cinema na internet. espaços informais de circulação, pirataria e cinefilia

255
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL ANGELA MARIA MEILI CINEMA NA INTERNET. ESPAÇOS INFORMAIS DE CIRCULAÇÃO, PIRATARIA E CINEFILIA Porto Alegre 2015

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Tese de Doutorado, 2015.Comunicação Social, PUCRS. Resumo Analisamos o fenômeno da circulação informal de cinema na internet, oferecendo uma orientação sistemática dentro do vasto universo das redes de distribuição que se encontram às margens do mercado oficial. A pirataria é estudada como uma atividade cultural que corresponde a uma gama de interesses coletivos de dimensão global e se relaciona com as políticas normativas, a crítica à propriedade intelectual, a desobediência civil, o mercado, as inovações tecnológicas, a cultura participativa e as economias informais. Fazemos um recorte no universo de circulação informal para analisar, especificamente, a relação entre as redes BitTorrent, a distribuição de cinema e a cibercinefilia, apontando para o caráter híbrido dessas redes, onde meios informais e formais convergem, elementos técnicos combinam-se, nichos e culturas globais dialogam, sensibilidades morais relativizam-se, discursos, práticas cotidianas e ações políticas se desenvolvem e onde mercados se transformam. Demonstramos que, dentro do espaço não autorizado de circulação, podem ser encontrados centros especializados de distribuição com dimensão simbólica própria, que manifestam sentidos sobre o cinema, que se desenvolvem sob a influência de um imaginário cinéfilo e multicultural.Autor: Angela Maria Meili

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL

    ANGELA MARIA MEILI

    CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE

    CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA

    Porto Alegre

    2015

  • ii

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL

    ANGELA MARIA MEILI

    CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE

    CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA

    Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva

    Orientador

    Tese apresentada como pr-requisito

    parcial para a obteno do ttulo de

    Doutor em Comunicao Social, no

    Programa de Ps-Graduao em

    Comunicao Social

    Data da defesa: 31.03.2015

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

  • iii

    CATALOGAO NA FONTE

    M513c Meili, Angela Maria

    Cinema na internet. espaos informais de circulao,

    pirataria e cinefilia / Angela Maria Meili. Porto Alegre, 2015.

    255 f.

    Tese (Doutorado) Faculdade de Comunicao Social,

    Ps-Graduao em Comunicao Social. PUCRS.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e

    Silva.

    1. Comunicao. 2. Cinema. 3. Pirataria. 4. Internet -

    Crimes. 5. Cinefilia. 6. BitTorrent Protocolo. I. Silva, Joo Guilherme Barone Reis e. II.Ttulo.

    CDD 791.43

    Bibliotecria Responsvel

    Ginamara de Oliveira Lima

    CRB 10/1204

  • iv

    ANGELA MARIA MEILI

    CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE

    CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA

    Tese de Doutorado em Comunicao Social

    Data de aprovao: 31.03.2015

    Banca Examinadora:

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva

    Orientador

    _________________________________________________________

    Prof. Dra. Miriam de Souza Rossini

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto Tietzmann

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Tiago Coelho Ferreto

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Tiago Ricciardi Correa Lopes

    Porto Alegre

    2015

  • v

    minha famlia, que apoiou e iluminou esta jornada acadmica.

    Aos amigos que inspiraram e questionaram.

    Aos professores e colegas, que apresentaram temas e novos campos de conhecimento na

    Comunicao, Letras e Cincias Sociais.

    Aos cineastas e artistas brasileiros, que lutam contra as adversidades materiais e polticas, pela

    riqueza da expresso cultural humana.

    Aos cinfilos, engajados no desenvolvimento das sensibilidades e do conhecimento sobre a

    stima arte.

  • vi

    Agradecimentos

    Agradeo minha me Neuza Meili, meu irmo Lucas Meili e minha cunhada Patrcia Nagliati

    pelo apoio incondicional. Ao meu orientador Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva por ter se

    engajado nas minhas ideias e estar aberto ao dilogo, auxiliando na conexo entre todos os pontos

    com os quais trabalhamos na pesquisa. minha orientadora de Estgio Sanduche no Exterior,

    Dra. Laura Rascaroli (University College of Cork, Irlanda), que acrescentou ideias essenciais para

    a pesquisa, acreditando na capacidade inovadora do trabalho. Aos docentes da Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul (UFRGS) que, atravs de suas disciplinas, ofereceram conhecimento de grande utilidade

    para a elaborao desse trabalho. Aos colegas do grupo UBITEC (PPGCom, PUCRS), que

    proporcionaram excelentes discusses, aprendizado e experincia ao longo dos quatro anos de

    formao deste doutorado. Agradeo, tambm, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior do Ministrio da Educao e Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do

    Sul pelo suporte financeiro, elemento fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa.

  • vii

    Resumo

    Analisamos o fenmeno da circulao informal de cinema na internet, oferecendo uma

    orientao sistemtica dentro do vasto universo das redes de distribuio que se

    encontram s margens do mercado oficial. A pirataria estudada como uma atividade

    cultural que corresponde a uma gama de interesses coletivos de dimenso global e se

    relaciona com as polticas normativas, a crtica propriedade intelectual, a desobedincia

    civil, o mercado, as inovaes tecnolgicas, a cultura participativa e as economias

    informais. Fazemos um recorte no universo de circulao informal para analisar,

    especificamente, a relao entre as redes BitTorrent, a distribuio de cinema e a

    cibercinefilia, apontando para o carter hbrido dessas redes, onde meios informais e

    formais convergem, elementos tcnicos combinam-se, nichos e culturas globais

    dialogam, sensibilidades morais relativizam-se, discursos, prticas cotidianas e aes

    polticas se desenvolvem e onde mercados se transformam. Demonstramos que, dentro

    do espao no autorizado de circulao, podem ser encontrados centros especializados de

    distribuio com dimenso simblica prpria, que manifestam sentidos sobre o cinema,

    que se desenvolvem sob a influncia de um imaginrio cinfilo e multicultural.

    Palavras-chave: Comunicao, Cinema, Circulao Informal, Internet, BitTorrent,

    Pirataria, Cinefilia.

  • viii

    Abstract

    This research analyses the phenomenon of informal film circulation on Internet, building

    a systematic orientation within the vast universe of distribution networks. Piracy is a

    cultural activity that corresponds to a range of collective interests of global dimension

    and relates to regulatory policies, critical intellectual property, civil disobedience, market,

    technological innovations participatory culture and informal economies. This study

    explores the relations between BitTorrent networks, cinema distribution and ciber-

    cinephilia, pointing to networks with hybrid nature, where informal and formal media

    converge, technical elements combine, niches and global cultures dialogue, moral

    sensibilities-relativize, speeches, daily practices and political actions are developed and

    where markets are transformed. We have shown that, within the space of unauthorized

    circulation, specialized distribution hubs have their own symbolic dimension, which

    manifest particular senses about cinema, under the influence of a movie buff and

    multicultural imaginary.

    Keywords: Communication, Cinema, informal circulation, Internet, BitTorrent, Piracy,

    Cinephilia

    ]

  • ix

    Lista de Tabelas

    Tabela 1: Filmes mais Baixados da Semana de 19.01.2014 ....................................................... 18

    Tabela 2: Percentual de Fluxo de Dados para Streaming. ........................................................... 45

    Tabela 3: Indexadores BitTorrent mais Populares ...................................................................... 59

    Tabela 4: Tipos de Sites Indexadores (elaborao do autor) ..................................................... 150

    Tabela 5: Comunidades Privadas de Torrent ............................................................................ 158

    Tabela 6: Top 20 filmes mais acessados MKO ......................................................................... 197

    Tabela 7: Top 20 Filmes Mais Comentados no MKO .............................................................. 204

    Tabela 8: Top 20 Filmes mais Antigos MKO ........................................................................... 224

  • x

    Lista de Grficos

    Grfico 1: Diagrama das variveis da circulao digital (elaborao do autor) .......................... 32

    Grfico 2: Diagrama das variveis do Netflix (elaborao do autor) .......................................... 33

    Grfico 3: Diagrama das variveis do YouTube (elaborao do autor) ...................................... 33

    Grfico 4: Diagrama das variveis do Crackle (elaborao do autor) ......................................... 34

    Grfico 5: Diagrama das variveis do Popcorn Time (elaborao do autor) .............................. 34

    Grfico 6: Diagrama das variveis dos Bundles BitTorrent (elaborao do autor)..................... 35

    Grfico 7: Aplicao do Diagrama da Circulao On-line para os GTPs ................................. 167

    Grfico 8: Disponibilidade dos Filmes Brasileiros do MKO na Loja Amazon.com ................. 196

    Grfico 9: Percentagem das reas de Formao dos Usurios do MKO .................................. 211

  • xi

    Lista de Figuras

    Figura 1: Diagrama da apropriao Tecnolgica na Circulao Informal de Filmes (elaborao

    do autor) ...................................................................................................................................... 41

    Figura 2: Logos do Google e do YouTube .................................................................................. 66

    Figura 3: Logos da Apple e ITunes ............................................................................................. 66

    Figura 4: Conjunto de Logos do Complexo Amazon .................................................................. 67

    Figura 5: Capa de Suzy Q (1999) ................................................................................................ 79

    Figura 6: Smbolo Sagrado e Slogan do Kopimismo. ............................................................... 129

    Figura 7: Pgina referente s categorias de contedo de site de Torrent Aberto Kickass.to ..... 151

    Figura 8: Pgina referente s categorias de contedo do site de Torrent Aberto Piratebay.se .. 152

    Figura 9: Interface do Indexador e Buscador de Pginas de Torrent Torrent.to ....................... 153

    Figura 10: Lista de Sites de Torrent Especializados em TV e Cinema no Indexador Torrents.to

    ................................................................................................................................................... 154

    Figura 11: Pgina referente s categorias de filmes disponveis no site de Torrents Verificados

    Take.fm ..................................................................................................................................... 155

    Figura 12: Exibio The Pirate Cinema .................................................................................... 156

    Figura 13: Tpicos do Frum de Convites Torrent-invites.com ............................................... 162

    Figura 14: Nuvem de Palavras BitTorrent News ...................................................................... 163

    Figura 15: Pgina Principal do Site de Convites Torrentinvitez.com ....................................... 165

    Figura 16: Pgina Principal do Site de Convites Torrentinvitez.com (continuao) ................ 166

    Figura 17: Categorias de Contedo e de Filmes do GTC KG ................................................... 169

    Figura 18 Interface da Pgina Principal do MKO ..................................................................... 172

    Figura 19: Gerador de Cdigos para a Postagem de Filmes no MKO ...................................... 176

    Figura 20: Menu Principal de Tpicos do MKO ....................................................................... 178

    Figura 21: Menu com Categorias de Temas Adicionais MKO ................................................. 179

    Figura 22: Nuvem de Palavras Dirio MKO ............................................................................. 183

    Figura 23: Frum de Pedidos do MKO ..................................................................................... 193

    Figura 24: Pgina do Filme O Som Ao Redor no MKO ........................................................... 198

    Figura 25: Pgina do Filme Febre do Rato no MKO ................................................................ 202

    Figura 26: Pgina do Filme Estmago no MKO ....................................................................... 205

    Figura 27: Pgina do Filme Lavoura Arcaica no MKO ............................................................ 208

    Figura 28: Pgina do Filme Out 1: Spectre no MKO ................................................................ 218

    Figura 29: Pgina do Out 1: Noli me Tangere no KG ............................................................... 219

  • xii

    Lista de Abreviaes

    ADSL: Asymmetric Digital Subscriber Line. Tecnologia de transmisso de dados atravs de

    linhas telefnicas

    CD: Compact Disc ou Disco Compacto. Mdia para armazenamento de 700 megabytes de dado

    digital.

    DivX: Codificador utilizado para a compactao de vdeo digital.

    DVD: Digital Versatile Disc ou Disco Digital Verstil. Mdia para armazenamento de 5 a 10

    gigagabytes de dado digital.

    FTP: File Transfer Protocol. Protocolo de comunicao padro para a transferncia de arquivos

    entre computadores sobre redes TCP.

    GTP: Grupo de Torrent Privado

    GTC: Grupo de Torrent Cinfilo

    HTTP: Hypertext Transfer Protocol. Protocolo para a formao de sistemas de informao

    hipermiditicos, que cria a ligao entre pontos contendo textos.

    IP: Internet Protocol. Regras de comunicao de dados e identificao entre mquinas na rede.

    IPTV: Televiso sobre IP. Transmisso de streaming atravs da internet diretamente para

    aparelhos de televiso.

    IRC: Internet Relay Chat. Protocolo de transmisso de mensagens de texto.

    KG: Grupo de torrent cinfilo hngaro

    MP3: Formato de digitalizao e compresso de udio.

    MPEG-4: Formato de digitalizao e compresso de audiovisual.

    MPAA: Motion Picture Association of America

    MKO: Grupo de torrent cinfilo brasileiro

    P2P: peer-to-peer. Qualquer tipo de troca de informao ou processamento ponto a ponto.

    P2PTV: Televiso peer-to-peer. Mtodo de transmisso streaming atravs de redes peer-to-peer.

    RIAA: Recording Industry Association of America

    RSS: Really Simple Sindication. Tecnologia informacional que agrupa e sumariza atualizaes

    de pginas da internet.

    TCP: Transmission Control Protocol ou Protocolo de Controle de Informao. Um dos

    protocolos de comunicao estruturantes da internet.

    VPN: Virtual Private Network ou Rede Privada Virtual. Rede de comunicaes privada.

    WWW: World Wide Web. Sistema de documentos integrados que compe a rede mundial de

    computadores.

  • xiii

    Glossrio

    Blog: Tipo de site da internet que permite rpida atualizao a partir de artigos, com espao para

    comentrios.

    BitTorrent: Tecnologia de transferncia de dados peer-to-peer.

    Browser: Programa de computador que permite o acesso a pginas da internet.

    Byte: Unidade de medida para referir-se aos volumes de dados digitais (1 megabyte = 106 bytes;

    1 gigabyte = 109 bytes.)

    Chat: Qualquer soluo ou protocolo de comunicao digital que permita a troca de textos

    simultnea entre dois ou mais usurios.

    Cloud Computing: Computao em nuvem. Servios de processamento e armazenamento

    remotos, na internet.

    Download/Downstream: Recebimento de dados para um computador local a partir da rede

    mundial de computadores ou de outro computador.

    Embedded Content: Quando o contedo ou funcionalidade de uma pgina da internet integrada

    em outra pgina.

    Feed: Formato de dados que se atualizam constantemente em uma pgina.

    Flash (Adobe): Tecnologia que permite executar animaes em navegadores da internet,

    incluindo vdeos.

    Frum: Tipo de site destinado a formao de comunidades e discusso.

    Isohunt: Site indexador internacional aberto de BitTorrent, criado em 2003.

    Leecher: Participante de uma transmisso BitTorrent que ainda no possui o arquivo completo

    Link: Ligao entre pginas da internet.

    Media Player: Programa de computador que reproduz de mdia digital.

    Proxy: Servidor intermedirio na internet, que media a relao entre os computadores e outros

    servidores.

    Ratio: Proporo upload/download de um usurio BitTorrent

    Screenshot: Foto retirada de um frame de vdeo ou filme a partir do que exibido na tela.

    Seedbox: Espao utilizado em um servidor para a transferncia de arquivos remota.

    Seeder: Participante de uma transmisso BitTorrent que j possui o arquivo completo

    Set-top-box: Equipamento que conecta o aparelho de televiso a uma fonte externa de sinal

    digital.

    Smart TV: Aparelho de televiso hbrido que integra a televiso internet e outros dispositivos

    digitais.

    Spam: Envio de informaes em massa em qualquer aplicao ou protocolo de comunidao

    digital.

    Spyware: Programa que recolhe sorrateiramente informaes de computadores pessoais e as

    envia pela internet para um servidor.

    Swarm: Processo que resulta no conjunto de peers envolvidos emu ma transmisso BitTorrent.

    The Pirate Bay: Site indexador internacional aberto de BitTorrent, criado na Sucia em 2003.

    Tracker (BitTorrent): Servidor que auxilia na comunicao entre os pares na transferncia de

    dados.

    Upload/Upstream: Envio de dados de um computador local para a rede mundial de

    computadores ou diretamente para outro computador.

  • xiv

    SUMRIO

    1. Introduo ........................................................................................................................................... 16

    1.1. Objetivos ................................................................................................................................... 20

    1.2. Justificativa ............................................................................................................................... 21

    1.3. Metodologia .............................................................................................................................. 24

    2. Ecologia das Janelas de Distribuio de Cinema na Internet ............................................................. 31

    2.1. Fundamentos da Tecnologia Digital e Solues Para Circulao do Audiovisual na Internet .. 36

    2.1.1. Streaming .............................................................................................................................. 44

    2.1.2. Cyberlockers ......................................................................................................................... 46

    2.1.3. Sites de Link ......................................................................................................................... 48

    2.1.4. Peer-to-peer .......................................................................................................................... 48

    2.1.5. BitTorrent ............................................................................................................................. 52

    2.2. A Circulao Formal ................................................................................................................. 61

    2.3. A Circulao Informal .............................................................................................................. 69

    2.4. Convergncias entre a Circulao Formal e Informal ............................................................... 73

    2.5. Pago vs. Grtis .......................................................................................................................... 79

    2.6. A dimenso da legalidade ......................................................................................................... 86

    3. Piratarias no plural: Discursos e Prticas. ........................................................................................... 88

    3.1. Propriedade Intelectual e Pirataria ............................................................................................ 88

    3.2. Pirataria: Discursos e Prticas ................................................................................................... 98

    3.2.1. A Viso Criminalista e a Guerra Contra a Pirataria .............................................................. 99

    3.2.2. O Papel da Pirataria no Mercado Informacional ................................................................. 111

    3.2.3. A Pirataria e a Liberdade de Expresso .............................................................................. 114

    3.2.4. Instabilidades da Noo de Autoria e o Impacto da Pirataria ............................................. 116

    3.2.5. Resistncia Cultural e Poltica e a Desobedincia Civil ..................................................... 118

    3.2.6. Pirataria como Meio de Acesso aos Bens Culturais, Aspectos Ps-Coloniais .................... 124

    3.2.7. Pirataria e a Religio do Kopimismo .................................................................................. 127

    3.3. Geopoltica da Circulao Informal ........................................................................................ 130

    3.4. O Brasil e as Transformaes Regulatrias no Cenrio de Crescimento da Internet .............. 142

    4. Cena BitTorrent e Cinefilia .............................................................................................................. 150

    4.1. Os Grupos de Torrent Privados ............................................................................................... 157

    4.2. Os Grupos de Torrent Cinfilos .............................................................................................. 167

    4.3. Apresentao do GTC Brasileiro MKO .................................................................................. 171

    4.4. Regras e Curadoria do MKO .................................................................................................. 183

    4.5. O Cinema Nacional no MKO .................................................................................................. 194

    4.5.1. 1 Filme brasileiro com maior acesso: O Som Ao Redor (Kleber Mendona Filho, 2012) 198

  • xv

    4.5.2. 2 Filme brasileiro com maior acesso: Febre do Rato (Claudio Assis, 2011) ..................... 202

    4.5.3. 1 Filme brasileiro mais comentado: Estmago (Marcos Jorge, 2007) ............................... 205

    4.5.4. 2 Filme brasileiro mais comentado: Lavoura Arcaica (Luiz Fernando de Carvalho, 2001) 208

    4.6. Formao Intelectual no MKO ............................................................................................... 210

    4.7. A Produo de Legendas Exclusivas pela Comunidade do MKO .......................................... 213

    4.8. Os GTCs e a Cibercinefilia ..................................................................................................... 214

    4.9. Os Arquivos e o Esprito Colecionador .................................................................................. 224

    5. Consideraes Finais ........................................................................................................................ 227

    Bibliografia ............................................................................................................................................... 234

    Lista de Filmes e Sries ............................................................................................................................ 245

    ANEXO: Pgina de Regras do MKO ....................................................................................................... 252

  • 16

    1. Introduo

    Dentro da trajetria da qual resulta esta pesquisa, desde o mestrado, temos o interesse em

    explorar e refletir sobre as relaes entre as limitaes tecnolgicas e polticas das mdias,

    as prticas desobedientes e informais de apropriao das tecnologias e o seu impacto na

    dimenso cultural e simblica da sociedade. Na dissertao Pragmtica dos Enunciados

    Televisivos: Um Estudo da Proibio e da Desobedincia Atravs dos Corpos Miditicos

    (IEL/UNICAMP, 2008), partimos do vis da pragmtica lingustica para observar os

    agenciamentos resultantes de uma postura ativa nas prticas de mdia desobediente,

    analisando especificamente o caso de uma televiso livre, a TV Piolho (2006-2011,

    Campinas, SP). Notamos que os condicionamentos polticos e tecnolgicos interferiam

    diretamente na elaborao dos enunciados e percebemos que a prpria existncia da

    enunciao dependia do domnio dessas ferramentas e de um posicionamento poltico

    ativo dos enunciadores. Vimos que uma performance televisiva livre ou pirata resultava

    em uma ampliao das possibilidades de produo de sentido atravs da viabilizao

    tecnolgica do registro e da transmisso.

    Com o desenvolvimento das redes BitTorrent e quase total substituio das mdias

    analgicas pelas digitais, surgiu o interesse em prestar maior ateno nessas redes e

    ampliar o nosso conhecimento sobre a pirataria na internet e as prticas miditicas

    informais e desobedientes relacionadas ao audiovisual digital. Optamos, ento, por

    abordar o tema da circulao informal do cinema na internet, desenvolvendo um olhar

    sistemtico sobre a ecologia das janelas de distribuio, considerando elementos

    fundamentais, como tecnologias, regulamentaes, instituies, mercado e pblico.

    Exploramos, nesta tese, as dimenses discursivas e prticas da noo da pirataria a partir

    de uma anlise crtica da propriedade intelectual e seus desdobramentos ideolgicos.

    Aps um olhar geral sobre o fenmeno da circulao informal, analisamos manifestaes

    especficas, partindo para a investigao das cibercinefilias no mbito das redes

    BitTorrent, onde analisamos um grupo1 de torrent cinfilo (GTC) brasileiro (que ser

    1 Optamos por utilizar o termo grupo pois ele representa um carter mais pragmtico da organizao do

    que o termo comunidade, que tende a um carter mais amplo. Ainda, o grupo ir corresponder ao prprio

    site que, por sua vez, refere-se ao tracker.

  • 17

    denominado MKO), o qual atua como um ncleo informal e especializado de distribuio

    de cinema.

    Notamos que o cenrio da circulao informal de cinema resultado de um conjunto de

    ineficincias do mercado de distribuio, principalmente em pases perifricos, onde o

    nmero de salas de exibio restrito e as mdias fsicas possuem valor inacessvel e com

    lanamento limitado (BALZS e LAKATOS, 2012; CHIANG e ASSANE, 2008;

    ALMEIDA e BUTCHER, 2003; BARONE, 2011). A circulao informal de cinema e

    vdeo ocupa uma parte significativa do montante global consumido diariamente, pois a

    sua resilincia a possibilita atuar como agente massivo de distribuio do cinema,

    produzindo novas lgicas entre os setores envolvidos com a produo e distribuio desse

    produto cultural (GALLIO e MARTINA, 2013).

    Assim, a informalidade preenche espaos deixados pela distribuio formal, satisfazendo

    demandas e servindo aos interesses dos consumidores, a partir de solues que so, muitas

    vezes, ignoradas pela indstria (PONTE, 2008). A informalidade um ator competitivo

    no mercado, pois cria estratgias eficientes de atingir o pblico (DENT, 2012) e acaba

    representando uma ruptura de paradigmas na indstria cinematogrfica (IORDANOVA

    e CUNNINGHAM, 2012). Mais do que uma prtica, ela cria um cenrio, um campo de

    experincia com o vdeo, onde se formam audincias piratas (DE S, 2013), estas, alm

    de consumirem, tambm produzem um sistema paralelo de distribuio.

    A presena da pirataria de filmes nas redes digitais tornou-se expressiva somente a partir

    de meados dos anos 2000, com a superao de limitaes tcnicas, como a pouca largura

    de banda2, a falta de modelos eficientes de compresso (MP3, MPEG-4, DivX, etc.) e a

    precariedade da experincia visual (tela, cores, velocidade, armazenamento)

    (IORDANOVA e CUNNINGHAM, 2012). Ocorreu uma intensificao das cpias

    domsticas a partir da criao das mdias digitais (CDs e DVDs), gravadores caseiros,

    melhora das tecnologias de compresso de imagem e udio, seguidos da melhora da

    internet, dos monitores (que passaram a ser chamados de telas) e da convergncia entre a

    televiso e o computador.

    2 Quantidade de dados suportada pela rede.

  • 18

    A informalidade est relacionada com o grau de independncia em relao s regulaes

    dos governos ou corporaes (LOBATO, 2012), em sociedades mediadas por sistemas

    legais, que conferem direitos e proibies sobre a produo e circulao do audiovisual e

    tambm sobre o uso das tecnologias. Operadores informais criam redes complexas de

    amplo espectro (LEMOS, 2005), que formam agregaes em torno de interesses

    especficos (BOD e LAKATOS, 2012) e geram uma distribuio mais volumosa do que

    a oficial, com maior agilidade e diversidade (CARTER, 2013).

    Redes informais resultam da soma de um conhecimento coletivo e evidenciam claramente

    o que foi idealizado pelos entusiastas da internet e da computao pessoal (SCHFER,

    2011), um universo com muitas vias e muitos agentes contribuindo com a cultura da

    participao (JENKINS, 2006). A possibilidade de trocar informao e interagir na

    internet tambm abrangeu a mdia audiovisual e o cinema, que apareceram com maior

    heterogeneidade e conectividade. A diversidade de contedos compreende uma srie de

    nichos culturais, que so impulsionados pelas redes interativas (ANDERSON, 2006).

    Ao mesmo tempo em que o cinema conquista novos territrios a partir das tecnologias

    digitais e torna-se mais diversificado, interativo e independente (LIPOVETSKY e

    SERROY, 2009), as redes digitais tambm reproduzem e amplificam a voz do mercado

    do cinema impactadas pelo lanamento oficial dos filmes, por prmios, festivais e pela

    disponibilidade em outras mdias.

    Certamente, os meios tradicionais de distribuio e os circuitos dominantes do cinema

    tm um impacto direto nas redes informais, que so dependentes e influenciadas pela

    indstria. Se observarmos, na Tabela 1, os filmes mais baixados da semana do dia 19 de

    janeiro de 20143, logo aps a nomeao dos concorrentes ao Oscar 2014, veremos que a

    lista se divide entre grandes lanamentos recentes e filmes premiados ou indicados para

    o prmio da Academia de Cinema (em destaque na tabela). V-se a predominncia de

    filmes com maior visibilidade nas redes abertas de BitTorrent.

    Tabela 1: Filmes mais Baixados da Semana de 19.01.2014

    3 Torrent Freak. Top 10 Most Pirated Movies of the Week. 20.01.2014. Disponvel em

    Consultado 10.07.2014.

    1 O Lobo de Wallstreet (Martin Scorsese, 2013)

  • 19

    Fonte: Torrentfreak.com (consultado em 09.09.2014). Elaborao do autor.

    Por outro lado, em escala nem tanto massiva, mas tambm vasta, grupos de torrent

    privados compartilham e cultuam cinemas das mais diversas origens e pocas, os quais

    no esto e, muitas vezes, nunca estiveram sob os holofotes da grande mdia. Dessa

    forma, mesmo com a permanente desigualdade de foras no ramo cinematogrfico, existe

    a oportunidade de rearranjo das relaes de poder a partir da hiperconexo, que estimula

    novos laos e tambm multiplica os meios de chegada do contedo at o consumidor.

    Ainda que no ocorra a eliminao dos oligoplios miditicos (CUNNINGHAM e

    SILVER, 2013), possvel a entrada de novos competidores que experimentam o espao

    emergente de distribuio on-line e tm a chance de interferir tambm nos imaginrios

    culturais contemporneos. Nesse sentido, a distribuio (formal ou informal) um setor

    determinante da cultura cinematogrfica, que define quais filmes, quando e onde sero ou

    no vistos e isso tem um impacto profundo no imaginrio cultural e no mercado das

    atenes, que molda o espao da recepo.

    Devido dificuldade de adaptao das prticas tradicionais leis, regulamentaes e uma

    srie de modelos de troca comercial ao desenvolvimento tecnolgico, a velocidade de

    desenvolvimento da distribuio formal on-line relativamente lenta se comparada s

    prticas informais, que prestam um servio demandado pelo consumidor: contedo digital

    entregue a qualquer momento, de forma fcil, com baixo custo e variedade.

    2 A Vida Secreta de Walter Mitty (Ben Stiller, 2013)

    3 Capito Phillips (Paul Greengrass, 2013)

    4 Frozen: Uma Aventura Congelante (Chris Buck e

    Jennifer Lee, 2013)

    5 ltima Viagem a Las Vegas (Jon Turteltaub, 2013)

    6 Enders Game: O Jogo do Exterminador (Gavin Hood,

    2013)

    7 12 Anos de Escravido (Steve McQueen, 2013)

    8 Jogos Vorazes: Em Chamas (Francis Lawrence, 2013)

    9 O Grande Heri (Peter Berg, 2013)

    10 Trapaa (David O. Russell, 2013)

  • 20

    Na disputa de foras entre o consumidor, com suas demandas, e a eficincia do mercado,

    as ferramentas tecnolgicas passam a satisfazer a necessidade de acesso aos bens

    culturais, criando e formando pblico, produzindo imaginrios e conhecimento

    cinematogrfico, sem restringir-se cadeia econmica formal. A demanda do pblico

    participa muito mais ativamente aps a ruptura causada pelas mdias digitais, forando a

    existncia de meios mais eficientes de distribuio e engajando-se na informalidade, alm

    de transitar no contexto dado pela indstria.

    1.1. Objetivos

    A elaborao dos objetivos foi motivada pelos seguintes questionamentos:

    Como possvel definir e caracterizar o compartilhamento informal do cinema na

    internet?

    Quais os modos de se encarar a questo da pirataria e quais so suas consequncias

    prticas?

    Qual o impacto e a importncia das redes BitTorrent para a circulao do cinema?

    Como ela ocorre?

    Como situar os grupos de torrent cinfilos dentro de um cenrio de circulao

    informal to vasto e diversificado?

    Sendo fenmenos culturais, como esses grupos podem ser descritos? Como se

    organizam e qual contedo oferecem?

    Essas perguntas nos levaram a perceber a necessidade de, primeiramente, desenvolver

    uma viso mais geral do problema (a circulao informal do cinema na internet), a qual

    demanda por uma reviso estruturada acerca dos seus elementos fundamentais. A segunda

    necessidade, seria observar as manifestaes mais particulares do fenmeno (redes

    BitTorrent e cinema) e as suas correlaes com o contexto maior. Seguindo essas

    necessidades, definimos o objetivo geral:

    Explorar o fenmeno da circulao informal do cinema na internet,

    desenvolvendo um estudo compreensivo que considere seus elementos

    estruturantes (tecnologias, culturas, mercados, instituies e ideologias).

    Tendo conscincia da larga escala do fenmeno, definimos quatro objetivos

    especficos:

  • 21

    i) Desenvolver uma sistematizao do modo de olhar o universo da circulao

    informal na internet;

    ii) Oferecer uma abordagem mltipla sobre a pirataria, situando a problemtica a

    partir de uma perspectiva crtica, que considere posicionamentos discursivos

    e prticos heterogneos;

    iii) Desvendar um fragmento particular do cenrio, a partir da observao e

    anlise da circulao do cinema nas redes BitTorrent, especialmente os grupos

    de torrent cinfilos (GTC);

    iv) Compreender de que maneira os espaos informais podem se constituir

    enquanto plataformas organizadas e especializadas de distribuio de cinema.

    1.2. Justificativa

    Dado o recente desenvolvimento do fenmeno e a sua expressividade em termos

    quantitativos (MIZUKAMI, CASTRO, et al., 2011), considerando-se que, no Brasil,

    cerca de 20 milhes de pessoas esto engajadas em consumo no autorizado de mdia em

    redes informais (DE S, 2013), h a necessidade de pesquisas com estudos de exemplos

    particulares, onde possam ser observados, com maior detalhe, os modelos adotados pela

    circulao informal.

    Em 2013, durante o perodo de bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no Exterior

    (Capes/PDSE) na University College of Cork (Irlanda), tivemos a oportunidade de

    participar de dois eventos, os quais nos asseguraram sobre a relevncia da pesquisa, que

    se insere em um campo de preocupaes relacionadas ao cinema na era digital, o qual

    ainda requer maior explorao acadmica, devido ao seu alto impacto na cultura

    cinematogrfica.

    Paul McDonald, durante a European Film Cultures: An International Conference (Lund,

    Sucia, 8 e 9 de novembro de 2013), conferncia organizada pela Associao Europeia

    de Pesquisa e Ensino em Comunicao (ECREA), ressaltou a carncia de pesquisa

    acadmica sobre o tema. Segundo ele, esse lento desenvolvimento consequncia de uma

    dicotomia existente nas perspectivas analticas correntes e modelos de pesquisa:

    Pesquisa administrativa: normalmente coordenada pelos donos de contedo,

    com o objetivo de entender o ambiente virtual e o comportamento das pessoas

    com relao pirataria e ao compartilhamento digital. A pesquisa, nesse caso,

  • 22

    uma ferramenta para criar solues lucrativas de mercado e sistemas

    eficientes de proteo propriedade intelectual. J uma rea com algum

    desenvolvimento devido aos altos investimentos da indstria do

    entretenimento.

    Pesquisa acadmica: os estudos sobre a distribuio e recepo de cinema na

    academia, tradicionalmente, esto presos ao circuito oficial pr-internet, de

    modo que os estudos sobre circulao digital e informal ainda no esto

    suficientemente desenvolvidos. Esse campo de estudo necessrio pois

    encorajaria o entendimento crtico sobre os novos tipos de relao que o

    consumidor pode criar com o contedo cinematogrfico.

    Nossa pesquisa justifica-se por contribuir para a segunda perspectiva, chamando a

    ateno para a necessidade de se estudar a circulao informal do cinema e a sua relao

    com o consumidor em formas variadas de recepo.

    Durante o workshop World Cinema On Demand: Film Distribution and Education in the

    Streaming Media Era (Belfast, Irlanda do Norte, 10.11.13), no qual fomos convidados a

    apresentar nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de entrar em contato com outras

    pesquisas que corroboravam com a nossa abordagem, especialmente no painel Torrent

    Distribution and Online Piracy, com os trabalhos de Valentina Re (Universidade de

    Veneza) e Virgnia Crisp (Middlesex University). A rede de pesquisas formada pelo

    WCOD4 ressalta a necessidade de investigaes mais profundas no vasto territrio a ser

    explorado da circulao digital do cinema, que reorganiza os modos de apreciao e

    sensibilidade cinematogrfica, em consequncia das apropriaes tecnolgicas. Essas

    experincias nos incentivaram a explorar o tema e encontrar, dentro de um recorte

    especfico (as redes cinfilas BitTorrent), evidncias de um fenmeno cultural que

    caracterstico das relaes entre o cinema e a sociedade da informao.

    Autores apontam que as redes de circulao informal contribuem contra a maior ameaa

    de muitas cinematografias, que a sua obscuridade (CARDOSO, CAETANO, et al.,

    2012). A pesquisa sobre os GTCs acompanha a necessidade apontada por Bod e Lakatos

    4 Para maiores informaes sobre o workshop, consultar relatrio de Kapka (2013).

  • 23

    (2012, p. 441) de se analisar o potencial de distribuio das redes peer-to-peer (p2p) para

    cinematografias com menor potencial competitivo no mercado de cinema.

    Sugerimos que pensar a circulao informal a partir do dualismo legal vs. ilegal deixa de

    lado complexidades de relaes inerentes ao consumo cultural nos espaos digitais. A

    pirataria pode ser vista como um mal a ser extirpado ou mesmo como uma bandeira a ser

    levantada a qualquer custo; todavia, argumentos que somente servem a guerras de

    interesse reduzem o entendimento de um fenmeno que bastante revelador da relao

    do pblico com o consumo de cinema.

    Quanto lei, nota-se a sua ineficincia em delinear as regras do jogo em uma sociedade

    desterritorializada (ORTIZ, 1994), pois o crescente interesse pela circulao da

    informao e a multiplicao da viabilidade tcnica tornaram os modos de legislao

    atuais obsoletos (BENTLY, DAVIS e GINSBURG, 2010; OBERHOLZER-GEE e

    STRUMPF, 2009). Os estudos que resumem o download de bens culturais ao mbito da

    criminalidade negligenciam os aspectos macrossociolgicos envolvidos no tema, pois

    apenas consideram como o indivduo se posiciona perante a lei e no as implicaes ou

    relativizao da lei em um contexto histrico.

    J com relao economia, mesmo que o direito de propriedade intelectual seja

    necessrio para a existncia de um mercado, h ainda perspectivas que apontam para

    novas formas de lidar com a circulao, que poderiam resultar em mercados inovadores

    (LESSIG, 2004; MASON, 2009; ANDERSON, 2009 e 2006), desafiando modelos

    tradicionais. Tanto na lei, como na economia, os estudos movem-se no sentido do

    estabelecimento de agendas para a soluo do que considerado uma crise: a crise do

    direito autoral.

    Para alm da dualidade apresentada pelo aspecto da legalidade, nossa pesquisa justifica-

    se pela necessidade de se analisar uma srie de outros fundamentos para o problema, que

    precisam ser apontados, por exemplo, qual o tipo de contedo, onde e como ele circula e

    como atuam os agentes promotores. necessrio analisar com detalhes essas

    manifestaes culturais e que tipo de prticas desenvolvem, como por exemplo, a cultura

    de nicho que se apresenta no pblico de cinematografias nacionais e o acervo que se forma

    em curadorias colaborativas.

  • 24

    1.3. Metodologia

    Grande parte do nosso estudo se desenvolveu via navegao imersiva (SANTAELLA,

    2005) nas redes subterrneas, pelas quais deixamos poucos traos da nossa identidade.

    Como pesquisadores, de certa maneira, pirateamos esses dados e, como princpio tico,

    aqui formulando a nossa prpria tica pirata, preferimos nos referir ao objeto analisado

    com nomes fictcios ou siglas. A responsabilidade de entrar nas redes de pirataria e coletar

    os dados ali presentes para o seu estudo tambm requer princpios ticos, pois nossos

    informantes so annimos e assim devem permanecer.

    Todavia, no tratamos os personagens analisados como sujeitos individuais, mas como

    usurios participantes de uma enunciao coletiva (SILVERMAN, 2011), dos quais

    podemos apreender somente a informao deixada como um rastro, um registro nas redes

    piratas. No se trata de construir um perfil etnogrfico do sujeito, mas de etnografar a

    performance dos usurios especificamente no fenmeno/situao que nos interessa

    observar (ATKINSON e COFFEY, 2011), de onde o pesquisador retira impresses e as

    ordena a partir de um esquema interpretativo, que a prpria pesquisa.

    Certamente, consideramos que os usurios so sujeitos sociais e histricos, sendo a sua

    participao nas redes piratas um elemento que compe essa identidade, consequncia de

    determinaes contextuais relativas a cada indivduo. Todavia, por ora, obedecemos

    orientao metodolgica de considerar os usurios apenas no que deles podemos

    apreender diretamente na nossa fonte de dados, que so as prprias redes, onde se

    registram suas performances. Por isso, se consideramos que as redes so espaos de

    enunciao, o sujeito-enunciador contextualizado, tomado pragmaticamente na situao

    de sua ao enunciativa (AUSTIN, 1975; DERRIDA, 1973) e, para isso, nos basta

    considerarmos o registro dessa performance e desenvolver a anlise do que for possvel

    inferir a partir desses elementos.

    Teoricamente, temos algumas perspectivas dos estudos de comunicao que devem ser

    levadas em conta:

    a) A discusso colocada pelos estudos da recepo (ECO, 2010; HALL, 1973;

    2006) e suas consideraes crticas acerca da passividade do espectador, em

    que o carter interpretativo (WHITE, 1998) dos atos de leitura sugere a

  • 25

    possibilidade de escolha, seleo e opinio sobre os contedos recebidos da

    mdia de massa;

    b) Os estudos da cibercultura (LEMOS, 2002; LEVY, 1993; SANTAELLA,

    2005; 2010) que apontam para a viabilizao tcnica de emisso por parte do

    receptor e a emergncia de uma cultura colaborativa (JENKINS, 2006;

    NEGROPONTE, 1999);

    c) A crtica cultural (ADORNO e HORKHEIMER, 1985 [1944]; 2002;

    BENJAMIN, 1984) desenvolvida na apresentao da Indstria da Cultura

    enquanto elemento atuante na formao da identidade moderna

    (BOURDIEU, 1984; 1996; DELEUZE e GUATTARI, 1995; FOUCAULT,

    1981; 1987);

    d) A evidncia de uma cultura ps-massiva, que no rompe diretamente com

    o capitalismo monopolista, mas radicaliza e torna mais complexa a sua lgica

    (ANDERSON, 2009; 2006; ECO, 2008; LEMOS, 2007; LIPOVETSKY,

    2010; MAFFESOLI, 1999; MASON, 2009; SILVA, 2012).

    Temos o desafio de encontrar um caminho que no deixe de considerar essas

    interpretaes, pelo fato de que o pirata ainda um receptor (considerado leitor

    interpretante), por excelncia, dos contedos da indstria cinematogrfica, sofrendo um

    impacto grande dos mecanismos tradicionais de distribuio (BOD e LAKATOS,

    2012), mas atua, tambm, como emissor na esfera digital, que um espao rizomtico

    (DELEUZE e GUATTARI, 1995) de multiplicidade interativa.

    Trata-se de um tema que deve ser entendido como um fenmeno cultural inserido em um

    contexto social e histrico. O compartilhamento miditico informal motivado pela

    ineficincia dos mercados tradicionais centralizados (KOSNIK, 2012), pela insatisfao

    das demandas, pela desigualdade de acesso aos bens de cultura devido a limitaes

    socioeconmicas (CHIANG e ASSANE, 2008) e, consequentemente, so atividades

    inerentemente sociais, originadas no pblico (BOD e LAKATOS, 2012).

    No debate entre os modos de compreenso das estruturas polticas e econmicas nas

    mdias e a nfase nas apropriaes culturais (economia poltica da comunicao vs.

    estudos culturais), a questo principal no est na escolha entre um ou outro, mas no

  • 26

    questionamento de como os aspectos econmicos e polticos interferem na anlise do

    consumo cultural (GROSSBERG, 1995). Assim, aproveitamos os aspectos de ambas as

    abordagens para a formulao da nossa anlise, que so fundamentais para interpretar a

    complexidade do objeto que se apresenta.

    A economia poltica crtica tem no seu mais forte a explicao sobre

    quem fala para quem e quais formas esses encontros simblicos

    assumem nos espaos pblicos culturais majoritrios. Mas os estudos

    culturais, no seu melhor, tm valor ao falar como o discurso e a

    imaginao so organizados em padres de significados mutantes e

    complexos e como esses significados so reproduzidos, negociados e

    defendidos ao longo do fluxo cotidiano.5 (MURDOCK, 1995, p. 94)

    Nossa pesquisa se insere em um cenrio de profundas transformaes, de multiplicadas

    conexes, protocolos, linguagens, interfaces, aparelhos. As produes culturais no mais

    desembocam em uma via central, mas se ramificam em diversos espectros de circulao:

    os bytes passam por milhes de vias estruturadas e o movimento dos dados depende da

    imprevisibilidade do usurio. O rudo6 no se aplicaria somente a uma falha do canal, mas

    a um excesso, um paroxismo: fluxos assumem direes inesperadas, as origens e os

    destinos so muito menos recuperveis, geram uma circulao entrpica, em escala

    globalizada e mediada pelos sistemas de informao.

    Consideramos que a dinmica das trocas apenas relativamente estvel e altera-se com o

    tempo (STIEGLER, 1998), havendo uma interdependncia entre as transformaes da

    cultura e da tecnologia. Por isso, quanto compreenso das redes, foi necessrio situar o

    objeto de estudo dentro de uma ecologia complexa (SANTAELLA, 2010; LIPOVETSKY

    e SERROY, 2009).

    A anlise tomou uma perspectiva qualitativa7, compreendendo o fenmeno enquanto uma

    materialidade textual a ser interpretada, composta por elementos lingusticos, semiticos

    5 Critical political economy is at its strongest in explaining who gets to speak to whom and what forms

    these symbolic encounters take in the major spaces of public culture. But cultural studies, at its best, has

    much of value to say about how discourse and imagery are organized in complex and shifting patterns of

    meaning and how these meanings are reproduced, negotiated, and struggled over in the flow and flux of

    everyday life. [traduo nossa]

    6 Na sistematizao da Teoria da Informao (SHANNON e WEAVER, 1949), o rudo est presente como

    manifestao do canal, que distorce a mensagem.

    7 Ainda assim, no deixamos de incluir uma srie de informaes quantitativas, mas que no representam

    nosso foco principal.

  • 27

    e tambm tecnolgicos. Empreendemos uma interpretao das informaes encontradas

    na plataforma, incluindo a sua arquitetura informacional, a interao entre os usurios e

    a formao do arquivo.

    Consideramos que grupos de torrent cinfilos so uma manifestao, entre outras, da

    evoluo das tecnologias digitais e da sociedade em rede, conectada com a histria

    cultural e os modelos anteriores de representao simblica, desde o texto escrito,

    passando pela msica, pela fotografia e o cinema (MANOVICH, 2001). Ela tambm

    estabelece relao com as outras mdias e modos de distribuio, sendo alimentada por

    mltiplos canais.

    A base de dados dos grupos de BitTorrent alimentada pelo trabalho humano voluntrio,

    incluindo digitalizao ou cpia, seleo, traduo, categorizao, organizao e um

    processo constante de formalizao do banco de dados e da interface do website. So

    redes humanas, onde cada um, com seu computador, em sua casa ou grupo social, publica

    comentrios, distribui convites, navega pela interface atravs do banco de dados e o

    alimenta com filmes adquiridos em canais oficiais e no oficiais de distribuio, em

    qualquer mdia disponvel.

    O nosso objeto de anlise , por definio, simblico; uma agregao de significados

    passvel de observao, cuja interpretao ir associ-la ao seu contexto histrico e

    suporte tecnolgico. A interpretao feita a partir dos registros dos processos

    sociointerativos que ocorrem nos sistemas e cuja temporalidade cumulativa as

    interaes vo sendo registradas e acumuladas ao longo do tempo em pginas e fruns.

    O papel da pesquisa identificar, no fenmeno, aspectos que tenham maior relevncia

    para o entendimento da circulao do cinema nas redes digitais. Uma anlise qualitativa

    do objeto requer no apenas considerar o que ele significa, ou seja, tentar desvelar ou

    descobrir um significado essencial do fenmeno, mas considerar questes de linguagem,

    representao e organizao social (SILVERMAN, 2011) de forma contextualizada.

    No caso especfico desta pesquisa, adotamos a posio de observadores e tambm

    usurios dos grupos. Os pesquisadores, alm de navegarem pelos tpicos das pginas,

    lendo os debates, acessando o acervo e todas as informaes que esto abertas para o

    usurio comum, tambm utilizam as ferramentas de download de torrents, pesquisa de

    filmes, comentrios em tpicos e participam de encontros presenciais com a comunidade.

  • 28

    No utilizamos a tcnica da entrevista pois consideramos a quantidade de material

    disponvel na rede suficiente para uma exaustiva leitura do fenmeno. A opo por no

    utilizar essa tcnica justifica-se por estarmos interessados em tomar o usurio diretamente

    no seu papel de enunciador nos tpicos especficos no contexto interativo do site; ou seja,

    focamos a anlise em temas, questes e processos interativos que ocorreram atravs da

    mediao das pginas, que o objeto de principal interesse.

    Esta pesquisa de observao constitui uma atividade etnogrfica, no momento em que o

    pesquisador produz um texto interpretativo, cuja origem a experincia perceptiva com

    o objeto/fenmeno, o que se formaliza atravs de processos cognitivos, originados dessa

    percepo em direo racionalizao sistemtica dos dados um processamento do

    olhar. A etnografia, sendo uma metodologia, no apenas um instrumento de coleta de

    dados, mas depende da interpretao do pesquisador, que sempre leva consigo traos de

    influncias culturais (GOBO, 2011), sejam elas colonizadas ou ps-colonizadas.

    Considera-se que todo tipo de observao participante, pois envolve a percepo e a

    cognio de quem observa, sendo uma experincia de entrega sensorial (MERLEAU-

    PONTY, 1999). Mesmo que o pesquisador no interfira diretamente no fenmeno

    descrito, ele torna essa existncia vivel como registro histrico e cientfico a partir do

    seu texto. A participao do pesquisador est no fato de que este tambm vive a

    sistematicidade histrica e conceitual do fenmeno.

    Navegamos no espao da circulao informal do audiovisual, nas redes de pirataria, nas

    redes cinfilas, no mundo obscuro dos torrents privados, no somente analisando-os, mas

    sendo tambm usurios-participantes. O pesquisador observador teve uma participao

    discreta e direcionada por uma navegao motivada por interesses especficos da

    pesquisa.

    A etnografia da internet est condicionada especialmente por variveis tecnolgicas e

    processos interativos/semiticos dinmicos. Os fenmenos digitais so manifestaes

    discursivas, cujas textualidades dependem das condies de consumo e produo e

    estabelecem uma densa rede referencial (contexto sociossimblico), alm de possurem

    aspectos essencialmente formais (ATKINSON e COFFEY, 2011). Essa textualidade o

    elemento atravs do qual a participao ocorre nas comunidades, por onde se manifesta

    o engajamento do usurio no sentido de que o texto/discurso tambm ato, performance

    (AUSTIN, 1975). O processo de construo de significado d-se com base em um

  • 29

    conjunto de atributos culturais inter-relacionados (CASTELLS, 1996); atores que

    promovem associaes, movimentam mediaes e constroem sentidos.

    A abordagem metodolgica para essa leitura enfatiza o aspecto do uso e da funo dos

    enunciados e ferramentas da comunidade, observando como os documentos so recursos

    utilizados por atores humanos dotados de propsitos, considerando o seu impacto em

    esquemas de interao e organizao social (PRIOR, 2011).

    Outra especificidade de uma metodologia de pesquisa da internet a anonimidade,

    especialmente no caso do estudo da pirataria. Por isso, os enunciados so considerados

    apenas quanto participao do usurio no contexto especfico, onde ele adota a

    identidade virtual. Quanto comunidade analisada, a anonimidade no total, no sentido

    de que h, ocasionalmente, encontros presenciais dos grupos, mas as identidades so

    preservadas no mbito dessas subcomunidades (haja visto que a abrangncia da

    comunidade virtual maior do que os subgrupos que se encontram presencialmente).

    Tomamos o objeto de anlise enquanto um meio de comunicao e distribuio

    geograficamente disperso, temporalmente malevel, annimo, multimodal (tecnologias,

    recursos e interfaces), alm de uma construo social (MARKHAM, 2011).

    Por fim, os meios de comunicao, ou as mediaes, no so um fenmeno a mais na

    sociedade, um campo adicional nos estudos sociolgicos, mas afetam condies gerais

    de possibilidade (GALLOWAY, THACKER e WARK, 2014) da vida humana e alteram

    a prpria forma dos estudos sociais. Os recursos interpretativos precisam lidar com as

    interaes tecnolgicas e simblicas dos media, que compem parte fundamental do

    fenmeno social (seja nas suas formas estabilizadas ou as constantes revolues

    provocadas por inovaes, ao longo da histria). Por isso, os media so objetos

    conceituais (ibid.), que integram fenmenos de escala maior, mas que podem ser

    particularmente lidos e objetivamente interpretados.

    Levando em considerao essas observaes metodolgicas, estruturamos o estudo em

    trs partes: i) estabelecimento de um olhar sistemtico sobre o cenrio da circulao

    informal, considerando seus elementos estruturantes; ii) discusso sobre o tema da

    pirataria, a partir de uma anlise crtica dos seus discursos e prticas; iii) observao e

    anlise das relaes entre as redes BitTorrent e a circulao de cinema, a partir do recorte

    especfico dos grupos de torrent cinfilos. O que resulta na seguinte estruturao da

    pesquisa:

  • 30

    O captulo Ecologias das Janelas de Distribuio de Cinema na Internet oferece

    estratgias para situar solues especficas de circulao informal dentro do

    cenrio vasto e diversificado do fenmeno. Para isso, traz pesquisa bibliogrfica

    e emprica sobre a circulao digital e descreve o espao a partir das variveis

    informal/informal, grtis/pago, legal/ilegal e tecnologias.

    O captulo Piratarias no Plural: Discursos e Prticas procura esclarecer as

    diferenas entre uma srie de abordagens relacionadas pirataria, a partir de uma

    reviso bibliogrfica e histrica da propriedade intelectual, da diversidade de

    prticas piratas e dos posicionamentos institucionais, polticos e ideolgicos. O

    objetivo desenvolver uma crtica viso estritamente criminalista da pirataria,

    estabelecendo a conexo direta entre discursos e prticas, no sentido de que os

    discursos tm uma funo prtica de inaugurar um estado de coisas (AUSTIN,

    1975; FAIRCLOUGH, 1995). Nesse captulo, seguimos a classificao de Ramon

    Lobato (2012) de faces da pirataria (como roubo, empresa, liberdade de

    expresso, autoria, resistncia e acesso), fazendo um aprofundamento das

    variveis propostas pelo autor e acrescentando a noo de pirataria como religio,

    alm de especificaes geogrficas do tema.

    O captulo Cena Torrent e Cinefilia apresenta a descrio e anlise de um GTC

    especfico (MKO), localizando-o no cenrio dos GTPs, descrevendo esse modelo

    de distribuio informal, da comunidade e a estruturao do site. So discutidas

    as regras de curadoria, a forma de aparecimento do cinema brasileiro, a relao

    entre o grupo, o fenmeno das cinefilias na internet (IORDANOVA e

    CUNNINGHAM, 2012; ROSENBAUM, 2010), o modelo cineclubista e o acervo.

  • 31

    2. ECOLOGIA DAS JANELAS DE DISTRIBUIO DE

    CINEMA NA INTERNET

    O cinema, no sculo XXI, circula pelos mais variados ambientes e tecnologias, desde

    salas de exibio (modo tradicional), festivais, locao e cpia de mdias fsicas, at a

    transmisso televisiva e o ambiente digital, seja no mbito oficial (comercial) ou extra

    oficial. A circulao do cinema muito mais ampla do que a sua distribuio, que uma

    atividade profissional baseada na concesso de direitos sobre a explorao comercial de

    um produto e corresponde a somente uma parte da complexa rede de circulao e

    recepo nas diversas telas e mdias.

    No ambiente digital, a circulao assume propores ainda maiores e participa da

    ecologia das mdias (SANTAELLA, 2005), a qual podemos tambm nos referir como

    ecologia das telas (LIPOVETSKY e SERROY, 2009) ou janelas de exibio.

    A comunicao digital inclui vrios tipos de formatos culturais (MANOVICH, 2001),

    signos hbridos, ambientes multidimensionais que so redes de interao social via

    imagem tcnica. Esse tipo de interao sugere um modo de ser baseado em pactos

    estticos e conexes (MAFFESOLI, 2009), em relaes menos institucionalizadas e de

    contratos ticos fluidos e negociados.

    A informalidade e a formalidade coexistem neste cenrio complexo, onde circulam

    volumes gigantescos de dados, por inmeras vias. Pesquisas vm sendo feitas com a

    inteno de mapear os territrios de circulao do cinema na internet, apontando para as

    complexidades e incertezas do ambiente formal de circulao, em estgio inicial de

    desenvolvimento enquanto indstria (CUNNINGHAM e SILVER, 2013), e para a

    abrangncia e importncia das redes informais que satisfazem eficientemente uma parte

    considervel da demanda (CARDOSO, CAETANO, et al., 2012; LOBATO, 2012;

    IORDANOVA e CUNNINGHAM, 2012).

    No consta, entre nossos objetivos, o mapeamento da circulao do cinema na internet,

    mas sim a proposio de referncias que nos situem sistematicamente no contexto dessa

    ecologia de circulao. Estabelecemos elementos de orientao que localizam as variadas

    solues existentes e revelam aspectos estruturantes da circulao informal.

    Apresentamos como forma de sistematizar a anlise da ecologia da circulao informal,

    o seguinte diagrama (Grfico 1), no qual cada tipo de soluo para a

  • 32

    circulao/distribuio de vdeo na internet pode ser representado como um arranjo

    particular dessas variveis, quais sejam: a) tecnologia, b) dualidade formal e informal, c)

    dualidade pago e grtis, d) dualismo colocado pelos discursos normativos (legal vs.

    ilegal).

    O diagrama baseou-se no quadro apresentado por Valentina Re, durante workshop World

    Cinema On Demand: Film Distribution and Education in the Streaming Media Era

    (Belfast, Irlanda do Norte, 10.11.13), no qual a autora associou as variveis formal e

    informal de Lobato (2012) s variveis grtis e pago. Elaboramos um desenvolvimento

    desse quadro, ao acrescentarmos a varivel tecnolgica, que o elemento aglutinador, e

    a varivel da legalidade.

    Sugerimos que grande parte das solues de circulao on-line de cinema8 possa ser

    situada entre as variveis esquematizadas e tambm incorporar dualidades9, agregando,

    no mesmo servio, o grtis e o pago, o legal e o ilegal, o formal e o informal.

    8 Sendo possvel estender para outros produtos culturais.

    9 Trata-se de dualidades no excludentes, pois as plataformas podem adotar estratgias hbridas.

    Tecnologia

    Formal

    Grtis

    Ilegal

    Informal

    Pago

    Legal

    Grfico 1: Diagrama das variveis da circulao digital (elaborao do autor)

  • 33

    Podemos utilizar o diagrama acima para situar plataformas totalmente formais e pagas,

    como o Netflix10.

    Grfico 2: Diagrama das variveis do Netflix (elaborao do autor)

    Ou, para situar empreendimentos hbridos, como o prprio YouTube11, do Google:

    Grfico 3: Diagrama das variveis do YouTube (elaborao do autor)

    10 Plataforma de streaming de vdeos (televiso e cinema) desenvolvida em 2010, que, em poucos anos,

    expandiu mundialmente o seu mercado e alcanou posio de liderana na entrega de audiovisual digital,

    satisfazendo uma demanda considervel nos mltiplos suportes via internet, vendendo planos mensais para

    os seus mais de 50 milhes de assinantes em 2014. Fonte: G1, Tecnologia e games. Netflix alcana 50

    milhes de assinantes em todo o mundo. 21.07.2014 Disponvel em:

    Consultado em 16.08.2014.

    11 http://www.youtube.com (consultado em 04.05.2015)

    Streaming

    Grtis

    Ilegal

    Legal Formal

    Informal

    Streaming

    Pago

    LegalFormal

  • 34

    Ainda, aplicamos o diagrama ao Crackle 12 , que um servio de streaming

    multiplataforma subsidirio da Sony Pictures Entertainment,

    Grfico 4: Diagrama das variveis do Crackle (elaborao do autor)

    Ou ao Popcorn Time13, um aplicativo criado colaborativamente em 2014, baseado em

    streaming peer-to-peer,

    Grfico 5: Diagrama das variveis do Popcorn Time (elaborao do autor)

    Um outro exemplo, a distribuio que feita oficialmente no site da empresa BitTorrent,

    o Bundles14,

    12 http://www.crackle.com.br (consultado em 04.05.2015) 13 http://www.popcorntime.io (consultado em 04.05.2015) 14 https://bundles.bittorrent.com/ (consultado em 04.05.2015)

    Streaming

    Grtis

    LegalFormal

    P2P Streamming

    Grtis

    IlegalInformal

  • 35

    A seguir, nos deteremos a cada uma dessas variveis para que, ao final, seja possvel obter

    uma perspectiva um pouco mais clara sobre a ecologia da distribuio de vdeo na

    internet. Foi necessrio filtrar os elementos da varivel tecnolgica, tendo concentrado

    ateno ao que nos pareceu mais relevante para o contexto desta pesquisa, ou seja,

    enfatizamos tecnologias de circulao do audiovisual pela internet, especialmente as que

    so ferramentas no mbito da informalidade (streaming, cyberlockers, sites de link, peer-

    to-peer e BitTorrent).

    A varivel da formalidade aqui trabalhada a partir da apresentao da dicotomia formal

    e informal e sua posterior desconstruo. Demonstramos que, para cada lado dessa

    dualidade, existe um mbito extenso de pesquisa e prtica, o que nos levou a concentrar

    esforos em apenas apresentar os aspectos mais relevantes para a problemtica das redes

    de torrent cinfilas.

    A varivel econmica trabalhada a partir da conceituao de mercado em sua relao

    com a cultura e a propriedade intelectual. Apresentamos categorias conceituais que so

    utilizadas para compreender o impacto da pirataria na economia e na cultura, comentamos

    sobre as variveis relacionadas escolha entre o consumo grtis e o pago. Falamos sobre

    o impacto das novas tecnologias nos modelos econmicos e do papel promocional da

    pirataria. Ainda, fazemos uma breve apresentao do papel da cultura do grtis e o

    surgimento de novos modelos econmicos na sociedade digital.

    A varivel da legalidade ser trabalhada no terceiro captulo, onde explicamos as

    diferentes abordagens possveis da questo da legalidade e do papel discursivo, e portanto

    poltico, da pirataria.

    BitTorrent

    Grtis

    Pago

    Legal

    Informal

    Formal

    Grfico 6: Diagrama das variveis dos Bundles BitTorrent (elaborao do autor)

  • 36

    2.1. FUNDAMENTOS DA TECNOLOGIA DIGITAL E SOLUES PARA

    CIRCULAO DO AUDIOVISUAL NA INTERNET

    Tecnicamente, a circulao de mdia em ambiente digital requer trs camadas estruturais:

    fsica, lgica e de contedo (LEMOS, 2005). Cada camada controlada por determinados

    setores do mercado: a primeira, por grupos privados, correspondendo aos servidores,

    satlites, fibras ticas, torres de transmisso, etc.; a segunda, por empresas de software,

    linguagens e conhecimentos correspondentes tecnologia da informao; e a terceira

    regulada pela proteo propriedade intelectual e pela indstria da cultura. Os modos e

    distribuio digital relacionam-se com as trs camadas, abrangendo, assim, leis, normas,

    mercados e estruturas tcnicas.

    A relao entre essas camadas nem sempre est em equilbrio, muitas vezes ela depende

    de setores diferentes da sociedade. O avano da pirataria um resultado visvel desse

    desequilbrio, quando a possibilidade de acesso ao contedo de mdia foi, inicialmente, o

    mote central do desenvolvimento e consumo das tecnologias digitais de armazenamento,

    exibio e transferncia de dados. As pessoas foram estimuladas a consumir tecnologia

    justamente porque ela permitiria o acesso ao contedo informacional. Porm esse

    desenvolvimento tcnico foi muito mais rpido do que a adaptao da indstria do

    entretenimento s novas plataformas (CHRISTIN, 2010), o que resultou em um espao

    rapidamente ocupado pelos agentes informais.

    A transformao do contexto tecnolgico, nesse caso, promoveu desestabilizao de

    sistemas tcnicos e econmicos antecessores, induzindo substituies alternativas para as

    atividades dominantes (STIEGLER, 1998), ocorrendo a reorganizao das relaes

    funcionais entre os componentes fsicos, lgicos e simblicos (SIMONDON, 1980) que

    so utilizados na replicao do contedo.

    Sobre a estrutura comunicativa da internet, os modos de circulao do cinema apresentam

    diferentes lgicas e utilizam diversos tipos de linguagens e interfaces. Por isso, a sua

    variedade fundamentalmente uma variedade de programao: possvel transferir

    contedo de cinema a partir de diferentes softwares e interfaces interativas.

    Software um termo geral aplicado aos programas de computador, refere-se a um

    conjunto de cdigos que instrui a mquina e dialoga com outros programas para executar

    uma tarefa. Entre as tarefas que podem ser executadas, temos a computao matemtica,

  • 37

    a representao grfica, o processamento de texto, a organizao de dados, entre outras

    (CROWCROFT, 2010). Softwares, em geral, so divididos entre sistemas e aplicaes;

    estas executam as tarefas solicitadas por uma pessoa, enquanto os sistemas os do suporte,

    implementando uma srie de funes administrativas necessrias comunicao com o

    hardware (a mquina) e a manuteno de recursos e informaes, como a base de dados.

    Basicamente, o software formado pelo cdigo-fonte, linguagem utilizada pelos

    programadores; pela forma binria que entendida pelo computador; e pela interface

    grfica, um conjunto de modelos, interaes, palavras, imagens e movimentos que

    permitem o dilogo entre o usurio e a mquina.

    Os softwares dialogam entre si, mediados pela rede mundial de computadores, e permitem

    a circulao da informao utilizando protocolos de comunicao (CROWCROFT,

    2010). Como resultado, temos um sistema de comunicao eletrnica global, formado por

    pessoas e mquinas em interatividade; virtualidade disponvel que independe das

    configuraes especficas de um nico usurio (SANTAELLA, 2005). No espao

    informacional, dados so configurados e acessados por um nmero cada vez maior de

    pessoas, formam circuitos informacionais, navegveis em um ambiente hipermiditico

    composto por signos, sinais, imagens, grficos, movimentos e sons, que esto organizados

    por uma hiperssintaxe (ibid., p. 70) complexa e multicultural.

    A interatividade envolve ao, cooperao e correlao, pois os dados produzem efeitos

    uns sobre os outros, havendo mtua influncia entre emissores e receptores e tambm

    com relao ao sistema. Dilogo, hipertexto, sistema, automatismo, agenciamento,

    escolha e topografia so termos essenciais para se pensar o ambiente virtual (ibid.). As

    mensagens no esto situadas nos pontos de emisso ou recepo, mas esto presentes,

    disponibilizadas pelos sistemas que permitem trnsitos mltiplos da informao. Assim,

    o mundo digital intrinsicamente malevel e com alto grau de conexo (NEGROPONTE,

    1999).

    Ainda que no incio, o ciberespao tenha sido imaginado como paralelo e independente

    do mundo real, libertado de limitaes inerentes s relaes formalizadas e geogrficas,

    com o passar dos anos, ele foi percebido em maior conexo com a realidade fsica

    (LEMOS, 2002). O ambiente virtual tem caractersticas intrnsecas, pois est

    fundamentado em cdigos de programao e interaes bastante particulares, mas ele

  • 38

    tambm viabiliza uma srie de funes e interaes que fazem parte do corpo social como

    um todo. Mesmo que se admita que esses espaos esto integrados, no se pode, ainda e

    talvez nunca ser possvel, abrir mo da ideia de um ambiente virtual abstrato

    (SANTAELLA, 2010), pois se trata de uma esfera informacional de grandes propores

    que pode ser acessada a partir de qualquer localizao geogrfica, com o uso de

    dispositivos mveis. O ciberespao alm de abstrato, ganha, a partir desses dispositivos,

    um carter movente, que se desloca e participa da interao fsica, mas que no se

    extingue ou dissolve.

    O ciberespao um (...) espao de interao cujo acesso se d por meio de interfaces

    dos mais diversos tipos que permitem navegar pela informao miditica (...) meta-

    hiperdocumento pervasivo que cresce de modo interativo e permeia todas as esferas da

    vida humana (ibid., p. 71). Ele resultado de uma convergncia infraestrutural (redes),

    material (multifuncionalidade dos artefatos) e funcional (rotinas comunicacionais), que

    disponibiliza qualquer servio a qualquer momento, em qualquer lugar, em qualquer rede,

    aparelho ou dispositivo (ibid.). Essa convergncia tambm funde as quatro formas

    principais da comunicao humana: documento escrito, audiovisual, telecomunicaes e

    informtica, cujos suporte e transporte foram digitalizados.

    No ambiente virtual, o espao e o tempo so redefinidos; o tempo no somente

    sequencial e as interaes podem ser assncronas; os processos comunicativos passam a

    acontecer atravs de protocolos, estes formam diferentes redes simultneas que podem

    cruzar entre si ou no; assim, cada rede produz uma geometria prpria (CASTELLS,

    2009).

    Os ns so componentes fundamentais da rede, eles so pontos agregadores de

    informao e podem ser apagados e modificados, formando estruturas comunicantes com

    variados padres de contato, por onde passam os fluxos processados pelas ferramentas

    programadas. A programao define, a partir de instrues, como a rede funcionar,

    utilizando cdigos, parmetros, procedimentos e metas (ibid.). As redes so flexveis,

    reconfiguram seus componentes, podendo expandir-se ou contrair-se e, em geral, no

    possuem apenas um centro operante.

    O ciberespao um modelo informatizado estruturado em rede, que constitui um

    ambiente comunicativo no editado por um centro, mas disseminado transversalmente e

  • 39

    verticalmente de forma catica, multidirecional, entrpica, coletiva e, ao mesmo tempo,

    personalizada (LEMOS, 2002, p. 85). Trata-se da convergncia entre o social e o

    tecnolgico, sem ser um determinismo tecnolgico, mas um processo simbitico.

    Os sistemas so ambientes estruturados com determinado fim social; o escopo se

    manifesta em cada site ou servio de acordo com a sua poltica, com os meios que fornece,

    com a adeso do pblico e em consequncia de uma srie de determinaes. As solues

    tecnolgicas para a circulao de contedo de cinema, por exemplo, procuram satisfazer

    expectativas coletivas, demandas de consumo que foram geradas a partir das novas

    ferramentas de mdia.

    As ferramentas digitais auxiliam as pessoas a coordenarem prticas globalmente e

    localmente, desenvolvendo trocas e interaes (RHEINGOLD, 2002); nota-se uma

    tendncia de se formar quantidades cada vez maiores de pequenos grupos que desafiam

    as formas institucionalizadas de distribuir contedo, a partir de um trabalho colaborativo.

    Ocorrem, assim, reformulaes nos sistemas de trabalho, sociabilidade, cultura, consumo

    e distribuio (MITCHELL, 2000), o que no se deu ao acaso, mas foi diretamente

    pensado e impulsionou o desenvolvimento da prpria computao.

    Tanto a computao pessoal, quanto a comunicao digital ponto a ponto foram produtos

    de imaginrios tecnolgicos que sonharam com a mquina universal pensada por Alan

    Turing15, nos anos 1930. O espao de interao entre mquina e linguagem abriu-se como

    um campo de conhecimento a ser explorado, sendo, assim, a cultura colaborativa um

    agente veterano na construo do arsenal de comunicao digital que hoje temos. A

    prpria evoluo do computador foi resultado de um processo integrado de trabalho.

    Os computadores foram, inicialmente, vendidos como mquinas para o conhecimento

    (SCHFER, 2011) e o seu design foi altamente influenciado pela promessa de

    participao, despertando o imaginrio de uma srie de entusiastas tecnolgicos ao longo

    das dcadas. Ainda na dcada de 1960, o criador do mouse, Douglas Engelbart, j pensava

    na interao homem-mquina como uma oportunidade de aumentar o intelecto e, na

    dcada seguinte, o filsofo Ted Nelson com o Projeto Xanadu (uma rede de computadores

    com interface simples), j visionariamente pensava no que teria sido desenvolvido mais

    15 Modelo abstrato de um proto-computador que resolveria problemas lgicos, publicado em 1936.

    Basicamente, seria uma mquina que resolveria mecanicamente problemas a partir de uma estrutura de

    registros em fitas.

  • 40

    tarde por Tim Berners-Lee, a world wide web. Para Ted Nelson, os computadores

    passariam a ser, ao longo do tempo, um aspecto de tudo o que concerne vida humana,

    defendendo ativamente que as pessoas deveriam estar includas e integradas no

    desenvolvimento da computao, que, aos poucos, comea a ser vista como uma

    tecnologia de comunicao (ibid.). A realidade tecnolgica, sendo de natureza tanto

    simblica quanto material, apresentou o desenvolvimento da computao pessoal envolto

    em um imaginrio: o da comunicao digital libertadora, incluindo dimenses culturais e

    polticas.

    O ambiente da circulao de vdeo digital, alm de j ocorrer sobre uma malha

    tecnolgica construda pelos mais diversos agentes, principalmente nos modos informais

    de circulao, depende das apropriaes tecnolgicas da cultura participativa. Apropriar,

    no sentido da palavra, fazer prprio, fazer seu, fazer do seu jeito. pegar algo que est

    pronto e utilizar para uma funo especfica. H diversos nveis de apropriao das

    tecnologias, estes podem ser previstos pelo seu design ou podem ser imprevisveis,

    inovadores.

    A maleabilidade do software possibilita com que as tecnologias digitais sejam objetos

    facilmente apropriveis e tambm que um grande debate em torno da propriedade

    intelectual se estabelea; ao passo que o campo vai se tornando mais lucrativo, barreiras

    protetivas vo sendo colocadas e atores passam a desafiar essas mesmas barreiras,

    insistindo na apropriao ilimitada.

    A apropriao, portanto, fala muito da parte social que movimenta o desenvolvimento das

    tecnologias digitais. No caso da circulao informal de cinema, notamos exatamente um

    processo de apropriao de uma srie de recursos tecnolgicos e contedo que so

    arranjados via colaborao. A figura abaixo representa a dinmica de apropriao no

    contexto da circulao informal de cinema que observamos em nossa pesquisa:

  • 41

    Figura 1: Diagrama da apropriao Tecnolgica na Circulao Informal de Filmes (elaborao do autor)

    O diagrama da Figura 1 mostra que, em um contexto de linguagens e protocolos, ocorrem

    dois tipos de apropriao: a primeira (A) aquela que produz a estrutura para circulao

    do contedo e a segunda (B) aquela que disponibiliza e consome o contedo. A

    apropriao A , muitas vezes, conduzida por um grupo pequeno e altamente engajado,

    este definir as caractersticas da plataforma de distribuio e, consequentemente, do tipo

    de contedo. Certamente, a apropriao do consumidor tambm influenciar nos

    contedos, todavia, percebe-se, principalmente no universo dos grupos privados de

    BitTorrent, uma poltica relativamente centralizada que estabelece territrios para os

    contedos.

    A apropriao, portanto, sempre vai gerar arranjos particulares, de modo que toda funo

  • 42

    tecnolgica tem tambm um significado contextual (SCHFER, 2011). A tecnologia,

    sendo um nvel abstrato de conhecimento, composta por elementos, nveis tambm

    abstratos, de possveis relaes e automatismos entre foras, materiais, componentes e

    mecanismos lgicos, que unidos funcionalmente, em determinado momento e cadeia

    relacional, compem um aparelho, um objeto, uma individuao tcnica (SIMONDON,

    1980). Assim, o conhecimento tcnico e a atividade do operante garantem relativa

    autonomia no domnio das ferramentas; ao mesmo tempo em que os automatismos

    encadeados em certos processos e interfaces limitam a sua agncia.

    Simondon (ibid.) utiliza, para referir-se s relaes do homem com as individuaes

    tcnicas (especialmente as automaes) a dualidade mestre e escravo; o homem mestre

    quando tem a liberdade, o domnio de organizar os elementos e produzir processos cada

    vez mais aperfeioados (o que seria o exemplo do usurio BitTorrent mais ativo); mas ele

    tambm pode ser escravo, quando no tem conhecimento e responsabilidade direta sobre

    certas etapas da produo realizada nas individuaes tcnicas, tornando-se um

    alimentador das mquinas.

    As linguagens artificiais, como a ciberntica, tambm so formas de expresso; mas uma

    expresso que provm da individuao tcnica, onde os maquinismos agem como um

    outro ser, diferente do humano, mas com caractersticas humanas. Mquinas e

    automaes so indivduos que carregam heranas culturais, so resultados de

    conhecimentos, memria materializada. Nisso consiste a humanidade do objeto: a cultura

    no est afastada da tcnica, os objetos contm realidade humana.

    Mquinas e mecanismos, assim como ferramentas, so "entidades tcnicas" (ibid.), que

    compreendem um corpo de conhecimento e valores e promovem a mediao homem-

    natureza. Para a sua anlise, precisamos diferenciar o sentido de uma entidade da sua

    funo utilitria, pois alm de uma objetivao funcional, a entidade possui um

    significado social e econmico ainda maior do que o tecnolgico.

    A prtica pirata, via apropriao tecnolgica, portanto, envolve o desenvolvimento de

    habilidades prticas e de cooperao a partir do uso das ferramentas tcnicas e

    plataformas de mdia; tticas cotidianas, modos particulares de usos, narraes nicas de

    espao, de objetos e corpos (DE CERTEAU, 1998), recontextualizao e transformao

    das entidades dadas em formas expressivas de identificao individual e comunal. De

  • 43

    acordo com Mylonas (2012), as prticas de compartilhamento informal so a superao

    de obstculos dados pela tecnologia ou pela poltica, a partir de um uso particular de

    soluo tecnolgica, o que potencializa a participao dos indivduos no espao pblico.

    Apenas hoje, a internet comea a ser pensada como mecanismo eficiente de distribuio

    de contedo audiovisual, aps a circulao informal ter mostrado na prtica as

    potencialidades da distribuio digital. Por isso, o imaginrio da participao, pode-se

    dizer, moldou as bases da cultura digital a qual o cinema passa a se integrar.

    Com a Web 2.0, a questo da apropriao ficou muito mais explcita e a internet passou

    a ser uma feira livre de solues, servios, ferramentas: um mercado de utilidades, de

    objetos apropriveis. Contudo, ficaram muito mais delimitadas as formas e nveis de

    apropriao: profissionais e hackers apropriam-se de ferramentas especializadas para

    criar ferramentas para usurios finais, prosumers (TOFFLER, 1980) institucionalizam-se

    como uma nova classe cultural e o grande volume de pessoas interage com as plataformas

    recorrendo s suas funcionalidades mais simples (chat, notcias, blogs, busca, feeds,

    fruns, etc.) e inserindo informao no sistema.

    Um outro aspecto importante da varivel tecnolgica relaciona-se s limitaes tcnicas

    para a transmisso de vdeo na internet que, pode-se dizer, esto em processo de

    superao, dado o recente melhoramento no acesso banda larga (ainda longe de ser o

    ideal, principalmente em regies menos ricas ou mais isoladas) e o tambm recente

    desenvolvimento de telas maiores e melhores, e das tecnologias de compresso de vdeo,

    players e formatos. Tais limitaes interferiram diretamente na velocidade da

    transmisso, na qualidade da imagem e na disponibilidade ou facilidade de acesso ao

    contedo, elementos que dificultaram a consolidao de uma indstria eficiente para a

    distribuio digital de cinema, fato que apenas muito recentemente vem se revertendo.

    Outro fator sobre a tecnologia a questo da cpia. Se a propriedade intelectual determina

    regras sobre a cpia de contedo, o seu controle torna-se difcil quando a comunicao

    digital pressupe, essencialmente a cpia. Esta no uma varivel, mas uma constante

    tecnolgica, que situa o consumo cultural no centro do desenvolvimento da interao

    digital, pois um computador, pode-se dizer, uma mquina de copiar (SCHFER, 2011,

    p. 59), a cpia um recurso genuno e inevitvel da tecnologia computacional, ela o

    princpio bsico para a transmisso de dados e aponta para aspectos centrais da cultura

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    digital, como o compartilhamento peer-to-peer, o compartilhamento de arquivos, o

    streaming de mdia, o acesso ilimitado informao via download e a criao e

    distribuio de software16 (ibid.).

    Seguimos agora com apreciaes especficas sobre as tecnologias mais utilizadas para a

    circulao de cinema na internet.

    2.1.1. Streaming

    O termo streaming tecnicamente define um modo de transmisso de mdia (captado ao

    vivo ou gravado), que pressupe a simultaneidade entre a entrega e a recepo (exibio)

    e pode ocorrer tanto na forma analgica (rdio, televiso) quanto digital, neste caso h

    uma quantidade diversa de mtodos. Apesar de ser um termo aplicado a qualquer tipo de

    transmisso de contedo de mdia, streaming passou a ser utilizado mais comumente para

    referir-se entrega de vdeo sob demanda em redes IP (Internet Protocol17).

    Dentre as dinmicas possveis, pode-se classificar o streaming como streaming real, no

    qual o contedo recebido, exibido, mas no armazenado no aparelho receptor; e como

    streaming sob demanda/progressivo, que consiste no download temporrio dos dados no

    aparelho receptor (GRANT e MEADOWS, 2009).

    O streaming de vdeo em redes digitais apenas pode ser viabilizado ao final dos anos

    1990, quando a era multimdia comeou a se consolidar via computao pessoal, esta

    ficou mais eficiente e superou gradativamente as limitaes tcnicas para processamento

    e transmisso da informao audiovisual. Os protocolos de comunicao tambm ficaram

    padronizados e os softwares e solues de transmisso e recepo se desenvolveram com

    maior velocidade.

    Tanto o media player da Microsoft (Windows Media Player 6.4), quanto da Apple

    (QuickTime 4) e, tambm o RealAudio Player, j suportavam a transmisso on-line em

    formatos especficos na segunda metade dos 199018. Alguns anos mais tarde, a Adobe

    16 [it] aims at core aspects of digital culture, such as peer-to-peer file sharing, streaming media, unlimited

    access to information through downloading and the creation and distribution of software. [traduo nossa]