenas nela, o fatoé que as densas preocupações trazidaspor Oliveira e Chaui, no início da dé-

cada de 2000, não foram tomadas comoagenda fundamental de embate. Dessemodo, lembrando o lósofo, poeta líricoe satírico romano Horácio, poderíamosdizer: “Quid rides? Mutato nomine, de te

  fabula narratur”.21

Ou seja, o pensamento mercantilda universidade operacional nos tomouquase por completo. Vale dizer, cons-

ciente ou inconscientemente, entramosno mercado do conhecimento, do ensinoe da pesquisa e nos submetemos aos

19 Para uma densa análise sobre o pós-moder-nismo como expressão cultural do capitalis-mo exível e fragmentado, um capitalismotardio, ver Jameson (1996).

20 Não há espaço aqui para relacionar o discursoultraconservador com a adoção ampla em nos-so meio das tendências de cunho pós-moderno

por representarem uma fuga da historicidadedo real. Não se trata de negar a particularida-de e as diferenças, mas, pelo contrário, do fatode serem tratadas separadas de uma estrutu-ra social ou totalidade histórica (Kosik, 1986)que nos permitam apreender seu sentido. Daíresulta uma visão fragmentada e supercial darealidade social e educacional e, consequente-mente, um reforço às visões conservadoras,ainda que não seja esta, mormente, a inten-cionalidade. Ver, a esse respeito, Fontes(2002),

Frigotto (2002), Jameson (1996,1997) e An-derson (1999).21 “Por que ris? A anedota fala de ti, só que com

outro nome” (Sátiras, Horácio).

critérios da mensuração mercantil.“E uma mercadoria se reproduz pelamimese, pela sua homogeneização; amercadoria recusa a diferença, recusa

o diverso, recusa o plural, a mercadoriaé univocidade” (Oliveira, 2001, p. 127).  A mercadoria é a reicação, o fetiche ea alienação em ato.

Para o mercado não há sociedade,há indivíduos em competição. E para omundo da acumulação exível, não hálugar para todos, só para os considera-dos mais competentes, os que passampelo metro que mede o tempo fugaz da

mercadoria e de sua realização. As consequências disso são mais

que visíveis em vários aspectos. Nossoscursos tornam-se cada vez mais elitistas.Neles percebo um duplo processo demutilação e atroamento de capacidadesintelectuais. Por um lado, os jovens dou-tores, para atuarem na pós-graduação,têm crivos cada vez mais renados de

ingresso. Por outro, os pesquisadoresque não resistem a essa pressão ou quese recusam a se enquadrar nessa lógi-ca, não sem humilhação, ou saem ousão convidados a sair. O fundamentalpara muitos pró-reitores e programasde pós-graduação é atingir o máximode pontos da escala de 1 a 7, mesmoque saibamos que a lógica dos indica-dores se funda na visão positivista efuncionalista de conhecimento e que,de antemão, se saiba que há um efeitotrava ou gangorra para que apenas unsquem no topo.

Tomando por foco a nossa pro-dução acadêmica, constata-se que cada vez menos produzimos livros que sejamfruto de longos anos de pesquisa e, emseu lugar, produzimos artigos, papers. Já

não há tempo para a formação de jovenspesquisadores e docentes ancorados naleitura dos clássicos. O tempo de nossa

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produção de pesquisadores, das teses edissertações que se elaboram, não estámais referido à cienticidade que nospermita compreender como a realidade

educacional se produz e à sua relevânciasocial, política, cultural e humana. Aocontrário, aprisionamo-nos ao cronô-metro da “pedagogia dos resultados” edeslizamos na intoxicação e fugacidademercantil de informações. Produzimos,enm, pouco conhecimento.

Isso nos dificulta ou anula, emgrande medida, no sentido de contribuirde forma radical para “abrir os circui-tos de nossa história” a novas relaçõessociais de caráter socialista e nos deixadistantes do enfrentamento daquiloque, para o historiador Eric Hobsbawm,é a questão fundamental do século XXIpara o futuro humano.

Se pensarmos em termos de como“os homens fazem a própria histó-

ria”, a grande questão é a seguinte:historicamente comunidades e siste-mas sociais buscam a estabilizaçãoe a reprodução criando mecanismoscontra saltos perturbadores no des-conhecido. Como, então, humanose sociedades estruturados para re-sistir a transformações dinâmicasse adaptam a um modo de produção

cuja essência é o desenvolvimentodinâmico interminável e imprevisí- vel? (Hobsbawm, 2010, p. 4-6)

Se a razão me leva a um balançopessimista, não é para apostar no quanto

 pior melhor ou conduzir a uma postura deimobilismo, quer pela adoção da atitu-de da  bela alma, quer do  comissário. Pelocontrário, não só pela especicidade de

nosso trabalho de formação e de pesqui-sa, mas por seu vínculo ético-político,cabe-nos buscar caminhos de superação

como tarefa de cada um e coletiva. Osdesaos colocados por Marilena Chaui eFrancisco Oliveira, no início da década,permanecem na agenda, bem como a

lição da geração de Florestan, que nosconvida a perguntar: o que queríamos,porque erramos e quais as lições quedevemos tirar para o presente e parao futuro?

O horizonte apontado por Flo-restan Fernandes para essa tarefade superação “é o de nos repor, comointelectuais, nas relações e conflitosde classe”. Mas, ele sublinha, e eu, natrilha de suas lições, reitero: “de nadaadiantará uma retórica ultrarradical,de condenação ou de expiação. O inte-lectual não cria o mundo no qual vive.Ele faz muito quando consegue ajudar acompreendê-lo, como ponto de partidapara a sua alteração real” (Fernandes,1980, p. 231). É desao – urgente e ne-cessário – para cada um de nós e para a

 Associação em seu conjunto. Assim vejoe compartilho com meus pares.

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GAUDÊNCIO FRIGOTTO, licenciado ebacharel em losoa (1971). Licenciadoem pedagogia. Mestre em educaçãopela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ)(1977). Doutor em Ciências Humanas:História, Política, Sociedade pela Ponti-fícia Universidade Católica de São Pau-

lo (PUC-SP) (1983). Professor titular(aposentado) pela Universidade FederalFluminense (UFF). Atualmente é pro-

fessor do Programa de Pós-Graduaçãoem Políticas Públicas e Formação Hu-mana da Universidade do Estado do Riode Janeiro (UERJ), pesquisador A1 no

CNPq. Sócio fundador da ANPEd. Temexperiência na área de educação, comênfase em fundamentos econômicos epolíticos da educação, atuando princi-palmente nos seguintes temas: teoriae concepções de educação, trabalhoe formação humana, conhecimento etecnologia, classe social, movimentossociais e educação e políticas públicas

em educação profissional, técnica etecnológica. Autor ou coautor de maisde vinte livros, entre os quais se desta-cam: A produtividade da escola improdutiva (São Paulo: Cortez Editora, 1984,atualmente na 9ª ed.);  Educação e crise

  do capitalismo real (São Paulo: Cortez,1994, atualmente na 6ª ed.; Organizou

 Educação e crise do trabalho: perspectivas

de nal e século (Rio de Janeiro: Vozes,1998, atualmente na 9ª ed.); OrganizouTeoria e educação no labirinto do capital (Riode Janeiro: Vozes, 2000, atualmente na2ª ed); Organizou  A formação do cidadão  produtivo: a cultura do mercado no ensino

médio técnico (Brasília, INEP, 2006). E-mail: [email protected]

Recebido em novembro de 2010 Aprovado em janeiro de 2011

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Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI

No presente texto, efetiva-se um balanço crítico das políticas e concepções

educacionais que marcaram a primeira década do século XXI. Com base no pres-

suposto de que o que marca uma conjuntura não é o tempo cronológico, mas os

acontecimentos que a constituem, a análise concentra-se nos oito anos do Governo

Luiz Inácio Lula da Silva. No balanço desse período, busca-se não cair na armadilha

do discurso antinômico da mera continuidade e descontinuidade em relação à década

de 1990. No conteúdo básico do texto, discutem-se os embates e opções em torno do

projeto societário que marcam a conjuntura da década e como se move a educação

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Resumos|abstracts|resumens

neste contexto. Destacam-se os avanços signifcativos nas políticas assistenciais,

relativa distribuição de renda, retomada dos concursos públicos e a criação de novas

universidades públicas e Institutos Federais de Educação Tecnológica, mas sublinha-se

que o governo não disputou a concepção pedagógica e, como consequência, o ideário

produtivista e mercantilista, paradoxalmente, foi dominante em todos os níveis dosistema educativo. Nota-se, por fm, que a ANPEd, cujo trabalho específco é a busca da

cientifcidade do saber e, portanto, do sentido histórico, social, cultural e ético-político

de sua produção, dominantemente, sucumbiu ao produtivismo.

Palavras-chave: conjuntura; projeto societário; educação; mercantilização;

produtivismo.

The history tracks and the balance of education on Brazil in the first decade of 21th century

This text is an effective critical balance of the educational policies and concepts that marks the

  rst decade of 21 century. The analysis focuses on the eight years of the Luiz Inácio Lula da Silva government, based on the premise that it marks juncture is not the chronological time but the events that

 constitute it. This study try to escape of the antinomic discourse that to deal only the continuity and 

 discontinuity about the 1990 decade. The bases of this text is the analysis of the clashes and options

 about the society project that marks the decade juncture and how to develop education in this period.

 Are focused the signicant advances in care policies, income distribution, opening of government

 jobs and the creation of new public universities and Federal Institutes of Technological Education. Is

 important to realize that the productivist and mercantilist thought were dominant at all the levels of 

the education system. And, nally, through the analysis, is possible to realize that  a npe d − whose

the specic works is to nd the scienticity of knowledge and, therefore, of historic, social, cultural,

 etics and politics sense of his production − collapse to productivism. Key words: juncture; society project; education; commodication; productism

Los circuitos de la historia y el balance de la educación en Brasil

en la primera década del siglo XXI

 En el presente trabajo se realiza un balance crítico de las políticas y conceptos de la educa-

 ción que marcaron la primera década del siglo XXI. Teniendo en cuenta de que lo que marca una

 coyuntura no es el tiempo cronológico, y sí los hechos que la constituyen, el análisis se concentra en

los ocho años del gobierno de Luiz Inácio Lula da Silva. En el balance de este período se busca no

 caer en la trampa de un discurso de antinomia de la simple continuidad y discontinuidad en relación a la década de 1990. En el contenido básico del texto se discute las adversidades y oposiciones en

 relación al proyecto social que marca la coyuntura de la década y como se moviliza la educación en

 este contexto. Se destacan avances signicativos en las políticas asistenciales, relativa distribución de

 renta, retomada de los concursos públicos y la creación de nuevas universidades públicas e Institutos

 Federales de Educación Tecnológica, sin embargo se resalta que el gobierno no disputó la concepción

 pedagógica y, como consecuencia, el ideal productivo y mercantilista, paradojalmente, fue dominante

 en todos los niveles del sistema de educación. Se nota, por n, que la Asociación Nacional de Pesquisa

  y Postgrado en Educación (ANPEd), cuyo trabajo es la busca cientíca del saber y, por tanto, del

 sentido histórico, social, cultural y ético político de su producción, dominantemente, sucumbió al productivismo.

 Palabras claves: coyuntura; proyecto social; educación; mercantilización; productivismo